SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número3O Ecomapa como ferramenta na formação para o trabalho em rede no campo de álcool e outras drogasDo tradicional ao inovador: a lógica de redução de danos na experiência de docência no curso de atenção psicossocial aos usuários de álcool e outras drogas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.3 São João del-Rei set./dez. 2016

 

O Centro Regional de Referência em Políticas sobre Drogas da Universidade Federal de São João del-Rei e a Metodologia de Formação Ativa como ferramenta de ensino e aprendizagem1

 

The Regional Reference Centre on Drug Policy Education of Federal University of São João del-Rei and the Active Training Methodology as a teaching and learning tool

 

El Centro Regional de Referencia en Políticas Públicas sobre Drogas de la Universidad Federal de São João del-Rei y la metodología de Formación Activa como herramienta de enseñanza y aprendizaje

 

 

Aline Gomes MartinsI; Christian Eduardo Resende SantosII; Regina Aparecida de Melo BagnolliIII; Geisa Fernandes Calvert SabinoIV; Maria das Mercês SabinoV; Amanda Soares DiasVI

IPsicóloga pela Universidade Federal de São João del-Rei. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais e Doutoranda pela mesma instituição e área. Psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS-AD) de Ouro Preto/MG. Professora no Centro Regional de Referência em Políticas sobre Álcool e Outras Drogas/ CRR-UFSJ. E-mail: alinepsicomartins@gmail.com
IIGraduando em psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Bolsista de extensão no Centro Regional de Referência em Políticas sobre álcool e outras drogas/CRR-UFSJ e Pesquisador PIIC. E-mail: christianeduresende@gmail.com
IIIGraduanda em enfermagem pela Fundação Presidente Antônio Carlos. Especialista em Gestão em Saúde Coletiva pela instituição de ensino Signoreli. Mestre pela Universidade Federal de São João del-Rei. Professora no Centro Regional de Referência em Políticas sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. E-mail: regisbagnolli@hotmail.com
IVPsicóloga pela FUMEC. Pós-graduada em gerontologia pela FUMEC e em atendimento a usuários de álcool e outras drogas pela PUC Minas. Mestre em educação, cultura e organizações sociais, com ênfase em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Minas Gerais de Divinópolis (UEMG). Doutoranda em psicologia pela Universidad del Salvador, Buenos Aires/AR. Professora no Centro Regional de Referência em Políticas sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. E-mail: geisafc@hotmail.com
VGraduada em psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei/MG. Especialista em atenção integral a usuário de álcool e outras drogas pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). Professora no Centro Regional de Referência em Políticas sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. E-mail: mercesabino@gmail.com
VIGraduanda em psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Bolsista de extensão no Centro Regional de Referência em Políticas Sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. Estagiária no CAPS AD (São João del-Rei). E-mail: aman.dadias@hotmail.com

 

 


RESUMO

A saúde mental brasileira é marcada por saberes e práticas baseados em aspectos estigmatizantes sobre o usuário de drogas. Mudanças foram possibilitadas a partir da reforma psiquiátrica. Contudo, o que vigorou durante anos deixou resquícios na rede de atenção ao usuário de álcool e outras drogas como nas políticas públicas. Os profissionais que lidam com esse tema almejam por formação. Para tanto, foram criadas estratégias de formação permanente, como os Centros Regionais de Referência em Políticas Públicas sobre Drogas (CRRs). O CRR da Universidade Federal de São João del-Rei é foco desse trabalho, bem como a metodologia de formação ativa. Esta nos possibilitou contemplar o tema das drogas a partir de uma proposta crítico-reflexiva que leve em consideração a experiência dos profissionais, sendo possível pensar em novas formas de ser e estar como profissionais e sujeitos ativos.

Palavras-chaves: Centros Regionais de Referência; metodologia de formação ativa; problematização.


ABSTRACT

The Brazilian mental health is marked by knowledges and practices based on stigmatizing aspects of the drug user. The psychiatric reform has allowed some changes. However, those primary knowledges left traces in public policy and in the care network for alcohol and other drugs users. Professionals who deal with this issue are eager to receive training. Therefore, strategies of continuing education were created, such as the Regional Reference Centers for Public Policy on Drugs (CRRs). The CRR from Federal University of Sao Joao del-Rei is the focus of this work, as well the as active training methodology. This methodology enabled us to contemplate the issue of drugs from a critical-reflexive proposal that takes into account the experience of professionals, allowing new ways of thinking and being as professionals and active subjects.

Keywords: Regional Reference Centers; active training methodology; problematization.


RESUMEN

La salud mental brasileira es marcada por saberes y prácticas basados en aspectos estigmatizantes sobre el usuario de drogas. La reforma psiquiátrica posibilitó algunos cambios. No obstante, ese conocimiento primario dejó huellas en las políticas públicas y en la red de atención a los usuarios de alcohol y otras drogas. Los profesionales que lidian con ese tema necesitan formación. Para ello, fueron creadas estrategias de formación permanente, como los Centros Regionales de Referencia en Políticas Públicas sobre Drogas (CRRs). El CRR de la Universidad Federal de São João del-Rei es foco de ese trabajo, además de la metodología de formación activa. Esta metodología nos posibilitó abordar el tema de las drogas a partir de una propuesta critico-reflexiva que lleva en consideración la experiencia de los profesionales, permitiendo nuevas formas de pensar y ser en cuanto profesionales y sujetos activos

Palabras claves: Centros Regionales de Referencia; metodología de formación activa; problematización.


 

 

Saberes e práticas sobre álcool e outras drogas: novos paradigmas em construção

O uso e abuso de álcool e outras drogas constituem-se como um fenômeno complexo, que envolve o sujeito, questões políticas, econômicas e, sobretudo, culturais e sociais. Uma compreensão ampliada dessa questão tem sido um desafio, em decorrência da perspectiva moralista e reducionista da sociedade diante do usuário de drogas. É comum encontrarmos na mídia, em segmentos religiosos e políticos, concepções que culpabilizam os sujeitos usuários e apresentam uma perspectiva de tratamento pautada em procedimentos médicos e estigmatizantes (Costa, Colugnati & Ronzani, 2015).

O modo como a questão das drogas é percebida na atualidade brasileira pode ser analisada a partir da trajetória histórica das políticas públicas de atenção à saúde. Em relação à política sobre drogas no Brasil, nota-se a hegemonia de uma lógica associada à ilegalidade de determinadas substâncias psicoativas e à condenação moral aos usos excessivos, o que contribui para a marginalização e desqualificação social dos usuários (Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas - CREPOP, 2013). Nesse contexto, o discurso médico foi empregado como forma de construir estratégias de controle em relação ao usuário de drogas, tido ainda como infratores, doentes e incapazes diante de sua patologia. Cenários que ainda são observados na atualidade e que se corporificam nos diferentes aparelhos das políticas públicas (Costa, 2014). Esse cenário de violação da liberdade de escolha dos sujeitos, embora transcorresse há anos, recebeu maior destaque em meados da década de 1970, mesma década em que se inicia o movimento de reforma psiquiátrica no Brasil.

Esse movimento, de cunho social e democrático, reivindica por um tratamento humanitário pautado na autonomia da vida, dos direitos humanos e da cidadania dos portadores de sofrimento mental. A partir do movimento da reforma, ainda vivo, novos modelos de tratamento foram criados, tais como os Centros e Núcleos de Atendimento Psicossociais (CAPS e NAPS) em diversas regiões do país (Amarante, 2001).

A discussão sobre os cuidados aos usuários de álcool e outras drogas está vinculada às propostas e ações da reforma psiquiátrica e da nova política de saúde mental, que passa a vigorar no Brasil principalmente após a promulgação da Lei nº 10.216 de 2001 (Brasil, 2001). O movimento da reforma psiquiátrica propicia uma nova concepção de saúde/doença, ao passo que diferentes modos de atenção para o tratamento de dependentes de drogas na rede pública passam a ser pensados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Contrapondo, assim, as concepções moralistas e/ou reducionistas vigentes com relação ao uso de drogas, passa a prevalecer uma leitura que contemple os determinantes sociais que interpelam o uso e abuso de drogas e os diferentes contextos sociais sob o qual as pessoas estão inseridas (Costa et al., 2015).

Aliado a essa nova perspectiva, o paradigma de Redução de Danos constitui-se mediante um conjunto de princípios e ações para abordar questões relacionadas ao tema das drogas. É uma estratégia que visa reduzir os problemas gerados pelo abuso de substâncias psicoativas, por meio da formulação de práticas inclusivas, que diminuem danos ao usuário e aos grupos sociais aos quais ele pertence, bem como estimula a autonomia do sujeito em seu tratamento sem a obrigação de abstinência como pré-condição (Cruz, 2014). Autores como Alves (2009) afirmam que essas significativas mudanças na legislação brasileira sobre drogas, a partir dos anos 2000, possibilitaram a existência de diversos modelos de atenção. No entanto, ocorrem contradições na organização política sobre drogas no Brasil, muitas vezes modelos divergentes em seus conteúdos e práticas são aproximados. Ao mesmo tempo em que é utilizado o discurso proibicionista das organizações internacionais baseado na repressão e criminalização sobre a demanda e oferta de drogas ilícitas, utiliza-se como referência para a elaboração de um modelo de atenção a perspectiva da redução de danos, bem como a prevalência dos direitos de cidadania dos usuários de álcool e outras drogas.

Contudo, o movimento de luta pela prevalência dos princípios da reforma psiquiátrica ainda continua. Vivemos em um contexto de construção epistemológica, a luta para a manutenção de um novo paradigma que não conseguiu permear todos os serviços de cuidados aos usuários de álcool e outras drogas, bem como a atuação dos profissionais e a posição de parte da população. A supremacia do saber médico em detrimento do saber psicossocial, a leitura depreciativa do usuário de álcool e outras drogas, a postura coerciva dos profissionais e instituições ainda estão presentes no cotidiano da saúde mental brasileira.

Na tentativa de responder às novas demandas de formação profissional, foram criadas estratégias de educação permanente, dentre elas os Centros Regionais de Referência em Políticas Públicas sobre Drogas (CRRs), uma iniciativa da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça (SENAD-MJ).

A Universidade Federal De São João del-Rei (UFSJ), implicada com a temática em questão, pleiteou um edital para abertura do CRR e foi contemplada. A fim de apresentar o CRR-UFSJ e a metodologia de formação ativa, baseada na problematização como ferramenta de trabalho, foi construído o artigo em questão.

 

Os Centros Regionais de Referência em Políticas Públicas Sobre Drogas (CRRs) como aliado na formação profissional

O abuso de álcool e outras drogas é um tema presente em diferentes realidades e pode produzir consequências em nível individual e social. Em decorrência da complexidade desse fenômeno, é necessária uma abordagem que trabalhe a prevenção, ofereça tratamento baseado em uma perspectiva ampliada, que valorize o sujeito em detrimento da droga, e a elaboração de políticas públicas que visem atender as necessidades dos usuários, familiares e da sociedade como um todo. Diante dessa necessidade, a formação profissional do trabalhador de saúde mental e dos demais serviços que se articulam em rede2 passa a ser questionada. A formação profissional baseada no saber médico, centrado na busca da abstinência e sustentada por um discurso moral está presente entre a maioria dos profissionais, seja ele da área da saúde, assistência social, educação, dentre outros (Costa et al., 2015).

Com o objetivo de responder às demandas de formação profissional, principalmente no que diz respeito aos profissionais ligados ao SUS, ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e Segurança Pública são criados os CRRs. Para além dos CRRs outras estratégias de educação permanente também são desenvolvidas a partir de iniciativas da SENAD, que não nos cabe aqui discorrer (Observatório Crack, é Possível Vencer, 2016).

O CRR foi implantado por meio do edital nº 002/2010/GSIPR/SENAD. Essa iniciativa está atrelada ao Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, conforme estabelecido no Decreto nº 7.179, de 20 de maio de 2010. O art. 2º, §III do referido decreto institui como um dos objetivos do plano "capacitar, de forma continuada, os atores governamentais e não governamentais envolvidos nas ações voltadas à prevenção do uso, ao tratamento e à reinserção social de usuários de crack e outras drogas e ao enfrentamento do tráfico de drogas ilícitas" (Brasil, 2010).

A proposta de formação profissional é possível por meio de parcerias estabelecidas entre a SENAD, gestores federais, estaduais e municipais e instituições públicas de ensino como universidades e faculdades. A instituição interessada elabora o projeto de constituição do CRR e concorre a editais lançados pela SENAD. Os editais são flexíveis no que se refere ao conteúdo trabalhado e metodologia utilizada, desde que estejam de acordo com a Política Nacional Sobre Drogas e de Saúde Mental (Observatório Crack, é Possível Vencer, 2016).

O CRR é um espaço de encontro que vai além da formação de profissionais para lidar com o tema das drogas. Permite contemplar as necessidades da rede que compõem o território, repensar práticas, propor ações políticas, de cuidado e atenção. Dentro dessa perspectiva, a UFSJ concorreu ao edital número nº 008/2014GSIPR/SENAD e foi contemplada com a abertura do CRR na instituição. As atividades iniciaram em agosto de 2015. Os alunos que frequentam o CRR da UFSJ formam um grupo heterogêneo. Diferentes saberes aprendendo e ensinando em conjunto. São pessoas trabalhadoras da área da educação, saúde, assistência social, ligados aos poder judiciário, organizações não governamentais, movimentos sociais, dentre outros. Independentemente da qualificação, grau de escolaridade, campo de atuação, todos compõem o corpo discente do CRR-UFSJ. O objetivo é oferecer um espaço de reflexão, debate e aprendizado sobre álcool e outras drogas, visto que esse tema está presente em diferentes realidades. Além disso, a experiência desses profissionais são ferramentas de aprendizado. O conteúdo trabalhado em sala de aula tem como ponto central e norteador a experiência desses sujeitos como atuantes na rede de atenção ao usuário e seus parceiros. A metodologia de formação ativa orienta toda a atuação didática dos docentes do CRR-UFSJ, o que será apresentado a seguir.

Outras experiências de CRRs podem ser contempladas em Minas Gerais, tais como os CRRs da Universidade Federal de Juiz de Fora, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de Minas Gerais. A metodologia de trabalho utilizada por cada um deles fica a cargo das equipes que compõem os centros e dos objetivos norteadores dos cursos.

 

A metodologia de formação ativa de ensino e aprendizagem

A aplicação da metodologia ativa, como método de ensino, é considerada recente no Brasil, implantada a partir dos anos de 2000, com o objetivo de formar profissionais da área do SUS. Ela surge a partir da implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais, para os Cursos de Graduação em Saúde (Prado, Velho, Espíndola, Sobrinho & Backes, 2012). Esse novo método de aprendizagem se apresenta como uma alternativa para atender às demandas da educação, despertar a curiosidade e a atenção dos alunos no processo de articulação entre teoria e prática (Berbel, 2011).

A metodologia ativa favorece a autonomia do aluno, gerando o fortalecimento da sua percepção, diante da apresentação da problematização de situações, de escolhas diante dos aspectos de conteúdos de estudo e de caminhos possíveis para o desenvolvimento de respostas ou soluções para os problemas (Berbel, 2011). Nesse processo de aprendizagem, o professor atua como facilitador para que o estudante realize as pesquisas e reflita sobre suas decisões com o intuito de atingir os objetivos estabelecidos.

A utilização desse novo método de ensino é considerada um desafio para os educadores. A criação é colocada como práxis, cujo objetivo é colaborar na criação de sujeitos críticos e reflexivos, corresponsáveis pela construção de seu próprio processo de aprendizado ao longo da vida (Prado et al., 2012).

Para Paulo Freire (1996), na educação de adultos, o que impulsiona a aprendizagem é a superação de desafios, em que a resolução dos problemas e a construção do conhecimento são determinadas pelas experiências prévias dos indivíduos. Diante disso, a metodologia ativa de ensino permite a aprendizagem significativa e não mais memorização mecânica, tendo como determinantes a compreensão e a complexidade do processo ensino-aprendizagem, assim como também seu caráter dinâmico (Prado et al., 2012). Dois instrumentos vêm sendo utilizados como ativadores a partir da metodologia de formação ativa, são eles: o Ensino pela Problematização e a Aprendizagem Baseada em Problemas (conhecida também pela sigla PBL iniciais do termo em inglês Problem Based Learning).

Neste artigo, o método de ensino que será utilizado na descrição das atividades do curso do CRR-UFSJ será o ensino pela problematização. Segundo Mitre et al. (2008), esse método teve início em 1980, na Universidade do Havaí, como proposta metodológica que pretendia estimular os estudantes a terem habilidades cognitivas e afetivas a partir de um currículo orientado para os problemas e tem como objetivo a participação ativa do discente como ator de transformação social na busca de soluções a partir da detecção de problemas reais.

O ensino pela problematização promove a mobilização reflexiva do aluno, quanto ao seu potencial social, político e ético, para que ele atue como um profissional e cidadão em formação. Com isso, é utilizado o diagrama denominado Método do Arco de Chaves Maguerez, apresentado pela primeira vez por Bordenave e Pereira, em 1989. Ele é composto por cinco etapas distintas, sendo a primeira etapa a observação atenta a determinados aspectos da vida cotidiana. Nessa observação, o aluno expressa suas percepções pessoais, efetuando, assim, uma primeira leitura da realidade (Moura & Barbosa, 2013).

A partir das observações realizadas, o estudante identifica os pontos-chave do problema e são movidos a refletir sobre as possíveis causas deste, utilizam, assim, a análise reflexiva com os pontos essenciais que devem ser abordados para a compreensão do problema. Nesse momento, os alunos se encontram na segunda etapa, na qual passam a perceber que os problemas são complexos e geralmente multideterminados. A partir da reflexão, são estimulados a uma nova síntese para a elaboração dos pontos essenciais que deverão ser estudados, para melhor compreender e encontrar formas de interferir na realidade e decidir soluções (Mitre et al., 2008).

A terceira etapa do estudo é a teorização ou investigação do problema. Nessa etapa, segundo Berbel (1996), o estudante pesquisa, analisa e avalia as informações pesquisadas, com o objetivo de solucionar a situação estudada a partir dos princípios teóricos que a sustentam. Eles se organizam em busca de informações que necessitam. As informações adquiridas são abordadas, analisadas e avaliadas quanto a suas contribuições para a resolução do suposto problema (Moura & Barbosa, 2013).

A quarta etapa seria a elaboração de hipóteses, construídas após o estudo e como produto da compreensão do problema, investigando-o de todos os ângulos possíveis (Berbel, 1996). A quinta e última etapa é a da aplicação à realidade, que ocorre quando as soluções viáveis encontradas pelo grupo podem ser utilizadas para diferentes situações e contextos. Ao fim da etapa, podem surgir novos desdobramentos do problema, exigindo do aluno o desenvolvimento do pensamento crítico e a responsabilidade pela própria aprendizagem (Mitre et al., 2008).

Em síntese, a Metodologia da Problematização tem uma orientação geral como todo método e caminha por etapas distintas e encadeadas a partir de um problema detectado na realidade. Tem como propósito central preparar o estudante para a tomada da consciência de seu mundo e atuar intencionalmente para transformá-lo (Prado et al., 2012).

 

Relato de experiência

O CRR-UFSJ: potencialidades e estratégias pedagógicas

O CRR-UFSJ atende em torno de 160 alunos, divididos em 10 turmas, com uma média de 16 alunos por sala. As aulas acontecem uma vez por semana com cinco turmas por vez. Sendo as outras cinco contempladas na semana posterior. Dessa forma, as aulas ocorrem para cada turma em um esquema quinzenal. Cada sala é assistida por dois professores e um monitor, o que possibilita uma maior atenção ao aluno e o uso de uma metodologia dinâmica e problematizadora. As aulas têm duração de 2 horas. Ao término destas, os dez professores e monitores, bem como toda a equipe que compõe o CRR-UFSJ, equipe pedagógica, secretária, se reúnem para discutir aspectos relacionados à aula, problematizar questões, refletir sobre as mudanças possíveis e avanços conquistados, sempre pautados na proposta de metodologia de formação ativa. As experiências relatadas pelos estudantes, os desafios enfrentados, as perspectivas apresentadas são conteúdo de estudo da equipe. Essa postura possibilita aos membros do CRR compreender a dinâmica das turmas, trocar experiências e se orientar sobre possíveis maneiras de mediar e provocar os debates das próximas aulas.

Pautados na metodologia de formação ativa, o CRR-UFSJ acredita que educar é um processo de aproximação crítica da realidade a fim de compreendê-la, refletir, e atuar em busca de transformações coletivas. Os saberes e práticas do CRR-UFSJ estão pautados em alguns princípios norteadores baseados nas propostas do ensino pela problematização, que contemplam o Arco de Chaves Maguerez. As palavras de ordem são: observação, reflexão, teorização, investigação, elaboração e ação/aplicação. De maneira geral, atuamos na tentativa de conduzir o estudante, por meio de debates, a refletir sobre sua realidade, discutir em grupo o problema, tentar identificar os pontos-chave deste, elaborar hipóteses sobre as causas, na tentativa de resolução e aplicabilidade na prática. O aluno é estimulado à tomada de consciência dos processos sociais envolvidos nos problemas enfrentados no cotidiano de trabalho. Sendo assim, as reflexões perpassam o nível micro e macro da situação estudada.

Prezamos por uma relação democrática entre aluno e professor, sendo este o mediador da aprendizagem, sempre instigando uma postura crítica-reflexível no aluno, responsabilizando-o pela construção do seu conhecimento. Outro aspecto valorizado é o trabalho em conjunto, a troca de saberes a partir de diferentes experiências, o estímulo a conhecer a realidade do colega, o cotidiano de outros profissionais que estão na rede. Estímulo à cultura da cooperação, do trabalho compartilhado, da troca de informações, da reflexão, da crítica, para que essa experiência possa ser levada da sala de aula para a prática do profissional.

Atuar a partir de uma metodologia problematizadora, aberta, que rompe com o convencional não é tarefa fácil. Foram necessários muitos momentos de encontro e discussão por parte da equipe do CRR a fim de construir em conjunto a proposta do centro e a forma como a dinâmica deste seria conduzida.

Os alunos do CRR-UFSJ e ao mesmo tempo profissionais que atuam na rede do município de São João del-Rei e região apresentam durante as aulas queixas que perpassam o cotidiano de trabalho, tais como: falta de conhecimento sobre o assunto; dificuldades em atuar em rede por diferentes motivos; dúvidas sobre como acolher e agir com o usuário e demais sujeitos envolvidos; falta de recursos financeiros; impedimentos políticos; técnicas de trabalho engessadas que são impostas como norteadoras da atuação do profissional, dentre outros. Diante dessa realidade, nada melhor do que trabalhar a partir de uma metodologia que possibilite ao aluno levar para a sala de aula a realidade vivenciada com o intuito de compreendê-la, trocar experiência e possivelmente transformá-la. A educação permanente precisa estar pautada em um processo de autogestão do conhecimento. A partir do momento que o profissional compreende que o conhecimento pode e deve partir dele, sua postura pode mudar e possivelmente os serviços que os alocam também.

O dia a dia do CRR-UFSJ é pautado em muitos desafios e conquistas. A compreensão dos alunos sobre a metodologia do curso, sobre a ruptura com uma forma de ensino e aprendizagem baseados em métodos tradicionais foi demorada. Os estudantes demonstravam uma preocupação com a teoria, como escrever e ter aulas teóricas expositivas. Ao passo que compreenderam que as experiências cotidianas seriam nosso instrumento de trabalho, as aulas se tornaram mais ricas. Também foi possível entender que isso não significa uma negação da teoria, mas que ela estaria presente em nossos debates, sustentando nossa posição e contribuindo na solução dos nossos problemas articulados com a prática cotidiana.

Algumas estratégias como estudos de caso levados pelos alunos, vídeos que retratam realidades próximas às vividas pelos estudantes, dinâmicas, dramatizações de situações presentes no cotidiano de trabalho, palestras com profissionais referências em assuntos de interesse dos discentes, foram usadas a fim de incitar reflexões, críticas, elaborações e ações.

No que diz respeito ao debate sobre álcool e outras drogas, foco do centro em questão, acreditamos que a metodologia de trabalho escolhida está de comum acordo com o objetivo de romper com uma perspectiva tradicionalista e conservadora diante do usuário de álcool e outras drogas. O CRR-UFSJ acredita e aposta na redução de danos como caminho para se pensar e conduzir as questões relacionadas às drogas. Da mesma forma que a redução de danos permite ao profissional uma relação mais livre com o usuário, pautada em um tratamento construído em conjunto e articulado à realidade dele, a metodologia de formação ativa permite ao aluno aprender e a valorizar a realidade onde se encontra como espaço de aprendizado e a compreender que o conhecimento é um processo livre e que depende do sujeito. São propostas que de alguma forma se unem e se articulam, mesmo que seja a partir da ideia de autonomia, responsabilidade e liberdade.

Em processo de finalização de um ano de curso, é possível observar uma mudança de discurso por parte dos alunos. A temática das drogas já não é mais abordada a partir de um olhar moralista, estigmatizante. A droga deixou de ser o ponto central dos debates em sala, cedendo lugar ao sujeito e à qualidade de vida dele. Novas possibilidades de prevenção, promoção e tratamento foram construídas e compreendidas a partir da experiência cotidiana articulada com a teoria e outras realidades. Da mesma forma, as queixas sobre o cotidiano de trabalho diminuíram e as aulas se enriqueceram com ideias pautadas em novas formas de pensar e agir, parcerias possíveis e principalmente com a responsabilização do profissional e aluno sobre a sua formação e atuação.

 

Considerações finais

A metodologia de formação ativa nos permite contemplar o mundo como uma rede de relações dinâmicas em constante transformação que exige do sujeito em formação uma postura ativa, crítica e reflexiva, considerando o conhecimento como algo inacabado em constante processo de construção. Utilizar a metodologia de formação ativa como uma ferramenta de trabalho do CRR-UFSJ nos possibilitou abordar o tema das drogas a partir de uma proposta autônoma que leve em consideração a experiência dos profissionais que participam do curso, sendo possível refletir sobre suas condutas e pensar em novas formas de ser e estar como profissionais que compõem a rede de assistência ao usuário de álcool e outras drogas e como sujeitos que fazem parte de uma sociedade em busca de novos paradigmas, que visem à liberdade e ao respeito, pautados nos princípios dos direitos humanos.

 

Referências bibliográficas

Alves, V. S. (2009). Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cad. Saúde Pública, 25(11). Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009001100002.         [ Links ]

Amarante, P. (1998). Loucos pela vida: A trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil (2a ed.). Rio de Janeiro. Editora: Fiocruz.         [ Links ]

Berbel, N. A. N. (1998). A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos e ou diferentes caminhos? Interface - Comunicação. Saúde. Educação, 2(2), 140-154. Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.scielosp.org/pdf/icse/v2n2/08.pdf        [ Links ]

Berbel, N. A. N. (2011). As metodologias ativas e a promoção da autonomia de estudantes. Ciências Sociais e Humanas, 32(1), 25-40. Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.proiac.uff.br/sites/default/files/documentos/berbel_2011.pdf        [ Links ]

Brasil (2001). Lei nº 10.216 Presidência da República, Casa Civil. Retirado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm

Brasil (2010). Decreto nº 7.179, de 20 de maio de 2010. Presidência da República, Casa Civil. Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7179.htm

Costa, P. H. A. (2014). Mapeamento da rede de atenção aos usuários de drogas: um estudo exploratório. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil.         [ Links ]

Costa, P. H. A. da, Colugnati, F. A.B., & Ronzani, T. M. (2015). As redes de atenção ao usuário de álcool e outras drogas: histórico, políticas e pressupostos. In Redes de Atenção aos Usuários de Drogas: políticas e práticas. T. M. Ronzani et al. (Org.). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Costa, P. H. A. da, Motta, D. C. B., Cruvinel, E., Paiva, F. S. de, Gomide, H. P. et al. (2015). Capacitação em álcool e outras drogas para profissionais da saúde e assistência social. Interface, 19(53), 395-404. Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141432832015000200395&script=sci_abstract&tlng=pt.         [ Links ]

CREPOP, Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (2013). Documento de referências técnicas para a atuação de psicólogas (os) em políticas públicas sobre álcool e outras drogas. Conselho Federal de Psicologia (1a ed.). Brasília. Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2014/01/CREPOP_REFERENCIAS_ALCOOL_E_DROGAS_FINAL_10.01.13.pdf

Freire, P. (1996). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra.         [ Links ]

Mitre, S. M. et al. (2008). Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Ciênc. saúde coletiva, 13(2). Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232008000900018        [ Links ]

Moura, D. G., Barbosa, E. F. (2013). Trabalhando com Projetos. Planejamento e Gestão de Projetos Educacionais (8a ed.). Petrópolis/RJ: Editora Vozes.         [ Links ]

Observatório Crack, é Possível Vencer [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2016. Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.brasil.gov.br/observatoriocrack

Prado, M. L, Velho, M. B, Espíndola, D. S, Sobrinho, S. H., & Backes, V. M. S. (2012). Refletindo sobre as estratégias de metodologias ativas. Esc. Ana Nery, 16(1). Recuperado em 20 fevereiro, 2016, de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-81452012000100023        [ Links ]

 

 

Recebido em: 01/04/2016
Aprovado em: 06/09/2016

 

 

1 Agradecimentos ao Centro Regional de Referência em Políticas Sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ e à Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD/MJ).
2 Para os fins deste artigo, compreendemos rede como um conjunto de serviços estruturados e orientados com base em políticas públicas, que se articulam entre si e em parceria com os atores sociais, com o objetivo de atender às diferentes demandas da população (Costa et al., 2015).

Creative Commons License