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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2017

 

A história das práticas diante do desvio social de jovens no Brasil: reflexões sobre o ideal de ressocialização

 

The history of social practices against the social deviation of youth in Brazil: reflections on the ideal of resocialization

 

La historia de las prácticas sociales frente la desviación social de los jóvenes en Brasil: reflexiones sobre el ideal de resocialización

 

 

Fernanda Campos MarinhoI; Ana Lúcia GalinkinII

IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações-Universidade de Brasília. fernandamarinho05@yahoo.com.br
IIPós Doutora em Psicologia Social na Universidade René Descartes - Sorbonne; Pesquisadora Associada, Programa de Pós-Graduação de Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações-UnB anagalinkin@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo tem o objetivo de analisar, a partir de dados históricos e contribuições teóricas, as mudanças nas práticas sociais em relação aos jovens considerados "fora das normas" no Brasil, desde o período do Império. Destaca-se que, apesar dos avanços legais, principalmente com o advento do paradigma da proteção integral, muito ainda deve ser realizado no âmbito da execução das políticas. Apontam-se falhas na avaliação das políticas públicas voltadas para o jovem em conflito com a lei, que mantêm a ideologização do processo de ressocialização, pautado em expectativas inalcançáveis do ponto de vista dos métodos utilizados. Nesse contexto, apesar de ineficaz e contraproducente, a prática de privação de liberdade ainda é utilizada como principal estratégia para a solução do problema. Sugere-se que as pautas legais contemplem referências aos processos culturais e desenvolvimentais envolvidos na responsabilização legal de jovens, na institucionalização e na desinstitucionalização destes, destacando-se o papel da Psicologia.

Palavras-chave: Desvio social. Políticas públicas. Ressocialização.


ABSTRACT

The article analyzes, from historical data and theoretical contributions, the changes in social practices against young considered "outlaw" in Brazil, since the days of the Empire. It is noteworthy that, despite legal advances, especially with the advent of the full protection paradigm, much remains to be done in the context of the implementation of policies. Defects were reported in the evaluation of public policies for youth in conflict with the law, that maintains the ideology of the rehabilitation process. In this context, although ineffective and counterproductive, practice of detention continues as the main strategy to solve the problem. It highlights the role of psychology and suggests that legal guidelines make reference to cultural and youth development processes.

Keywords: Social deviation. Public policies. Resocialization.


RESUMEN

El artículo pretende analizar, a partir de datos históricos y de las contribuciones teóricas, cambios en las prácticas sociales en face de los jóvenes considerados "fuera de ley" en Brasil, desde la época del Imperio. Es de destacar que, a pesar de los avances legales, especialmente con el advenimiento del paradigma de la protección integral, queda mucho por hacer en el contexto de la aplicación de las políticas. Se señalaron los defectos en la evaluación de las políticas públicas para los jóvenes en conflicto con la ley, que ven manteniendo la ideologización del proceso de rehabilitación. En este contexto, aunque ineficaz y contraproducente, la práctica de la detención se sigue como principal estrategia para resolver el problema. Se resalta el papel de la psicología y se sugiere que las directrices legales hagan referencias a procesos culturales y de desarrollo de los jóvenes.

Palabras clave: Desviación social. Política pública. Resocialización.


 

 

Uma apreciação histórica permite observar que as expectativas quanto ao tratamento das crianças e adolescentes, considerados inadequados às normas vigentes, variam ao longo dos séculos. Os contextos sociopolíticos produzem normas diferenciadas, coerentes com as preocupações que estão em vigor, principalmente daqueles no poder, mas que, quase invariavelmente, apontam para a intolerância quanto aos "desviados", tendo como consequência sua segregação. Observaremos que apesar das transformações ocorridas no Brasil ao longo dos últimos dois séculos, e com elas as práticas públicas disciplinares em direção à criança e ao adolescente, alguns métodos persistem ainda hoje sob nova roupagem, sob novos estratagemas.

A conceituação de desvio social é detalhada por Caliman (2006), que pontua alguns elementos chave na sua descrição, evidenciando a construção social do desviante no seio de conjunturas políticas. Primeiramente, destaca-se que o desvio não é uma qualidade inerente a um determinado comportamento ou característica, tratando-se de qualidade atribuída pelos outros, nas relações sociais. Está relacionado à mudança nas normas sociais, em dimensões espaço-temporais muito flexíveis. Mudam também os limites de tolerância em torno da norma. Ainda, o fenômeno do desvio se constrói com os processos de formação e manutenção do poder, coloca-se como alternativa para o controle social, exprimindo a necessidade de mudança em contraposição à ordem social. Por último, expõe-se que o comportamento desviante está em estreita relação com o processo de socialização, pelos quais se realiza a interiorização das normas. Com isso, o autor assim conceitua o desvio social:

Um comportamento ou uma qualidade (característica) da pessoa social que, superando os limites de tolerância em relação à norma, consentidos em um determinado contexto social espaço-temporal, é objeto de um processo de sanção e/ou estigmatização, que exprime a necessidade funcional do sistema social de controlar a mudança cultural segundo a lógica do poder dominante. (Caliman, 2006, p. 126)

Conforme a concepção do autor, a noção de desvio é complexa, uma vez que não prescinde das contingências sociais, culturais e societais. Assim, inicialmente, buscou-se descrever, quanto ao público das crianças e adolescentes, o que foi considerado desviante ao longo dos séculos, quais métodos de controle utilizados e expectativas de seus resultados. Para tal, utilizou-se de análise de códigos legais nacionais e internacionais e referência teórica nas áreas do Direito, Assistência Social e Psicologia.

Assim como a definição de desvio social, o conceito de práticas sociais é, também, tomado a partir de uma perspectiva interacionista, na qual se "salienta o caráter social e negociado explícito e tácito dos percursos dos indivíduos" (Brazão, 2008, p. 2). Enquanto um fazer, um conjunto de ações, inerente a um contexto histórico e social significado, as práticas sociais se apresentam com organização encadeada e padronizada (Almeida, Santos & Trindade, 2000). Desvelar a história que envolve tais práticas é de importância central para a Psicologia, permitindo resgatar aspectos próprios da cultura a ser compreendida a fim de nortear ações engajadas com a transformação e emancipação dos povos (Martin-Baró, 2009). O recorte histórico escolhido prioriza as ações desde o Brasil Império até o contexto atual, no que se refere às práticas de controle social da citada população. Por fim, é tecida uma reflexão sobre o ideal que subjaz o conceito de ressocialização e o papel da Psicologia na discussão da situação e trato dos jovens em conflito com a lei no Brasil.

 

O desvio social de jovens e a doutrina do direito penal do menor

Quando analisada a situação dos jovens, crianças e adolescentes pobres no século XIX, no Brasil, constata-se o peso da herança deixada pelo período colonial: um sistema escravista, período de desvalorização principalmente da criança e do adolescente negros, considerados mercadoria cara, cuja mão de obra era explorada. Um dos grandes problemas na época era o abandono de crianças, largadas à própria sorte, para que morressem e ocultassem a ilegitimidade da qual nasciam. O problema do abandono de crianças alcançara tamanha proporção que foram criadas, a exemplo do que já existia na Europa, um sistema de Rodas de Expostos. As Rodas, como eram chamadas, consistiam em lugares, na sua maioria, gerenciados por organizações religiosas, como as Casas de Misericórdia, onde as crianças poderiam ser depositadas anonimamente, na tentativa de acabar com seu extermínio, que se dava a olhos vistos nas ruas, muitas vezes devoradas por animais (Passetti, 1999).

Com a independência do Brasil, surgem algumas mudanças no atendimento às crianças e adolescentes pobres, com a ampliação de instituições de acolhimento e legislação sobre órfãos, aprendizes e infratores. Criam-se asilos, escolas industriais e agrícolas para essa população. Com a abolição gradativa da escravidão, tal público seria preparado para sanar o pesadelo que assombrava os grandes fazendeiros, que era o da falta de mão de obra, suprindo, por meio do trabalho precoce, os postos de trabalho deixados pelos escravos (Faleiros, 2009).

Na primeira metade do século XIX, as instituições responsáveis pelas crianças recolhidas eram, basicamente, de origem filantrópico-religiosa. Era comum a prestação de serviços assistenciais pela Igreja e de sua associação com a justiça. Mesmo após o ensino ser declarado obrigatório, na segunda metade do século, sua tônica era o da religiosidade e moralidade. Porém, tal ensino não incluía crianças doentes ou escravas. Rizzini (2000) aponta que essa distinção de tratamento das crianças de acordo com a sua origem social, acompanharia a lógica das políticas ao longo das próximas décadas.

Consta que, no século XIX, sugiram as primeiras instituições de caráter educacional e assistencial, como as casas e institutos de Educandos Artífices, colônias agrícolas e asilos para meninos e meninas desvalidos. Com a criação da chefia de polícia nesse mesmo período, cabia à instituição policial as ações de "limpeza" das ruas da cidade, recolhendo e enclausurando os menores, na época considerados vadios, vagabundos, viciosos e delinquentes. Esses últimos eram enclausurados com adultos, cujo procedimento não era acompanhado de um projeto de recuperação, sendo o aprisionamento uma finalidade em si (Rizzini, 2009). Esse procedimento era resquício do período colonial, quando o encarceramento de delinquentes "foi uma prática social regulada, mais pelo costume do que pela lei, e destinada simplesmente a armazenar detentos, sem que se tenha implementado um regime punitivo institucional que buscasse a reforma dos delinquentes" (Aguirre, 2009, p. 38).

O período foi caracterizado como o de uma etapa penal indiferenciada e retribucionista, que se estende desde o nascimento dos códigos penais de corte do século XIX até 1919.

A etapa do tratamento penal indiferenciado se caracteriza por considerar os menores de idade, praticamente da mesma forma que os adultos. Com uma única exceção aos menores de sete anos, os quais se consideravam, conforme a velha tradição do direito romano, absolutamente incapazes, cujos atos eram equiparados aos dos animais. A única diferença para os menores entre 7 e 18 anos consistia, geralmente, na diminuição da pena em um terço em relação aos adultos. (Mendez apud Volpi, 1999, pp. 23-24)

O Código Criminal do Império, de 1830, assim como o Código Penal da República, de 1890, também integram a etapa do tratamento penal indiferenciado, na qual os menores, se comprovado que agiam com discernimento, eram considerados criminosos. Não obstante, é apenas com o advento da República e do contexto do desenvolvimento urbano e capitalista que se iniciam as críticas mais fervorosas contra o aprisionamento conjunto de menores e adultos. Ainda, a necessidade de mão de obra especializada e de poder de consumo contrapunham-se ao caráter de clausura dos depósitos, sem as finalidades de regeneração, recuperação e reeducação dos internos, que os tornassem úteis à sociedade (Rizzini, 2009). Conforme conclui Santos (1999, p. 216):

A recuperação desses menores, portanto dar-se-ia, não mais pelo simples encerramento em uma instituição de correção, mas sim pela disciplina de uma instituição de caráter industrial, deixando transparecer a pedagogia do trabalho coato como principal recurso para a regeneração daqueles que não se enquadravam no regime produtivo vigente.

Nas duas primeiras décadas da República, foram criados os Reformatórios, as Escolas Premonitórias e as colônias correcionais, substituindo o então termo asilar, evidenciando uma nova preocupação: a de prevenir desordens e recuperar desviantes. A prevenção de desordens era uma preocupação constante devido à situação de instabilidade política que vivia a nova República. O crescimento demográfico acelerado dos centros urbanos gerou um agravamento de crises sociais, com aumento da incidência de crimes e de seus mecanismos de repressão, assim como a pauperização de vastas camadas sociais (Santos, 1999). O objetivo maior era corrigir os menores por meio do trabalho. "O trabalho era, neste sentido, o único instrumento capaz de tornar o menor desvalido um instrumento válido para a sociedade" (Rizzini, 2009, p. 231).

A criança começa a ser vista como um problema central. No discurso de políticos, intelectuais e filantropos, ora percebe-se uma preocupação em protegê-la, ora em proteger a sociedade. Vários projetos de lei tratam do tema na época, como destaca Rizzini (2000, p. 20) quanto a um projeto de 1906 que propõe:

A criação de instituições para menores (na parte urbana das cidades), um estabelecimento, que terá a denominação de "Depósito de menores"; na zona suburbana do Distrito Federal, "Escolas de Prevenção" para os moralmente abandonados (art. 10); Escola de Reforma com duas secções independentes: "uma secção industrial para os menores processados absolvidos... e uma secção agrícola para os menores delinquentes e condenados".

Os menores, ora chamados de "vadios, vagabundos e capoeiras", ora de "viciosos", na verdade, referia-se a uma ampla categoria, que incluía tanto os inculpados criminalmente (sem discernimento) como os órfãos, negligenciados ou encontrados sós em via pública. Assim, apesar dos ideais de assistência científica em voga, como a separação dos internos por sexo, motivo e classe, ainda predominava no Brasil a pauta repressiva; e a separação, quando presente, se dava apenas parcialmente, conforme cita Rizzini (2000, p. 21):

É preciso esclarecer que estas colônias não eram destinadas exclusivamente a menores. Os menores eram classificados juntamente com outras categorias de desclassificados da sociedade, conforme estabelecia o Art. 51 do Decreto 6.994, de 1908: "A internação na colônia é estabelecida para os vadios, mendigos validos, capoeiras e desordeiros".

Uma importante mudança no período foi a legitimação da intervenção do Estado sobre a vida privada, sobrepondo-se ao poder paterno, até então visto como intocável. Diante da situação, observa-se que o saneamento da cidade e a exclusão dos indesejáveis se davam em detrimento da melhoria das condições das colônias. Não tardou para que críticos constatassem a ineficácia dessas instituições e sua inadequação a preceitos internacionalmente defendidos.

Foi a partir da criação do primeiro Juízo de Menores, em 1923, e da promulgação do Código de Menores, em 1927, que de fato inicia-se um período de assistência focada na infância e juventude no Brasil, aliado à justiça. Chama-se de "etapa tutelar" essa fase, que nasce de uma preocupação com a prevenção da delinquência, mas que, ao mesmo tempo, unifica todas as situações vivenciadas pelas crianças sob a categoria de "menores abandonados". O interesse por tais crianças e adolescentes advinham, também, do desenvolvimento da Medicina higienista e da Pediatria, tendo como objetivo equiparar o Brasil às sociedades ditas modernas da Europa e da criminologia positivista, esta coerente com a concepção da eugenia, ou melhoramento da raça. Somaram-se a estas, novos conhecimentos advindos da Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, que deveriam ser incorporados à explicação da delinquência.

No período de vigência do Código de Menores, a infância passou a ser representada sob um viés do perigo, fazendo-se necessária a intervenção do Estado. As concepções unicamente morais do problema da delinquência sofreram uma ampliação, com a inclusão de concepções ditas científicas, assim como a questão da influência do locus social e da hereditariedade no desenvolvimento dos "desviantes". A criança deveria, assim, ser controlada e, mais, deveria ser salva. "Uma multiplicidade de fatores eram apontados como produtores de candidatos ao crime desde a infância: raça, clima, tendências hereditárias, condições de vida familiar e social, ociosidade, vícios e até uma trama retrincada de inclinações inspiradas na obra de Lombroso" (Rizzini, 2008, p. 126).

A prática de contenção de menores e as penas até então aplicadas com base no discernimento e o encarceramento como forma de punição passaram a ser vistas como contraproducentes diante da nova necessidade que era a de "salvar" a criança. Mas o principal alvo da assistência e da justiça continuou sendo os filhos das famílias pobres, que eram consideradas inabilitadas para a educação dos seus, como é possível verificar no Código de Menores, quando consubstancia a categoria "menores". Diz a lei:

Consideram-se abandonados os menores de 18 anos:

- que não tenham habitação certa, nem meios de subsistência. Por serem seus pais falecidos, desaparecidos, desconhecidos ou por não terem tutor ou pessoa sob cuja guarda viva;

- que vivem em companhia de pai, mãe, tutor ou pessoas que se entreguem habitualmente à prática de atos contrários à moral e aos bons costumes;

- que se encontram em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem;

- que frequentem lugares de jogos ou moralidade duvidosa ou andem na companhia de gente viciosa ou de má vida;

- que devido à crueldade, abuso de autoridade, negligência ou exploração dos pais, tutor ou encarregado de sua guarda, sejam:

a) vítimas de maus tratos físicos habituais e imoderados

b) privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensáveis à saúde;

c) excitados habitualmente para a gatunice, mendicidade ou libertinagem. (Brasil,1929, p. 5)

No âmbito das políticas governamentais, tal lei ganha corpo somente no governo de Getúlio Vargas, com a criação, em 1941, do famoso Serviço de Assistência ao Menor (SAM). O SAM, que hoje é conhecido como um usurpador de direitos das crianças e adolescentes, atuava no sentido de considerar as crianças e adolescentes pobres como potenciais "marginais". Já na década de 1960, era considerado uma escola do crime. O objetivo então era o de prevenir o perigo de algum desvio e educar os meninos no comportamento social, por meio da disciplina e treinamento militar. Utilizava-se, para isso, de instituições chamadas educandários, patronatos, centros de reeducação ou recuperação, mas que, na verdade, eram internatos que repetiam os mesmos problemas das instituições anteriores, como superlotação, violência e falta de recursos. Conforme explicita Volpi (2001, p. 27),

A existência de crianças e adolescentes pobres era visto como uma disfunção social e, para corrigi-la, o SAM aplicava a fórmula do sequestro social: retirava compulsoriamente das ruas crianças e adolescentes pobres, abandonados, órfãos, infratores e os confinava em internatos isolados do convívio social, onde passavam a receber tratamento extremamente violento e repressivo.

Apesar de ter surgido com altos ideais de educação, formação profissional, classificação e estudo do menor, baseado na assistência científica, o SAM não logrou atingir seus objetivos. Conforme explicita Costa (2006), os reformatórios e escolas agrícolas funcionavam nos moldes dos estabelecimentos prisionais. Seus regulamentos, rotina, métodos disciplinares e quadro funcional diferiam pouco dos utilizados com internos adultos. Avaliando o contexto histórico de seu nascimento, o de uma ditadura preocupada em manter-se por meio da ideologia da defesa nacional, cujo principal inimigo era o comunismo, explica-se seu fracasso quanto à proteção das crianças e adolescentes. O que se segue então? Profundas mudanças sociais e mais uma tentativa de "tampar o sol com a peneira".

 

A doutrina do menor em situação irregular

A partir dos anos 1960, extinguiu-se o tão criticado SAM, sendo substituído pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem). Nesse período, tornou-se evidente a questão do problema social dos marginalizados. O êxodo rural estava em plena ascensão e com ele o crescimento das periferias nas cidades e a expansão da pobreza. Diante dos problemas gerados pela falta de acesso a bens e serviços básicos e do prognóstico negativo advindo de tais circunstâncias, o projeto a ser realizado era visto como de última importância. Surge uma nova preocupação com a família pobre, agora não mais vista puramente como algoz, mas também como vítima dos processos de exclusão, assim como uma crítica à questão do internamento. Foi um momento de introdução da metodologia interdisciplinar, fundamentada com conhecimento biopsicossocial (Passetti, 1999).

Dois objetivos principais foram elencados pela Fundação: ao menor de conduta antissocial, ou seja, que infringia normas éticas e jurídicas na sociedade, destinava-se o tratamento; ao menor carenciado, àquele em situação de abandono ou exploração, a prevenção. No entanto, vale salientar, tais problemas só eram reconhecidos quando afetavam a ordem pública e a segurança nacional (Vogel, 2009). Em um contexto de regime militar, com a radicalização política e ideológica, o que ocorreu, entretanto, foi a continuação dos internatos, das práticas repressivas e tratamento desumano, sob a fachada de uma rede nacional de Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor, as Febems (Rizzini & Rizzini, 2004).

A Política Nacional do Bem-Estar do Menor encontrou escopo no novo Código de Menores, de 1979, consagrando a Doutrina da Situação Irregular.

Para efeito deste código considera-se em situação irregular o menor: I. privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente em razão de: a) falta, ação ou omissão, dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II. Vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsáveis; III. Em perigo moral, devido: a) encontrar-se de modo habitual, em ambienta contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV. Privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V. com desvio de conduta em vista uma grave inadaptação familiar ou comunitária; VI. Autor de infração penal. (Brasil, 1979, p. 2)

Assim, a referida lei continuou a gerar a estigmatização de crianças pobres como "menores" e delinquentes em potencial. Para Costa (2006), a Funabem era o retrato da ambiguidade. Se por um lado, em seu discurso técnico, proibia os castigos físicos e propunha um atendimento mais personalizado ao menor, por outro contava com estrutura física e cultura organizacional análoga à do velho SAM, assim como seu modelo corretivo-repressivo.

Como é possível apreender ao longo da história das práticas sociais para a infância considerada "desviante" no Brasil, nem sempre o que era proposto em termos legais, por mais avançadas que fossem as intenções, era cumprido nas práticas reais. O ideal de contenção - por meio asilar, de reforma, pela via do trabalho, de prevenção e disciplina -, pelo viés educativo, encontrava, na prática, muitas vezes, o seu oposto. Observa-se, analogamente, que a categorização do que é desviante, assim como as expectativas acerca dos resultados do trabalho com tal população, parece ser construída a partir de conjunturas políticas e históricas específicas, com a influência especial dos modelos internacionalmente almejados, mas que, no Brasil, eram, em grande parte, reduzidos às críticas inflamadas de uma minoria intelectual ou política.

Para Méndez (2006), faz-se necessária uma análise crítica quanto às etapas históricas do sistema penal no âmbito da juventude. Segundo o autor, a etapa tutelar, apesar de ter sido considerada uma vitória na época, desenvolveu-se no contexto do positivismo filosófico como ideologia dominante, diferenciando-se da etapa de tratamento penal indiferenciado por um só aspecto, que é o da promiscuidade, ou seja, do encarceramento conjunto de adultos, crianças e adolescentes: "a cultura dominante de sequestro dos conflitos sociais, a dizer, a cultura segundo a qual cada 'patologia social' devia corresponder a uma arquitetura especializada de encarceramento, só foi alterada em um único aspecto: a promiscuidade" (Méndez, 2006, p. 9). Ainda assim, salienta o autor, muitos países da América Latina, até pouco tempo, continuaram a permitir tal prática.

Assim como varia a concepção da infância ao longo da história, varia a concepção do que é desviante. Não obstante, trata-se de uma mudança lenta e impregnada de padrões ideológicos, cuja fonte parece ser a manutenção de um status social próprio, com métodos de controle e expectativas que tentamos retratar. Até esse momento histórico, constatou-se que as consequências das práticas, então em voga, acabam por ressoar na sociedade e por levar à reflexão, a exemplo do sistema de Rodas, inicialmente pensado para dar conta das crianças abandonadas e expostas, mas que, posteriormente, passou a ser criticado como sendo um mecanismo fomentador do abandono. Menciona-se, também, a questão da internação de jovens, vista como a solução para a correção dos desviantes, posteriormente, como produtora de desvio.

A noção de situação irregular, em termos legais, teve uma curta duração, modificando-se o discurso com a volta da política democrática e o novo paradigma exposto adiante.

 

A doutrina da proteção integral

No fim da década de 1980, o país vivia fortes transformações políticas. Com o fim dos longos anos de ditadura militar e a abertura democrática em seu início, logo apareceram as primeiras mobilizações em torno da situação de crianças e dos adolescentes brasileiros. A dura realidade da estimativa de 32 milhões de menores vivendo em situação de carência socioeconômica motivou diversos segmentos da sociedade, grupos independentes, instituições não governamentais e representantes da sociedade civil a se organizarem em prol da "causa da infância". Questionava-se duramente o então Código de Menores e, principalmente, a internação de jovens em decorrência de sua condição de pobreza. Essas crianças espelhavam um problema social grave e, a olhos vistos, tomavam as ruas a fim de lutar pela sobrevivência.

A promulgação da nova constituição, chamada de "Constituição Cidadã", se deu no bojo das perspectivas dos Direitos Humanos internacionalmente defendidos. Nela incluiu-se o famoso art. 227, que, pela primeira vez no Brasil, destacaria a criança e o adolescente como sujeitos de direitos.

É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)

Em 1990, promulga-se o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei Federal nº 8.069), que determina como criança toda pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente pessoa de doze anos completos até dezoito anos de idade incompletos. O ECA inaugura, assim, a Doutrina da Proteção Integral, que diferentemente das anteriores, a saber, a Doutrina do Direito Penal do Menor e a Doutrina da Situação Irregular, preconiza que o direito do menor não se restringe apenas a um tipo de menor, "mas deve se dirigir a toda a juventude e a toda a infância, e suas medidas de caráter geral devem ser aplicáveis a todos os jovens e a todas as crianças" (Motta apud Rizzini, 2000, p. 79).

Nas disposições preliminares, art. 6 da lei, evidencia-se a visão da criança e do adolescente como sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento. Assim, a lei dispõe sobre as mais diversas situações que envolvam a criança e o adolescente, como seus direitos fundamentais, entre eles a questão da adoção, guarda e tutela; da prevenção de violação dos direitos; das políticas de atendimento. O novo paradigma doutrinário, a partir do qual o ECA foi construído, é coerente com as leis e diretrizes internacionais das quais o Brasil foi signatário, leis e diretrizes que, vale destacar, influenciaram, principalmente, o tratamento aos jovens em situação de risco social e a abordagem jurídica diferenciada aos jovens autores de ato infracional, e que, posteriormente, fomentaram as diretrizes para a criação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).

Dentre as principais legislações e convenções destacam-se: a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959; as Regras de Beyjing, de 1985; a Convenção Internacional sobre os Direitos da Infância, de 1989; as Diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência juvenil, ou Diretrizes Riad, de 1990; e as Regras Mínimas das Nações Unidas para Proteção de Jovens Privados de Liberdade, de 1990.

As convenções e legislações supramencionadas foram essenciais, e ainda o são, no direcionamento das práticas sociais relativas aos jovens autores de atos infracionais. Na nova lei, o "desviante" passa a ser apenas aquele que comete infração e por ela será julgado nos termos da lei, sem detrimento das medidas chamadas protetivas a ele aplicadas. Assim, o ECA determina seis medidas socioeducativas aplicadas ao adolescente autor de ato infracional: advertência, obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção de regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional (Brasil, 1990).

A medida de internação estrita só deverá ser aplicada em último caso, levando em conta os princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. Os critérios de sua aplicação são expostos no art.122, ou seja, quando se tratar de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou por reiteração do cometimento de outras infrações graves ou por descumprimento reiterado e injustificado da medida anteriormente imposta (Brasil, 1990).

Conforme o explicitado na lei, a criança abaixo dos doze anos incompletos não poderá ser sentenciada ao cumprimento de medida socioeducativa, sendo, no caso, aplicadas as medidas chamadas protetivas, que preveem: requisição de tratamento médico, psicológico ou para drogadição; inclusão de programa comunitário de auxílio à criança ou à família; matrícula ou frequência obrigatória em estabelecimento de ensino; abrigo; colocação em família substituta; orientação e apoio; encaminhamento aos pais, mediante termo de responsabilidade (Brasil, 1990).

Muitos são os avanços apontados ao ECA. Para Méndez (2006) a lei foi a primeira a inovar substancialmente a legislação latino-americana referente à criança, sendo uma referência para os demais países da América do Sul. Segundo o autor, entre os maiores avanços estão o das medidas protetivas e da imputabilidade penal do adolescente, sem detrimento da responsabilização penal deste e sem prejuízo do caráter protetivo.

Outros muitos avanços são considerados, quando comparados ao paradigma anterior, o da Doutrina da Situação Irregular. O próprio objetivo da lei mudou. Antes aplicada somente a menores em situação irregular, objetos de medidas judiciais, agora partindo da concepção de "sujeito de direitos", preconiza a garantia ampla dos direitos pessoais e sociais de todos os jovens, independentemente de sua origem social. Outra mudança refere-se ao pátrio poder, pois não é mais permitido que os pais percam o pátrio poder por motivos arbitrários ou de pobreza. Uma drástica mudança ocorreu quanto aos mecanismos de participação, antes limitados às autoridades judiciária, administrativas ou policiais, agora favorecendo a participação da sociedade civil, entre outros, por meio dos Conselhos Tutelares (Vogel, 2009).

Ainda relativo às mudanças apontadas com a Doutrina da Proteção Integral, no que se refere à detenção e internação de jovens, foi proibida a internação cautelar, antes promotora de tantas violações. Quanto a esse aspecto, segue o que diz a lei: "Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente" (Brasil, 1990, p. 29). Também houve uma significativa alteração quanto à posição do magistrado, cujos poderes foram limitados, uma vez que se estabeleceu o direito à defesa, e quanto à internação, agora permitida apenas em casos excepcionais (Rizzini, 2000; Volpi, 2001).

No que diz respeito às propostas de institucionalização de crianças e adolescentes, parece ter havido grande mudança, pelo menos é o que trata o texto legal. Mas, nas práticas cotidianas, será que o mesmo aconteceu? E quanto às expectativas relativas ao aprisionamento dos jovens? Observa-se que a visão sobre a criança e o adolescente se complexificou ao longo dos anos, no sentido de que estes passaram a ser vistos sob uma perspectiva integral do desenvolvimento, a partir, entre outros, da contribuição dos direitos humanos. Nesse sentido, talvez, não seja mais esperado que eles apenas aprendam a trabalhar ou que apenas sejam disciplinados. Será possível assim afirmar?

A partir do exposto no texto das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, a integração do jovem com a comunidade é uma prioridade:

79- Todos os jovens deverão ser beneficiados com medidas concebidas para ajudar sua reintegração na sociedade, na vida familiar, na educação ou no trabalho depois de postos em liberdade. Para tal fim, deverão ser estabelecidos certos procedimentos, inclusive a liberdade antecipada, e cursos especiais.

80- As autoridades competentes deverão criar ou recorrer a serviços que ajudem a reintegração dos jovens na sociedade, e contribuam para diminuir os preconceitos existentes contra eles. Estes serviços, na medida do possível, deverão proporcionar alojamento, trabalho e roupas convenientes ao jovem, assim como os meios necessários para sua subsistência depois de sua liberação. Os representantes de organismos que prestam estes serviços deverão ser consultados, e terão acesso aos jovens durante sua reclusão, com vistas à assistência que possam prestar para sua reintegração na comunidade. (Unicef, 1990, p. 15)

O texto explicita o acompanhamento especial ao qual o jovem deve ser submetido a fim de facilitar sua "reintegração" na sociedade, por meio de serviços que garantam a devida educação, seus meios de subsistência e a convivência familiar. Chama a atenção o fato de o texto se referir, também, à questão do preconceito, o que denota uma preocupação com os processos que envolvem a socialização e a categorização desse sujeito no retorno à liberdade. Vejamos se essas perspectivas foram absorvidas pela lei no Brasil.

O Sistema Nacional do Atendimento Socioeducativo (Sinase) é a lei que regulamenta a execução de medidas socioeducativas, destinada a adolescente que pratique ato infracional. Trata-se de uma lei recente, instituída em 2012. O Sinase prevê, por exemplo, desde como deve ser gerido o sistema, seu financiamento, até os princípios norteadores da execução das medidas e a necessidade de tratamento individualizado ao adolescente, por meio do Plano Individual de Atendimento (PIA). O PIA consiste em um projeto construído interdisciplinarmente, em conjunto com o próprio jovem e sua família, a fim de nominar quais os objetivos a serem alcançados com a medida e, assim, viabilizar sua avaliação. Quanto às consequências da ação socioeducativa e expectativas de seus resultados, observemos o que dispõe a lei:

Art. 23. A avaliação das entidades terá por objetivo identificar o perfil e o impacto de sua atuação, por meio de suas atividades, programas e projetos, considerando as diferentes dimensões institucionais e, entre elas, obrigatoriamente, as seguintes:

I - o plano de desenvolvimento institucional;

II - a responsabilidade social, considerada especialmente sua contribuição para a inclusão social e o desenvolvimento socioeconômico do adolescente e de sua família;

III - a comunicação e o intercâmbio com a sociedade;

IV - as políticas de pessoal quanto à qualificação, aperfeiçoamento, desenvolvimento profissional e condições de trabalho;

V - a adequação da infraestrutura física às normas de referência;

VI - o planejamento e a autoavaliação quanto aos processos, resultados, eficiência e eficácia do projeto pedagógico e da proposta socioeducativa;

VII - as políticas de atendimento para os adolescentes e suas famílias;

VIII - a atenção integral à saúde dos adolescentes em conformidade com as diretrizes do art. 60 desta Lei; e

IX - a sustentabilidade financeira. (Sinase, 2012, p. 13)

Nesse artigo, percebe-se que a avaliação das entidades de atendimento socioeducativos é prevista e, para tal, é mencionada a observância de aspectos como o que se chama de "inclusão social" do adolescente, assim como seu desenvolvimento socioeconômico e saúde.

Art. 24. A avaliação dos programas terá por objetivo verificar, no mínimo, o atendimento ao que determinam os arts. 94, 100, 117, 119, 120, 123 e 124 da Lei n o 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Art. 25. A avaliação dos resultados da execução de medida socioeducativa terá por objetivo, no mínimo:

I - verificar a situação do adolescente após cumprimento da medida socioeducativa, tomando por base suas perspectivas educacionais, sociais, profissionais e familiares; e

II - verificar reincidência de prática de ato infracional. (Sinase, 2012, p. 14)

A partir desses artigos, infere-se que as expectativas em relação ao egresso da medida socioeducativas são, por um lado, garantir que sejam respeitados todos seus direitos, conforme preconizado pela Constituição e pelo ECA, por outro, propiciar as condições necessárias para que não reincida, para que não volte a praticar atos ilícitos. Já no art. 35, que trata dos princípios norteadores das medidas, é citado como um dos princípios o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários (Sinase, 2012). Por fim, quando trata do PIA, a lei propõe a participação da família para sua construção, visando contribuir para o "processo ressocializador" do adolescente.

Art. 52. O cumprimento das medidas socioeducativas, em regime de prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação, dependerá de Plano Individual de Atendimento (PIA), instrumento de previsão, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o adolescente.

Parágrafo único. O PIA deverá contemplar a participação dos pais ou responsáveis, os quais têm o dever de contribuir com o processo ressocializador do adolescente, sendo esses passíveis de responsabilização administrativa [...] civil e criminal. (Sinase, 2012)

Apesar de não conceituar reintegração, integração social ou ressocialização, as citadas leis permitem observar que, quando comparadas às anteriores, apresentam expectativas mais amplas sobre as consequências do trabalho com os jovens autores de infração. Resta saber se os meios proporcionados são coerentes com os fins aqui mencionados. Também, em reflexão um pouco mais atenta, poder-se-á descobrir que toda a base sobre a qual foi erigido tal sistema possua uma fragilidade constituinte. Essa fragilidade diz respeito a uma tendência de se negligenciar os processos de exclusão e desigualdade social. Esse é o início, o ponto de partida. Busca-se, com este artigo, no entanto, salientar o ponto final, para que por meio de um olhar contextualizado sobre as consequências das leis e das práticas ideologizadas se possa, quem sabe, sobre bases mais sólidas, ajudar a descortinar o início.

 

O ideal de ressocialização e o papel da psicologia

Como visto ao longo da história do tratamento aos jovens considerados "desviantes" no Brasil, muitas vezes, as "boas intenções" que eram propostas na lei, na prática, não encontravam respaldo ou estrutura condizente para a sua realização. Outro aspecto que demanda reflexão é relativo à nova preocupação trazida pelo ECA/Sinase, que é o da verificação das consequências do trabalho realizado. Apesar disso, a questão da socialização do jovem é citada muito superficialmente, não levando em conta, por exemplo, especificidades do processo de retorno do sujeito à comunidade de origem, como fazem as Diretrizes das Nações Unidas, ao menos quando citam a questão da discriminação e do preconceito. Questiona-se, também, se os avanços propostos com o advento da Doutrina da Proteção Integral já podem ser percebidos na prática. Como tratado anteriormente, o próprio Sinase só passou ao estatuto de Lei em 2012, existindo anteriormente apenas em forma de diretrizes.

Ao logo dos 26 anos de existência, parece consenso entre os pesquisadores que a evolução na aplicação do ECA no Brasil é gradativa, robusta em desafios e bem distinta, a depender da região (Schuch, 2009). Ciarallo (2004) realizou pesquisa com o objetivo de identificar a concepção de sujeito a partir de documentos jurídicos e processuais envolvendo o adolescente em conflito com a lei. A autora constatou que, a despeito da nova Doutrina formalizada no Estatuto da Criança e do Adolescente, o sujeito em si continuava, em muitos aspectos, sendo tratado e visto pelos operadores do direito sob a lente da Doutrina da Situação Irregular.

Volpi (2001), que realizou uma das raras pesquisas com egressos do sistema socioeducativo em nível nacional, afirmou que, apesar dos avanços contidos no ECA, na prática, os sujeitos de sua pesquisa evidenciaram uma distância entre o direito assegurado e o realizado no cotidiano. Mais recentemente, resultados semelhantes foram encontrados por Malvasi (2011), Fonseca, Magni, Pasini e Paim (2009) e Marinho (2013) ao pesquisar egressos do sistema socioeducativo em São Paulo, no Rio Grande do Sul e no Distrito Federal, respectivamente. Malvasi (2011) reflete como todo o Sistema é extremamente ambíguo. A ideia de proteção e punição simplesmente reforça uma lógica contraditória. Durante a internação, quanto mais submisso, mais "adequado" o adolescente vai estar para o seu retorno à sociedade. Não obstante, no mundo em que estão inseridos, na cultura da hipermasculinidade, a virilidade e agressividade é que são valorizadas. Ainda, a marca e o estigma da privação de liberdade tornam difícil a relação com a escola e a inserção no mercado de trabalho. A ação da polícia, por sua vez, tende a se intensificar após a internação e o adolescente é sempre um suspeito. Segundo Barcelos e Fonseca (2009), essa é uma das situações em que as agências de controle reforçam a carreira infracional criando situações que, em vez de conter o comportamento violento, acabam por reproduzi-lo.

Para Costa (2006), faz-se necessário um reordenamento do sistema de atendimento ao adolescente autor de ato infracional, que deverá "recompor a coerência entre o objeto (aplicação da medida socioeducativa), método (segurança cidadã e respeito aos direitos fundamentais do interno) e estrutura (humana e de contenção)" (Costa, 2006, p. 62).

Considera-se que, para que possamos avaliar os resultados da execução de uma medida socioeducativa aplicada a um jovem, faz-se necessário levar em conta as consequências que o tipo de meio utilizado para tal objetivo gera na vida do sujeito que a cumpre. Afinal, não se trata apenas de restituir o que faltava ao jovem, mas assegurar que os instrumentos para tal restituição sejam coerentes com os objetivos propostos. Tal dificuldade resta ainda mais evidente no caso das medidas privativas de liberdade que, com o ECA, revestiu-se de um caráter de excepcionalidade, exatamente porque, ao longo dos séculos, as instituições de internação passaram de "fonte primordial de recuperação" para a constatação de sua ineficácia aos objetivos ora expostos na lei (Rizzini & Rizzini, 2004).

Assim, parece-nos que a Psicologia teria muito a contribuir exatamente onde se encontram os principais lapsos dessa problemática. No entanto, o que se observa é, maiormente, o silêncio ou a reprodução de práticas patologizantes e adaptativistas.

No atual momento histórico e político brasileiro, vê-se crescer um movimento da sociedade civil e da classe política de defesa de projetos de lei favoráveis à redução da maioridade penal no Brasil. A Psicologia deve se utilizar da história para refletir sobre o seu próprio posicionamento, mas também já possui muito subsídio técnico-cientifico para descortinar o que se pode chamar de ideologização da ressocialização.

Lourenço (2010) critica a ressocialização como sendo um conceito fantasma, desprovido de realidade. Basicamente, sua crítica se refere ao fato de que "o indivíduo não pode determinar unilateralmente um processo complexo de interação social" (Lourenço, 2010, p. 3). Assim, a ressocialização, nos termos em que se pretende, significa, meramente, uma submissão à ordem social vigente. Nessa lógica, seria necessário estender a "terapia ressocializadora" a toda a sociedade. Por fim, analisa que o desconhecimento do fenômeno criminal e de seus resultados é mais um obstáculo ao "ideal ressocializador". "A mesma privação de liberdade que existe em um estabelecimento prisional é a negação dos efeitos ressocializantes que se pretende" (Lourenço, 2010, p. 4).

Por fim, vale reforçar que já são inúmeras as evidências quanto às consequências danosas do encarceramento e quanto aos desafios da reinserção social na comunidade de origem. A detenção de jovens já demonstrou efeitos negativos para o seu bem-estar físico e mental, o processo educacional e engajamento laboral. Também, o encarceramento de jovens aumenta as chances de reincidência e retarda o processo de desistência do crime, que tende a ocorrer com o envelhecimento (Petersilia, 2003; Farabee, 2005; Pager 2007; Maruna, Immarigeon & Lebel, 2008; Pyrooz, Decker & Webb, 2010; Mendel, 2011; Nugent & Schinkel, 2016). Por sua vez, Ascani (2011) questiona a intervenção judicial sobre adolescentes, explicitando seu efeito oposto ao esperado: o de conduzir o jovem a agir de forma desviante. Devido às consequências da rotulação formal, o jovem pode engavetar sua necessidade de se conformar às normas vigentes, rejeitar as instituições que sente rejeitá-lo e procurar se associar a pares que podem fornecer-lhe suporte social. Além disso, a exposição à violência e a subcultura formada no interior das organizações para privação de jovem pode favorecer o futuro comportamento delinquente, especialmente devido à fase especial de desenvolvimento em que se encontram. Para o autor, um envolvimento precoce com o sistema de justiça pode ter graves implicações em longo prazo, como a produção de obstáculos sociais que desencorajam o investimento do sujeito em normas sociais convencionais, a manutenção de desvantagens instrumentais e a restrição das redes sociais.

Enquanto a Psicologia e as ciências em geral negligenciarem os referidos estudos, entre muitos outros de natureza interdisciplinar e multidisciplinar, continuaremos a repetir a história de uma verdadeira ideologização da ressocialização. Ideologia essa que não tem permitido avançar na compreensão mais ampla do desvio social e que, por isso, continua a manter práticas contraprodutivas e ineficazes, reforçando mecanismos que reproduzem a desigualdade social.

 

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Recebido em 19/05/2015
Aprovado em 18/07/2017

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