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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2017

 

Vamos conversar? Histórias de jovens sobre o uso de bebidas alcoólicas nas comunidades quilombolas

 

Let's talk? Stories of young people about the use of alcoholic beverages in quilombola communities

 

Vamos a hablar? Historias de los jóvenes sobre el uso de alcohol en las comunidades quilombolas

 

 

Roseane Amorim da SilvaI; Jaileila de Araújo MenezesII; Leyllyanne Bezerra de SouzaIII; Jéssica do Nascimento SilvaIV; Renata Paula dos Santos MouraV; Stellamary Brandão Rodrigues GaiaVI

IGraduada e mestre em Psicologia, doutoranda do programa de pós- graduação em Psicologia da UFPE. - roseane_amorim6@hotmail.com
IIGraduada e mestre em Psicologia. Doutora em Psicologia pela UFRJ.- leilaufrj@hotmail.com
IIIGraduada e mestre em Psicologia pela UFPE. - leyllyanne@hotmail.com
IVEstudante do curso de graduação em Pedagogia da UFPE. - jessicanascimento1971@hotmail.com
VGraduada em Pedagogia e mestre em Educação pela UFPE. - repaulasmoura@hotmail.com
VIGraduada em Pedagogia pela UFPE. - stellamarybrandao@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo faz parte da devolutiva dos resultados de uma pesquisa realizada em 2013, em duas comunidades quilombolas, localizadas em Garanhuns/PE. A pesquisa é qualitativa e buscou investigar os significados do uso de álcool entre os(as) jovens, considerando a perspectiva da interseccionalidade. A devolutiva foi constituída por duas etapas: na primeira entramos em contato com os(as) jovens participantes da pesquisa e combinamos a devolutiva. Em seguida, realizamos uma oficina e discutimos os resultados da pesquisa abordando de modo interseccional as questões de gênero, classe social e raça/etnia em relação ao consumo de álcool por jovens das comunidades. os(as) participantes foram bem receptivos aos resultados da pesquisa, apresentados em formato de pequenas histórias, e destacaram: as diversas formas de violência contra as mulheres nas comunidades; o uso de bebidas alcoólicas relacionado à ausência de equipamentos de lazer; e o preconceito sofrido por serem negros(as) e/ou quilombolas, o que ganha relevo quando circulam nos espaços urbanos da cidade, em geral, e no contexto escolar, em especial. Essas questões chamam atenção para que pesquisas e intervenções sejam realizadas nas comunidades, no intuito de contribuir para o enfrentamento das diversas desigualdades sociais que historicamente têm marcado a vida da população quilombola.

Palavras-chave: Jovens. Comunidades Quilombolas. Álcool. Interseccionalidade.


ABSTRACT

This article is part of the return of the results of a survey conducted in 2013, in two quilombola communities, located in Garanhuns/PE. The research is qualitative and sought to investigate the meanings of alcohol use among the young considering the intersectionality perspective. The devolution was constituted by two stages: in the first, we contacted the young participants of the research and we combined the devolution. Next, we held a workshop and discussed the results of the survey. We addressed issues of gender, social class and race/ethnicity in relation to alcohol consumption by youth in the communities. Participants were very receptive to the results of the research, presented in small story format, and highlighted: the various forms of violence against women in the communities; The use of alcoholic beverages related to the absence of leisure equipment; And the prejudice suffered by being black and/or quilombolas, which gains importance when they circulate in the urban spaces of the city in general and in the school context in particular. These issues call attention to the fact that research and interventions are carried out in the communities, in order to contribute to the confrontation of the various social inequalities that historically have marked the life of the quilombola population.

Keywords: Young people. Quilombolas communities. Alcohol. Intersectionality.


 

 

Introdução

Início de conversão

Aquela pesquisa deu em quê, hein?

(Jovem quilombola).

Este artigo faz parte da devolutiva dos resultados de uma pesquisa realizada em 2013, para construção da dissertação de mestrado intitulada "Os significados do uso de álcool entre os(as) jovens quilombolas do município de Garanhuns/PE: uma perspectiva interseccional"1 As comunidades quilombolas são territórios constituídos por grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (CNAS, 2007). Assim, não é a comprovação de um passado associado à escravidão que define uma comunidade como quilombola, é a própria identidade daquele grupo que se afirma como tal.

os(as) quilombolas e os(as) indígenas fazem parte das populações consideradas tradicionais. Sobre estas, Cruz (2007, p. 94) ressalta que "as populações tradicionais têm se organizado, ganhando visibilidade e protagonismo, afirmando-se como sujeitos políticos na luta pelo exercício ou mesmo pela invenção de direitos a partir de suas territorialidades e identidades territoriais". Todavia, ainda é presente no imaginário popular o quilombo como algo pertencente ao passado, e quando tomam conhecimento da existência de comunidades quilombolas, algumas pessoas têm uma imagem estereotipada sobre os(as) moradores/as, por desconhecerem como são as comunidades, o modo de vida e as pessoas que fazem parte desse contexto.

As comunidades quilombolas Castainho e Estivas, territórios de nossa pesquisa, caracterizam-se como comunidades rurais. A maioria dos(as) jovens trabalha na agricultura e têm como fonte de renda o plantio de feijão, mandioca, frutas e hortaliças que são comercializadas nas feiras de Garanhuns e em municípios circunvizinhos. Algumas e alguns jovens trabalham e/ou estudam na cidade, outros(as) estudam nas escolas das comunidades. Há duas escolas, uma em cada comunidade, mas só ofertam o ensino fundamental I e II e os(as) estudantes que desejam continuar sua trajetória de escolarização precisam se deslocar para a área urbana. Alguns e algumas abandonaram os estudos por diversos motivos, sobretudo pela necessidade de trabalhar para ajudar na renda familiar.

A pesquisa realizada em Castainho e Estivas, para a construção da dissertação, foi de caráter qualitativo e inspiração feminista. Por pesquisa feminista, Neves e Nogueira (2005) ressaltam que, nesse tipo de estudo, os(as) pesquisadores/as precisam estar em um processo de reflexividade, que significa uma autorreflexão acerca de como suas identidades interferem na construção dos dados e como também são afetados(as) pelas relações estabelecidas a partir da pesquisa.

O estudo nas comunidades foi realizado em duas etapas: a primeira consistiu em observação participante nos diversos espaços existentes, e na segunda foram realizadas entrevistas semiestruturadas com os(as) jovens. Seguindo esse percurso, percebemos que o uso de álcool para os(as) jovens quilombolas têm diferentes significados, presentes nas diversas atividades realizadas nas comunidades, no trabalho, em comemorações do plantio e da colheita, nas práticas de lazer e sociabilidade.

Referenciadas por uma perspectiva crítico contextualizada de estudos da juventude, buscamos abordar as experiências dos/das jovens com o álcool a partir de suas situações de vida, pois, conforme Abramo (2005, p. 44), estas "revelam o modo como tal condição2 é vivida a partir dos diversos recortes referidos às diferenças sociais - classe, gênero, etnia", e também local de moradia, especificidades regionais, as relações campo-cidade, todo o contexto no qual as juventudes se constituem e se manifestam. Nossa pesquisa e seus desdobramentos (a devolutiva) estão referenciados na perspectiva interseccional e no seu compromisso ético-político de formatar o processo de produção de conhecimento para que ele seja um campo de visibilidade, discursividade e escuta das desigualdades e injustiças sociais que obstaculizam determinadas vivências juvenis.

 

Sobre a interseccionalidade

Para realizarmos nossas reflexões sobre algumas das vivências dos(as) jovens relacionadas ao uso de bebidas alcoólicas, fizemos uso da perspectiva da interseccionalidade que, segundo Piscitelli (2008, p. 269), pode ser entendida como "uma forma de pensar como construções de diferença e distribuições de poder incidem no posicionamento desigual dos sujeitos no âmbito global". Essa produtiva valorização da diferença e do poder implica uma secundarização relativa da categoria gênero que, no pensamento feminista, assumiu lugar central nas últimas décadas, obscurecendo ou subordinando outras formas de diferenciação que produzem desigualdades e opressão. Assim, as categorias de articulação e/ou interseccionalidade buscam

oferecer ferramentas analíticas para apreender a articulação de múltiplas diferenças e desigualdades. É importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença, em sentido amplo para dar cabida às interações entre possíveis diferenças presentes em contextos específicos. (Piscitelli, 2008, p. 269)

A interseccionalidade visa compreender a complexidade das identidades e das desigualdades sociais por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclausuramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social, que são as categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multiplicidade dos sistemas de opressão que opera a partir dessas categorias e postula sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (Hirata, 2014).

O conceito de interseccionalidade teve sua origem no movimento feminista negro norte-americanas. Autoras como Crenshaw (2002), Brah (2006) e outras fazem uso dele para abordar os marcadores gênero, raça/etnia e classe, de modo articulado, pois, segundo elas, esses marcadores estão entrelaçados na constituição das desigualdades sociais. Ou seja, não agem de forma independente uns dos outros. Um dos desafios de pensar as desigualdades sociais a partir dessa perspectiva é justamente pensar nessa articulação e na construção de um marcador produzindo efeito sobre o outro.

A partir da metáfora de encontro de avenidas, Crenshaw (2002) explica o que está chamando de interseccionalidade. Os eixos de poder, raça, etnia, classe e gênero, se cruzam. "As mulheres racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas estas vias" (Crenshaw, 2002, p. 177). O indivíduo sujeito à interseccionalidade, nas descrições da autora, torna-se equivalente a um "pedestre" no encontro dessas várias avenidas, sofrendo os danos causados por impactos vindos de outras direções. Portanto, o conceito de interseccionalidade utilizado por Crenshaw destaca as desvantagens, vulnerabilidades, opressões e desempoderamento sofridos dinamicamente pelas mulheres que se encontram em dois ou mais pontos de encontro dos eixos de poder.

Piscitelli (2008, p. 268), ao falar sobre interseccionalidade, ressalta que "os marcadores de identidade, como gênero, classe ou etnicidade não aparecem apenas como formas de categorização exclusivamente limitantes, estes oferecem, simultaneamente, recursos que possibilitam a ação". Nessa linha de abordagem, pensada a partir de uma perspectiva construcionista, podemos encontrar Brah, ela ressalta que "estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas como variáveis independentes porque a opressão de cada uma está inscrita dentro da outra - é constituída pela outra e é constitutiva dela" (2006, p. 351). Por isso, tais fatores estão sendo considerados neste estudo.

Para exemplificar como os marcadores de opressão operam, Brah e Phoenix (2004) apresentam a fala de Sojourner Truth, mulher afro-americana que foi escravizada e ficou conhecida por sua fala proferida em 1851 na Convenção dos Direitos das Mulheres, em Akron, Ohio.

Aquele homem lá diz que uma mulher precisa ser ajudada ao entrar em carruagens, e levantada sobre as valas, e ficar nos melhores lugares onde quer que vá. Ninguém me ajuda em lugar nenhum! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para o meu braço. Eu arei, eu plantei e eu recolhi tudo para os celeiros. E nenhum homem pode me auxiliar. E eu não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem [...] e suportar o chicote tão bem quanto! E eu não sou uma mulher? Eu dei à luz a crianças e vi a maior parte delas ser vendida como escravas. E quando eu chorei com o sofrimento de uma mãe, ninguém além de Jesus me ouviu. E eu não sou uma mulher? (Brah & Phoenix, 2004, p. 77)

Com essa fala, podemos observar que dizer que alguém é mulher não dá conta de pensar sobre as opressões e desigualdades vivenciadas, a mulher do relato é pobre e negra, de modo que os marcadores gênero, classe e raça produzem efeitos sobre ela, fazendo com que tenha vivências como a apresentada, e que se diferenciam de outras mulheres e dos homens. Vale ressaltar que a questão não é a diferença, mas as desigualdades que ela gera.

Pensamos que seja importante considerar as interseccionalidades a partir de questões estruturais da sociedade, pois estas têm um peso grande na constituição dos sujeitos, e também como algo que não é estático, que nas interações dos diversos marcadores que produzem desigualdades são responsáveis pelas mudanças nos modos como os sujeitos se constituem.

Refletindo sobre os usos do álcool pelos(as) quilombolas, a partir da interseccionalidade, observamos que os efeitos produzidos pelos marcadores sociais (gênero, classe, raça/etnia) incidem sobre o consumo que é perpassado pela vivência de situações de preconceito, falta de oportunidades no âmbito do trabalho e da educação, falta de equipamentos de lazer nas comunidades, entre outros.

Observamos também que as percepções sobre o uso de álcool diferem quando os consumidores são homens, há uma naturalização das práticas de consumo e, quando são mulheres, geralmente, elas são difamadas, principalmente se o uso é feito nos bares. Muitas são as significações do uso de álcool entre os(as) jovens: diversão, lazer, meio de esquecer os problemas e lidar com as dificuldades cotidianas. O uso de álcool também foi positivado como algo que favoreceu um circuito de sociabilidade para mulheres casadas que podem, em algumas situações, acompanhar os maridos nos bares. Para os homens, foi mencionado como uma substância que se ingere para dar coragem de trabalhar em lugares que podem ocasionar riscos à vida, entre outros. O uso de álcool tem forte conotação cultural nas comunidades, visto que sempre esteve presente, mediando as atividades realizadas pelos(as) quilombolas, o que não deixa de ser preocupante quando observamos as consequências negativas vivenciadas por esses sujeitos e a falta de recursos que ajudariam a evitar o consumo abusivo.

Os resultados da pesquisa produziram em nós algumas inquietações: o que fazer com os resultados na relação com os(as) participantes (a quem lhes é de direito)? Quais os efeitos que esses resultados podem gerar, em termos de (des)estabilização de práticas sociais corriqueiras nas comunidades? Como contribuir para o enfrentamento das desigualdades sociais que marcam a vida dos(as) quilombolas? Iniciamos este artigo com a fala de uma jovem da comunidade que encontramos após a finalização da pesquisa. Ela questionava: "aquela pesquisa deu em quê, hein?" Essa se tornou a questão-guia de produção e realização da devolutiva.

Entendendo a produção do conhecimento científico como necessariamente situada (Haraway, 2009), distante, portanto, de uma ideologia de neutralidade, compreendemos a devolutiva como um espaço/tempo destinado a compartilhar as interpretações que tecemos sobre as realidades dos(as) nossos(as) interlocutores(as). Trata-se de um movimento de retorno ao campo, quando nos propomos a dialogar e problematizar nossas histórias sobre e com os outros.

Nesse sentido, o movimento da devolutiva de "Retornar para lá", consiste em um compromisso ético-político de pôr em circulação "o conhecimento produzido pela academia para além de seus muros e dos/das leitores/as deste meio" (Menezes et al., 2013, p. 4). Além disso, consiste em uma oportunidade de continuarmos nos interrogando, junto com o outro (quando ele nos questiona e nos aponta o dedo), sobre quem somos e que narrativas desejamos coproduzir. Dessa maneira, "o fazer da Devolutiva é 'pulsante' para ambas as partes e tem potência para tensionar discursos e práticas hegemônicas em ambos os contextos" (Menezes et al., 2013, p. 7) - academia e comunidade. Descrevemos a seguir os caminhos que seguimos.

 

Método

Participaram da devolutiva não só os(as) jovens que fizeram parte da pesquisa (homens e mulheres com idades entre 18 e 24 anos), mas, também, três mulheres com mais de 30 anos, moradoras da comunidade Castainho, que souberam que a devolutiva aconteceria e estiveram presentes no dia combinado. Na pesquisa do mestrado participaram 10 homens e 10 mulheres jovens, mas nem todos(as) estiveram presentes. Na devolutiva estavam 16 jovens e as três mulheres, sendo que esta aconteceu em 2014, um ano após a realização da pesquisa e cinco meses depois que a mestranda havia defendido a dissertação.

A devolutiva foi constituída por duas etapas:

Primeira etapa - entramos em contato com os(as) jovens participantes da pesquisa e os(as) convidamos para uma roda de conversa. Neste momento, entregamos aos(às) jovens um envelope que continha o título "Vamos conversar? Histórias de jovens sobre a vida nas comunidades". Neste constava o convite para a roda de conversa e uma folha na qual os(as) jovens deveriam colocar, do modo que se sentissem mais à vontade, como é a vida de um(uma) jovem na comunidade? Esse material deveria ser levado no dia do encontro. O objetivo era construir um painel que visibilizasse a vida na comunidade a partir da óptica dos(as) próprios(as) jovens.

Retornar às comunidades e entrar em contato novamente com os(as) quilombolas foi um momento muito rico. OS(as) jovens mostraram interesse em participar da devolutiva, questionaram-nos sobre os resultados, sobre como seria no dia do nosso encontro. Alguns falaram sobre acontecimentos nas comunidades, a exemplo da notícia da gravidez de uma jovem que havia participado da pesquisa e do aumento do consumo de bebidas alcoólicas pelos(as) jovens. Sobre o primeiro acontecimento, havia a preocupação das jovens narradoras com a fama da amiga grávida, pois na condição de mãe solteira, poderia ficar "mal falada" e vista como mulher "sem valor" na comunidade.

No dia do encontro, só duas jovens levaram a folha com a descrição do que é ser uma jovem nas comunidades. Não construímos o painel, mas esse fato não atrapalhou o que havíamos planejado, pois os(as) jovens presentes estavam motivados(as) a participar.

Segunda etapa - nessa etapa, aconteceu a roda de conversa conforme o seguinte roteiro: iniciamos com uma dinâmica de integração, momento em que pudemos nos aproximar dos(as) participantes e também proporcionou que eles(as) interagissem entre si. Em seguida, apresentamos algumas histórias para discutir com eles(as). Contamos o início de cada história e os(as) jovens, divididos em subgrupos, construíram os desfechos. As histórias foram pensadas de acordo com os resultados da pesquisa. Acreditamos que essa forma seria mais produtiva para discutir com os(as) jovens do que apresentar os resultados da pesquisa formalmente, pois concordamos com Afonso (2006) que podemos problematizar informações de modo participativo, com técnicas que convoquem o sujeito à ação, ao discurso, a se posicionar sobre determinadas situações de modo a (re)construir leituras sobre suas condições de existência.

As temáticas discutidas nas histórias tiveram como foco: o uso de álcool com a finalidade de diversão; o preconceito em relação às mulheres que bebem nos bares; o uso de álcool como justificativa para situações de violência contra as mulheres; a presença de pessoas da cidade nas comunidades para fazerem uso de álcool, entre outras. Para refletirmos sobre os discursos dos(as) jovens construídos em nosso encontro, faremos uso da interseccionalidade de gênero, raça/etnia e classe social, conforme mencionado anteriormente.

 

Resultados e discussões

O que conversamos?

Uma das histórias que apresentamos no início para que o grupo construísse o desfecho foi a seguinte: História 1 - o companheiro de Gina costuma bater nela e eles brigam muito. Quando perguntamos a Gina porque ele faz isso, ela disse que

ele faz isso porque ingere diversas bebidas alcoólicas, e essas bebidas juntas causam diversos tipos de transtornos. Um deles é a mudança de comportamento. Uma sugestão para que esse indivíduo pare com as agressões com sua companheira é que definitivamente pare de beber ou, pelo menos, refaça seus hábitos bebendo com consciência, ou seja, bebendo socialmente. (Desfecho da história construída pelo grupo)

Percebemos, pelo desfecho da história, o quanto o uso de álcool, prática naturalizada nas comunidades, é usado para explicar as situações de violência contra as mulheres. É importante também ressaltarmos que o grupo que construiu a história era formado por mulheres e um homem, o que nos faz perceber que a justificativa da violência devido ao uso do álcool é feita também pelas mulheres que sofrem as situações, seja diretamente, seja por meio das ocorrências presenciadas nas comunidades.

A violência de gênero contra as mulheres é um fenômeno mundial que pode acontecer em todas as classes sociais, culturas, raça/etnia, religião, entre outros marcadores de diferenciação, mas não se pode universalizar a categoria mulher como um sujeito coletivo e homogêneo, pois existem diferenças nas relações de poder que incidem sobre elas. E a noção de interseccionalidade visibiliza o quanto os marcadores gênero, classe e raça/etnia constroem desigualdades e opressões que dificultam que as mulheres quilombolas saiam das situações de violência vivenciadas.

A ausência de recorte racial na análise do tema da violência, assim como em relação a outros agravos, tem dificultado a identificação das desigualdades a que estão expostas as mulheres negras. Autores(as), principalmente os(as) de grupos de feministas negras, começaram a perceber que há um agravamento da violência quando a mulher é negra, ocasionadas pelo racismo. Quando pensamos na constituição da sociedade brasileira, marcadores como gênero, classe e raça/etnia delineiam hierarquias produzidas historicamente que vão apontar os lugares vistos como naturais às mulheres pobres e negras e como tais representações simbólicas informam como elas se situam na sociedade, como são vistas e percebidas (Correia, 2013).

É importante lembrar que a questão não se resolve adicionando as diversas formas de opressão na configuração da condição social das mulheres e das relações de gênero, mas percebendo sua interconexão, percebendo como elas se intersectam. A "racialização" é pensada como o efeito de um modo cruel e complexo de operação das desigualdades, por meio do qual se excluem grupos corporalmente marcados (Piscitelli, 1996), situação que torna mais difícil para as mulheres lutarem por seus direitos e realizarem a denúncia em casos de violência. Vejamos o relato de uma das jovens que falou sobre a questão da denúncia.

As mulheres deveriam sair de casa, denunciar a violência que elas sofrem, porque muitas mulheres que os maridos bebem, eu conheço algumas que denunciam o marido, mas quando é no outro dia que o marido tá bom, elas têm pena, aí vão tirar a queixa. Eu acredito que ela deveria ou sair do relacionamento ou denunciar ele. (Relato de uma jovem que estava no grupo)

Pelo relato, podemos perceber que situações de violência contra as mulheres nas comunidades são conhecidas, mas não há uma intervenção em relação a essas situações. Percebemos também que a polícia não age como deveria, pois, de acordo com a Lei Maria da Penha, a vítima não poderia retirar a queixa (Brasil, 2010). Vimos também que o arrependimento da mulher em relação à denúncia é visto como instrumento culpabilizador das situações vivenciadas. Um homem jovem que estava no grupo falou sobre essa questão: "mas essas aí merece apanhar mesmo, porque se ela tira a queixa, tem que apanhar mesmo, morrer no pau".

Muitos fatores estão presentes nas dificuldades das mulheres em denunciar e levar adiante a denúncia (Rabello & Caldas, 2007; Silveira, Nardi & Spindler, 2014). No entanto, no momento em que as situações de violência ocorrem, muitas vezes, as mulheres são culpabilizadas e, com isso, mais uma vez são violentadas. Não é fácil para as mulheres saírem do ciclo de violência, pois seu próprio processo de socialização foi constituído em uma sociedade sexista que tem marcado diversas gerações, como podemos observar a seguir:

minha mãe sempre diz "ruim com ele, pior sem ele", porque tem que pensar nos moleques. Porque bom com ele dentro de casa, porque ele dá as coisas e pior sem ele, porque se botar ele pra fora, quem é que vai sustentar os moleques? Quem vai dá de comer aos moleques? (Relato de uma jovem que estava no grupo)

Segundo White (2002), mulheres que sofrem violência tendem a colocar as suas necessidades em segundo plano, e essa é uma das características fortes e presentes nas mulheres negras em virtude de sua condição histórica de opressão e desigualdades sociais. A autora indica ainda que algumas mulheres, quando investem em uma relação, esperam ser protegidas e apoiadas por seus parceiros, não medindo esforços para manter a relação. Essas mulheres se culpabilizam pela agressão que sofreram e protegem o seu agressor.

No grupo, encontramos também uma mulher jovem que discordou do relato da participante acima: "mas ela pode tomar uma decisão e arrumar um emprego, colocar os filhos na creche e ir trabalhar para sustentar os meninos. Filho não segura casamento, nem relacionamento não, isso se ela tiver uma decisão ativa".

Refletimos sobre esses discursos a partir também do lugar de quem os estava proferindo. Percebemos que as diferenças de escolaridade e classe entre as participantes contribuem para a forma como cada uma enxerga a problemática. A segunda jovem, que acredita na possibilidade das mulheres saírem das situações de violência, é estudante universitária, trabalha e tem uma situação econômica diferenciada na própria comunidade, pois poucas jovens concluíram o ensino médio. A entrada na universidade ainda é exceção para a expectativa da continuidade na trajetória educacional. Com isso, percebemos o quanto o marcador de classe interseccionado com o de gênero e raça/etnia produzem efeitos sobre as mulheres, desenhando percursos distintos - alguns com caráter conformador e restritivo das possibilidades de ser e existir (reiteração das situações de opressão) e outros mais potentes para a experiência política de justiça social.

Pensando nessa relação entre mulher negra e trabalho, é importante lembrarmos o fato para o qual Carneiro (2003) chama atenção: as posições ocupacionais das mulheres negras são as mais baixas no mercado de trabalho formal. E mais uma vez as mulheres têm seu reconhecimento social prejudicado pela relação de dominação de uma cultura sexista, na qual também a cor branca é sinônimo de superioridade. A luta contra a violação de direitos deve levar em consideração a complexidade das vulnerabilidades a que as mulheres estão expostas, pois as desigualdades de gênero, raça e classe entrecruzam-se e se potencializam (Crenshaw, 2002).

Levantamos também alguns questionamentos no grupo buscando despertar a reflexão dos(as) participantes, a exemplo: as mulheres que fazem uso de álcool nas comunidades também são agressivas? Vocês conhecem os lugares onde as mulheres que sofrem violência podem buscar ajuda? A comunidade apoiaria a mulher que denuncia o companheiro? Entre outras, essas foram questões comentadas pelos(as) participantes.

Outra história discutida no grupo teve como questão as atividades de lazer dos(as) jovens quilombolas. História 2 - começou o fim de semana, Yerodim, um jovem de 20 anos, solteiro, não estuda, quer fazer alguma coisa para se divertir, pois trabalhou a semana inteira. No sábado ele se arruma e sai de casa

e vai beber cachaça. A única coisa que tem aqui, principalmente em Estivas, é bar, em cada esquina tem um bar. Você pergunta um ponto de referência ninguém sabe, agora pergunte onde é o bar de fulana, é na esquina tal; onde é o bar de sicrano é na esquina tal. O ponto de referência aqui entre Castainho e Estivas é bar. Só tem duas igrejas muito pouco frequentadas, porque agora tá indo bem pouquinha na evangélica, na católica muito menos. No bar começa de hoje da sexta-feira, é da sexta, domingo começando para segunda. É assim de gente, vem gente até de Garanhuns com paredão, com som, com tudo, é a diversão do povo. Aí o que se pode fazer? Quem tem carro ou moto vai pra Garanhuns, vai tomar um sorvete, vai pro parque, mas aqui na comunidade não tem. (Desfecho da história criada pelo grupo)

O desfecho da história criado pelos(as) jovens revela a falta de equipamentos de lazer, de políticas públicas para os(as) jovens dessas comunidades quilombolas. Na ausência de atividades de lazer, o bar é o lugar em que jovens e adultos podem se encontrar, conversar, se divertir, dançar, paquerar, conhecer pessoas de outros lugares que frequentam esses espaços. Nas comunidades, existem muitos bares, e estes fazem parte da renda de alguns moradores(as), fortalecida também devido à presença de pessoas de outras localidades. Esses frequentadores são comumente da zona urbana e fazem uso de bebida nas comunidades. Costumam chegar de carro e colocam som alto, situação que incomoda muitos moradores, que não costumam intervir temendo prejudicar o comércio de quem precisa dessa renda para sobreviver.

No desfecho dessa história, percebemos também o quanto a questão de classe, nesse contexto, tem relação com o uso do álcool, pois as pessoas com mais poder aquisitivo vivenciam práticas de lazer na área urbana da cidade. Como já dissemos, mesmo com recurso financeiro, os(as) poucos(as) quilombolas que frequentam a cidade para fins de lazer e diversão relatam experiências de discriminação. Observamos também que não são todos(as) os(as) jovens que fenotipicamente são negros. Para estes(as), o preconceito é vivenciado devido ao território que habitam e a etnia que possuem, o que faz com que alguns e algumas saíam das comunidades, mas frequentem as regiões periféricas da cidade, onde também encontram os bares para se divertirem.

A cor do negro, na perspectiva daqueles(as) que alimentam um pensamento discriminatório, demonstra inferioridade e é tomada como um marcador de diferença (Silva & Soares, 2011). O racismo e seus reflexos na distribuição dos recursos são elementos estruturantes da desigualdade social no Brasil. O peso de seus efeitos é reafirmado por meio da evidenciação estatística de sua magnitude. A persistência da diferenciação racial no acesso a serviços públicos, na aquisição de capacidades e na posição social desvela as consequências da atuação sistemática de mecanismos de produção e reprodução das desigualdades em vários campos da vida social (Ipea, 2010). Quando conversamos com os(as) quilombolas, pudemos perceber que eles(as), nos dias de hoje, ainda sofrem o estigma e a discriminação devido à identidade étnica e às marcas da ancestralidade racial que possuem.

Quando indagados sobre o que gostariam que fosse feito na comunidade para garantir o lazer, vários participantes responderam: "eu queria um cinema bem grande; um salão de dança; um ponto de cultura, para fazer grupos com os jovens, de percussão e outros instrumentos; um parque aquático".

Mas percebemos também a desmotivação dos(as) jovens pela busca de melhorias, a dificuldade de se organizarem politicamente para reivindicarem os direitos da juventude quilombola. Essa desmobilização não é sem uma causa. Na pesquisa realizada para a dissertação, percebemos que os(as) jovens nas comunidades não são considerados(as) pessoas que estejam preparados(as) para opinar, para participar das decisões de caráter político sobre aspectos da vida nas comunidades.

Ao abordar os desafios e possibilidades para a participação juvenil na cultura política, Menezes e Costa (2012, p. 53) ressaltam que

os jovens também enfrentam desafios para o engajamento na vida pública, porque há diferentes visões nas relações intergeracionais; ora há incentivo, abertura, ora há restrição ou, ainda, uma expectativa referenciada no modelo adulto de participação. Muitas vezes, os conflitos geracionais colaboram para desvalorizar seu envolvimento em diferentes espaços.

Essas são questões sobre as quais temos refletido quando pensamos sobre a não participação dos(as) jovens quilombolas em alguns espaços e decisões. Segundo Menezes e Costa (2012, p. 52), "quanto mais tempo levem a se inserir nesse campo, [...] menor chance de rever e/ou intervir para a transformação das relações autoritárias, paternalistas, personalistas que marcam a cultura brasileira", ou seja, a possibilidade de lutar contra as situações de opressão, em alguma medida, fica comprometida.

Outra história apresentada foi a seguinte: História 3 - Halima é uma jovem de 18 anos, solteira, tem filhos e muitas amigas e amigos na comunidade. No domingo à tarde, ela vai encontrar os(as) amigos(as) no bar de Nena... "Ela deixou os filhos em casa e foi para o bar beber, aí a polícia chegou e levou os filhos e ela só voltou a ver os filhos quando eles estavam de maior" (Desfecho da história criado pelo grupo).

O uso de álcool é uma prática comum também entre as mulheres nas comunidades quilombolas. No grupo, algumas participantes relataram que já houve casos, nas comunidades, de o Conselho Tutelar levar as crianças, porque os pais são alcoolistas. Indagamos os(as) participantes se isso acontece com todas as mulheres que bebem, se é possível beber e continuar com as responsabilidades com os filhos, o trabalho? E uma das jovens respondeu: "aqui tem muitas mães de família que bebem e criam quatro, cinco filhos sozinhas, trabalhando, e no que botar pela frente elas trabalham e criam, e final de semana todas elas se divertem, bebem, mas elas tomam conta dos filhos".

Foi bem interessante esse discurso porque, nas comunidades quilombolas, as mulheres que fazem uso de álcool, que frequentam os bares, são "mal vistas", não são consideradas mulheres "direitas", de "respeito", que "sirvam" para casar. Então, pudemos levantar questões para refletir sobre isso e sobre o uso do álcool que, dependendo do modo como é realizado, não ocasiona problemas na vida das pessoas. Mas as questões de gênero articuladas com classe e raça/etnia estão presentes no desfecho da história criada pelo grupo, pois disseram que "a mulher foi beber e a polícia levou os filhos", ou seja, esse não é um comportamento adequado para uma mãe, então ela "tem que ser punida".

Quando indagamos quem são as pessoas da comunidade que frequentam os bares, tivemos como resposta:

Homens, mulheres, adultos, criança, idoso, adolescente, tudo, até criança bebe, o dono do bar não vende pra criança, mas a criança tá acompanhada por alguém, aí bebe também; até os cachorros bebem [risos]. Tem uma senhora que ela tava doente de cama e ela saía para beber escondido. (Relato de uma jovem que estava no grupo)

O que podemos perceber é que o uso de álcool nas comunidades quilombolas é intergeracional, pois é comum crianças e jovens iniciarem suas práticas de consumo com os familiares. A experiência intergeracional ganha significado como forma de aglutinar os indivíduos em torno de redes de pertencimento e de reciprocidade (Alves, 2009).

Na pesquisa para a dissertação, vimos que o uso do álcool tem significados diversos nas comunidades, dado que chama atenção para a importância de políticas públicas para os(as) quilombolas que trabalham com a prevenção e promoção de saúde dessa população. A partir dos discursos dos(as) jovens, indagamos, no sentido de proporcionar reflexões, o que poderia ser feito na comunidade para prevenir o uso abusivo de álcool. Uma jovem respondeu:

Já veio um monte de coisa, mas teria que ser uma coisa bem trabalhada, pra chamar atenção de criança, jovem, adulto, pra que chamem atenção e eles botem na cabeça, fixem bem mesmo, porque já teve várias oficinas, já teve programas pra jovens e, quando chega na metade, não tem incentivo, porque você sabe, jovem tem que ser uma coisa bem atrativa para que ele chegue e faça porque gosta, porque se não volta tudinho, volta pra cachaça, pras drogas, que a gente sabe que existem casos aqui e é aberto; pra eles tá natural, aí não tem nem o que você dizer que venha pra comunidade, tá faltando tudo, dinheiro, quem governe, atração. (Relato de uma jovem que estava no grupo)

Um aspecto importante que a participante levantou é a realização de algo que seja atrativo e de interesse para os(as) jovens. De fato, isso tem que ser pensado quando se planejam programas e ações para a juventude; e para que isso aconteça é preciso ouvi-los(as), conhecer seus interesses. Percebemos que isso não se faz presente nas comunidades quando implantam algum programa, pois procedem do modo como acham melhor e talvez venha daí a evasão, o desinteresse dos jovens para participar. A mesma jovem que falou sobre a importância de algo atrativo para os(as) jovens relatou também:

Aqui tem grupos de dança, de percussão, mas tem que ter um incentivo para as pessoas que não bebem permaneçam nos grupos, porque em relação aos grupos culturais, quando uma mocinha arruma um namorado, já sai do grupo, aí ele já proíbe antes de casar, porque não pode a menina tá lá em cima do palco e tem gente embaixo olhando. Tem os meninos da percussão que, quando muda a religião, deixa de tocar, como, por exemplo, um que agora é evangélico. Ele adorava tocar e a gente sabe que é por conta da igreja, aí tem que ser coisas atrativas, porque você vai deixar de fazer uma coisa que você gosta por uma outra coisa.

A partir do discurso da jovem, podemos perceber o quanto nas comunidades impera uma cultura sexista que estabelece comportamentos e lugares que são destinados aos homens e às mulheres de modos diferenciados, reproduzindo desigualdades que se fazem presentes há anos nas mais diversas sociedades. A jovem não pode dançar porque o namorado não deixa, ou seja, a mesma lógica das que frequentam os bares: uma mulher "direita", para casar, tem de ficar no espaço doméstico, pois esse é o seu "lugar".

Outra questão que é possível observar no relato é a referência à religião e a implicação desta em alguns comportamentos. Nas comunidades, existem duas igrejas, uma católica, que fica localizada na entrada da comunidade Castainho, e uma evangélica, localizada em outra parte da comunidade. Na igreja evangélica, existe um grupo de jovens e aqueles(as) que participam dela não bebem, pois esse é um dos requisitos para estar no grupo.

Sobre as práticas religiosas, Faria, David e Rocha (2011) ressaltam que estas podem ser uma mediação das relações sociais. A maior ou menor relevância da dimensão religiosa na formação e vida cotidiana das pessoas pode ter relação significativa com a reconfiguração de relações sociais, familiares, perpassadas por pressupostos ético-políticos e culturais que podem interferir também no consumo de álcool, entre outras práticas. Ou seja, a religião pode ser um fator de proteção para o uso de álcool, embora, como podemos observar no presente estudo, vários fatores perpassam o uso.

As relações de classe social, gênero e raça/etnia, ao configurarem contextos de interação específicos, repercutem nos processos de subjetivação de cada pessoa, delineando possibilidades e limitações. Assim, as implicações dos marcadores sociais (gênero, classe, raça/etnia), vigentes sobre as relações e as formas de viver das pessoas nos diferentes grupos sociais, podem contribuir para a existência de alguns comportamentos, a exemplo do uso de álcool, que tem diversos significados (Silva & Menezes, 2016).

 

Considerações finais

Foi possível refletir sobre várias questões com os(as) participantes. Os(as) jovens e as três mulheres adultas foram bem receptivos(as) aos resultados da pesquisa, apresentados em formato de pequenas histórias e, mais uma vez, algumas questões estiveram presentes nos discursos deles(as). A devolutiva foi um momento rico, pois foi possível dialogar com os(as) jovens, ouvi-los, conhecer suas inquietações e interesses. Foi um momento também para pensarmos sobre o modo como realizamos pesquisas, nosso lugar como pesquisadores(as), na produção do conhecimento, e sobre a importância de dar um retorno aos(às) participantes.

O que temos para conversar com os(as) jovens não foi esgotado nesse encontro, ainda há muito a ser discutido e construído, mas precisávamos começar a fazer algo com os resultados que obtivemos, algo extramuros da universidade. Precisávamos, de alguma forma, dar um retorno para aqueles(as) jovens sobre a importância que eles(as) tiveram na produção daqueles resultados e os(as) instigar a refletir sobre esses resultados com a perspectiva de elaborarem, conjuntamente, suas vivências de opressão e vislumbrar possibilidades de mudança.

Esse momento de comunicação e divulgação da pesquisa nas comunidades quilombolas também nos fez pensar sobre outros espaços em que pesquisas como esta podem circular, a exemplo da secretaria da juventude, secretaria de esporte e lazer do município, no intuito de visibilizar essa população e contribuir para a criação de políticas públicas que efetivamente atendam às necessidades dos(as) quilombolas. Leva-nos também a pensar a importância da divulgação no âmbito da academia para que novas pesquisas possam ser realizadas e que sejam comprometidas, acima de tudo, com o enfrentamento às injustiças sociais que marcam, historicamente, a vida dos quilombolas em nosso país.

 

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Recebido em 23/10/2015
Aprovado em 05/05/2017

 

 

1 A dissertação foi construída pela primeira autora deste artigo, Roseane Amorim da Silva. A segunda autora,foi a orientadora, profª. Jaileila de Araújo Menezes. As demais participaram da devolutiva da pesquisa.
2 A condição juvenil indica o "modo como uma sociedade constitui e atribui significado a esse momento do ciclo de vida, que alcança uma abrangência social maior, referida a uma dimensão histórica geracional". (Abramo, 2005, p.44). Trabalhar nessa perspectiva sem considerar as especificidades das situações juvenis significa não diferenciar as condições de vida e com isso restringir as possibilidades de entendimento das diversas trajetórias e projetos existenciais nesse momento do ciclo vital.

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