SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 issue3"Hearing on the patio": providing care and bonding as harm reduction practicesThe Regional Reference Centre on Drug Policy Education of Federal University of São João del-Rei and the Active Training Methodology as a teaching and learning tool author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.3 São João del-Rei Sept./Dec. 2016

 

O Ecomapa como ferramenta na formação para o trabalho em rede no campo de álcool e outras drogas1

 

Ecomap as a tool in training for network care in the field of alcohol and other drugs

 

El ecomapa como una herramienta en la formación de redes en el ámbito del alcohol y otras drogas

 

 

Pedro Henrique Antunes da CostaI; Daniela Cristina Belchior MotaII; Erica CruvinelIII; Pollyanna Santos da SilveiraIV; Telmo Mota RonzaniV

IFaculdade Machado Sobrinho. Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e outras Drogas. Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: phantunes.costa@gmail.com
IIUniversidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), Barbacena. Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e outras Drogas. Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: danielabelchior.mota@gmail.com
IIICentro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e outras Drogas. Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: ecruvinel@yahoo.com.br
IVUniversidade Católica de Petrópolis (UCP). Faculdade Machado Sobrinho. Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e outras Drogas. Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: pollyannassilveira@gmail.com
VCentro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e outras Drogas. Universidade Federal de Juiz de Fora. Bolsista de Produtividade CNPq, Pesquisador Mineiro FAPEMIG. E-mail: tm.ronzani@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo visa demonstrar o potencial do Ecomapa como ferramenta/instrumento no processo de formação para o trabalho em rede sobre a temática do uso de drogas. A partir disso, será apresentado um relato de experiência sobre a utilização do Ecomapa em um processo formativo para profissionais da saúde, assistência social e educação, como instrumento de identificação, mapeamento da rede de atenção aos usuários de drogas e fortalecimento do trabalho. Dessa forma, aponta-se o método e os resultados do uso do Ecomapa na formação do trabalho em rede na área de álcool e outras drogas, podendo ser utilizado não somente na prevenção e tratamento, possibilitando reflexões e uma formação contextualizada para o fortalecimento da articulação entre os serviços, integralidade do cuidado e trabalho em rede.

Palavras-chave: Ecomapa; educação permanente; drogas; redes; relato de experiência.


ABSTRACT

This article aims to demonstrate the potential of Ecomap as an instrument/tool in the training process for networking on the topic of drug use. An experience report will be presented on the use of Ecomap in a training process for health, social care and education professionals, as a resource of identification, mapping and strengthening of the care network. The method and results of Ecomap's use in training processes in the area of alcohol and other drugs are pointed out. Ecomap's use is not restricted to prevention and care, enabling reflection and contextualized formation to strengthen the coordination among services, comprehensiveness care and networking.

Keywords: Ecomap; continuing education; drugs; networks; experience report.


RESUMEN

En este artículo se pretende demostrar el potencial de Ecomapa como herramienta en el proceso de formación para el trabajo en red sobre el tema del consumo de drogas. Un relato de experiencia será presentado sobre el uso de Ecomapa en un proceso de formación de los profesionales de la salud, asistencia social y educación, como un dispositivo de identificación, asignación de la red de atención y fortalecimiento del trabajo. Para esto, son señalados el método y los resultados del uso de Ecomapa en la formación para el trabajo en redes en el área de alcohol y otras drogas, pudiendo no solo ser utilizado en la prevención y tratamiento, lo que permite la reflexión y la formación contextualizada para fortalecer la coordinación entre los servicios, la integridad de atención y el trabajo en red.

Palabras claves: Ecomapa; educación continuada; drogas; redes; relato de experiencia.


 

 

Introdução

Dentre os principais obstáculos que perpassam o trabalho na área de álcool e outras drogas, encontram-se as insuficiências referentes à formação profissional. Grande parte dos profissionais não se sente capaz de atuar com o tema e/ou concebe a questão a partir de vieses moralizantes e individualizantes - reduzindo-a a questões fisiológicas, psicológicas (Moraes, 2008; Silveira, Martins & Ronzani, 2009). Em conjunto com outros fatores, essas insuficiências formativas também contribuem para um cenário de ênfase no saber médico, focalizando a dependência e, consequentemente, os serviços especializados, em detrimento de um trabalho articulado e que visa à oferta de um cuidado contínuo e integral (Ronzani, Mota & Souza, 2009).

Contudo, por conta da própria complexidade da questão, deve-se pensar não somente na necessidade de capacitação, mas também nas concepções e representações sobre o tema, bem como os pressupostos e métodos que fundamentam esses processos formativos. Logo, enfoques meramente tecnicistas, focados em transmitir conteúdo, podem desconsiderar essa amplitude, restringindo as potencialidades de uma formação contextualizada, a partir da realidade vivida, problematizadora e que fomente subsídios para a atuação profissional (Costa et al., 2015).

Levando em consideração essa lógica ampliada, o trabalho em rede (a partir de redes de atenção) aparece como horizonte na área, buscando substituir os habituais sistemas hierárquicos e piramidais, os quais são formatados por níveis de "complexidades" crescentes, com relações de ordem e graus de importância entre os diferentes níveis assistenciais (Mendes, 2010). Parte-se do pressuposto de que um cuidado individualizado e fragmentado, em grande parte ocasionado por relações verticalizadas entre serviços e níveis de atenção, não abrange a complexidade do problema e propicia leituras descaracterizantes (Costa, Colugnati & Ronzani, 2015).

Destarte, as redes de atenção aos usuários de drogas têm sido apontadas como estruturas de governança e organização do trabalho na área, não se restringindo ao Sistema Único de Saúde (SUS) e seus arranjos, como a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mas incorporando outros setores, como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e recursos comunitários (Brasil, 2004a; 2005; Costa et al., 2015). Contudo, além das insuficiências em termos de formação, uma série de desafios surgem na concretização desses arranjos e perspectiva de trabalho, como o desconhecimento dos serviços pelos profissionais, falta de articulação etc. (Cortes et al., 2014; Costa, Mota, Paiva & Ronzani, 2015). Assim, apesar de não serem panaceias, considera-se que essa perspectiva possibilite a construção e/ou fortalecimento do cuidado contínuo, integral e contextualizado, com promoção de saúde, prevenção, tratamento e inserção social dos usuários.

Inseridas nesse contexto formativo e de atuação deficitários, as propostas de formação na área não devem levar em consideração apenas aspectos teóricos e práticos, mas, principalmente, os pressupostos ético-políticos inerentes a questões complexas, como o uso de drogas, ligadas a uma série de determinações sociais, bem como a concepções morais, estigmatizantes etc. (Silveira et al., 2009). Ademais, deve-se oportunizar a realização de abordagens integrais que abarquem promoção de saúde e aspectos sociais, suporte a familiares, em conjunto com ações preventivas e de cuidado. Sendo assim, faz-se necessário pensar na modificação e incorporação de mecanismos nos processos formativos para que propiciem leituras ampliadas e contextualizadas, facilitando a interlocução entre os atores envolvidos e o cuidado integral.

Nessa direção, uma ferramenta que pode ser inserida nos percursos formativos sobre álcool e outras drogas, de modo a potencializar o trabalho em rede, é o Ecomapa. Frequentemente utilizado no cuidado de diversas condições de saúde (Souza & Kantorski, 2009; Tszesnioski, Nóbrega, Lima & Facundes, 2015), esse instrumento tem como objetivo avaliar as relações estabelecidas com o meio social, sendo como uma visão gráfica do sistema ecológico de uma determinada família, usuário ou serviço, permitindo que as relações com o contexto no qual se insere sejam conhecidas e avaliadas. Para isso, utiliza diferentes representações gráficas para traçar a força e tipo de vínculos estabelecidos com a rede social existente, envolvendo família, amigos, recursos comunitários, serviços de saúde etc. (Chiaverini, 2011).

Pensando na formação para o trabalho em rede na área de álcool e outras drogas, o Ecomapa desponta como um instrumento com potencial pedagógico na compreensão abrangente dos equipamentos, instituições, grupos do território, atores comunitários e das relações dos serviços com a comunidade que podem servir de suporte para implantação de ações no território. Logo, pode ser considerado uma ferramenta que possibilita visões compreensivas sobre a questão e oportunizando um trabalho que considere esse contexto e busque fortalecê-lo.

A partir do exposto, o presente artigo visa demonstrar o potencial do Ecomapa como instrumento a ser utilizado no processo de formação para o trabalho em rede sobre a temática do uso de drogas. Para isso, apresentaremos um relato de experiência sobre a utilização do Ecomapa em um processo formativo, enfocando a atuação nas políticas sobre álcool e outras drogas, destinado a profissionais do SUS, SUAS e Educação.

 

Método

O processo formativo ao qual o relato se refere foi vinculado a um Centro Regional de Referência sobre Drogas (CRR) do município de Juiz de Fora-MG, responsável pela formação permanente de profissionais com atuação sobre o tema. Sua duração foi de março a dezembro de 2015, almejando uma formação não apenas técnica e procedimental, mas também ética, política e socialmente compromissada. Os profissionais participantes eram oriundos das redes municipais de saúde, assistência social e educação - assim como algumas escolas estaduais -, com inserção e trabalho com a questão do uso de drogas.

Buscou-se desde o princípio aliar a parte teórica e conceitual com a prática e realidade vivenciada pelos profissionais, de forma dialógica e problematizadora, fundamentando-se nos preceitos da Educação Permanente em Saúde (Brasil, 2004b). Visando proporcionar essa perspectiva de formação no serviço, contextualizada e horizontal, diversas ações e ferramentas foram lançadas ao longo do processo formativo, como: inserção e familiarização com os serviços e seus contextos, visitas semanais aos dispositivos, sensibilização, oficinas intersetoriais, entrevistas formais e informais, delineamento de projetos de intervenção pelos profissionais e atores comunitários, acompanhamento e supervisão das ações, dentre outros.

Uma dessas ferramentas, o Ecomapa, foi utilizado prioritariamente em oficinas intersetoriais no início e no fim do processo formativo. No início do percurso, o uso do Ecomapa objetivou: 1. compreender e refletir sobre a realidade prática vivenciada pelos profissionais com atuação sobre o tema, de modo a trabalhar em conjunto na proposição de ações, metodologias e propostas que partissem da discussão e problematização desse cenário; 2. possibilitar que os profissionais identificassem os recursos que possuem à disposição para realização de um trabalho em conjunto na área; 3. analisar e refletir sobre os vínculos estabelecidos com outros serviços, pensando em formas de fortalecê-los e/ou estabelecer novas parcerias;4. apresentar o próprio Ecomapa e suas potencialidades, como um instrumento, muitas das vezes desconhecido, mas que pode ser utilizado cotidianamente nas práticas de diversos profissionais, serviços e setores.

Optamos pela utilização do Ecomapa por serviço. Nesse sentido, os profissionais envolvidos nos processos formativos foram orientados a posicionarem sua unidade de atuação no centro do Ecomapa e a identificar os recursos (serviços governamentais ou não governamentais, atores-chave da comunidade etc.) existentes na área de abrangência e a desenhar quais eram as relações estabelecidas com eles. Por exemplo, se um grupo de profissionais trabalhava em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) específica, eles desenhariam o Ecomapa dessa UBS, com os serviços de sua área, juntamente com as relações existentes (Figura 1).

 

 

Os profissionais tiveram aproximadamente uma hora para elaboração dessa atividade. No intuito de direcionar e sistematizar as ações, um roteiro foi produzido e entregue contendo: objetivos da ação, orientações e instruções e descrições sobre a forma de se fazer as relações, legendas e exemplos (de acordo com a Figura 1). Posteriormente, cada equipe teve 15 minutos para a apresentação do Ecomapa de seu serviço. No fim, foram destinados 40 minutos para que os grupos relatassem suas impressões e avaliassem a utilidade da ferramenta em seus contextos de atuação. Durante o processo de elaboração e discussão dos Ecomapas, monitores atuaram no esclarecimento de dúvidas e um mediador direcionou as etapas da atividade.

O outro momento de utilização do Ecomapafoi nas últimas oficinas intersetoriais, de modo a observar modificações nas relações estabelecidas entre os serviços, assim como o fortalecimento de vínculos e trabalho em rede. Para isso, o mesmo procedimento foi realizado, com a utilização do mesmo roteiro. No fim da atividade, novamente, todos os profissionais foram perguntados sobre suas impressões e avaliações sobre a ferramenta e sua utilização, apontando dificuldades e pontos facilitadores. Durante todo o processo envolvendo o Ecomapa, integrantes do CRR participaram esclarecendo dúvidas, mediando as discussões e realizando a observação participante, com diários de campo e a geração de relatórios sistemáticos.

O presente trabalho faz parte de um projeto aprovado pelo Comitê de Ética, Parecer nº 565.288. Os devidos cuidados éticos foram abarcados, com informes aos participantes, que consentiram com a realização do trabalho.

 

Resultados e Discussão

Como o enfoque do presente trabalho é apresentar as potencialidades do Ecomapa como ferramenta para o trabalho em rede no campo de álcool e outras drogas, não nos atentaremos à avaliação do processo formativo nem do trabalho em rede, como o número de participantes e de Ecomapas confeccionados, as intervenções implementadas, seus efeitos, desafios, facilidades etc. Os resultados apresentados e discutidos a seguir estão relacionados com as falas e impressões advindas dos profissionais e da observação participante referentes à utilização do Ecomapa. Adicionalmente, tomaremos alguns exemplos construídos ao longo das intervenções, como forma de ilustrar essas impressões e a observação.

Visando a uma melhor estruturação e compreensão dos resultados e discussão, eles encontram-se divididos em dois eixos temáticos: "Potencialidades do Ecomapa no processo formativo", que se refere às contribuições do instrumento na forma e dinâmica da formação; e "O Ecomapa como fomentador de reflexões sobre o trabalho em rede", mais voltado para suas contribuições na problematização da prática e atuação articulada. Contudo, essa divisão possui intenção meramente didática, pois são temas complementares.

 

Potencialidades do Ecomapa no processo formativo

A Figura 2 apresenta um dos Ecomapas produzidos no início do processo formativo. Conforme supracitado, ele foi confeccionado por profissionais de um mesmo serviço, no caso uma UBS. Os nomes de alguns dispositivos e os locais foram retirados, de modo a assegurar o anonimato, restando somente suas tipologias (UBS, Centros de Referência da Assistência Social - CRAS, Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas - CAPSad, escolas etc.).

Apesar de a rede ser composta por dispositivos de diferentes setores (saúde, educação e assistência social), e considerar recursos da própria comunidade (igrejas, associação de moradores e conselho de saúde local), as relações são, em grande parte, superficiais e personalizadas em alguns atores, conforme dito pelos profissionais. As exceções são os vínculos estabelecidos entre a UBS com um CAPS, um CRAS e, principalmente, com o conselho local de saúde, cuja relação é caracterizada por um mútuo suporte. Destarte, observamos como a utilização do Ecomapa pode fomentar, desde o princípio da formação profissional, a lógica de trabalho em rede integral e intersetorial, indo em direção ao preconizado pelas políticas na área (Brasil, 2004a; 2005), em detrimento de propostas fragmentadas, hierarquizadas e individualizadas.

Inicialmente, grande parte dos profissionais relatou não conhecer o Ecomapa ou apenas disse já ter ouvido falar sobre ele, sem terem lançado mão dessa ferramenta em suas práticas. Apesar disso, no decorrer das ações e do contato com o Ecomapa, os participantes das oficinas avaliaram positivamente o instrumento, bem como as discussões e reflexões suscitadas por ele e a sua utilização posterior para a proposição de ações.

Consonante a esses aspectos, o Ecomapa aparece como um instrumento que possibilita a articulação entre teoria e prática, contextualizando os conteúdos e temas a serem abordados na formação. As informações propiciadas pelas discussões a partir da confecção dos Ecomapas, permitiram à equipe pedagógica do CRR aprofundar a compreensão e reflexão sobre a realidade vivenciada pelos profissionais e, a partir daí, propor temáticas e ações que abordassem as vicissitudes desses contextos. Assim, viabiliza-se a aliança entre diferentes conhecimentos advindos de variadas posições e papéis, estabelecendo relações de aprendizagem horizontais, em detrimento de uma falsa dicotomia entre academia e prática.

Acreditamos que, dessa forma, seja possível ofertar uma maior gama de subsídios concretos para a prática dos profissionais ao tomar sua realidade como parâmetro, em vez de uma perspectiva conteudista e do estabelecimento a priori e verticalmente de ementas e propostas pedagógicas, que muitas vezes mostram-se demasiadamente idealizadas e fora da realidade dos profissionais. Conforme apontado por Costa et al. (2015), essa lógica tradicional de ênfase na transmissão de conteúdo unilateral mostra-se incongruente com a própria finalidade dessas práticas formativas, que é a produção de conhecimento que se sustente nos processos de trabalho e sirva para repensar e potencializar a atuação profissional.

No fim do processo, com a confecção dos Ecomapas pelos mesmos serviços, foi possível compreender de forma contextualizada alguns aspectos referentes à articulação dos dispositivos e do trabalho em rede. Como exemplo, a Figura 3 traz um Ecomapa construído pelo mesmo serviço, só que nas últimas oficinas. Comparando as Figuras 2 e 3, podemos constatar um acréscimo no número de relações, com mais dispositivos parceiros e o fortalecimento de alguns vínculos, mas também desconsiderações de parceiros mencionados anteriormente. Uma limitação desse método diz respeito a possíveis vieses de respostas dos profissionais, como o esquecimento de alguns serviços ou mudanças de opinião (tanto no início quanto no fim).

Entretanto, é possível observar o potencial do Ecomapa, ao ser aplicado ao longo do tempo, como um instrumento de apoio e avaliação sobre a rede e a própria formação (caso o objetivo seja compreender as reverberações do processo formativo). Esse fator é decorrente de visões dinâmicas e processuais possibilitadas por essa ferramenta sobre a conformação dos vínculos - novas relações, fortalecimento de laços frágeis etc. - e das possíveis reverberações do processo formativo nessa configuração. Uma sugestão aos trabalhos futuros é empregar o Ecomapa durante várias etapas do processo, não somente no início e fim, aprofundando essa capacidade dinâmica e apresentando mais subsídios para os momentos teóricos e práticos.

 

O Ecomapa como fomentador de reflexões sobre o trabalho em rede

Conforme é possível elucidar, o Ecomapa além de ser uma ferramenta capaz de potencializar o processo formativo, pode fomentar reflexões sobre os serviços, atuações e a perspectiva de trabalho em rede, o que foi relatado pelos profissionais. Foram apontadas como principais dificuldades: a fragmentação do trabalho, a superficialidade e personalização das relações, a alta rotatividade profissional, dentre outros aspectos corroborados pela literatura (Cortes et al., 2014; Costa et al., 2015; Moraes, 2008). Entretanto, apesar dessas dificuldades, também foi possível pensar em pontos de facilitação, bem como visualizar caminhos que podem ser trilhados, laços que podem ser fortalecidos e novas possibilidades de articulação.

A partir da participação e contribuição de vários integrantes das equipes na realização do Ecomapa, pode-se contribuir com uma lógica integral, intersetorial e interdisciplinar de trabalho. Ademais, o momento posterior de discussão dos resultados também propiciou a percepção e discussão conjunta sobre as realidades, que muitas das vezes são semelhantes, mas desconhecidas. Um cuidado a ser tomado na confecção dos Ecomapas é a presença de atores de outros serviços com os quais os vínculos estão fragilizados ou rompidos. Pode existir um receio de falar abertamente sobre a situação a partir do momento em que profissionais de vários dispositivos estão no mesmo local, o que pode influenciar para distorção de informações e um distanciamento da realidade. Deve-se, então, ponderar a aplicação do instrumento com espaços que possibilitem diálogos, reflexões coletivas, mas sem restringir ou distorcer demasiadamente as informações.

Aliado a isso, está a visão aprofundada sobre o panorama local possibilitada pelo Ecomapa, com a importância de se considerar as particularidades dos diferentes contextos e localidades. Foi constatada uma série de diferenças entre os serviços, de acordo com os territórios de abrangência. Em alguns locais foi possível uma maior articulação e trabalho em rede, enquanto que em outros esta perspectiva ainda representava uma realidade distante. Isso nos leva a pensar que, apesar de estarem inseridos em uma mesma rede de atenção, deve-se compreender que as necessidades dos territórios que pautam as ações. Por isso, a importância de se ter uma ideia da rede geral, mas também das locais, dos bairros etc., como é possível de ser identificado a partir do momento em que os serviços confeccionam seus próprios Ecomapas.

Outro aspecto importante é o próprio mapeamento de recursos disponíveis no território, principalmente os de setores diferentes e os informais (serviços não governamentais, atores comunitários), cuja existência é percebida mais facilmente por quem vivencia essa realidade, como os profissionais. Isso é ainda mais relevante quando se observa, tanto nas falas quanto na literatura (Cortes et al., 2014; Costa et al., 2015), um desconhecimento sobre os próprios serviços da rede e recursos territoriais. Nesse sentido, a seguinte reflexão mostra-se pertinente: é possível consolidar uma perspectiva de rede (ou fortalecê-la) se não conhecemos os nós que conformam essa rede?

Assim, o Ecomapa pode contribuir para a minimização de um cenário de insuficiência de diálogo e trabalho em conjunto que pode ter como uma das causas o desconhecimento sobre o que existe em termos de recursos e possibilidades. Ademais, o conhecimento sobre os recursos existentes, bem como os vínculos instituídos com esses pontos, as fragilidades e potencialidades dessas relações, permitem elaborar estratégias de fortalecimento desses vínculos, o estabelecimento de novas parcerias, assim como um planejamento participativo baseado nas necessidades do território, fomentando o compartilhamento do cuidado integral e intersetorial.

Com rápidas buscas em base de dados, encontram-se vários relatos do Ecomapa no gerenciamento de casos em contextos diversificados da saúde, como: na análise da rede de apoio social de crianças com paralisia cerebral (Polita & Tacla, 2014); comparando o impacto de intervenções em crianças com transtornos mentais (Tszesnioski et al., 2015); discutindo as fragilidades da rede de cuidados de condições crônicas (Araújo, Reichert, Vasconcelos & Collet, 2013; Charepe, 2011); e também como instrumento de apoio no diagnóstico da realidade familiar (envolvendo análise das concepções de família e representações sociais) e para o planejamento das estratégias de ações em saúde (Moimaz, Fadel, Yarid& Diniz, 2011).

Na área de álcool e outras drogas, Souza e Kantorski (2009) destacam, em pesquisa com usuários de um CAPSad, que a partir da utilização dessa ferramenta "os usuários mostraram-se surpresos com o pequeno número de vínculos, ou seja, com sua rede social tão pequena". Segundo as autoras, o processo de colocar e visualizar no papel suas redes fez com que refletissem sobre si mesmos e seus contextos de vida, o que trouxe possibilidades de mudança. Conforme mencionado, observou-se um processo de reflexão semelhante nos profissionais, só que voltado para seus serviços e atuação, trazendo à tona o seguinte questionamento: dado seu potencial reflexivo, por que não expandir a utilização do Ecomapa para o gerenciamento dos serviços e do trabalho em rede, e não somente na perspectiva de cuidado?

Em detrimento dessa utilização do Ecomapa em vários contextos da atenção à saúde, possuindo fácil utilização e não precisando de materiais e técnicas sofisticadas, muitos ainda o desconhecem ou não percebem suas potencialidades. Logo, sua utilização em processos formativos na área de álcool e outras drogas também serve para que os profissionais possam se familiarizar com essa ferramenta, o que pode suscitar seu uso no cotidiano dos serviços e setores.

Por fim, o Ecomapa também possui um caráter integrativo, podendo ser utilizado em conjunto com outros instrumentos e procedimentos. Algumas possibilidades futuras são: articulações com mapas que utilizem georreferenciamento, outros tipos de sociogramas e recursos visuais, a Análise de Redes Sociais, com extração de medidas centralidade dos componentes da rede e de coesão (densidade, transitividade, distâncias), dentre outras.

 

Considerações Finais

De acordo com os objetivos e resultados apresentados, aponta-se o método e os resultados do uso do Ecomapa no processo de formação do trabalho em rede na área de álcool e outras drogas, não devendo ter sua utilização restrita à prevenção e ao tratamento. Devido aos seus potenciais, torna-se um instrumento importante nos processos formativos de profissionais que atuam na área, possibilitando reflexões e formação contextualizada para o fortalecimento da articulação entre serviços, integralidade do cuidado, intersetorialidade e trabalho em rede.

Cabe ressaltar que o presente trabalho é apenas um movimento inicial de incorporação e publicização dessa ferramenta na formação na área. Portanto, estudos futuros trarão mais subsídios sobre a utilização do Ecomapa, expandindo-a para outros cenários, ao levar em consideração alguns dos pontos aqui colocados, mas, principalmente, realizando leituras que confluam para a compreensão da temática do uso de drogas a partir do que ela é: complexa e dinâmica.

 

Referências

Agostinho, M. (2007). Ecomapa. Revista Portuguesa de Clínica Geral, 23, 327-30.         [ Links ]

Araújo, Y. B., Reichert, A. P. D. S., Vasconcelos, M. G. L. D., & Collet, N. (2013). Fragilidade da rede social de famílias de crianças com doença crônica. Rev Bras Enferm, 66, 675-681.         [ Links ]

Brasil. (2004a). Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Brasil. (2004b). Ministério da Saúde. Política de educação e desenvolvimento para o SUS: caminhos para a educação permanente em saúde: polos de educação permanente em saúde. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Brasil. (2005). Política Nacional sobre Drogas. Brasília: Conselho Nacional Antidrogas.         [ Links ]

Charepe, Z. B. (2011). (Re)descoberta de esperança na família da criança com doença crônica através do Genograma e Ecomapa. Texto contexto -enferm.,20(2), 349-58.         [ Links ]

Chiaverini, D. H. (Org.). (2011). Guia prático de matriciamento em saúde mental. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Cortes, L. F., Terra, M. G., Pires, F. B., Heinrich, J., Machado, K. L., Weiller, T. H., & Padoin, S. M. M. (2014). Atenção a usuários de álcool e outras drogas e os limites da composição de redes. Rev. Eletr. Enf., 16(1), 84-92.         [ Links ]

Costa, P. H. A, Mota, D. C. B., Paiva, F. S., & Ronzani, T. M. Desatando a trama das redes assistenciais sobre drogas: uma revisão narrativa da literatura. Ciênc. saúde colet., 20(1). 395-406.

Costa, P. H. A, Mota, D. C. B., Cruvinel, E., Paiva, F. S., Gomide, H. P., Souza, I. C. W. et. al. (2015). Capacitação em álcool e outras drogas para profissionais da saúde e assistência social: relato de experiência. Interface (Botucatu), 19(53), 395-404.         [ Links ]

Costa, P. H. A., Colugnati, F. A. B., &Ronzani, T. M. (2015). As redes de atenção aos usuários de álcool e outras drogas: histórico, políticas e pressupostos. In T. M. Ronzani, P. H. A. Costa, D. C. B. Mota, & T. J. Laport. (Org.). Redes de atenção aos usuários de drogas: políticas e práticas (pp. 41-66). São Paulo: Cortez Editora.         [ Links ]

Mendes, E. V. (2010). As redes de atenção à saúde. Ciênc. Saúde Colet, 15(5), 2297-2305.         [ Links ]

Moimaz, S. A. S., Fadel, C. B., Yarid, S. D., &Diniz, D. G. (2011). Saúde da Família: o desafio de uma atenção coletiva. Ciênc. saúde colet., 16, 965-972.         [ Links ]

Moraes, M. (2008). O modelo de atenção integral à saúde para tratamento de problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas: percepções de usuários, acompanhantes e profissionais. Ciên Saude Colet., 13(1), 121-33.         [ Links ]

Polita, N. B., & Tacla, M. T. G. M. (2014). Rede e apoio social às famílias de crianças com paralisia cerebral. Esc Anna Nery, 18, 75-81.         [ Links ]

Ronzani, T. M., Mota, D. C. B., & Souza, I. C. W. (2009). Prevenção do uso de álcool na atenção primária em municípios do estado de Minas Gerais. Rev. Saúde Públ.,43(1), 51-61.         [ Links ]

Silveira, P. S., Martins, L. F., & Ronzani, T. M. (2009). Moralização sobre o uso de álcool entre agentes comunitários de saúde. Psicol. teor.prat., 11, 62-75.         [ Links ]

Souza, J.,& Kantorski, L. P. (2009). A rede social de indivíduos sob tratamento em um CAPS ad: o ecomapa como recurso. RevEscEnferm USP, 43, 373-383.         [ Links ]

Tszesnioski, L. D. C., Nóbrega, K. B. G., Lima, M. L. L. T., & Facundes, V. L. D. (2015). Construindo a rede de cuidados em saúde mental infanto-juvenil: intervenções no território. Ciênc. saúde colet., 20, 363-370.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 29/03/2016
Aprovado em: 15/09/2016

 

 

1 Agradecimentos: CNPq, CAPES, FAPEMIG e SENAD.

Creative Commons License