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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.1 São João del-Rei jan./março 2017

 

O desamparo na construção do futuro de jovens em programas de assistência social

 

The helplessness in future's construction of young people in social assistance programs

 

El desamparo en la construcción del futuro de jóvenes en los programas de asistencia social

 

 

Vilsiane Almeida Sarruf PiniI; Luciana Albanese ValoreII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná
IIProfessora do Departamento de Psicologia da UFPR (graduação e pós-graduação). Mestrado em Psicologia Social e Doutorado em Psicologia Escolar pela Universidade de São Paulo. Supervisiona e orienta projetos de extensão e pesquisas no campo da Psicologia Escolar, especialmente, da Orientação Profissional e de Carreira

 

 


RESUMO

O estudo investigou os sentidos atribuídos ao futuro e à construção de um projeto de vida no discurso de jovens que frequentam o Centro de Referência de Assistência Social numa pequena cidade do interior, no sul do país. Realizaram-se treze entrevistas analisadas segundo o referencial da Análise Institucional do Discurso. Dentre outros resultados, evidenciou-se que, na comunidade discursiva da qual fazem parte, pouco se fala sobre o tempo por vir. Este parece ficar circunscrito à perpetuação da situação de pobreza vivenciada no presente. Tal condição, associada à sua percepção de que os programas de assistência visam exclusivamente à melhoria das condições materiais de vida, parece contribuir para a produção de um sentimento de desamparo quanto à possibilidade de dimensionar uma vida futura. Sugere-se a inclusão de ações de orientação profissional na prática do psicólogo na assistência social a fim de auxiliar a potencializá-la como estratégia de desenvolvimento e transformação social.

Palavras-chave: juventude; pobreza; projeto de vida; assistência social; desamparo.


ABSTRACT

The present study investigated the meanings assigned to the future and to life project's construction in the discourse of young people who attend a Reference Center of Social Assistance in a small town, in the south of the country. Thirteen interviews were performed and analyzed according to the referential of the Institutional Discourse Analyses. Among other results, it was evident that, in their discursive community, little is said about future. This one seems to be restricted to the poorness' perpetuation that is experienced in the present. This condition, assigned to the their perception that the assistance programs exclusively aim at improving the material living conditions, seems to contribute to the production of a feeling of helplessness regarding the possibility of plan a future life. The inclusion of professional orientation actions in the psychologist practice in social assistance is suggested with the aim of increase its power as a development and social transformation strategy.

Keywords: youth; poorness; life project; social assistance; helplessness.


RESUMEN

El estudio investigó los significados atribuidos al futuro y a la construcción de un proyecto de vida en el discurso de jóvenes que asisten al Centro de Referencia de Asistencia Social en una pequeña ciudad, del sur del país. Se realizaron trece entrevistas analizadas conforme el referencial de la Análisis Institucional del Discurso. Entre otros resultados, se observó que, en la comunidad discursiva a la que pertenecen, poco se habla acerca del tiempo por venir. Esto parece estar limitado a la perpetuación de la pobreza experimentada en el presente. Tal condición, asociada a sus percepciones de que los programas de asistencia tienen por objeto exclusivamente a la mejora de las condiciones materiales de vida, parece contribuir para producir un sentimiento de desamparo respecto a la posibilidad de dimensionar una vida futura. Se sugiere la inclusión de acciones de orientación profesional en la práctica del psicólogo en la asistencia social, con el fin de ayudar a potencializarla como estrategia de desarrollo y transformación social.

Palabras clave: juventud; la pobreza; proyecto de vida; asistencia social; desamparo.


 

 

Introdução

A atuação do psicólogo nas Políticas Públicas de Assistência Social ainda é um tema pouco discutido na literatura. Isso não significa, porém, que não suscite questionamentos e inquietações por parte dos profissionais aí implicados. Tal é o caso de uma das pesquisadoras do presente estudo, a qual, tendo sido agente de uma instituição de assistência social, pôde observar alguns fatos que, inicialmente, provocaram-lhe mal-estar. Dentre eles, destaca-se que os usuários dos serviços assistenciais do município em questão - mães em sua maioria - parecem demonstrar, em seus discursos, certa falta de desejo em ter/ser algo diferente do que têm/são. Vivem, aparentemente, para saciar suas necessidades básicas diárias: a vinculação com a vida futura se dá, essencialmente, pela manutenção da vida presente (não por acaso o "campeão" de pedidos dessas mulheres no Centro de Referência da Assistência Social - Cras - é a cesta básica). No discurso - convém frisar - não demonstram expectativas ou perspectivas de melhoria de vida: suas preocupações priorizam a obtenção de alimentos para sua família. Evidentemente, isso não significa que não tenham outras aspirações, entretanto - segundo o que se pode observar - delas não falam, a não ser que sejam insistentemente instigadas. Isto considerado, pensar numa mudança de posição dessas mulheres em relação às suas vidas, de modo a abdicarem da assistência do Estado e, com isto, passarem da condição de dependência à de autonomia, apesar de possível, mostrou-se - na atuação da referida pesquisadora - algo extremamente difícil. Supõe-se, então, que mais fácil (ou menos difícil), para os profissionais envolvidos nas políticas de assistência, seria atuar com os filhos dessas mães, para que estes possam superar a condição de pobreza e estigmatização de suas famílias. Nesse sentido, projetar a vida a médio e longo prazo, a partir de perspectivas outras em relação ao futuro, poderia representar um passo importante.

Considerando-se essa análise, chegou-se ao objetivo que norteou a pesquisa de mestrado que embasa o presente relato, qual seja o de identificar os sentidos atribuídos à perspectiva de futuro e de construção de um projeto de vida no discurso de jovens, filhos de famílias que frequentam regularmente o Cras de um pequeno município do interior da região Sul. Para tanto, tornou-se necessária a reflexão sobre diversos temas, entre eles: projeto de vida, juventude, pobreza e Política Nacional de Assistência Social. Contudo, para esta exposição, operou-se um recorte - tanto nos temas quanto nos resultados - focando a discussão num dos aspectos evidenciados na investigação: o desamparo vivenciado por alguns jovens ao pensarem sobre suas perspectivas de futuro e de construção de um projeto de vida.

Como a Política Nacional de Assistência Social é nova, pois foi aprovada apenas em 2004, a prática da Psicologia vinculada à atual política também é recente. Assim, os referenciais bibliográficos que possam orientar a prática profissional são escassos e, como apontam Silva e Corgozinho (2011), dado o número crescente de profissionais e de estagiários que têm atuado no campo social comunitário, os problemas que nele se apresentam precisam de atenção. Entretanto, como observam os autores, paralelamente à carência de publicações, os documentos oficiais que tratam da atuação no Cras, "apesar de facilmente acessíveis por meio de cartilhas e eletrônico, não se apresentam plenos para orientar a atuação e suprir as dúvidas deste profissional no âmbito do Cras" (2011, p.13)

Corroborando com essa concepção, Lara Junior e Ribeiro (2009) propõem que a ação do psicólogo social deve estar referenciada numa formação teórico-metodológica que lhe permita "escutar os saberes e construtos sociais existentes no cotidiano das comunidades" (2009, p. 91). Desta forma, o presente estudo, embora limitado em relação ao número de participantes, pode servir de incentivo para se pensar em propostas para a atuação de psicólogos em Cras, mais especificamente, no âmbito da orientação profissional. Como será demonstrado nos resultados, no município em que a pesquisa foi realizada, pouco ainda se faz para auxiliá-los na reflexão sobre seu futuro e no planejamento de seus projetos de vida. E, imagina-se, tal condição não deve ser incomum em outras regiões do país.

 

Pobreza e juventude

Ao tratarmos sobre a pobreza, a questão da exclusão social dos sujeitos que a habitam coloca-se em xeque. Alguns autores entendem que a pobreza é inevitável no contexto capitalista em que vivemos, pois este, para poder se manter, acaba por produzir a categoria dos "desnecessários economicamente" (Wanderley, 2008, p.25); ou seja: uma massa crescente de pessoas que, por não terem a qualificação necessária, não possuem condições de obter um emprego. Tal visão é também contemplada por Bauman (2005), que denomina essas pessoas de "refugo humano" por estarem numa condição marcada pela redundância e inutilidade, a qual seria um efeito colateral inevitável "da construção da ordem (cada ordem define algumas parcelas da população como 'deslocadas', 'inaptas' ou 'indesejáveis') e do progresso econômico" (Bauman, 2005, p.12). Este só se torna possível ao desvalorizar as formas instituídas de "ganhar a vida" e ao retirar de seus praticantes os meios de subsistência.

Importante considerar que, para alguns autores, o conceito de exclusão social é dinâmico e vai além da participação na vida do trabalho, englobando os campos de habitação, educação, saúde e acesso a serviços (Atkinson, citado por Véras, 2008). No presente texto, todavia, compactuamos com a definição de Demo (2002), segundo a qual a exclusão social refere-se a elementos comuns da pobreza, tais como: dificuldade de acesso ao patrimônio e ao trabalho regulado, mobilidade incontrolada e relações familiares e sociais estigmatizadas devido à fraca coesão entre seus membros.

Por meio do conceito do que consideramos pobreza e exclusão e partindo do princípio de que a juventude é uma construção histórica e social, questionamos qual a diferença entre ser um jovem pobre e ser jovem proveniente das classes médias e altas. Antes de tratar desse tema, porém, cabe justificar a escolha da palavra juventude em vez de adolescência.

Segundo Coimbra, Bocco e Nascimento (2005), o conceito de adolescência decorre de uma naturalização que serve "aos propósitos dominantes de homogeneização e padronização das práticas sociais e dos modos de existência" (p. 2). Para os autores, trata-se de um conceito que vai ao encontro da lógica capitalista a partir de duas vertentes: primeiro por sua rentabilidade, pois, sendo como é, esse momento da vida necessita de especialistas que saibam lidar com esse público e, também, de um comércio específico, que produz diversões, roupas, músicas e alimentos destinados exclusivamente aos indivíduos em questão. Em segundo, "por sua força ao mesmo tempo massificante (etapa universal, a-histórica e homogênea para todos) e individualizante (a forma como cada um passa por tal etapa e como dela emerge depende dos méritos de cada sujeito)" (Coimbra et al., 2005, p. 7).

Por esse motivo, optou-se por utilizar a palavra juventude quando da referenciação aos sujeitos desta pesquisa, pois a vertente de pensamento aqui adotada vai ao encontro daquela das autoras supracitadas. Estas, baseadas na Filosofia da Diferença e no pensamento foucaultiano, defendem que a produção de subjetividade se dá num processo contínuo, em meio a uma multiplicidade de forças; assim, não há como conceber a obtenção de uma identidade final, fixa e impermeável, como se poderia supor numa lógica desenvolvimentista: "Preferimos pensar em termos de processo, apostando que a vida se constrói a cada momento e não pode ser reduzida a qualquer modelo ou norma" (Coimbra et.al., 2005, p.7). Nesse sentido, tal como as autoras, optamos por utilizar o termo juventude em vez de adolescente, dada a possibilidade de referir-se mais a uma condição e aos diversos modos de vivenciá-la do que a uma faixa etária específica ou a um conjunto de comportamentos nela esperados. E, como Cassab (2001), entendemos que é a partir do conhecimento dos diferentes modos de inserção social - aí consideradas suas origens e posição de classe - que se poderá circunscrever de que jovens e juventude se trata. No atual contexto social brasileiro, altamente desigual, "jovens da mesma idade vão sempre viver juventudes diferentes" (Novaes, 2003, p. 122). Desta forma, para os jovens pobres, a juventude não está associada ao desenvolvimento da inteligência, pela impossibilidade do imperativo da escolarização, nem ao florescimento do corpo, pela ideia de animalização de seu sexo (Cassab, 2001).

Para Frigotto (2004), os jovens provenientes de classes subalternas tendem a sofrer um processo de adultização precoce. Segundo esse autor, a inserção no mercado de trabalho (formal ou informal) desses jovens é precária no que se refere às ocupações encontradas, às condições de trabalho e à remuneração, diferenciando-os, pois e significativamente, dos jovens de classes privilegiadas, em geral filhos dos donos dos meios de produção, que têm garantida a continuação de seus estudos e, com isso também, a continuidade de sua infância e juventude. Isso faz parte de um padrão histórico, pois desde os primórdios do capitalismo a função da escola para a classe trabalhadora foi outra: disciplinar para o ingresso precoce em postos de trabalho marcados pela precariedade. Nessa mesma linha de pensamento, Birman (2011) afirma que a adolescência nas classes médias e nas elites tem começado mais cedo e se prolongado mais do que outrora. Já nas classes pobres a experiência é bem diferente: "lançadas muito cedo na brutal experiência social, estas crianças são obrigadas a ser jovens e mesmo adultos muito cedo, convivendo precocemente com coisas terríveis e mesmo quase impossíveis, para as suas idades biológicas" (Birman, 2011, p. 26).

A maioria das pesquisas encontradas, envolvendo juventude e pobreza, foram realizadas em grandes centros urbanos ou em suas redondezas. Pouco se encontrou sobre estudos que abarcavam (além de juventude e pobreza) uma localidade mais interiorana às grandes cidades. Sendo a juventude uma construção histórica e cultural, sabe-se que a região em que se vive é fundante à subjetividade, e o local em que reside o público alvo desta pesquisa diferencia-se daquelas já citadas. Obviamente que encontramos jovens inseridos precocemente no mundo do trabalho, bem como aqueles que não prosseguiram seus estudos e que, quando de sua inserção nas atividades laborais, provavelmente encontrarão apenas empregos com baixa renda. Deparamo-nos também com jovens que já vivenciaram a violência. Entretanto, parece que uma peculiaridade envolve os jovens em questão: nesta pequena cidade, onde a indústria cultural ainda não se inseriu de forma tão concreta quanto nos grandes centros urbanos, ainda há jovens que não se identificam com a delinquência, tampouco - supõe-se - com a pobreza, pois estão incluídos em uma pequena sociedade em que são semelhantes aos seus pares, não havendo tanta margem para a desigualdade e, portanto, para a comparação e o sentimento de crítica em relação à sua classe social.

Analisando todas as questões sociais que envolvem a juventude, especialmente aquela inserida nesta pesquisa, é possível questionar se jovens provenientes da pobreza, por uma certa óptica, já constituídos como refugo humano, estigmatizados, destituídos de valor, por serem consumidores falhos em uma sociedade de consumidores (Bauman, 2005), e que mantêm sua subsistência, em parte ou totalmente, por meio das políticas de assistência social, conseguem sobrepujar sua condição social e construir um projeto de vida que lhes permita superar a condição de vulnerabilidade ao mesmo tempo em que lhes possibilite exercitar o protagonismo juvenil, pressuposto nas diretrizes das políticas públicas voltadas à juventude.

Valore e Guirado (2011), num estudo envolvendo estudantes do ensino público de uma precária cidade do litoral paranaense, identificaram a constituição de uma família como sendo um dos principais elementos a compor o projeto de vida. Para tanto, a condição socioeconômica torna-se elemento central em suas escolhas - ou não escolhas - (Bastos, 2005; Nascimento, 2006; Dias & Soares, 2007; Valore & Guirado, 2011), pois a necessidade de ingresso imediato no mercado de trabalho, para auxiliar na subsistência familiar, sem necessariamente realizar uma escolha consciente, apenas inserindo-se onde há a oportunidade, é uma particularidade desses jovens (Ribeiro, 2003; Sparta & Gomes, 2005). Afinal, é alto o número de jovens cuja história de vida é marcada pela necessidade de sobrevivência e não por oportunidades de escolha. (Bardagi, Arteche & Neiva-Silva, 2005). Assim, trabalhos voltados à Orientação Profissional de jovens em situação de vulnerabilidade social são importantes, tanto ao público quanto à própria Orientação Profissional, que historicamente tem privilegiado as classes médias e altas. Corroborando com essa afirmação, ao falar da classe pobre, Bock (2010) adverte: "a Orientação Profissional ainda tem muito a aprender com esse público. Os modelos existentes de classe média são os únicos existentes e não servem na totalidade para esses jovens" (p. 141).

 

Método

A presente pesquisa utilizou como método a Análise Institucional do Discurso (AID), desenvolvida por Marlene Guirado (2010). Mais que uma forma de coleta ou de análise de dados, tal método constitui-se também como uma estratégia do pensamento, ou seja, seus principais conceitos permeiam toda a forma de se fazer e de se pensar esta pesquisa. Sua breve descrição será feita a seguir.

Para a autora, diferentemente de organização, o conceito de instituição remete às práticas e relações sociais que se repetem e, com isto, legitimam-se. Isso se dá a partir dos efeitos de reconhecimento e desconhecimento da condição histórica de produção dessas relações sociais (de sua relatividade, portanto), e isso deriva em sua naturalização, como se sempre tivessem se estabelecido de uma única maneira e, por isto, não pudessem ser modificadas. Com Michel Foucault, Guirado (2010) toma o discurso como ato, dispositivo, instituição, que define, "para um determinado momento histórico e para uma região geográfica, as regras da enunciação. Nele e por ele [...], o jogo de forças poder/resistência se exerce e a produção de um saber ou verdade se faz concreta" (p. 46). Nessa concepção, mais do que tomar o discurso como mera representação de uma realidade exterior, entende-se que ele é ato de produção de verdades, de práticas sociais e subjetividades. Conceber o discurso como ato implica acentuar seu caráter de dizer, mais do que interpretar o que foi dito, "atentar para o que se mostra enquanto se diz." (Guirado, 2010, p. 34). Decorrente disso, nesta abordagem, a subjetividade é pensada como efeito de discursos, constituindo-se como tal nas relações institucionais (entendidas como relações discursivas). Para delineá-la no dizer, é preciso operar com a metáfora do "sujeito-dobradiça" (Guirado, 1995/2006), que permite, no mesmo ato e movimento, entrever suas condições institucionais de produção e sua singularidade: o modo com que, dada sua história particular, organiza seu discurso e sua posição subjetiva na relação com os outros discursos - legitimando-os, subvertendo-os, assujeitando-se ou resistindo (Valore, 2007).

 

Participantes e procedimentos de investigação

A pesquisa foi realizada no Cras de um pequeno município do interior da região Sul, fundado em 1995 e com uma população aproximada de 5.500 pessoas.

O discurso do futuro e da construção de um projeto de vida dos jovens foi tomado a partir de uma entrevista semiestruturada com roteiro especialmente elaborado para a pesquisa. Questionou-se aos jovens qual atividade desempenhavam no momento da entrevista, o que os motivou a desenvolvê-la e se há outras expectativas em relação essa atividade; se possuíam e quais eram seus sonhos na infância, com quem conversavam sobre isso e o que pensavam a respeito disso no momento. Como se imaginavam no futuro e quem poderia auxiliá-los a alcançar seus objetivos. Quais eram suas percepções em relação à cidade onde viviam. Com quem conversavam atualmente a respeito do tempo por vir. Perguntou-se, ainda, sobre o Programa Bolsa Família: se se imaginavam recebendo o benefício no futuro e quais eram suas percepções em relação ao programa.

Foram treze participantes cujos dados encontram-se relacionados na Tabela 1. Vale destacar que os nomes atribuídos são fictícios, com o intuito de preservar suas identidades.

Considerando a intenção de conhecer o projeto de vida de jovens filhos de famílias vinculadas a projetos sociais e a fim de também investigar como esses projetos, ao lado de outras práticas sociais, constituem sua subjetividade, utilizou-se como critério de inclusão na pesquisa a condição de ser filho de família cadastrada no Programa Bolsa Família (PBF), com idade entre 16 e 18 anos, e que frequenta regularmente o Cras. A partir dos critérios apresentados, os próprios profissionais do Cras triaram os jovens para participar da pesquisa. Apesar de haver um cadastro extenso, poucos eram os jovens que frequentavam efetivamente os serviços oferecidos, o que dispensou a realização de uma seleção. Uma vez tendo aceitado participar da entrevista, os jovens eram enviados à pesquisadora,que explicava os objetivos da pesquisa, sua relevância e os benefícios esperados. A partir disso, caso o jovem aceitasse participar, procediam-se às assinaturas dos termos (de Consentimento Livre e Esclarecido, para os maiores de dezoito anos e responsáveis legais pelos menores; de Assentimento, para os menores de dezoito anos).

 

Análise dos dados

Importante esclarecer que, na AID, não se objetiva fazer uma avaliação psicológica dos participantes, mas escutá-los a fim de traçar uma análise de seus modos de subjetivação, considerando que, ao falar, o sujeito não diz somente de si, como também das instituições que o constituíram (e que ao ser constituído por tal instituição também a constitui e a legitima em seu dizer). Outro aspecto a observar é que a análise feita é uma dentre as tantas possíveis, pois como destaca Guirado (2010), "ouvimos com as palavras que temos para ouvi-lo" (p. 47).

Com foco no objetivo proposto, analisaram-se as entrevistas separadamente a partir de um olhar que interrogou as naturalizações constituídas, as singularidades marcadas, as repetições e as rupturas no dizer para, em seguida, compará-las, atentando-se às similaridades e regularidades discursivas. Tendo por base essas regularidades, foram delineados, na pesquisa, temas principais, nos quais o dizer dos entrevistados se organizou. Para efeitos do presente artigo, extraiu-se do tema denominado "Deixa lá eu", os extratos que melhor evidenciavam aquilo que aqui está denominando de sentimento de desamparo. O título do tema refere-se ao resgate da fala de uma entrevistada, que evidencia a solidão dos jovens na construção de seus projetos de vida.

 

Resultados

Embora o foco desta apresentação sejam as falas voltadas à questão da construção do futuro e do sentimento de desamparo aí presente, antes disto e a fim de enriquecer a discussão, parece-nos igualmente pertinente comentar os sentidos atribuídos pelos entrevistados ao PBF.

Tal programa, mais que uma forma de transferência de renda, pretende reforçar o acesso a direitos sociais básicos e promover o desenvolvimento socioeconômico das famílias atendidas, de modo que estas possam superar a sua situação de pobreza. Vale ressaltar que nesta pesquisa a pobreza é entendida como uma construção histórica e social e, desta forma a atuação de programas sociais é fundamental, pois a pobreza não é somente o estado de uma pessoa que carece de bens materiais, "ela corresponde igualmente a um status social específico, inferior e desvalorizado, que marca profundamente a identidade de todos que vivem essa experiência" (Paugam, 2003, p.45).

Os discursos produzidos pelos jovens demonstram que sua vinculação ao programa se faz, principalmente, pelo recebimento do benefício, e é a partir deste vértice, especialmente, que se sustenta sua relação com a Assistência Social. Como exemplo, destaca-se a fala de Rosimere: "acho que é importante tipo, pelo menos pra gente que é pobre, pelo menos isso ai é pouco, mas ajuda, prá comprá roupa e calçado né que precisa, tipo alguma coisa que falta, mistura, pelo menos pra isso aí tem".

Observou-se também que há uma regularidade no discurso de tais jovens que os fixa na categoria daqueles que precisam e continuarão precisando de ajuda. Marlon, quando questionado sobre a necessidade de recebimento do benefício na vida adulta, responde "Acho que sim, preciso, né". Rosimere, ainda, concretiza a naturalidade do recebimento do benefício. Quando questionada da mesma forma que Marlon, ela responde: "É, porque tem muitos que recebe, né. Capaz de receber". Já Mariane, que é casada e, desta forma, entende-se como adulta, relata o motivo de querer receber o benefício: "Meu marido não é fichado, nem eu, e tem baixa renda e pode pedir também. Só que é mais fácil quando tem uma criança, é mais fácil de vir também". Ela continua, legitimando o futuro como algo imutável: "só ganho 50 por mês e daí é muito pouco, meu marido também é pedreiro e tem vez que ele trabalha e tem vez que não, e se viesse esse dinheiro era um dinheiro a mais pra poder ajudar na casa".Larissa e Carlos, ao utilizarem a expressão "a gente" para relatar sua percepção sobre o recebimento do Bolsa Família, concretizam em seu discurso a fixação: "Eu acho bão porque as vezes ajuda a gente em alguma coisa" (Larissa); "Porque que nem quando a gente precisa tem" (Carlos). Ambos referindo-se à assistência financeira recebida pelo programa.

Em certos casos, porém, ainda que de forma tênue, evidenciou-se resistência ao discurso de ser pobre: "Ah, eu gostaria de não precisar depender disso" (Natalia). "Eu acho que é uma coisa boa porque, né, ajuda muito as pessoas que não tem condições, que não tem trabalho, é uma ajuda financeira" (Maria). Ainda assim, Natália não deixa de sinalizar certa desconfiança quanto à possibilidade de superar a história familiar e sobrepujar a pobreza. As respostas de Maria são intrigantes, pois em seu discurso ela utiliza a terceira pessoa para referenciar àqueles que recebem o benefício, resistindo à pobreza, mas, na sequência, diz que gostaria de receber o Bolsa Família na vida adulta, mesmo cursando o ensino superior e desejando atuar como Enfermeira, demonstrando tensão e contradição em seu posicionamento.

A falta de confiança no futuro produz o sentimento de desamparo que parece encontrar seu conforto no amparo financeiro oferecido pelas políticas de Assistência Social. Esse paradoxo amparo financeiro versus desamparo social é vivido por esses jovens desde muito cedo. Desde muito cedo, também, parece ser vivenciada a solidão ao pensar no tempo por vir.

Questionar uma criança sobre o que ela quer ser na vida adulta parece ser algo comum e corriqueiro, visto a importância atribuída, na atualidade, ao mundo do trabalho. Contudo, dos treze jovens entrevistados, em resposta à pergunta "Quando você era criança as pessoas te perguntavam o que você queria ser quando crescer?", dois afirmaram que isso nunca lhes foi questionado, inclusive pela família. Ao serem indagados se conversavam com alguém a respeito do futuro, em que pese à insistência da entrevistadora, cinco jovens responderam negativamente. E, mesmo dentre os que reconheceram algum tipo de conversa, perceberam-se restrições, como na fala de Rosimere: "É, mai ou meno, só com o pai porque a mãe não entende nada dessas coisa, falá com ela é a mesma coisa que falá nada. E com a minha irmã também". Ou como Mariane, que relata que tais indagações não vinham de seu contexto familiar: "A minha mãe vende bastante roupa pra viajante e de cada passo quando ela ia pegar roupa pra viajante eu ia junto e eles ficavam fazendo pergunta que série que eu estudava, o que eu ia ser quando crescer[...]"

No caso de Fernanda, o interlocutor privilegiado é o marido, mas a conversa acena para um futuro que foge ao que usualmente se evidencia nos projetos juvenis: "Nóis conversa de nóis ter filho e ser muito felizes". O futuro restringe-se à vida familiar e, como em um conto de fadas, o casamento e a possibilidade de ter filhos aparecem legitimados (numa fala que parece incorporar outras vozes) como condição natural de felicidade. Importante notar que sua resposta foi produzida apenas pela insistência da pesquisadora, o que sugere a tentativa de suprir uma suposta expectativa de quem a estava entrevistando. Já Larissa, diferentemente de Fernanda, não possui nenhum interlocutor: "Hoje eu não penso nada. Eu quero dar o exemplo pra minha filha, que ela não case, que ela estude e que ela seja alguma coisa na vida". Não lhe é possível possuir interrogações sobre seu futuro, pois ela é puro ato: um exemplo negativo, para não ser seguido.

O desamparo vivenciado ao se pensar sobre o futuro foi algo evidenciado em outros momentos da entrevista. A todos os jovens foi perguntado como foi, para eles, responder às perguntas. A maioria respondeu que "foi bom", "legal" ou que gostou. Mas alguns fugiram a essa similaridade, acrescentando um pouco mais sobre seu sentimento em relação à entrevista. Alguns exemplos: "Foi boa, gostei, nunca converso com ninguém assim sobre o assunto" (Juliane); "Foi ótimo! A gente esclarece mais, fica mais aliviada em falar. O que importa mais é o futuro da gente, o que a gente tem pra construir, né, tem que fazer. Valeu a pena!" (Mariane); "Foi legal. É... pelo menos a gente debate um pouco um papo" (Rosimere); "Além dessa entrevista vai ter outra ou é só essa?" (Larissa). Nos extratos destacados, os jovens demonstram seu desejo de continuar a falar sobre o futuro; como diz Larissa, uma entrevista remete à sensação de insuficiência, visto que o terreno é fértil e pouco estimulado por aqueles que os circundam.

Clara, que passou a maior parte da entrevista calada, sem conseguir elaborar suas respostas, diz: "Não sei, acho que foi difícil, fácil!". Seu ato falho sugere que, diante da dificuldade, sua resposta era: silêncio. E, ainda que não se possa conhecer os motivos da dificuldade em falar sobre o futuro, a julgar pelas demais respostas, não seria incorreto supor que um deles possa estar provavelmente relacionado à pouca oportunidade de fazê-lo e, com isso, de construí-lo na condição de protagonista.

As falas, como um todo, demonstram a solidão vivenciada quando da possibilidade de pensar no futuro, talvez por imaginá-lo como algo externo às suas ações, como algo que simples e naturalmente acontece e, por isso, prescinde de planejamento ou construção. A solidão foi dita e mostrada, principalmente, por Juliane que, em vários momentos da entrevista, coloca-se como sozinha no mundo. Ao responder com quem morava, diz: "Sozinha, eu e meu filho. Eu moro sozinha e tenho que manter eu, a casa, tem o meu filho também". Ao se reportar à sua história (saiu da casa da mãe aos 15 anos), reedita a cena em que consolidou sua condição (de desamparo, aos olhos das pesquisadoras), ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, subjetiva-se como alguém autossuficiente:

Aí eu falei "eu sou sozinha, eu vivo sozinha praticamente, então se eu conseguir alguma coisa vai ser por mim mesma e não adianta eu esperar a ajuda de ninguém porque não vou ter". Eu falei: "eu sou de maior também e faço o que eu quero, eu que pago o meu aluguel". Então tudo que consigo tem muita luta e não incomodo ninguém. Deixa lá eu...

O futuro desenhado como continuidade natural da trajetória e do modo de ser dos familiares também foi afirmado por essa entrevistada, numa fala que não deixa de mostrar que, no fim das contas, mesmo sozinha, "querer é poder". Tal foi a situação vivenciada por sua mãe que, ao se separar do marido, "ela tinha só a 5ª série e ela foi estudar, ela não fez faculdade, mas fez cursos e hoje ela vive bem, tem duas casas, tem casa aqui, tem casa no XXX, tem um carro, trabalha ainda e é sozinha" (Juliane). Ao que parece (vide o grande número de mães chefes de família), naquela região, o "destino" das mulheres é seguir em frente sozinhas:"Eu falei pra ele: eu me vejo sozinha, me vejo sozinha, sei lá" (Juliane, ao comentar uma conversa com o ex-marido).

O desamparo pode ser também vislumbrado no uso do discurso religioso, como se, na ausência de um interlocutor concreto com quem compartilhar ideias e preocupações quanto ao tempo por vir, restasse apenas sustentar o futuro no discurso da fé. Vide o comentário de Larissa, que, diante da pergunta de como se imaginava no futuro, respondeu: "Sei lá, pois não diz que o mundo vai acabar? Daí fica assim". Entretanto, após ser novamente indagada pela entrevistadora, afirmou "não acreditar muito" em tal profecia, tendo resgatado a fala do pastor da igreja para ilustrar como isso iria acontecer: "[...] que nem na Igreja que eu vou, o pastor disse que vai cair uma bola de fogo, que aqueles que são fiel a Deus vai pro céu e aqueles que não são vão ficar". Resistindo à ideia do fim do mundo, Larissa reconhece algumas aspirações: que o mundo não acabe e que a filha possa se formar e casar. Interessante observar que, na sequência, em resposta à pergunta sobre como imaginava alcançar esse futuro, respondeu: "Tendo fé!". Assim, questionada quanto ao futuro, Larissa demonstra não se imaginar, pois, afinal o mundo vai acabar, então não há porque se preocupar com o futuro, fica assim. Num desacreditar acreditando, ironicamente aposta qualquer garantia de seus sonhos futuros no ato de ter fé, o que denota uma ideia de passividade, pois não há uma ação juntamente com essa fé, apenas a espera (do fim do mundo).1

Gislaine, igualmente, ao ser questionada sobre quem/o que poderia ajudá-la a tornar seus sonhos realidade, diz: "Só Deus, né?" Assim como Larissa, Gislaine não atribui a si nem a alguém próximo uma possível ajuda, demonstrando o desamparo vivido quando fala do tempo por vir e a impossibilidade de se tornar a protagonista na construção de seu futuro. Essa postura em relação ao futuro é acentuada nas respostas seguintes, quando ela diz que não consegue imaginar como poderá alcançar seus sonhos (que seria terminar os estudos) e, após um longo silêncio, desabafa: "Ai..., tá difícil... Não sei!"

 

Discussão

Pensar sobre o futuro e sobre um projeto de vida não é algo inato; é, na verdade, estimulado e instigado a partir dos discursos produzidos nas práticas institucionais que, por sua vez, constituem as subjetividades. Sendo a família a instituição primeira na vida de um ser humano, as relações que aí se estabelecem serão a base para se pensar em todas as outras relações institucionais posteriores a esta. Como descreve Guirado (2010, p. 49):

A família é uma instituição que se faz pela ação concreta de seus atores: pais, filhos e aproximados. Nesse caso, a história de vínculos de alguém se reedita, historicamente, na singularidade de sua organização e numa variação ou movimento de mudança inevitavelmente exigido, uma vez que as reedições se fazem, sempre na medida em que se ocupam lugares em outras instituições.

Assim, perguntas que podem parecer banais num primeiro momento são importantes, pois fazem pensar. Perguntar, na infância, o que se quer ser na vida adulta já promove no indivíduo uma ideia, mesmo que incipiente, de projeto de vida. Contudo, observa-se que nos contemporâneos modos de viver, apesar de a vida laboral ser marcadamente estimulada, não há como desconsiderar a flexibilidade e a instabilidade que vêm caracterizando as relações de (e com o) trabalho. Deste modo, a ideia de "projeto de vida", como algo pensado em longo prazo, acaba por se revelar como uma tarefa um tanto inviável. E, por assim o ser, tem sido discutido cada vez menos com os jovens, especialmente de classes mais desfavorecidas, para os quais garantir a sobrevivência material acaba sendo a prioridade. Solitários em seus pensamentos, portanto, não encontram eco no discurso do outro para elaborar seus anseios de futuro, ou sequer para ter anseios. Tal condição, como vimos, foi observada neste estudo em que, ao contrário do que se evidencia em pesquisas que tratam do projeto de vida de estudantes do ensino público (Ribeiro, 2003; Nascimento, 2006; Valore & Guirado, 2011), dentre aqueles que pensavam sobre o futuro, poucos fizeram menção à obtenção de um diploma e de um emprego que exigisse maior qualificação.

A ausência de oportunidades de qualificação profissional e emprego, realidade do município em que vivem os jovens investigados, resultam num círculo vicioso de perpetuação da pobreza. Assim apontam os próprios entrevistados: "Ah, eu acho que precisaria de emprego que não tem aqui, não tem muita oportunidade, não tem quase nada" (Natalia). "Aqui não tem nem tipo servi. Ó, terminei faz um ano já que tô de varde, até agora não arrumei nenhum serviço aqui e tipo se eu fosse pra fora, em outros lugar, com certeza eu ia estar trabaiando e fazendo curso" (Rosimere). "Aqui não tem emprego, não, não tem, daí como a gente trabalha e daí estuda, não tem" (Carlos). "Porque a cidade aqui é sempre a mesma coisa sabe, é sempre as mesmas pessoas. Sei lá, a gente imagina que vai trabalhar em outro lugar e tipo na verdade o que eu queria mesmo era trabalhar no Samu, por exemplo, num hospital entendeu? E daí aqui já não tem entende?" (Maria). As condições concretas do município demonstram a dificuldade que há em trabalhar ou estudar, mas a repetição do discurso o naturaliza, colocando-o como justificativa para que nenhuma tentativa de relatividade possa ocorrer.

Segundo Pochmann (2004), na sociedade do conhecimento, há necessidade de maior preparação em relação à educação e à formação. E isso, associado à necessidade do ingresso precoce no mercado e à consequente dificuldade em continuar os estudos, acaba por ser um problema para as classes desfavorecidas que têm no trabalho uma das únicas condições de ascensão social. Desta forma, a inserção na pobreza contribui também para não se pensar em projetos de longo prazo, como concluiu Bock (2010) em sua pesquisa: "Os projetos que esses jovens [pobres] esboçam são de curto prazo. A conquista deles se dá de forma paulatina, com idas e vindas" (p. 140). Isso corrobora com os dados desta pesquisa, na qual há uma vivência de "não futuro" tanto pelos jovens quanto por suas famílias, uma possível forma de proteger-se do desamparo consequente da falta de palavras sobre o tempo por vir, relacionada à ausência de oportunidades concretas de inserção laboral no município em questão.

O desamparo desses jovens, principalmente na tentativa de simbolização do futuro, os coloca no caminho para vivenciar aquilo que a literatura nos traz sobre ser jovem e pobre no Brasil: do processo da adultização precoce (Frigotto, 2004) às possibilidades de marginalização. Na impossibilidade de imaginar, sonhar fazer e refazer projetos de vida, tais jovens entram cedo na vida adulta e, assim, não lhes é cultivada a preocupação de organizar projetos profissionais tão estruturados quanto dos jovens provenientes de classes médias e altas e/ou estudantes de escolas públicas de boa localização (Bardagi; Arteche & Neiva-Silva, 2005). Como exemplo, colocamos Juliane, Fernanda, Larissa e Mariane, quatro jovens que se casaram entre os doze e dezesseis anos, sendo as três últimas com o consentimento da família. Larissa, de dezessete anos, além de responsável pela criação da filha, precisa ocupar-se também com a educação de seus cinco cunhados mais novos. Mariane ainda naturaliza a impossibilidade de buscar uma carreira acadêmica tradicional no discurso que empresta do seu irmão: "faculdade para pobre, não adianta nem sonhar que isso não acontece".

A violência também se faz presente na vida de alguns entrevistados que relataram perdas em suas famílias. Breno demonstra isso quando fala da morte do pai: "Eu tava na igreja, eu, meu pai e minha mãe, daí deu uma desgraça lá e ele morreu porque usou droga". Observa-se também que o discurso da fé se sustenta como uma tentativa de reprimir o desamparo, afinal, onde outros discursos não puderam ser elaborados, o discurso religioso - com a ideia do fim do mundo e de um local que protege de algo tão incerto quanto o futuro - encontrou o lugar fácil de florescer.

Apesar de os programas sociais não tratarem apenas de amparo financeiro, tal situação foi a protagonista no discurso dos jovens quando da referenciação à assistência social. Assim, quando o amparo financeiro coloca-se em destaque, o desamparo social fica confinado a ser coadjuvante e, em tal posição, nem sempre recebe a atenção merecida para que a transformação social resulte em emancipação. Deste modo, se os princípios da Política de Assistência Social não forem bem compreendidos pela população, seus programas - e isso a despeito das melhores intenções dos profissionais que neles atuam - podem produzir um indesejado "efeito colateral": cristalizar e legitimar o lugar de impotência das classes mais pobres e, da relação entre sujeito e programa, naturalizar-se a ideia de inferioridade daquele que necessita do auxílio. Como exemplo de sujeição a tal discurso, podemos citar a forma acrítica com que a maioria dos entrevistados trata a questão da assistência financeira, imaginando que receberão o Bolsa Família quando forem adultos.

Isso considerado, supõe-se que inserir em seus discursos a discussão sobre projetos de vida poderia ser uma das ações na tentativa de sobrepujar seu lugar social de pobre e marginalizado. Neste sentido, a oferta de serviços de Orientação Profissional (OP) poderia vir em auxílio. Valore (2010), ancorada nas finalidades centrais da OP, elabora alguns objetivos em relação ao trabalho do psicólogo em escola pública que, apesar de não ser o mesmo contexto abordado neste artigo, possui um público semelhante. São eles:

Oportunizar a análise dos mitos concernentes ao sucesso -ou fracasso- [...]; favorecer e exercitar o processo de escolha, de tomada de decisões, em uma comunidade que, geralmente, representa a si própria como 'não tendo escolhas'; contribuir para o desenvolvimento de uma postura ativa na busca de informações; propiciar a reflexão acerca das relações homem-trabalho-sociedade, favorecendo a compreensão do papel social que cada profissional exerce em um determinado cenário [...], e possibilitando a superação da postura individualista passiva pela postura cooperativa e comprometida com o futuro. (p. 68)

Tendo como base os objetivos descritos anteriormente e os resultados encontrados nesta pesquisa, avaliamos que a OP tem muito a contribuir com os jovens provenientes da pobreza e da extrema pobreza, uma vez que a imutabilidade de sua realidade - recorrentemente naturalizada como tal em seus discursos - poderia ser questionada, relativizada e consequentemente modificada.

A realidade dos jovens entrevistados e de tantos outros que residem no interior dos estados brasileiros é extremamente distinta da dos jovens que vivem nas grandes cidades. A falta de acesso a centros educacionais é concreta e isso não se dá apenas por sua realidade social, mas também por sua localização geográfica. Assim, a OP pode trazer, a esses jovens, aquilo que parecem não possuir: a possibilidade de informação e orientação, para que possam inserir em sua comunidade discursiva questões referentes ao futuro e, com isso, delinear uma possível escolha. Uma escolha consciente, levando em consideração não apenas os aspectos pessoais e psíquicos, como também a realidade social que os circunda. Para tanto, a própria OP necessita ser relativizada, sobrepujando sua tradicionalidade de aplicação nas camadas médias e altas e em grandes centros urbanos (Bock, 2010). Conhecer e considerar os aspectos relacionados à comunidade, à questão econômica e às possibilidades e impossibilidades desses jovens é fundamental para a efetivação da prática da OP.

 

Conclusão

Os documentos que regulamentam a atuação do psicólogo na assistência social alertam para o fato de não existir um modelo de trabalho pronto a ser aplicado nas comunidades; cabe, pois, ao psicólogo escutar as demandas dos sujeitos que compõem a comunidade e inserir-se nas práticas já existentes para, a partir disso, formular estratégias de intervenção (CREPOP, 2007). Desta forma, pôde-se escutar neste trabalho a solidão vivenciada pelos jovens ao pensar sobre o futuro, e ações com esse intuito valeriam a pena, como nos diz Mariane. Assim, avaliamos que atividades que promovam essa reflexão acerca do futuro são fundamentais, principalmente ao objetivar a autonomia desses jovens. De tal modo, a OP se aplicaria para além dos muros da educação, e seus construtos conceituais poderiam fundamentar também a prática do psicólogo social.

Vale considerar, contudo, que as instituições presentes na comunidade também são responsáveis por seus jovens. Desta forma, a escola poderia também contribuir na prática da Orientação Profissional, propiciando um espaço de discussão acerca do futuro e preparando os jovens para a entrada no mundo do trabalho de forma consciente e crítica (Bastos, 2005).

Sabemos da limitação da amostra em estudo e suas particularidades, uma vez que a história social daquela comunidade é constituinte à subjetividade dos jovens entrevistados. Deste modo, sugerem-se estudos que se proponham a escutar tanto os jovens quanto seus familiares com o objetivo de aprofundar a investigação acerca do projeto de vida e o lugar atribuído a ele em seus discursos. Igualmente importante podem ser estudos que ampliem a amostra investigada, sendo realizados em outras pequenas comunidades do interior, uma vez que as pesquisas correlatas, em geral, abrangeram estudantes do ensino médio público de capitais ou cidades de porte médio. Por fim, sugerem-se, também, pesquisas que interroguem os profissionais que atuam em Cras, a fim de conhecer suas propostas e experiências de atuação e suas expectativas em relação à clientela atendida. Talvez, com esse tipo de investigação, possa se avançar na compreensão dos benefícios que ações de orientação profissional poderiam trazer nesse contexto, incentivando o desenvolvimento de propostas concretas nessa área.

 

Referências

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Recebido em 03/02/2015
Aprovado em 13/01/2017

 

 

1 Vale destacar que este artigo não tem o intuito de fazer uma discussão sobre religião, nem tampouco julgar a importância da fé. Aqui, nos prenderemos a avaliar apenas o impacto do discurso religioso na subjetividade do jovem.

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