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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.1 São João del-Rei Jan./Mar. 2017

 

Discursos sobre família e a formação para o trabalho social no Centro de Referência da Assistência Social

 

Speeches about family and training for social work in the Centre of reference of Social Assistance

 

Discursos sobre la familia y la formación para el trabajo social en el Centro de Referencia de la Asistencia Social

 

 

Rafaela Rocha da CostaI; Maria de Fatima Pereira AlbertoII

IMestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Professora vinculada ao Departamento do Curso de Psicologia na Unifavip-Devry em Caruaru-PE e membro do Núcleo de Pesquisa e Estudos sobre o Desenvolvimento da Infância e Adolescência (Nupedia-UFPB)
IIDoutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos sobre o Desenvolvimento da Infância e Adolescência (Nupedia). Pesquisadora do CNPq

 

 


RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar os discursos dos profissionais de Psicologia e Serviço Social dos Centros de Referência da Assistência Social (Cras) sobre família e a formação recebida para o trabalho social com famílias. Adotou-se uma estratégia de campo dividida em análise de documentos, aplicação de questionários e roteiro de entrevista aberta, submetido à Análise do Discurso. A partir desses instrumentos, emergiram dados sobre as lacunas na formação para o trabalho social com as famílias. O discurso regular foi o da família tradicional e, para os que fogem a esse modelo, identificou-se o interdiscurso da família desestruturada, cuja história foi contada a partir dos valores pessoais socialmente construídos de que o modelo aceito é o nuclear. Trabalhar com outros modelos parece causar estranhamento, o que se expressa nos discursos de uma prática profissional higienista, assistencialista, eugenista e que patologiza o cotidiano.

Palavras-chave: políticas sociais; cras; discurso; famílias.


ABSTRACT

This study aims to analyze the discourses of professionals of Psychology and Social Service of the Social Assistance Reference Centers (CRAS) about family and received training for social work with families. It was adopted a strategy for the field divided into analysis of documents, questionnaires and open interview script submitted to discourse analysis. From these instruments emerged data on gaps in training for social work with families. Regular speech was the traditional family and, for those who flee to this model, we identified the interdiscourse of unstructured family whose story was told from the personal values socially constructed accepting the nuclear model as standard. Working with other models seems to cause estrangement, that is expressed in the speeches of a professional practice, assistance, hygienist and eugenicist who pathologizes the everyday.

Keywords: social solicies; Cras. Speech; families.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo analizar los discursos de los profesionales de la Psicología y el Servicio Social de los Centros de Referencia de la Asistencia Social (CRAS) sobre la familia y la formación recibida para el trabajo social con familias. Se adoptó una estrategia de campo dividida en análisis de documentos, cuestionarios y guión de entrevista abierta sometidos al análisis del discurso. A partir de estos instrumentos surgieron datos sobre las deficiencias en la formación para el trabajo social con las familias. El discurso regular fue el de la familia tradicional, y para los que huyen de ese modelo, se identificó el interdiscurso de la familia no estructurada, cuya historia fue contada a partir de los valores personales socialmente construidos de que el modelo aceptado es el de la familia nuclear. Trabajar con otros modelos causa cierto extrañamiento, lo que se expresa en los discursos de una práctica higienista, asistencialista, eugenista y que patologiza el cotidiano.

Palabras clave: políticas sociales; Cras; discurso; familias.


 

 

O trabalho com as famílias vem sendo foco nos diversos campos de atuação nas políticas sociais, por isso, pretende-se analisar os discursos dos profissionais de Psicologia e Serviço Social dos Centros de Referência da Assistência Social (Cras) sobre família e sobre a formação recebida para a realização do trabalho com esse público. A concepção de família modificou-se historicamente e os arranjos familiares vêm passando por transformações de ordem demográfica, social e cultural, de modo que, na contemporaneidade, existem diversos arranjos familiares.

Inicialmente, é possível mencionar a necessidade crescente de a mulher trabalhar fora do lar para ajudar no sustento da família, o que produziu modificações no âmbito familiar (Samara, 2002). Além desse novo papel da mulher na família e no trabalho, entre os aspectos demográficos é possível destacar a diminuição da fecundidade e o envelhecimento da população. Já as modificações sociais e culturais envolvem desde o menor número de matrimônios ao aumento das separações e atraso das uniões (Leone, Maia & Baltar, 2010).

Dessas modificações resultaram diversos arranjos, tais como: as famílias nucleares, que são as tradicionais formadas por pai, mãe e filhos biológicos; as famílias de casais sem filhos; as famílias extensas que, além de pai, mãe e filhos, também podem envolver avós e netos ou outros parentes; as famílias adotivas, que acolhem um novo membro (de forma temporária ou permanente); famílias monoparentais, dirigidas só pelo pai ou só pela mãe; famílias de casais homossexuais com ou sem criança; famílias reconstruídas ou reconstituídas, formadas por pessoas que saíram de outra relação marital, podendo ou não ter crianças do outro casamento; e famílias de várias pessoas vivendo juntas, sem laços legais, mas afetivos e com forte compromisso mútuo (Souza, Beleza & Andrade, 2012).

Esses vários arranjos que norteiam o cotidiano levam à reflexão sobre o que Sarti (2004) considera como o desafio primeiro no trabalho com as famílias, que é o de compreender que família não diz respeito somente à ordem biológica, mas é simbólica também, já que engloba o universo de relações que são produzidas e reproduzidas pelos sujeitos que a compõem. Apesar de ser algo cotidiano, a autora considera que o tema "família" traz dificuldades e apresenta certa lacuna teórica e metodológica justamente pelo fato de ser uma realidade muito próxima, que leva a confundir "família" com "nossa família" e a projetar o ideal que se tem de família, ao mesmo tempo negando ou ignorando outros pontos de vista. E é nesse contexto de pluralidade de arranjos que o trabalho com as famílias tem se realizado.

O trabalho com as famílias não é algo recente no Brasil, data de ações filantrópicas da Igreja Católica desde o princípio da colonização até ações do Estado e da Medicina. Essa atuação com as famílias visava à normatização da vida familiar por meio do poder disciplinar exercido pela medicina social, sendo o modelo da família nuclear concebido como o saudável e os outros arranjos familiares que não atendiam aos critérios da sociedade burguesa apontados como produtores de problemas sociais, ou seja, dava-se em uma perspectiva higienista (Teixeira, 2010). Esse modelo higienista, de acordo com Campos e Garcia (2007), visava preservar o que era considerado "normal" e aceito socialmente, buscando eliminar tudo que fosse considerado desviante ou "anormal" por meio do poder disciplinar.

Diante desse modelo que não dá conta da complexidade e variabilidade existentes, os profissionais que adotam o modelo nuclear como referência de normalidade rotulam de desestruturadas as famílias que não correspondem a tal modelo, sendo o termo "desestruturada" empregado para se referir principalmente à família pobre (Sarti, 2004; Fonseca, 2005). Por conseguinte, patologizam a realidade encontrada nas suas atuações, tratando as questões sociais como patológicas (doentes), classificando, rotulando e, muitas vezes, punindo essas famílias.

A partir da Constituição Federal de 1988, a família foi passando então a ser foco de intervenção das diferentes políticas e, no caso da Assistência Social, a partir da CF/88 e com a criação da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), em 1993, a orientação para a atuação da Política de Assistência Social foi passando de um modelo caritativo para uma política social e a proteção social concebida como garantia de direitos, cidadania e responsabilidade do Estado (Cruz & Guareschi, 2009).

Sendo assim, uma atuação normativa e patologizante não são compatíveis com a concepção de família contemplada na CF, pois esta se mostra ampla e não restrita a um único modelo, já que a família, juntamente com a sociedade e o Estado devem ser responsáveis pela proteção e bem-estar dos indivíduos, devendo este garantir as condições para que as famílias consigam efetivamente assegurar a proteção integral de seus membros (Gabardo; Junges & Selli, 2009).

Nesse sentido, pode-se dizer que as políticas sociais têm colocado em evidência o trabalho com as famílias, propondo-se a acompanhar não apenas o indivíduo isolado, mas toda a família. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, 2012), a atuação com as famílias deve ser considerada prerrogativa nas ações, sendo a matricialidade sociofamiliar um dos eixos do Sistema Único de Assistência Social (Suas), estando definido que, para se realizar qualquer trabalho com as famílias, deve-se enfocar todos os seus membros e suas demandas, com serviços respeitando sua integralidade e seu contexto sociocultural.

A família deve ser entendida como um "[...] conjunto de pessoas, unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade - que se constitui em um espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primária" (MDS, 2012, p. 12), ou seja, nessa perspectiva, a própria família deve ser entendida como "um sujeito de direitos".

Apesar da orientação de que sejam realizadas intervenções que objetivem a efetiva garantia de direitos, as políticas sociais vêm se caracterizando pelas suas ações pontuais e compensatórias (assistencialistas) principalmente no âmbito da Política de Assistência Social, muitas vezes mantendo o caráter filantrópico, com a manutenção de ações clientelistas e com ênfase nos programas de transferência de renda (Behring & Boschetti, 2011). Na perspectiva das autoras citadas, Melo (2012) critica a matricialidade sociofamiliar ao considerá-la como um mecanismo de vigilância e controle, que pune e acaba delegando exclusivamente à família a responsabilidade pela proteção social, principalmente tendo em vista que a família em referência é a família pobre, cuja condição socioeconômica dificulta o acesso a recursos de diversas ordens, necessários para a proteção dos seus membros.

No que tange à atuação com as famílias no âmbito da Política Nacional de Assistência Social, é definido pelo MDS (2010) que cabe ao Centro de Referência da Assistência Social (Cras) atuar no sentido de facilitar e promover o acesso aos direitos socioassistenciais, aos diversos serviços, benefícios, programas e projetos. Para tanto, deve considerar seu território, a organização e articulação com serviços da rede intersetorial a ele referenciados (MDS, 2010).

Um dos serviços do Cras é o Serviço de Proteção e Atenção Integral à Família (Paif), que, de acordo com o MDS (2012), deve ter caráter continuado e atuar na prevenção da ruptura dos seus vínculos familiares e comunitários, bem como promover o acesso e garantia de direitos, visando à melhoria na qualidade de vida das famílias, devendo a execução das ações ficar a cargo dos profissionais de nível superior que compõem a equipe técnica do Cras, em geral Assistentes Sociais e Psicólogos(as). Ainda segundo a citada referência, o Paif deve ter como foco o "trabalho social com as famílias", com a finalidade de contribuir para a convivência, acesso aos direitos e intervenções que visem à garantia de direitos, dirigidas a um conjunto de pessoas unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade (MDS, 2012). Além disso, como recomendado pelo Crepop (2007) e pelo MDS (2013), o Paif não deve ter caráter terapêutico, e caso seja identificada tal necessidade, o usuário deve ser encaminhado para a rede de instituições públicas que disponha desse serviço.

Para Mioto (2004), apesar do longo histórico do profissional de Serviço Social no trabalho com as famílias, no que se trata dos requisitos que esse trabalho exige, a atuação ainda deixa a desejar, pois a capacitação para tal ocorre, na maioria dos casos, dentro dos próprios serviços e é mais voltada para o aprendizado de certas tecnologias (cadastros), para a lógica dos serviços e não para discutir sobre a família como foco de intervenção. Especificamente sobre a concepção de família que orienta a intervenção dos profissionais de Serviço Social no Cras, Alves (2014) destaca que, apesar de reconhecer diferentes arranjos familiares - tradicionais, monoparentais, formados por laços afetivos - e de utilizar conceitos das legislações vigentes, ainda predominam discursos conservadores e a prática com esses diferentes arranjos causa estranhamento ao profissional.

Diferentemente do profissional de Serviço Social, que tem uma formação e atuação mais voltada para o coletivo, para a classe trabalhadora e voltada para as questões sociais, Romagnoli (2006) ressalta que os profissionais de Psicologia têm um histórico de uma prática individual, clínica e de ser uma profissão voltada para a elite. E que, apesar da inserção que vem tendo nas políticas sociais, trabalhar com coletivos ainda se apresenta como desafio aos profissionais de Psicologia e que trabalhar com famílias não tem se constituído como prática dessa profissão.

A pesquisa realizada por Santos (2014) com Psicólogas de Cras na Bahia corrobora com esses achados, já que a autora identificou que todas as participantes possuíam especialização em área distinta da social, com predomínio da área clínica. Além disso, as falas das participantes do referido estudo revelaram que as características pessoais eram mencionadas como o que respaldava a realização do trabalho social e não os elementos técnico-profissionais.

Essa lacuna teórica e a hegemonia da formação clínica individual permitem refletir sobre fragilidades da formação dos profissionais de Psicologia para atuar no campo das políticas sociais, em especial nas de Assistência Social, como destacam Yamamoto e Oliveira (2010). Nessa mesma perspectiva, para Sarti (2004), a família engloba muitas e diferenciadas relações, o que exige também que as ações e atendimentos sejam pensados para lidar com essa gama de relações também, necessitando de formação dos profissionais para tal.

Além dos aspectos ligados à formação e capacitação, Campos & Garcia (2007) destacam a não garantia de privacidade e sigilo diante da falta de uma infraestrutura adequada e uma precariedade no trabalho em equipe, principalmente no que se refere ao trabalho de supervisão. Os referidos autores consideram que o Paif é bem formulado, mas tem problemas ligados aos recursos humanos, já que há uma baixa remuneração e vínculo fragilizado dos técnicos, o que acarreta na descontinuidade e rotatividade nos serviços, demandando ainda a necessidade de buscar outras fontes de renda.

Pensando ainda no aspecto da formação, pelo apanhado teórico aqui levantado, identificou-se que a Psicologia tem uma formação mais individual, clínica e distante do trabalho coletivo com as famílias. Por outro lado, a história do Serviço Social mostra uma formação mais próxima da temática, mas mesmo assim ainda se evidencia a dificuldade de trabalhar com essa instituição social e com os diferentes arranjos familiares na prática. Na pesquisa de Alves (2014) - realizada com Assistentes Sociais que atuam em Cras e que buscaram conhecer as concepções de família que orientam suas intervenções -, a autora constata que os profissionais têm essa dificuldade porque os valores que adquiriram socialmente com a própria família e com a sociedade aceitam um modelo de família: o nuclear.

Diante do exposto, o objetivo geral deste artigo é o de analisar os discursos dos profissionais de Psicologia e Serviço Social dos Centros de Referência da Assistência Social (Cras) sobre família e sobre a formação recebida para a realização do trabalho com esse público, buscando caracterizar essa formação e refletir sobre os discursos da prática profissional com as famílias no âmbito do Cras. Os pressupostos iniciais são de que a formação acadêmica não vem preparando os profissionais para o trabalho com as diferentes famílias, estando a atuação respaldada mais no senso comum e em concepções individuais do que teórica e metodologicamente, com práticas que vêm se distanciando da perspectiva da garantia de direitos.

Os discursos serão tomados como acontecimentos, pois, de acordo com Foucault (1969/2008), isso possibilita a compreensão de como surgiu determinado enunciado e não outro em seu lugar, o porquê daquele discurso e não outro (Foucault, 1969/2008). Complementando, Revel (2005) traz a reflexão de que o acontecimento deve ser entendido como a irrupção de uma singularidade histórica que nos atravessa e, assim, pode-se dizer que o discurso emerge de um acontecimento.

O discurso diz respeito a um "eco linguístico" que articula o saber e o poder, possuindo uma função normativa e reguladora (Revel, 2005). Ou seja, diz respeito ao poder que se deseja alcançar por meio do domínio da verdade. Poder que pode ser disciplinar e que, de acordo com Foucault (1975/2010), tem a capacidade de adestrar o indivíduo, tomando-o como objeto a ser analisado e diferenciado, mas também como instrumento de exercício desse poder.

Os discursos não devem ser tratados simplesmente como conteúdos, mas tomados em sua prática, que vão formando os objetos que falam e os sujeitos que os proferem (Foucault, 1969/2008; Gregolin, 2006). Assim, o discurso não se refere apenas ao que se diz, mas tem regras de funcionamento e de existência, produzindo o sujeito que o profere e que passa a ocupar um determinado lugar ao pronunciá-lo. Entre essas regras de funcionamento está a contradição que dá materialidade aos discursos a partir dos jogos que desempenha, até porque nem sempre o sujeito conhece o que diz (Foucault, 1969/2008).

Como os discursos são produzidos e reproduzidos, pois os sujeitos recebem discursos prontos, principalmente quando são da ordem das leis, são legitimados socialmente como uma verdade e acabam exercendo coerção sobre os indivíduos. Entre esses discursos estão os oferecidos pelas instituições (Foucault, 1971/2009), como o Estado ou mesmo a família.

 

Método

Para atender aos objetivos, adotou-se uma estratégia tanto documental como de campo, sendo essa última dividida em duas partes: aplicação de um questionário e um roteiro de entrevista aberta. A pesquisa foi realizada no município de João Pessoa-PB, que contava com 11 Unidades Cras no momento da coleta. Os questionários e as entrevistas foram realizados nas unidades Cras, e para a pesquisa documental o lócus foi a Secretaria de Desenvolvimento Social.

A pesquisa documental contribuiu para a identificação das ações realizadas com as famílias e permitiu conhecer (brevemente) o histórico desse trabalho no município de João Pessoa-PB. Já o questionário permitiu caracterizar o perfil dos profissionais dos Cras do referido município, bem como selecionar a amostra para responder ao roteiro de entrevista, sendo selecionados os que atendiam ao critério de já ter realizado acompanhamento familiar e ter feito o Plano de Acompanhamento Familiar. A entrevista permitiu aprofundar muitos dos aspectos encontrados nos outros instrumentos, bem como identificar e analisar os discursos sobre família e sobre o trabalho social realizado com esse público no âmbito do Cras.

Os documentos foram analisados por meio da análise de conteúdo temática, buscando descobrir os temas nos dados, cuja presença (ou ocorrência) tivesse significado para o objeto analisado. Os temas possuem relações com o assunto estudado e comportam palavras ou frases a eles relacionadas (Minayo, 2010). Assim, procedeu-se à categorização e reorganização dos dados dos relatórios em alguns temas baseados nos objetivos e no referencial utilizado.

O questionário foi aplicado com todos os técnicos - Assistentes Sociais e Psicólogos(as) - dos Cras que estavam atuando no momento da coleta, o que totalizou 36 participantes, sendo 17 Psicólogos(as) e 19 Assistentes Sociais. A partir dos dados obtidos nos questionários, foram identificados os profissionais que faziam acompanhamento às famílias, o que possibilitou aplicar o roteiro de entrevista semiestruturada a dez técnicos, cujas entrevistas foram submetidas à Análise do Discurso, seis com Assistentes Sociais e quatro com Psicólogos(as). Essa ferramenta de coleta de dados foi escolhida porque, de acordo com Minayo (2010), permite compreender as especificidades dos casos, permitindo ao pesquisador fazer intervenções de modo a aprofundar o assunto com o entrevistado.

As entrevistas foram analisadas pelo método trabalhado por Gregolin (2004), cuja proposta de análise foi delineada a partir de Foucault (1969/2008). Para efeito da proposta aqui apresentada, as categorias de análise serão: que discursos aparecem? De onde fala? A partir de que grande acontecimento se reconta a história?

O "de onde fala?" permitiu compreender o lugar institucional que o constitui como sujeito do discurso (Gregolin, 2004). Ao analisar "que discursos aparecem?", foi possível compreender não somente o que o sujeito diz, pensa ou julga conhecer, mas as regras e a lógica de funcionamento que estão por trás do que é proferido (Foucault, 1969/2008). Além dos discursos, podem ser identificados os interdiscursos, que ocorrem quando o sujeito se ampara em um já dito como objeto do seu discurso (Moura 2008). Analisar também "a partir de que grande acontecimento se reconta a história?" fez-se importante porque permitiu compreender a relação entre os discursos proferidos e sua memória, sua temporalidade, a história que atravessa os sujeitos e constrói sua rede de discursos (Foucault, 1969/2008; Revel, 2005).

Os princípios referentes à ética em pesquisa com seres humanos foram resguardados, como orientado pela Resolução nº 466/2016 (CNS, 2012). Foram previstos riscos mínimos de caráter vexatório, mas que foram minimizados pela garantia do sigilo, privacidade de participação voluntária.

 

Resultados e discussões

I - Caracterizando o perfil dos participantes

A partir dos questionários, pôde-se constatar que há predominância de profissionais, tanto de Serviço Social como de Psicologia, do sexo feminino, com idades variando de 27 a 53 anos. O salário líquido pelo trabalho no Cras é em torno de R$ 1.200,00. O tempo de serviço variou de duas semanas a oito anos. Sobre a seleção para trabalhar no Cras, houve relatos sobre ter sido por meio de currículo (mas houve outros meios: currículo e entrevista, remanejamento de outro serviço, indicação) e só entrevista.

A situação dos participantes desta pesquisa não difere da constatação de Campos e Garcia (2007) de que o Paif tem como um de seus problemas os Recursos Humanos, em que os profissionais são submetidos a baixos salários e vínculos fragilizados, implicando em alta rotatividade nos serviços. Destaca-se, nos dados apresentados, o baixo salário dos profissionais e o fato de que havia profissionais atuando há apenas duas semanas, o que denota essa rotatividade no serviço e uma fragilidade nas relações de trabalho.

A respeito da área de estágio na graduação, os(as) Psicólogos(as) fizeram referência à área Clínica, Escolar, Saúde, Organizacional e Desenvolvimento Infantil. No caso dos Assistentes Sociais, em contrapartida, foi regular a menção ao estágio na própria Política de Assistência Social, seguido da Saúde, Justiça e Escolar. Questionou-se com os técnicos sobre quais experiências acadêmicas contribuíram na sua formação para o trabalho no Cras e com as famílias. O principal meio apontado foi o estágio extracurricular.

De acordo com os dados dos documentos acessados, o quadro de estágio nos Cras tem estagiários de Serviço Social, não tendo registro de alunos de Psicologia. O que corrobora com Yamamoto e Oliveira (2010) para refletir que esse campo voltado para o trabalho da proteção social tem uma relação mais frágil com a Psicologia; apesar de ser um profissional que compõe a equipe técnica e ter mercado para tal, os estudantes não vislumbram este como um campo de estágio ou mesmo de futura atuação.

Ainda sobre a formação dos profissionais, a partir das entrevistas, foi possível identificar discursos proferidos do lugar de quem acredita que a graduação em Serviço Social está diferente de sua época, no que se trata da formação para o trabalho com família, e de Psicólogo, que falou do lugar de quem teve uma formação clínica, logo, uma formação diferente do que se espera para o trabalho no Cras, como exemplificado nos enunciados a seguir:

[...] não tinha um trabalho com a família, era mais o indivíduo [...] foi meio pincelado sabe, esse, a questão mesmo do trabalho, da vivência enquanto família mesmo, enquanto do, ter essa visão de que família não é só laço consanguíneo, foi da minha parte enquanto profissional mesmo, sabe [...] o meu período acadêmico foi um negócio assim tão pra início mesmo de curso pra serviço social que não deu pra, é muito diferenciado de agora. (AS4).

[...] a minha formação é uma área clínica e eu vinha, né, da área clínica, é, eu, eu no começo eu quis trabalhar isso aqui, né, quis trabalhar a clínica aqui dentro e vi que não surgia muito efeito porque, primeiro, isso não é o padrão dos Cras, né, e na realidade não se encaixava muito bem porque os próprios usuários não entendiam essa prática da psicologia clínica (PSI2).

AS4 considera que a graduação atualmente está diferente e vem abordando mais sobre o trabalho coletivo com a família e sobre outros arranjos familiares, diferente da época em que cursou Serviço Social, no início do curso na Universidade onde estudou. Já PSI2 reflete que o modelo clínico não se encaixa na proposta do Cras, atribuindo isso aos usuários do serviço, considerando que eles não compreendem a prática da Psicologia Clínica, o que gerou na pesquisadora o entendimento de que esse profissional considera que a prática clínica não funciona por esse motivo e não pela proposta individual contrária à recomendação do trabalho coletivo nas políticas sociais. Ou seja, independentemente de o usuário do serviço ter essa compreensão ou não da Psicologia Clínica, o Paif ofertado no Cras não deve ter uma finalidade terapêutica (MDS, 2013; Crepop, 2007).

A partir dos questionários, constatou-se também que parte dos profissionais realizou Pós-Graduação lato sensu (especialização). No caso dos profissionais de Psicologia, foram mencionadas a Especialização em Psicopedagogia, Psicanálise, Neuropsicologia, Direitos Humanos, Saúde da Família, Saúde Mental, Terapia Cognitivo-Comportamental e Dinâmica de Grupo. Já os Assistentes Sociais mencionaram Especialização em Serviço Social e Políticas de Proteção Social, Saúde da Família, Saúde Pública, Gestão em Saúde e em Gestão Pública.

Constata-se que os Assistentes Sociais têm sua pós-graduação assim como os estágios voltados para as políticas sociais, em sua maioria para a Assistência Social. O que diverge da formação dos profissionais de Psicologia, que não vivenciaram os estágios e nem pós-graduação voltados para as políticas sociais, corroborando com os achados de Santos (2014), nos quais todos os profissionais de Psicologia que entrevistou tinham especialização em área distinta da social.

II - Formação recebida para atuar com as famílias

A partir da análise de conteúdo realizada com os documentos acessados, pode-se identificar como temas relacionados à formação para o trabalho com as famílias a categoria: "Ações direcionadas à equipe", constatando-se dados sobre a realização de Capacitação para equipe técnica das unidades Cras; Participação dos técnicos em atividades externas; Reunião de categoria de Serviço Social e Psicologia; Reunião de monitoramento dos serviços socioassistenciais; Reunião intersetorial; Reunião de supervisores de estágio curricular de Serviço Social e Psicologia.

Entre as formações, pode-se identificar nos documentos as que seguem: "Seminário Intersetorial de redes, Seminário sobre o ECA nas escolas; Capacitação sobre Gestão do Suas; Curso estratégico de potencialização pessoal e profissional; I Oficina Municipal para os Cras e Centro de Referência da Cidadania (CRC) sobre o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec)".

Além dos dados dos documentos, durante as entrevistas emergiram discursos relacionados às capacitações no âmbito do Cras que permitiram compreender a formação para o trabalho social com as famílias. Os participantes falaram do lugar de quem não recebeu capacitação; do lugar de quem considera as capacitações oferecidas como superficiais; de quem considerou que as capacitações oferecidas contribuíram para aprender sobre o trabalho social com as famílias e, ainda, ocuparam o lugar de quem recebeu capacitação da secretaria do município e de quem recebeu apenas a capacitação sobre o Programa Bolsa-Família (PBF) como mais próximo da temática, discursos esses que são contraditórios. Seguem abaixo os enunciados para exemplificar, respectivamente:

Nenhuma capacitação voltada pra isso não, a única capacitação que a gente passa aqui é a do Bolsa Família pra fazer o cadastro, [...] e o PAIF que era pra ter uma capacitação, que é voltado pra família, que é pra trabalhar aquele cadastro no vínculo com a família, a gente não tem capacitação (AS1).

[...] faz tempo, né, assim, eu num sou muito boa de memória não, mas eu participei de algumas... aí eu já trabalhei algumas coisas, não de, muito profunda, é tudo muito superficial, essas capacitações são muito superficiais. (AS5)

Esse do Bolsa Família é uma né? Que pra família, acolher a família, né, como preencher o Cad, orientação também com a família, é esse. (AS6)

Enquanto AS6 considera que a capacitação sobre o Programa Bolsa-Família prepara o profissional para o trabalho com as famílias, perante o discurso de AS1 pode-se considerar essa preparação como insuficiente. Como identificado nos discursos dos participantes, as capacitações têm se dado mais na lógica dos serviços (Programa Bolsa-Família) e dos cadastros, como foi também identificado por Mioto (2004), mesmo com a recomendação do MDS (2012) de que haja uma atualização permanente sobre os conceitos fundamentais de família e território, necessários para atuação no Cras, recomendação essa que não vem sendo executada.

Além disso, o fato de a capacitação mais mencionada ser sobre o PBF parece refletir-se nas críticas que Behring e Boschetti (2011) tecem sobre a atuação pontual das políticas sociais, com ênfase nos programas de transferência de renda e nas ações clientelistas. AS1 sugere, inclusive, que sejam feitas capacitações sobre o novo Prontuário Paif, que contém muitas questões diferentes e difíceis de serem feitas, necessitando de preparação para tal. Sobre o Paif, por exemplo, dois aspectos apontados se referem à Orientação Sexual e à Etnia. Diante da não preparação, AS1 apresenta ditos relacionados ao poder de definir a etnia e a orientação sexual dos usuários ao fazer os registros e cadastros do Paif, mesmo se tratando de aspectos autorreferenciais:

[...] a gente quando vê que é uma pessoa mais idosa, a gente não pergunta, sabe, se for um jovem que a gente, a gente bota pra ele responder, agora se for um idoso que a gente tem que responder a gente não pergunta, marca hétero e a questão de cor também é bem complicado, eu marco o que eu vejo, pardo, essas questões. Já quando é uma pessoa que a gente sabe que é, é, LGBT, aí a gente já marca ou ele mesmo responde, tem essas questões não. (AS1)

Verifica-se uma violação ao direito da identidade pessoal em prol de um discurso moral da profissional, já que o discurso possui uma função normativa e reguladora (Revel, 2005). Logo, identifica-se um micropoder por ela exercido, ocupando um lugar de poder e saber sobre os usuários.

III - Os discursos sobre família

Nos enunciados dos participantes, identificou-se a presença do interdiscurso da família desestruturada tanto entre os profissionais de Serviço Social como entre os de Psicologia. No caso dos profissionais de Psicologia, essa desestrutura apareceu ligada tanto à composição familiar (arranjos), como à condição econômica (pobreza) das famílias. No caso do Serviço Social, a desestrutura aparece ligada à presença de conflitos, bem como aos arranjos familiares diferentes do nuclear. Esses interdiscursos foram proferidos por sujeitos que falaram do lugar de profissionais que ocupam um lugar de poder e saber, contando essa história a partir de sua formação profissional. Os enunciados abaixo exemplificam essa constatação:

Então, pra mim eu vejo muito essa desestruturação na formação familiar atual da nossa comunidade... porque é muito diferente um, é, trabalhar com uma família de comunidade que tem núcleos familiares diferentes do que trabalhar com outros tipos de crianças que tem a família tradicional, pode-se dizer, que tem questões financeiras diferentes. (PSI1)

Desestrutura é justamente isso, com aspectos de conflitos, com violência doméstica, com desemprego, com filhos sendo dependentes ou aviõezinhos do tráfico, certo, e mães pronto, que querem passar o dia na rua andando com os meninos, conversando com a vizinha, entendeu, num, num tem a preocupação de arranjar uma diária. (AS1)

É muito difícil ter uma família aqui na comunidade que você veja a concepção de família que a gente geralmente tá acostumado que é o pai e a mãe, geralmente aqui ou é padrasto ou só a figura da mulher, então aqui é muito, muita família desestruturada a gente vê. (AS2)

Família desestruturada é quando existe conflito dentro da família e eles não conseguem resolver, a própria família não consegue sentar e resolver, aí procura, procura os serviços, né. (AS3)

Apesar de PSI1 afirmar primeiramente que a desestruturação independe da formação familiar, sua fala apresenta contradições nesse sentido, já que ao falar das famílias da comunidade faz menções à formação de seus núcleos e que estas diferem das famílias de outras crianças, que não as da comunidade, trazendo um discurso de que as famílias da comunidade possuem núcleos familiares diferentes e que as crianças de família de comunidade são diferentes. São essas contradições que, de acordo com Foucault (1969/2008), materializam o discurso que passa a ser tomado como verdade, nesse caso, o discurso da família desestruturada.

Nos enunciados de AS1 e AS3, a desestrutura está ligada à presença de conflitos, já no caso de AS1 há o discurso da responsabilização (culpabilização) das famílias, inclusive pelos fatores sociais e econômicos, pela falta de emprego (uma diária), e em AS3 a desestrutura está relacionada à presença de conflitos que a família não consegue resolver, e não à composição familiar ou a fatores socioeconômicos, como está presente nos discursos dos outros participantes. As falas de AS2 geraram na pesquisadora o sentido de que as famílias que fogem ao modelo tradicional (pai, mãe e filhos) são desestruturadas, e o discurso de que família desestruturada é a que tem como responsável a figura materna caracteriza-se como um discurso patriarcalista.

O interdiscurso da "família desestruturada" foi amplamente utilizado e, a partir dos ditos dos profissionais, pode-se dizer que essa desestrutura foi tanto relacionada à presença de conflitos nas famílias como aos arranjos familiares e também à condição financeira das famílias, levando à constatação que a família ainda tem sido considerada como o modelo nuclear, apesar de a literatura e as próprias orientações do MDS (2012) considerarem que não diz respeito só à ordem biológica, mas a diferentes arranjos familiares (Sarti, 2004; Souza et al., 2012), inclusive, identificando-se o uso de um discurso ligado ao patriarcalismo.

As assistentes sociais também usam o discurso da família desestruturada, mas paradoxalmente também se identificou o interdiscurso da matricialidade sociofamiliar e o discurso de família institucionalizado na Política de Assistência Social, ambos falados do lugar de quem aprendeu a trabalhar na prática, sendo a formação profissional (graduação ou pós-graduação) o acontecimento que marca os seus discursos. Essas participantes falaram da matricialidade (ver como eixo principal; trabalhar a família no todo e também de uma forma particularizada), como também trouxeram concepções de família ligadas ao fato de pessoas, com laços consanguíneos ou não, conviverem sob um mesmo teto, em uma mesma residência, como recomendado pelo MDS (2005; 2012), trazendo um discurso marcado pela contradição.

A matricialidade familiar é ver a família como eixo principal, né, dentro da política de assistência social, é ter, é trabalhar a família de uma forma, é, individual, particularizada também, num todo e ao mesmo tempo atendendo a, as particularidades de cada indivíduo... Então assim, são várias questões que a gente tem que trabalhar a família no todo e também de uma forma particularizada. (AS3)

Pra mim, família é assim, a matri, a matricialidade, família é a matricialidade sócio-familiar, é assim, família é a base de tudo na formação de uma pessoa, tanto socialmente, como psicologicamente porque, assim, é a partir da família que a pessoa vai constituindo sua personalidade, sua identidade de pessoa... (AS2)

O sentido de família para AS3 reproduz o discurso institucionalizado na Política de Assistência Social, baseado no fato de morar sob um mesmo teto e de ter laços afetivos, independentemente dos consanguíneos. Já para AS2, essa matricialidade é ter a família como base, inclusive da constituição da personalidade. Identifica-se ao longo de seus ditos um discurso psicológico clínico: "psicologicamente perturbadas, personalidade, identidade", diante do acontecimento que conta sua história (que é o fato de ter uma mãe psicóloga). Esses elementos permitem compreender a relação entre os discursos e a própria história do sujeito que, de acordo com Foucault (1969/2008) e Revel (2005), atravessa-o e vai construindo toda uma gama de discursos que permeiam sua prática.

O que corrobora com as reflexões de Alves (2014) de que há modelos de famílias que não são aceitos apesar da formação acadêmica e profissional sobre os diferentes arranjos, conceitos e práticas com as famílias que se dão em razão dos valores adquiridos na própria história com sua família e com a sociedade, que é o modelo da família nuclear. Nesse mesmo sentido, Santos (2014) identifica que as participantes de sua pesquisa trazem mais elementos de suas características pessoais em suas falas do que fundamentos teóricos e metodológicos para respaldar sua atuação. E são esses discursos que estão permeando o trabalho social com as famílias.

Apesar disso e de ambas as categorias de profissionais proferirem discursos sobre a garantia de direitos, o discurso de uma prática assistencialista foi observado: "Então, às vezes a gente tira realmente do bolso quando a gente vê que realmente a família não tem e quando não, a família vai e faz esse esforço" (AS4). Também se observa o discurso eugenista (categorização das pessoas baseada em fatores genéticos) e o higienista (tratamento, cura), ao tratar da prática com as famílias, discursos esses proferidos do lugar de quem teve uma formação clínica - no caso específico dos profissionais de Psicologia - e do lugar de poder e saber, bem como do lugar de impotência diante das dificuldades enfrentadas no trabalho realizado com as famílias, sendo os discursos da prática assistencialista proferidos tanto a partir da vivência com sua própria família como também a partir da formação recebida na graduação.

Mas o trabalho é esse, né, é o foco, a missão do Cras é essa, é o tratamento com as famílias, os vínculos familiares, ingresso em cursos profissionalizantes, encaminhamentos, né, diversos, é isso [...] é pra tratar de repente as mazelas que venha a tocar a família. (AS5)

[...] é, na maioria, pais desajustados geram filhos desajustados e a tendência, se não tiver realmente uma, uma, uma boa, vamos dizer assim, um bom trabalho na família, né, os filhos provavelmente serão seguidores dos pais nessa área, na área negativa né. (PSI2)

Nas falas de AS5, identifica-se que a participante vem tratando as questões sociais como algo patológico ou ligado à lógica médica, tais como "desajustados" e "tratar mazelas". PSI2 ainda traz em suas falas elementos de um discurso determinista e moralista, bem como de um discurso eugenista. Esses discursos eugenistas, assistencialistas, higienistas, patriarcalistas e da família nuclear são reproduzidos mesmo sem sempre se conhecer ou se ter consciência disso, pois o discurso, como refletido por Foucault (1969/2008), é o que é realmente dito, mas esses ditos são analisados como práticas que formam os sujeitos (profissionais) que os proferem, bem como os objetos (as famílias e o trabalho social realizado com elas).

A partir das contribuições de Foucault (1971/2009; 1975/2010), apreende-se que as instituições oferecem discursos prontos que exercem um poder sobre os profissionais que, por sua vez, exercem um poder disciplinador sobre os usuários, julgando o que deve ser o melhor e o certo para estes. Além disso, cabe destacar que alguns profissionais falaram a partir da perspectiva da garantia de direitos, mas, ao tratar da sua prática com as famílias, proferiram um discurso assistencialista, apresentando contradições nos seus ditos. Essas contradições são importantes porque permitem identificar os jogos e a lógica de funcionamento dos discursos (Foucault, 1969/2008), principalmente porque esse discurso é analisado como prática que constitui o sujeito à medida que o profere (Foucault, 1969/2008), nesse caso, a partir do discurso de uma prática assistencialista.

 

Algumas considerações

A partir da análise dos dados provenientes dos diferentes instrumentos de coleta, pode-se dizer que a formação dos profissionais tanto de Serviço Social como de Psicologia se distancia da preparação para o trabalho com as famílias. Sobre as capacitações para atuar no Cras, estas têm sido oferecidas, mas ainda na lógica e execução dos serviços, programas e instrumentos como cadastros e não sobre o público com quem trabalha. Mesmo quando se trata de um cadastro, ainda não tem sido efetivo, havendo a sugestão dos profissionais de capacitar sobre o Prontuário Suas, o que leva à compreensão de que capacitar o profissional para esse trabalho é também garantir os direitos dos usuários de serem atendidos e escutados qualificadamente.

No caso da Psicologia, os estágios e as especializações desses profissionais ainda possuem um viés mais clínico e distante das políticas sociais, o que difere da formação dos assistentes sociais, que, inclusive, possuem uma procura maior para estágio na área. No entanto, apesar da formação para o trabalho com coletivos e para a proteção social, ainda foram reproduzidos mais discursos sobre família a partir da vivência pessoal desses profissionais com a própria família do que a partir de outros acontecimentos, como a formação acadêmica e as capacitações recebidas. E, na prática profissional, os discursos são ligados à perspectiva higienista, assistencialista e eugenista, sendo reproduzidos ainda os interdiscursos da família desestruturada ligados à composição familiar e à situação socioeconômica, caracterizadas como desestruturadas as famílias pobres e as que não são nucleares.

Apesar das diretrizes de que o Paif deve atuar de modo a garantir direitos, fortalecer vínculos familiares e comunitários, os discursos sobre a prática dos profissionais com as famílias e sobre as famílias ainda têm vestígios de uma ordem assistencialista e higienista, a partir de uma perspectiva patologizante, que pode estar relacionada com a própria concepção de família. Destarte, destaca-se que essa é uma área em que os profissionais têm vínculos empregatícios fragilizados, não ocupam cargos efetivos e ainda têm baixa remuneração, o que fragiliza o próprio Paif.

Diante dos dados encontrados e das reflexões realizadas, confirma-se o pressuposto de que a formação acadêmica não vem preparando os profissionais para o trabalho com as diferentes famílias e para uma atuação que garanta efetivamente os direitos dos usuários do serviço. Uma sugestão para modificação desse quadro seria a de incluir essas discussões nos cursos de graduação, mas isso ainda seria insuficiente, diante da constatação de que os profissionais de Serviço Social, por exemplo, afirmaram que aprenderam sobre o tema na academia e, mesmo assim, diante dos discursos proferidos, não vêm atendendo à pluralidade de arranjos familiares. Assim, além da inclusão nos cursos de graduação, principalmente para a Psicologia, cujos estágios e cursos de pós-graduação raramente se dão na área das políticas sociais, o debate sobre os diferentes arranjos familiares deveria ser incluído como uma constante desde a Educação Básica, trabalhando com as crianças e adolescentes, especialmente se considerarmos o fato de que um dos principais acontecimentos a partir do qual os profissionais tanto de Psicologia como de Serviço Social contaram a sua história foi o das vivências desde criança com a própria família.

 

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Recebido em 03/04/2016
Aprovado em 31/10/2016

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