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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.3 São João del-Rei Sept./Dec. 2016

 

Do tradicional ao inovador: a lógica de redução de danos na experiência de docência no curso de atenção psicossocial aos usuários de álcool e outras drogas1

 

From the traditional to the innovative: the harm reduction logic in the teaching experience in a course about psychosocial attention to alcohol and other drugs' users

 

De lo tradicional a lo innovador: la lógica de reducción de daños en la experiencia de docencia en el curso de atención psicosocial a los usuarios de alcohol y otras drogas

 

 

Geisa Fernandes Calvert SabinoI; Amanda Soares DiasII; Maria das Mercês SabinoIII; Aline Gomes MartinsIV; Christian Eduardo Resende SantosV; Regina Aparecida de Melo BagnolliVI

IPsicóloga pela FUMEC. Pós-graduada em gerontologia pela FUMEC e em atendimento a usuários de álcool e outras drogas pela PUC Minas. Mestre em educação, cultura e organizações sociais, com ênfase em saúde coletiva pela Universidade Estadual de Minas Gerais de Divinópolis (UEMG). Doutoranda em psicologia pela Universidad del Salvador, Buenos Aires / AR. Professora no Centro Regional de Referência em Políticas sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. E-mail: geisafc@hotmail.com
IIGraduanda em psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Bolsista de extensão no Centro Regional de Referência em Políticas Sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. Estagiária no CAPS AD - São João del-Rei. E-mail: aman.dadias@hotmail.com
IIIGraduada em psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Especialista em atenção integral a usuário de álcool e outras drogas pela Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). Professora no Centro Regional de Referência em Políticas sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. E-mail: mercesabino@gmail.com
IVPsicóloga pela Universidade Federal de São João del-Rei. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutoranda pela mesma instituição e área. Psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas (CAPS-AD) de Ouro Preto/MG. Professora no Centro Regional de Referência em Políticas sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. E-mail: alinepsicomartins@gmail.com
VGraduando em psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Bolsista de extensão no Centro Regional de Referência em Políticas sobre álcool e outras drogas/CRR-UFSJ e Pesquisador PIIC. E-mail: christianeduresende@gmail.com
VIGraduanda em enfermagem pela Fundação Presidente Antônio Carlos. Especialista em Gestão em Saúde Coletiva pela instituição de ensino Signoreli. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei. Professora no Centro Regional de Referência em Políticas sobre Álcool e Outras Drogas/CRR-UFSJ. E-mail: regisbagnolli@hotmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo objetivamos relatar a experiência de docência no Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e Drogas do Centro Regional de Referência para Formação em Políticas sobre Drogas - CRR /UFSJ. Recorreremos aos pressupostos teórico-metodológicos da Metodologia Ativa, em diálogo com a Política de Atenção Integral para usuários de Álcool e outras Drogas e a Redução de Danos. Essa experiência dialógica aconteceu por meio da utilização de dinâmicas de grupo, debates e palestras sobre a temática com os Grupos de Formação A e B, sendo o primeiro formado por cursistas do município sede e o outro formado por integrantes dos municípios que compõem a regional. Concluímos o quanto é instigante e desafiador trocar experiências sobre a temática, tendo como ponto de partida a formação com preceitos éticos, humanizados e contextualizados, sob a luz de metodologias participativas e problematizadoras.

Palavras-chave: políticas sobre drogas; metodologia ativa; redução de danos.


ABSTRACT

The aim of this article is to report a teaching experience in a Psychosocial Attention Program in Alcohol and Drugs of a Regional Center for Training Drug Policy, known as CRR / UFSJ. With the theoretical and methodological support of the Active Methodology, we dialogue with the Comprehensive Community Care Policy for Alcohol and other Drugs and harm reduction strategies. This dialogical experience occurred through the use of group dynamics, debates and lectures on the subject, with the formation of Groups A and B. The first group was formed by people from the local city and the second one was formed by people from neighboring cities. In conclusion, we emphasize how exciting and challenging the exchange of experiences on the subject is, considering the importance of having a course based on humanized and contextualized ethical principles, which was achieved by using participatory and problem-solving methodologies.

Keywords: drugs policy; active methodology; harm reduction.


RESUMEN

En este artículo pretendemos informar sobre la experiencia de docencia en el Curso de Atención Psicosocial en Alcohol y Drogas del Centro Regional de Referencia para la Formación en Políticas de Drogas - CRR / UFSJ. Utilizamos los supuestos teóricos y metodológicos de la metodología activa, en diálogo con la Política de Atención Integral para usuarios de Alcohol y otras drogas y la reducción de daños. Esta experiencia dialógica se produjo a través del uso de la dinámica de grupo, debates y conferencias sobre el tema con la formación de los grupos A y B, el primero formado por los participantes del municipio sede y el otro por miembros de los municipios que conforman la región. Llegamos a la conclusión de que es muy interesante y desafiador intercambiar experiencias sobre el tema, teniendo como punto de partida la formación con principios éticos, humanizados y contextualizados, a partir de metodologías participativas y problematizadoras.

Palabras claves: políticas de drogas; metodología activa; reducción de daños.


 

 

Introdução

No que se refere às políticas sobre drogas no Brasil, estão em prática discursos que são opostos entre si. Conforme apontado por Alves (2009), a Política Nacional sobre drogas associa o tráfico, o crime e a violência ao uso de substâncias e revela a postura do Estado no combate às drogas. Por outro lado, existem referências à redução de danos na legislação brasileira. No presente relato, diferentes discursos que se apresentam durante a construção das políticas sobre drogas serão apontados e será possível refleti-los diante da apresentação da dinâmica de formação continuada dos agentes desses discursos, durante o Curso de Atenção Psicossocial em Álcool e Outras Drogas do CRR - Universidade Federal de São João del-Rei.

O objetivo do presente artigo consiste em relatar uma experiência de docência, que se dá em um curso de formação de profissionais que lidam com pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas. Este artigo foi escrito por docentes do curso de formação de profissionais do CRR-UFSJ para relatar sua experiência de apresentar a proposta da redução de danos e do grande desafio de novas formas de se pensar a temática, voltando o enfoque para o sujeito e suas vicissitudes e não apenas para o objeto droga. O conteúdo é apresentado para profissionais, que ocupam no curso o lugar de discentes e são, com os docentes, atores na construção da rede de atenção aos usuários de álcool e outras drogas e, concomitantemente, agentes das políticas públicas que regem a temática.

Será apresentada, ainda, a metodologia utilizada para a formação dos profissionais que atuam na rede de saúde, assistência social, segurança pública e educação, bem como das lideranças comunitárias e pessoas envolvidas na rede complementar: grupos de mútua-ajuda e comunidades terapêuticas. Trata-se da metodologia ativa de ensino-aprendizagem, que facilita o diálogo entre docentes e discentes, considera o saber já existente e orienta-se no sentido da transformação. Por isso mesmo, a metodologia escolhida pela equipe apresenta desafios a serem superados, uma vez que supõe que há algo a ser construído (Mitre et al., 2008).

A relevância deste artigo se dá na oportunidade de se repensar as práticas dos profissionais envolvidos no cuidado de pessoas que fazem uso de substâncias, sabendo da existência de um sistema de crenças, pautado em valores morais, que permeia a relação entre os profissionais e os usuários do serviço de saúde. Este artigo é, em si, um desafio, porque diz de algo em construção.

 

Onde tudo acontece: CRR-UFSJ

Os Centros Regionais de Referência Sobre Álcool e Outras Drogas (CRRs) são voltados à formação de profissionais da rede de saúde, assistência social e segurança pública. Os CRRs têm vínculos com universidades e faculdades públicas, em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça, sendo que cada curso oferece de 80 a 160 vagas, abrangendo populações de número igual ou superior a 500.000 habitantes, com possibilidade de contemplar municípios menores, havendo parcerias com municípios vizinhos (Portal Brasil, 2016).

O CRR da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) foi inaugurado no dia 17 de setembro de 2015, com a conferência "Desafios na assistência e cuidado a usuários de álcool e drogas". Com o objetivo de favorecer a atuação dos profissionais e lideranças comunitárias que participam do curso de formação oferecido, o CRR-UFSJ parte da perspectiva de que o desenvolvimento da autonomia da pessoa que faz uso prejudicial de álcool e outras drogas deve ser enfatizado na prática dos profissionais. Nesse sentido, a metodologia de ensino adotada pelos professores do Centro relaciona-se à facilitação dessa possibilidade.

A fim de viabilizar o referido objetivo, a equipe do CRR-UFSJ adota a metodologia ativa de ensino, que concebe o discente como alguém que pode gerenciar a própria formação. Desse modo, o processo de ensino-aprendizagem é realizado com ênfase no respeito ao indivíduo que aprende, visto como construtor de sua própria história (Mitre et al., 2007). Ainda nessa perspectiva de se criar um ambiente de discussões inovadoras, de uma práxis pedagógica diferenciada e que propicie a crítica e a reflexão, Borges e Alencar (2014) argumentam que podemos entender metodologias ativas como formas de desenvolver o processo do aprender que os professores utilizam na busca de conduzir a formação crítica de profissionais nas mais diversas áreas.

No decorrer do processo de ensino-aprendizagem, os facilitadores de ensino do CRR-UFSJ trabalham no sentido de valorizar e utilizar os saberes do discente, buscando auxiliar uma aprendizagem que parta da realidade e da prática de cada um - elementos que, segundo a concepção adotada, são essenciais na construção do conhecimento. Parafraseando Mizukami (1986) "O conhecimento é uma 'descoberta' e é novo para o indivíduo que o faz (p. 2)".

O curso de formação do CRR-UFSJ é orientado na direção do aproveitamento da prática cotidiana e da sua ressignificação. Considera-se o discente um elo importante, situado em uma rede de trabalho que deve se ocupar do fomento à autonomia e da garantia de direitos de uma população, em um contexto de reprodução de desigualdades e manutenção da exclusão.

Segundo Bordenave (1987), participar de uma sociedade significa intervir ativamente em sua construção, para além de receber de maneira passiva os benefícios que estão à disposição. A participação relaciona-se à autonomia e à redução da marginalização, uma vez que indivíduos que participam de uma sociedade fazem a sua gestão e usufruem de sua produção. É essa a direção segundo a qual a equipe docente do CRR-UFSJ se orienta, de modo a favorecer que as pessoas que fazem uso da rede pública o façam de modo efetivo e que essa rede funcione em benefício da autonomia dos usuários dos serviços.

Apresentar a lógica da redução de danos no curso de formação está em sintonia com a proposta acima descrita, uma vez que as estratégias de redução de danos respeitam a singularidade da pessoa que faz uso de substâncias psicoativas, de modo a reduzir os danos à sua saúde e preservar a sua vida, evitando sua exposição a situações de risco. Essa lógica harmoniza-se, ainda, com a metodologia escolhida pela equipe docente, uma vez que os programas de redução de danos não encontram possibilidade de tornarem-se efetivos em intervenções que reforcem estigmas e que sejam autoritárias (Cruz, 2014).

Nesse sentido, a metodologia ativa de ensino é colocada em prática nas aulas associadas à apresentação de possibilidades de abordagem que vão além das que estão estabelecidas e que se mostram incipientes e reforçadoras de estigma.

Para Demo (2004), o ato de aprender pressupõe um processo reconstrutivo que permite o estabelecimento de diferentes tipos de relações entre fatos e objetos, que desencadeia ressignificações e que contribui para a reconstrução do conhecimento e para a produção de novos saberes, a partir de uma educação transformadora e significativa que rompa com o marco conceitual da pedagogia tradicional. Conhecimento e aprendizagem são fundamentais para o ser humano exercer a sua autonomia e sua cidadania, com argumentações e ética, para mudar a realidade e a sua vida.

A proposta político-pedagógica do CRR-UFSJ situa-se nas intersecções do campo da saúde mental e da redução de danos, focando na conquista, pelo sujeito, de uma relação com as drogas na qual haja menor exposição a riscos evitáveis, e no fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários para a construção de redes de apoio, sendo norteada pela Política Nacional sobre Drogas e a Política Nacional de Saúde Mental.

 

Do proibicionismo à redução de danos

A experiência a ser narrada assume a historicidade do consumo de substâncias que alteram a consciência por diferentes sociedades humanas, contexto basilar aos princípios defendidos pelos programas de redução de danos. Segundo MacRae (2014), a presença das substâncias psicoativas é realidade em diferentes sociedades e não deixará de ser, o que torna fundamental o desenvolvimento de estratégias para que seu uso seja o menos prejudicial possível, em nível individual e coletivo.

O recorte da história das práticas e saberes voltados para enfrentar o problema do consumo de drogas no século XX pode ser descrito como um caminho que vai da construção estigmatizante da figura do "viciado" à emergência da compaixão pelo doente/dependente de drogas e, por fim, à perspectiva de que o uso de drogas é condição indissociável à condição humana (Reale, 1997).

A construção de políticas públicas sobre drogas teve como primazia ofertar respostas a essas questões e perpassou, historicamente, pela visão de "guerra às drogas", na qual o pressuposto básico é o de uma sociedade livre das drogas, significando a predominância de discursos amedrontadores e excludentes quando se tentava prevenir o uso e, no campo da atenção à saúde, a preeminência de serviços voltados exclusivamente à abstinência. No Brasil, essa lógica ainda coexiste com a que reformula tais crenças e práticas, introduzindo a proposta de uma atenção integral aos usuários de álcool e outras drogas e que objetiva reduzir os danos sociais e à saúde. As estratégias de redução de danos se inscrevem como uma alternativa ao proibicionismo e se baseiam nos princípios de pragmatismo, tolerância e compreensão da diversidade (Machado, 2006).

Ao lado do pragmatismo e da tolerância, é importante ressaltar que a dimensão do cuidado, sob a égide da redução de danos, acontece no encontro de pessoas que irão contribuir, mutuamente, para a construção da autonomia e qualidade de vida dos usuários de álcool e outras drogas.

Como aponta Reale (1997), a lógica da redução de danos desloca o enfrentamento do tema "drogas" de uma intervenção de teor reativo para um agir criativo, que diz respeito a ações integrativas nas quais há uma aproximação com a cultura e realidade das pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas. A redução de danos permite mobilidade, servindo de ponte entre o sujeito e a sociedade. Criam-se condições favoráveis ao acolhimento dessas pessoas, sendo construídos, com elas, esquemas de proteção e de autocuidado, fundamentais para o exercício da cidadania (Conte et al., 2004).

Segundo Alves (2009), a redução de danos permite uma política que se faz "de baixo para cima", uma vez que viabiliza a organização política de usuários de substâncias e a articulação do sistema de saúde com outros dispositivos e setores sociais. É considerado que o tratamento pautado por essa orientação é de "baixa exigência", uma vez que permite conciliar o estabelecimento de metas intermediárias em vez de considerar a abstinência como única meta aceitável.

 

Relato da experiência

Apesar de muito já ter sido dito, pesquisado e revisado sobre o tema "drogas", questões importantes permanecem em aberto: onde avistamos o Homem? O que supomos saber sobre o seu sentir? Conseguimos ver onde ele realmente se encontra? Ele, de fato, existe para nós? Segundo Delbon (2006):

O outro é um sujeito que se vê como uma construção destruída ou mutilada , como um mapa borrado, onde as direções se confundem... O que fazemos é, aos poucos, situado na crença das possibilidades múltiplas inerentes ao humano, irmos acompanhando o ressurgimento do antigo, do novo, da pessoa reinventada (p. 349).

Por meio de atividades como dinâmicas de grupo, debates e palestras sobre a temática nos Grupos de Formação A e B, sendo o primeiro formado por cursistas do município sede e o outro formado por integrantes dos municípios que compõem a regional, percebeu-se que as turmas são heterogêneas, compostas por profissionais das áreas de saúde, assistência social, segurança pública, educação, bem como por lideranças comunitárias e integrantes de conselhos de direitos. Essa diversidade parecia ser um fator dificultador para a troca de conhecimentos, mas, na realidade, tornou-se um campo rico em possibilidades de diálogo, reforçando as ideias de complementaridade e de diversificação de saberes e práticas.

Alguns cursistas já tinham conhecimento da política de redução de danos, porém ainda não reconheciam tais estratégias em sua prática; outros colocavam em prática tais estratégias, sem se dar conta de que estavam colocando-as em seu fazer; e, ainda, outros não conheciam a respeito. Em todos os casos, percebe-se a resistência em introduzir e legitimar tais estratégias, uma vez que esbarramos nos dilemas abstinência versus redução de danos, colocados como situações antagônicas.

A construção anteriormente descrita, referente ao antagonismo entre redução de danos e abstinência, é errônea e frequente entre os discentes. A metodologia problematizadora e participativa possibilitou a reflexão de que nas estratégias de redução de danos não há a exclusão da possibilidade de abstinência, desde que seja a escolha definida pelo usuário e não pela imposição do profissional que o acompanha. Ficou evidenciado para a equipe docente que a escuta desprovida de pré-concepções por parte do profissional propicia uma relação pautada na corresponsabilização, instaurando a dimensão ética no exercício da autonomia e no respeito à singularidade dos usuários.

O conhecimento compartilhado no encontro entre docentes e discentes nesse curso possibilitou enxergar para além da conceituação do que é droga, ressignificando conceitos como padrões de consumo, epidemiologia e políticas públicas e fazendo com que ambos refletissem sobre a existência de um sujeito dono de escolhas e possibilidades que não se limitam apenas à sua relação com a droga. Avistamos, enfim, o homem, que existe para além do discurso e torna-se vivo.

Percebeu-se que, no estabelecimento e na construção das relações empáticas entre docentes e cursistas, quando se permite a ambos expressar e respeitar os saberes e as experiências vividas, a transmissão de práticas inovadoras - distintas do modelo tradicional e, portanto, desafiadoras -, poderia limitar-se a um campo de confronto e disputas. Contudo, o que se observou foi a apresentação de perspectivas instigantes e motivadoras para o cuidado com o usuário de álcool e outras drogas. Referimo-nos à motivação, uma vez que os relatos de experiências apresentados e discutidos entre os discentes em sala de aula impulsionaram a saída do campo teórico para a atuação e operacionalização dos saberes compartilhados. Foram também fonte de discussão com os outros docentes nas reuniões pedagógicas.

As ações da equipe docente do CRR da UFSJ promovem a construção de uma rede de atenção psicossocial composta por pessoas que refletem sobre sua atuação no interior da rede e sobre a condição dos usuários como parte integrante e participante dessa rede. Pressupõe-se permanente e inacabada a referida construção, de modo a constituir-se em fator transformador.

Essa perspectiva transformadora evoca mudanças didáticas na formação de profissionais, já que a complexidade que envolve a temática álcool e outras drogas exige novas competências além do conhecimento técnico. Tais competências referem-se à sensibilidade em lidar com o outro e ao comprometimento com uma prática emancipatória, de modo que, em seu cotidiano de atuação, o contato com o outro dê o tom da técnica a ser aplicada, evitando os discursos estigmatizantes. Para Mizukami (1986):

Há várias formas de conceber o fenômeno educativo não é uma realidade acabada que se dá a conhecer de forma única e precisa em seus múltiplos aspectos. É um fenônemo humano, histórico e multidimensional. Nele estão presentes tanto a dimensão humana, quanto a técnica, a cognitiva, a emocional, a sociopolítica e cultural. Não se trata de mera justaposição das referidas dimensões, mas, sim, da aceitação de suas múltiplas implicações e relações (p. 1)

Segundo Bordenave (1987), quando nos permitimos sair da atitude passiva de expectadores, apropriamo-nos potencialmente dos nossos saberes e vislumbramos novas possibilidades diante do cenário que se apresenta. Percebe-se que, na troca legítima, é possível olhar para o homem e suas relações com a droga, distanciado do discurso limitante e preconceituoso reproduzido pela lógica moralista, destituída de uma reflexão aprofundada. Ao longo desse percurso estamos desconstruindo a noção que replica os conceitos reducionistas, que, por vezes, hominizam as drogas e toma o homem como "droga".

 

Considerações finais

Conforme exposto na Introdução, este artigo é desafiador em sua origem, uma vez que parte do pressuposto de que falamos de algo em construção, tanto no que se refere ao fato de o curso em questão estar em processo como também na perspectiva de que as mudanças dos posicionamentos éticos e políticos com relação aos usuários de álcool e outras drogas estão acontecendo num contínuo histórico.

Para tanto, compreendemos que o desafio a ser transposto pelas autoras como docentes do CRR-UFSJ é o de provocar a reflexão-ação dos cursistas e em si mesmas, além de estimular o reconhecimento do dilema enfrentado em suas práticas na atenção e no cuidado dos usuários de álcool e outras drogas, bem como realçar que há o imperativo de modificar a abordagem mecanicista, fragmentada e hegemônica, para uma abordagem sistêmica, holística, cooperadora, integradora, humanizada e ética.

Concluímos que o que se apresenta como desafio também nos convida a pensar nas possibilidades, atraindo-nos para uma prática transformadora e que exige de todos os atores envolvidos um trabalho árduo, comprometido e envolvente. As estratégias de redução de danos, pensadas sob a luz da metodologia participativa, contribuem efetivamente para esclarecer a visão sobre essa complexa questão, facilitando o acesso e produzindo lugares de cidadania aos usuários. O que se pretendeu expor neste artigo é que essa transformação não é simplesmente técnica, mas envolve a formação, a gestão do trabalho, as mudanças nas relações e, principalmente, nas pessoas.

Conforme lembra Morin (2000),

A educação do futuro pede uma reforma de mentalidades, pois vai exigir um esforço transdisciplinar que seja capaz de rejuntar ciências e humanidades e romper a oposição entre natureza e cultura, visando à perspectiva da integralidade (p. 101).

 

Referências

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Recebido em: 09/04/2016
Aprovado em: 06/09/2016

 

 

1 Agradecimentos aos profissionais da Rede de Atenção Psicossocial do campo das vertentes que, como participantes do curso do CRR-UFSJ, assumiram conosco a responsabilidade por uma prática eticamente orientada e comprometida com a autonomia, dispondo-se a uma postura que tem em vista a emancipação do usuário da Rede e a nossa como profissionais. À equipe pedagógica do CRR-UFSJ, pela parceria no trabalho e competência. Veio do trabalho coletivo a demonstração e a confiança de que é possível adotar posturas mais humanizadas ao lidar com o outro. À Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD/MJ), pelo financiamento.

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