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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.3 São João del-Rei jul./sept. 2017

 

ARTIGOS

 

Categorias imanentes do livro em tela: a experiência dos leitores

 

Immanent categories of books on screen: the readers experience

 

Categorías inmanentes de el libro en la pantalla: la experiencia de los lectores

 

 

Luciana Dadico

Professora universitária de Psicologia na Universidade Nove de Julho com doutorado e mestrado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, tendo realizado estágios de pós-doutoramento no Programa de Teoria Crítica da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e de doutoramento na Scuola Normale Superiore di Pisa, Itália. E-mail: ludadico@usp.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é descrever as categorias imanentes do livro em tela. Primeiramente, discute-se o "livro em tela" como objeto, substancialmente afetado pela mediação digital. Em seguida, trata-se das condições epistemológicas dadas para sua investigação. Partindo de uma concepção teórico-crítica do fenômeno, buscou-se compreender como o livro em tela aparece para o seu leitor. Esta pesquisa envolveu entrevistas semiabertas (gravadas e sem aplicação de questionário) com dez leitores adultos e brasileiros, focalizando as imagens do livro em tela que compareciam nas falas dos entrevistados. A análise destas imagens permitiu identificar as seguintes categorias imanentes do livro em tela: efemeridade; bidimensionalidade; alta-portabilidade; inconstância do fundo; disposição em rede; responsibilidade; inflexibilidade; multifuncionalidade; personificação; conservação temporária; acessibilidade imediata; e semipadronização. Espera-se que este estudo possa tornar mais evidentes as mudanças recentes da forma do livro, que se encontram articuladas à estrutura de nossa experiência no contexto da digitalização da cultura.

Palavras-chave: Livros-texto. Leitura. Novas mídias. Experiência. Teoria crítica.


ABSTRACT

The aim of this paper is to describe the immanent categories of books on screen. First, I discuss this object "book on screen", deeply affected by the digital mediation. Then, the epistemological conditions given for its investigation is under discussion. Based in a critical theoretic approach, I sought to understand how books on screen appear to their readers. This research involved semi-open interviews (recorded and without questionnaire) with ten Brazilian adult, focused on images of books on screen expressed in the speeches of readers. Analysis of these images allowed identifying the following immanent categories of books on the screen: ephemerity; bidimensionality; high-portability; inconstancy of the ground; layout in network; responsiveness; inflexibility; multifunctionality; personification; temporary conservation; immediate accessibility; and semi-standardization. It is expected that this study will become more evident the recent changes in the book appearance, which are intertwined to the structure of our experience in the context of digitalization of culture.

Keywords: Book. Reading. New media. Experience. Critical theory.


RESUMEN

El objetivo de esta investigación es describir las categorías inmanentes del libro en la pantalla. En primer lugar, se lo discute como objeto afectado por la mediación digital; entonces, las condiciones epistemológicas dadas a su investigación. A partir de la Teoría-Crítica, hemos tratado de entender cómo aparece el libro en la pantalla para el lector. Esta investigación consistió en entrevistas semi-abiertas (grabadas y sin cuestionario) con diez adultos brasileños, centrándose en las imágenes del libro en la pantalla expressadas por ellos. En el análisis de estas imágenes se identificaron las siguientes categorías inmanentes del libro en la pantalla: fugacidad; bidimensionalidad; alta portabilidad; inconstancia del fondo; disposición en red; responsibilidad; inflexibilidad; multifuncionalidad; personificación; conservación temporaria; accesibilidad inmediata; y semi-estandardización. Se espera que este estudio se harán más evidentes los cambios recientes en forma de libro, articulados a la estructura de nuestra experiencia en el contexto de la digitalización de la cultura.

Palabras clave: Libro. Lectura. Nuevos medios. Experiencia. Teoría crítica.


 

 

A leitura do livro em tela

A experiência de leitura entrelaça-se de maneira importante ao projeto de formação cultural do indivíduo nas sociedades modernas. Isto, em grande medida, graças às características do livro, que possibilitam uma ampliação dos limites da experiência do leitor para além do contexto de uma certa tradição. O livro contribui para modificar tanto as relações das quais o indivíduo participa cotidianamente quanto a cultura à qual essa experiência de leitura se entrelaça (Benjamin, 2012; Dadico, 2012). Desde a invenção da imprensa, possibilitando a circulação de obras e ideias que colaboram para o Renascimento e a Reforma, o livro acabou se configurando objeto-símbolo do projeto de autodeterminação iluminista. Ao instituir um ambiente propício à introspecção, silenciosa e individual, a leitura do livro participou ainda na conformação da ideia de indivíduo, bem como de uma racionalidade subjetivamente fundada.

Atualmente, o livro vem sofrendo um conjunto de transformações. Sob os auspícios da digitalização da cultura, torna-se necessário refletir sobre os fenômenos em curso, especialmente no que diz respeito ao livro, à literatura e à experiência de ler. O presente artigo discute os resultados de uma pesquisa realizada com leitores de livros digitalmente mediados, com o objetivo de descrever as categorias imanentes do livro em tela. O propósito desta pesquisa foi evidenciar as modificações sofridas pelo livro na passagem de seu formato tradicional em papel para o suporte digital, a fim de saber de que maneira as características do livro em tela, como objeto mediador da leitura literária, participarão desta experiência.

Antes de ir a campo, era preciso descobrir no que consistia este objeto sob investigação: o livro em tela. Na tela de um dispositivo digital, os contornos do livro não são claramente identificáveis. O formato desse objeto não é mais evidente, mesmo quando as atenções do receptor estão voltadas diretamente para ele. As assim chamadas "novas mídias", combinando tecnologias digitais de transmissão, processamento e armazenamento de dados, modificam as formas do livro de maneira radical. No que consiste, então, o livro em tela como objeto?

O livro em tela: possibilidades de investigação

Profundo conhecedor das tecnologias envolvidas na mediação digital, Lev Manovich (2001) apresenta uma análise das características das mídias digitais e das condições tecnológicas capazes de afetar, de modo tão radical, o modus operandi das mídias tradicionais. Em The Language of New Media, Manovich apresenta, por meio de uma comparação entre o desenvolvimento histórico das formas e linguagens do cinema, e aquelas assumidas pelas novas mídias, uma análise dos princípios, interfaces, operações, ilusões e elementos que compõem a nova mediação digital.

Ele explica que não se trata apenas de dizer que as mídias tradicionais são agora acessíveis em um computador. Embora o próprio autor descreva os processos em curso nos termos de uma "computadorização da cultura" (Manovich, 2001, p. 9), ele defende que as novas mídias se apresentam como uma espécie de metamídia do computador digital. Isso porque a possibilidade de processar dados promovida pelos computadores é apenas uma das facetas das novas mídias digitais. O computador, sem a Internet, não passaria de uma grande máquina de calcular; por outro lado, as tecnologias de comunicação, sem o computador, teriam produzido não a Internet, mas algo parecido com um telefone bem desenvolvido. Daí a necessidade de falar em "novas" mídias, caracterizando os processos de mediação em curso como uma mediação da mediação.

As novas mídias poderiam ser descritas a partir de cinco princípios básicos: 1. A representação numérica; 2. A modularidade; 3. A automação; 4. A variabilidade; e A 5. transcodificação. A descrição desse elenco de princípios auxilia a compreender os processos tecnológicos que definem as mídias digitais, bem como esclarecer a peculiar condição de seus objetos.

A representação numérica (1) diz respeito à representação em algarismos dos códigos digitais, fato que independe de o objeto ter sido criado diretamente em meio digital ou criado em meio analógico e posteriormente convertido, "digitizado". Isso significa que, em um computador, toda imagem ou forma pode ser descrita por meio de uma função matemática, tornando-se objeto de manipulação algorítmica: os objetos digitais são programáveis, característica que os define. A modularidade (2) refere-se à estrutura modular dos dados digitais, segmentados em bytes e representados por meio de coleções de módulos ou samples, tais como pixels, caracteres, scripts. Mesmo que apareçam compostos ou reunidos em um arquivo maior, esses elementos mantêm sua identidade como objetos separados dentro daquela estrutura - o que tornaria a unidade de um website, por exemplo, na outra ponta, apenas uma ilusão reforçada pelo comércio eletrônico. A automação (3) diz respeito à existência de um conjunto de operações eletrônicas autogeradas, isto é, que independem de qualquer intervenção humana. A partir do momento em que certas instruções foram fornecidas a uma máquina, esta pode gerar instruções novas, com diversos graus de automação. Em um nível menor, é possível, por exemplo, criar objetos animados para um filme, comandar ataques por "vírus", ou gerar contas de e-mail falsas. E, em um nível maior, é possível alterar a própria linguagem de programação que serve de base para as operações digitais - ideia que fundamenta projetos de inteligência artificial. O quarto princípio, a variabilidade (4), surge como consequência da representação numérica e da modularidade. Isso porque a redução dos objetos digitais a números agrupados em pequenos módulos possibilita não apenas a reprodução idêntica desses objetos (propriedade já alcançada pelos meios de massa), mas principalmente o surgimento de inúmeras versões diferentes de um mesmo objeto. Assim, uma foto digital, por exemplo, pode ser "aberta" por diferentes programas, "salva" em formatos de arquivos diversos, editada, colorida, descolorida, encolhida ou recortada de muitas maneiras - e ainda assim tratar-se da mesma fotografia, reconfigurada. Como exemplos de casos nos quais o princípio da variabilidade se aplica, o autor menciona as possibilidades de alterar um arquivo de forma interativa e as atualizações (updates) de um programa. Manovich levanta aqui uma pertinente discussão acerca das diferenças que tal princípio importa aos modos de produção atuais - como possibilidade de produção on demand e just in time e de reprodução de massa na área cultural. Por fim, Manovich (2001) trata da transcodificação (5), processo por meio do qual todo material mediado é transformado em dado processável em um computador. É por meio da transcodificação que os dados presentes em um computador podem figurar sob um aspecto reconhecível pela percepção humana (sob a forma de imagens, sons, textos), quando o computador "traduz" e organiza esses dados por meio de uma linguagem ou software apropriados, lançando mão de operações capazes de alterar o tamanho, o formato e muitas outras características do objeto. Graças à transcodificação, o objeto pode ser decomposto, transportado de uma base de dados a outra e recomposto em seguida em suportes distintos, e ainda assim aparecer em diferentes lugares e momentos com características iguais ou semelhantes do ponto de vista perceptivo.

Uma das principais críticas dirigidas a Manovich refere-se ao caráter formalista de sua abordagem. Segundo Galloway (2012), ao seguir uma tradição que remonta a McLuhan, Manovich teria concebido as New Media como uma combinação de dispositivos, cujas qualidades essenciais poderiam ser apreendidas e descritas formalmente. Por isso, em vez do "media-centrismo" resultante da postura de Manovich de explicar os objetos que compõem as novas mídias, descritos nos termos de uma Filosofia das Mídias, seria melhor deslocar tais reflexões na direção dos processos de mediação - partindo do trígono básico "armazenamento, transmissão, processamento" comum a todas as mídias. A compreensão desses processos resultaria então, sob uma perspectiva diversa, em uma Filosofia da Mediação. Em The Interface Effect, Galloway (2012, p. 17) afirma que "uma filosofia da mediação tenderá a proliferar a multiplicidade; uma filosofia das mídias tenderá a aglomerar diferentes objetos reificados".

De inspiração fortemente heideggeriana, Galloway problematiza as possibilidades epistemológicas de se compreender um fenômeno em que nos encontramos completamente imbricados. Descrente da possibilidade de desvendar a essência dos objetos que compõem as novas mídias, Galloway sustenta que o computador (evitando o termo "novas mídias") apresenta-se mais como possibilidade do que como definição, uma vez que, ao instituir formas próprias de mediação, o computador "simula ontologias" e o próprio "arranjo metafísico" (Galloway, 2012, pp. 19-21). Nesse contexto, o termo remediação aparece empregado por ele para caracterizar os processos de mediação promovidos pelo computador.

O computador está absolutamente presente em nossas atividades, alterando nossas vidas de forma inédita, sem que seja possível distinguir com precisão os limites de sua presença. Por isso, mais do que atuar como um medium, inclusive de nossas reflexões, presença e intervenção no mundo, o computador não se distinguiria como objeto, tornando impossível descrevê-lo em seus aspectos essenciais. Daí a ênfase de Galloway na análise dos processos de mediação: a remediação é apresentada não mais como ligação objetiva entre dois objetos, entre um sujeito e um objeto, ou ainda como criação de objetos, mas como limiar ativo entre dois estados em constante transformação. Nesse sentido, o computador remediaria o próprio Ser. Indo ainda mais longe, Galloway sustenta que o computador é o Ser. Ele questiona a capacidade do sujeito para construir conhecimentos objetivos nesse campo, em um cenário no qual as novas formas de mediação permeiam os processos subjetivos de forma tão profunda - isto é, onde uma distinção entre sujeito e objeto estaria longe de ser evidente. Ora, é exatamente essa influência tão radical das novas mídias sobre a nossa subjetividade que justifica o esforço em produzir conhecimentos objetivos acerca das novas modalidades de mediação. Investigações teóricas e empíricas envolvendo as novas mídias tornam-se tanto mais necessárias quanto mais as novas mídias se fazem presentes em nossas atividades, afetando nossa experiência. Em outras palavras: sob o ponto de vista aqui adotado, afirmar que existe diferença entre sujeito e objeto não significa ignorar a dialética de sua determinação mútua (Adorno, 2009b). Pelo contrário, é exatamente a necessidade de melhor compreender as contingências dessa determinação que conduz a busca pelas características imanentes dos objetos envolvidos nas novas formas de mediação.

Uma preocupação importante durante o desenvolvimento desta pesquisa consistiu na elaboração de um método que não perdesse de vista a participação do sujeito na percepção do objeto, sem que, por outro lado, o fenômeno da mediação fosse reduzido a seus elementos subjetivos. Os dilemas epistemológicos antepostos ao desenho de um novo método ecoam os embates entre a fenomenologia heideggeriana e a crítica que Theodor Adorno lhe dirigiu nos anos 1960. Adorno (2013) compartilhava com Heidegger (e também com Husserl) a crítica do sujeito racional cartesiano. Entretanto, Adorno jamais sustentaria a crítica ontológica de Heidegger à ciência, ou a submissão da ciência a uma filosofia ideal. Enquanto Heidegger procurava evitar esquemas preestabelecidos de pensamento, por meio de uma abertura ao Ser, Adorno criticava o conceito como se tratasse de uma nulidade fantasmática, capaz apenas de conduzir o sujeito de volta para si mesmo - crítica que atinge também as análises de Galloway, para quem as novas mídias se tornam um novo modo essencial por meio do qual o Ser é dado. Para Adorno, os fenomenólogos incorriam em erro quando buscavam por objetos essenciais alcançáveis exclusivamente pela mediação subjetiva. Ao valorizar a identidade sobre a não identidade, e a totalidade sobre o particular, o relativismo ontológico negaria a possibilidade de qualquer conhecimento objetivo. De modo diverso, Adorno insistia na necessidade de diferenciar sujeito e objeto, procurando evitar o positivismo e seus determinismos, o que seria possível com o recurso à via dialética da experiência. É a atualização histórica oferecida pela experiência que, oferecendo-se como contraditório ante o formalismo invariante dos conceitos, seria capaz de se contrapor à reificação. A análise imanente proposta por Adorno em termos dialéticos visa abranger tanto o momento da reflexão intelectual - sem a qual se arriscaria a uma mera descrição de dados, acrítica e incapaz de elucidar o objeto - quanto o momento da observação empírica. Preservar a tensão entre o conceito e o experimentado tem, outrossim, o importante propósito de permitir a apreensão das contradições entranhadas no próprio objeto.

Quando Adorno (2009a) se dispôs a estudar empiricamente a escuta musical mediada pelo rádio, durante seu exílio nos Estados Unidos, ele elaborou um método fenomenológico com o intuito de recuperar o duplo caráter do rádio para a percepção - capaz de evidenciar os aspectos subjetivos e objetivos que o rádio comporta como mediador da escuta musical. Ao debruçar-se sobre a "fisiognomia" do rádio, Adorno consegue recuperar as características imanentes do rádio e, assim, identificar os aspectos temporais e espaciais da escuta musical afetados pela mediação do aparelho (Carone, 2014). Com semelhante propósito, de investigar criticamente as condições envolvidas na mediação de uma certa experiência (em atenção ao primado do objeto e à necessidade de construção de um método próprio, adequado às peculiaridades do objeto em questão), a presente pesquisa teve por objetivo descrever as características imanentes do livro em tela, tal como ele aparecia para o leitor do livro. A estratégia utilizada na investigação do livro em tela como objeto envolvia identificar as imagens do livro em tela que compareciam expressas nas falas dos leitores entrevistados. As descrições dessas imagens foram analisadas com vistas à caracterização do objeto em questão.

 

Entrevistando leitores: método

Participantes

Durante a pesquisa, foram entrevistados dez leitores adultos, brasileiros, residentes no estado de São Paulo e graduados em diferentes cursos de nível superior. Tinham idades entre 30 e 64 anos; dois eram homens, oito eram mulheres. Com exceção dos três primeiros entrevistados, que atenderam a indicações oriundas do meio acadêmico, os demais ofereceram-se como voluntários em resposta a um anúncio veiculado pela Agência USP de notícias em seu website, redes sociais e na rádio da universidade. Seis entrevistados tinham algum tipo de relação com a universidade, profissional ou de estudo: duas eram estudantes de pós-graduação, uma, estudante de graduação, dois eram professores universitários e uma trabalhava em um órgão do governo sediado no campus da cidade. Quatro leitoras tinham relação direta com o mundo dos livros: três trabalhavam para editoras e uma, em biblioteca. Uma entrevistada era dona de casa; outra trabalhava em uma organização não governamental.

Os dispositivos digitais mais utilizados pelos leitores eram os computadores, de mesa ou notebooks: todos os entrevistados faziam uso deles para ler em algum momento. Em segundo lugar, apareceram os e-readers nacionais (Lev, Kobo, Sony e Motorola); em terceiro, os telefones celulares; e, em quarto, o tablet. Nenhum entrevistado fazia uso de e-readers importados, embora duas leitoras se utilizassem da plataforma Kindle, da Amazon, para adquirir e-books pela Internet e visualizá-los no tablet ou no computador.

Instrumentos e coleta de dados

As entrevistas foram realizadas individualmente, de forma semiaberta, sem a aplicação de questionário e registradas em um gravador digital. As entrevistas aconteceram em duas etapas: na primeira, a conversa tinha por tema a leitura de livros e os dispositivos digitais. Ao fim, os leitores escolhiam um livro para ler e agendávamos então um segundo encontro para discutir essa leitura específica. Das dez entrevistas iniciais, quatro deram ensejo a segundos encontros. Os títulos escolhidos por esses quatro leitores para leitura e discussão foram: Aspectos da música brasileira, de Mário de Andrade; Archangel's Legion, de Nalini Singh; Nosso Lar, de Chico Xavier; e As surpreendentes aventuras do Barão Münchausen, de Rudolph Erich Raspe. No conjunto, foram realizadas quatorze entrevistas, que aconteceram entre janeiro de 2014 e junho de 2015, em uma sala silenciosa e especialmente reservada para esse fim, e tiveram duração de 45 a 120 minutos. Durante os encontros, os leitores falavam livremente; às vezes, eram feitas perguntas para esclarecer algum ponto específico, ou estimulá-los a refletir mais acerca de algum assunto abordado. Particular atenção era dada ao modo como os leitores percebiam os objetos em foco e faziam uso deles.

Análise dos dados

As entrevistas gravadas não foram transcritas, em razão das diferentes formas de análise que tocam à fala e ao texto escrito. O material gravado foi ouvido repetidas vezes, em diferentes momentos da pesquisa. Por meio dessas escutas, eu buscava perceber de que modo a imagem do objeto investigado comparecia na fala dos entrevistados. A escuta continuada das entrevistas gravadas possibilitou-me alcançar, dentro dos limites deste estudo, o modo como a imagem do livro em tela comparecia entrelaçada à experiência de cada leitor com esse objeto: sua aparência geral, peso, volume, tempo de uso, conforto, familiaridade do leitor com o objeto, problemas, vantagens, sensações despertadas por sua utilização, influência na atividade de leitura. Para citar um exemplo de como esse processo se deu, em uma das entrevistas, Laís (nome arbitrariamente escolhido para preservar sua identidade) relatou um incômodo maior para ler o livro na tela do que percebia no livro em papel. Esse incômodo, descrito em termos genéricos, pode ser explorado ao longo da entrevista, ao longo da qual ela relata, dentre outras coisas, que a disposição do texto, comprado em formato ePub em uma livraria virtual, não se adequava uniformemente ao tamanho da tela de seu notebook. A imagem que aparece do livro em seu notebook se parece com um objeto pesado e disforme, que contrasta com a promessa de prazer imagético anunciada pelo livro ricamente ilustrado que escolheu para ler. Amanda, por sua vez, não se incomoda com o fato de precisar "correr" o texto frequentemente com os dedos na tela de seu celular: o aparelho parece perfeitamente adequado ao tipo de livro que ela escolheu para ler (um livro de fantasia, cujas cenas de vampiros e vistas urbanas podiam facilmente ser construídas pela imaginação do leitor em meio às fartas aventuras e ações descritas no romance). Isto é: independentemente do juízo tecido pelas leitoras sobre a questão, era possível identificar uma mesma característica do livro em tela constante nas imagens do livro em tela expressas pelas duas leitoras, relacionada à mediação do livro pelo dispositivo digital - e que poderá ser descrita a partir de, pelo menos, duas das categorias espaciais do livro em tela elencadas a seguir: a "inconstância do fundo" e a "inflexibilidade".

Em um segundo momento, as imagens expressas pelos leitores vinham consideradas em função de seus aspectos espaciais ou temporais (lembrando que a própria percepção de tempo e espaço sofre a influência da mediação digital). A terceira parte desse trabalho de análise consistiu na busca por categorias capazes de melhor descrever as imagens do livro em tela expressas pelos leitores. Em se tratando de relatos diferentes, que abordavam ou focalizavam aspectos diversos do objeto, é necessário notar que as categorias listadas neste estudo não emergiram em todas as entrevistas, mas das entrevistas tomadas em seu conjunto. Por outro lado, as categorias finais não contradizem nenhuma das imagens construídas pelos leitores individualmente - permitindo sustentar sua generalidade como categorias.

Por fim, as categorias imanentes do livro em tela, elaboradas a partir das entrevistas realizadas, foram confrontadas com conhecimentos disponíveis a respeito das tecnologias de mediação digital, sobre a percepção humana (em seus aspectos psicológicos e neurofisiológicos) e usos consolidados das novas mídias, com o propósito tanto de buscar explicação científica para alguns dos processos ou lacunas identificados no processo de análise quanto apontar contradições eventualmente encontradas. Friso que a ênfase desta investigação estava no modo como os leitores percebiam e experimentavam o livro na tela durante a leitura, não nos aspectos estritamente formais do objeto - que não foi descrito então a partir de seus componentes concretos, mas sim a partir de sua aparência e usos feitos pelo leitor. Por isso, era importante compreender, primeiramente, como se instituía o campo fenomenal da leitura do livro em tela - para o que a luminosidade do dispositivo, por exemplo, e a própria multifuncionalidade do aparelho contribuíssem de maneira importante. Na medida em que se mostrava possível identificar as condições para a formação desse campo, tornava-se possível identificar as categorias imanentes do livro em tela, relacionadas a seguir.

 

Considerações éticas

Antes das entrevistas, os leitores foram devidamente informados sobre as questões éticas envolvidas no estudo, tais como riscos implicados, direito à desistência e sigilo - tópicos incluídos na leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado pelos participantes. A coleta de dados desta pesquisa iniciou-se após o cadastramento do projeto de pesquisa na Plataforma Brasil, sob número CAAE 10156813.0.0000.5561, e a obtenção de parecer consubstanciado favorável, número 389.239, emitido pela CEPH-IP em 09/09/2013.

 

Resultados: a aparição do livro em tela

A efemeridade (a) pode ser apontada como primeira categoria do livro em tela, uma vez que o livro permanece, na maior parte do tempo, invisível para o leitor: aparece apenas quando o dispositivo é ligado. Essa dinâmica é responsável por uma mudança radical no campo fenomenal da leitura. Depois que o dispositivo é aceso, o livro faz sua aparição dentro do quadro de características estabelecidas por esse seu hospedeiro. Sem bateria, alimentação elétrica vizinha ou ainda sem acesso à Internet, o livro simplesmente desaparece da mão dos leitores - condição que atrapalha leitores em trânsito, como Teresa, ou que dispõem de poucas tomadas à mão, como Laís. A despeito do esforço em apresentar o livro digital com uma aparência similar à do livro tradicional, algumas das principais vantagens oferecidas pelos e-readers e tablets destinados à leitura envolvem a dissolução das características espaciais do livro.

Submetido à aparência fixa da tela e desprovido de contornos fixos, o livro perde seu volume. A bidimensionalidade (b) é categoria imanente do livro em tela que favorece o transporte do livro, como enfatiza Sérgio, ao mesmo tempo em que modifica as condições dadas para a manipulação do livro (agora estritamente possível por meio do acionamento de botões ou ícones). O livro será exposto então em uma superfície plana: su(pe)rface, superface. O dispositivo digital adquire uma supervisibilidade, em princípio concorrente com a necessidade do meio "desaparecer" para permitir ao leitor concentrar-se em sua leitura (Dadico, 2012). O dispositivo adquire grande destaque na fala dos leitores, em detrimento de seu histórico de leituras (como acontecia com os leitores tradicionais). Como efeito desse modo de perceber o livro em tela, Laís relata uma atenção menor ao ler livros na tela do que no papel, embora, contraditoriamente, todos os leitores digam passar mais horas do dia em frente à tela do que dos papéis. Na editora em que Laís trabalha, a revisão de originais é feita em papel, como forma de assegurar uma maior eficiência na correção das provas - os detalhes do texto são menos evidentes em meio digital.

A imagem do aparelho se sobrepõe à imagem do livro. Esse fenômeno pode ser facilmente explicado do ponto de vista técnico e fisiológico. No campo fenomenológico da leitura em tela, os dispositivos digitais acesos brilham e atraem a atenção do leitor para a luz. Os modelos de tela mais comumente utilizados empregam tecnologia LED-LCD, plasma ou papéis eletrônicos (como aqueles empregados na maioria dos e-readers, E-Ink ou Paper-white) - dependentes de fontes luminosas eletricamente ativadas para manter a informação visível. Assim que o aparelho é aceso, a tela emite uma luz direta, com brilho em geral superior àquele dos objetos opacos observados no ambiente, que refletem a luz em vez de emiti-la (isso é verdade mesmo quando a tecnologia empregada por alguns e-readers faz uso de refletores internos, que alteram a angulação dos raios luminosos em relação ao olho). A luz azul emitida pela tela de dispositivos como smartphones e computadores nos mantém despertos1. No entanto, essa luz requer um esforço do sistema neurovisual (músculos oculares, células da retina etc.) para sua adaptação aos níveis de luminância do dispositivo e consequente discriminação dos estímulos visuais sob a forma de pontos (dpi) ou pixels (ppi). O fenômeno da adaptação à luz explica como luminância (quantidade de luz projetada diretamente em nossos olhos ou refletida pelos objetos) e contraste entre estímulos luminosos permitem perceber e reconhecer objetos empregando nosso aparato neurovisual - o que inclui dois grupos de células retinais respondendo ao aumento - cells on - ou diminuição - cells off - da luminância (O'Shea, Blackburn, Ono, H., 1994). Desse modo, afastar os olhos da tela luminosa pode ser particularmente trabalhoso para o sujeito que tende a evitar a mudança de seu campo visual. Isto é, o sujeito é fisiologicamente compelido a se manter dentro do campo fenomenal gerado pelo aparelho. A luminosidade da tela promove ainda uma ilusão de leveza, em virtude do contraste entre a tela luminosa e os objetos opacos circundantes - ilusão que se intensifica e articula, por sua vez, à oferta de dispositivos digitais com dimensões cada vez mais reduzidas.

A tendência em produzir menores e mais leves dispositivos como laptops, e-readers, smartphones e outros faz com que outra importante categoria dos livros tradicionais, a unidade portabilidade-fluidez, reapareça dentro de um novo quadro. Lembrando que a portabilidade-fluidez, característica dos livros tradicionais, constituía um importante fator na promoção de um ambiente para a leitura fluída, passível de transcorrer em lugares diferentes e em princípio inóspitos à leitura, como dentro de um ônibus ou em uma sala barulhenta (Dadico, 2012). Por um lado, o livro na tela alcança uma alta-portabilidade (c), uma vez que o livro digital pode reaparecer em qualquer aparelho conectado. Notebooks deixam as mesas e são carregados pelos diversos cômodos da casa, como faz Laís, enquanto celulares e e-readers cabem no bolso e acompanham os leitores para todos os lugares, como relatam Teresa, Sérgio e Amanda. Por outro lado, a fluidez na disposição do texto é sacrificada. A linearidade dos textos - seccionados não mais em função de uma paginação preestabelecida, mas irregularmente ajustados ao tamanho e configurações da tela e software - já não é suficiente para assegurar a fluidez do texto oferecido ao leitor. Essa condição é estranha para os leitores ainda pouco habituados à manipulação dos equipamentos novos, como é o caso de Teresa, que reclama perder a localização de sua leitura com frequência excessiva nos momentos em que precisa correr o texto na tela, ou de Laís, que percebe as "quebras" geradas pela eventual incompatibilidade entre arquivo e dispositivo como um prejuízo estético. Essa perda de fluidez pode parecer contraditória, quando os dispositivos digitais permitem "rolar" o texto na tela, ou deslizá-lo com um toque. Porém, não são mais os olhos que correm de forma linear e constante as linhas sequenciadas da página. É o texto que desliza pela tela, em movimento fragmentado e inconstante, enquanto os olhos tentam segui-lo, subindo e descendo erraticamente. Como consequência, a inconstância do fundo (d) torna-se uma característica imanente do livro em tela, concorrendo para que o livro deixe de configurar-se como um ambiente estável para a sua leitura. A frequência da luz emitida pelas telas da maior parte dos dispositivos digitais, em torno dos 60 Hz, tende a incrementar a percepção dessa inconstância, levando o leitor a perceber essa luz como intermitente (Lin et al., 2012). Em resposta à luz das telas, os leitores tendem a piscar menos. A percepção dessa intermitência pode ser associada às descrições pelos leitores de "cansaço" ou ardência nos olhos ao ler na tela. Não são mais os olhos que estabelecem o ritmo da leitura, mas os comandos emitidos pelos dedos das mãos - o que enseja um novo conjunto de contradições.

Em função da bidimensionalidade, os livros digitais perdem seu volume, o que retira dos leitores importantes índices de orientação sensorial. Além de eventualmente perder sua paginação quando adaptado às dimensões do aparelho, o livro em tela não pode mais ser tocado, somente a própria tela. Com isso, o tempo despendido na leitura não poderá mais ser calculado em função do volume do livro, seu peso e percepção tátil, mas em função de indicadores abstratos, tais como números de página, percentual corrido, movimento da barra lateral e dados estatísticos automaticamente fornecidos. As informações provenientes do tato como sentido, como o deslizar dos dedos pelas páginas e a sensação de peso deixam de fornecer dados sobre o tamanho da obra e o progresso da leitura. Isso afeta a apercepção em uma de suas bases, gerando uma espécie de "dissonância háptica" (Gerlach, Buxmann, 2011) entre o sensorialmente percebido e o racionalmente reconhecido. Os "mapas mentais" produzidos à medida que o leitor se movimenta no interior de uma obra literária (identificando a posição em que se encontra no momento ou a localização de trechos já lidos, por exemplo) são afetados, na medida em que a estrutura aparente do texto não condiz mais com sua forma objetiva (Payne, Reader, 2006). Os movimentos de toque ora se prestam somente à execução de comandos do dispositivo. Muitos leitores relatam dificuldade na manipulação desses comandos que frequentemente levam o leitor a perder seu marcador, a despender um tempo adicional para localizar novamente o ponto onde sua leitura foi interrompida, ou mesmo para retornar a trechos anteriores. De forma contraditória, as possibilidades de toque - como as telas touch (incluindo funcionalidades novas, como a localização de palavras) - destinam-se a suprir aquilo que falta ao livro na tela: a possibilidade de orientação espacial nutrida pelo tato que o volume do livro outrora propiciava.

A visão, em detrimento do tato, torna-se o sentido predominantemente utilizado para orientar o leitor na relação com o livro em tela. O uso do livro como medium torna-se mais complexo, desde que a atividade de leitura não é mais sensorial e intuitiva como antes, exigindo antes um treino específico para operar as diversas funcionalidades de diferentes aparelhos e software, e também níveis maiores de abstração que permitam alcançar uma localização espacial no interior da obra em função de indicadores numéricos. A efusivamente celebrada novidade dos links e hipertextos dispostos ao longo do texto, com seu layout ou disposição em rede (e), promove, por sua vez, quebras na linearidade dos textos, cuja direção segue agora os nós e encruzilhadas dispostos em diferentes partes da obra - característica que tanto Amanda quanto Sérgio percebem como uma vantagem, na medida em que comportam informações novas e adicionais à leitura. Os "desvios" promovidos pelos hyperlinks são mais disruptivos do que o uso de notas de rodapé, por exemplo, pois carregam o leitor para fora dos limites da obra, capturando, outrossim, para conteúdos alheios à reflexão, aqueles momentos de distração necessários para que o leitor possa agregar à leitura sua própria experiência como leitor. Isto é, aquilo que o leitor eventualmente ganha em informação ao distanciar-se do texto, perde em capacidade de análise individual da obra.

As novas mídias, como um conjunto de objetos dos quais a Internet é parte integrante, são responsáveis por manter o leitor/escritor de meios digitais na/ao corrente de uma forma bastante particular. Ao mesmo tempo em que cabos e baterias recarregáveis alimentam os aparelhos eletricamente, o sistema de telecomunicações autoriza a transmissão rápida dos impulsos eletromagnéticos (por meio de cabos de cobre, fibras ópticas, ondas sonoras ou via satélite). Isso, combinado a um processamento de dados eficientes, permite aos usuários não apenas alcançar a rede como um todo, mas a fazê-lo de modo bidirecional - pois o fluxo de informações digitais não se dá mais somente do emissor para um receptor, já que nas duas pontas existem receptores e emissores. A bidirecionalidade da transmissão faculta ao leitor uma responsibilidade (f) oferecida e estimulada pelo livro em tela. A responsibilidade no livro em tela manifesta-se por meio dos comentários on-line deixados pelos leitores e pelo controle de hábitos de consumo que fornecem informações valiosas para que editores, distribuidores e os próprios autores angariem novos consumidores e/ou leitores para os livros, com promessas de experiência adequadas a um determinado público. Amanda relata ser usuária frequente de comunidades de leitores on-line e ter suas escolhas de leitura bastante influenciada pelos comentários postados ali. O apelo do livro não se encontra mais na sua capa, nos títulos de sua lombada visível na estante ou na "orelha" escrita por um bom comentarista. Agora operam as amostras de livros enviadas eletronicamente por editoras e livrarias virtuais, as indicações interpessoais, as comunidades virtuais e os sites de busca. O público do livro torna-se cada vez menos um produto da imaginação do autor, que ora escreve com base em indicadores objetivos. Por outro lado, a responsibilidade do livro em tela se reflete em formas literárias novas, como o "livro-aplicativo": aparentado com os filmes e jogos eletrônicos, seu enredo pode conter uma gama variada de bifurcações facultadas ao leitor, que podem dar ensejo a histórias e finais variados.

Uma vez que o leitor cedeu ao apelo do livro em tela e decidiu-se a lê-lo, é preciso que esse objeto fantasmagórico faça sua aparição, assumindo uma forma perceptível ao leitor. O livro mediado pelo dispositivo digital é representado inicialmente por um ícone, imagem ou nome de arquivo, que logo desaparece do campo visual do leitor para dar lugar ao texto escrito, digitalizado e adaptado à espacialidade da tela. Livros digitais são basicamente arquivos de texto, isto é, uma certa quantidade de bytes estruturados em sequência, cuja terminação ("txt", "doc", "ePUB", "pdf", "azw" e outras) sinaliza seu formato e qual o tipo de software capaz de decodificá-lo e exibir os dados apropriadamente. Manovich defende que a representação numérica e a modularidade, como princípios das novas mídias, concorrem para que a variabilidade se torne também um princípio das mídias digitais. Porém, no caso do livro digitalmente mediado, a vinculação entre tipo de arquivo, software e hardware, que possibilita ao mesmo tempo em que enrijece a forma do livro, leva-nos a qualificar a aparência do livro não como variável, mas como inconstante e responsável por uma paradoxal inflexibilidade (g) do livro em tela. Isso porque, a menos que o leitor seja um especialista em informática ou hacker, dificilmente ele será capaz de interferir nos limites pré-definidos por meio dos quais o livro poderá ser visualizado na tela - condição que incomoda particularmente uma leitora atenta às formas textuais, como Laís. Se um determinado fabricante de e-readers, por exemplo, decide vincular a experiência de leitura de livros digitais naquele dispositivo ao uso de um certo software e/ou às compras efetuadas em um determinado website, dificilmente o usuário comum conseguirá liberar-se dessa imposição. A concentração cada vez maior das editorias e conglomerados de mídia e Internet em grandes monopólios tende, por sua vez, a incentivar uma vinculação entre as novidades de um e outro mercado, prejudicando a livre circulação de conteúdos entre dispositivos, aplicativos e software de diferentes companhias, e mesmo entre diferentes usuários.

Ao leitor não é mais facultado dobrar as orelhas, rabiscar páginas, grifar o texto, a menos que algumas dessas "ferramentas" tenham sido disponibilizadas na tela pelo fabricante. Quando dadas, tais possibilidades são mais limitadas e menos intuitivas no livro em tela, em comparação ao papel, o que é verdade também no caso do livro-aplicativo, no qual a interatividade é muitas vezes suposta: as diferentes possibilidades de enredo e fins para a história precisam ter sido escritas e previamente definidas por seu autor (que acaba trabalhando não mais em um só romance, mas, eventualmente, em mais de trezentos). Nesse sentido, o livro em tela promove apenas uma ilusão de flexibilidade, estimulada pela aparência tendencialmente mais leve e compacta dos dispositivos digitais que abrigam o livro. Tais características, contudo, não correspondem a uma efetiva liberdade do sujeito diante do aparelho, exceção feita à alta-portabilidade do dispositivo e ao fato de que o aparelho constitui um meio de comunicação unificado, cuja multifuncionalidade (h) é pressuposta. A multifuncionalidade é expressa pelo trânsito frequente, relatado por todos os leitores, entre o uso do livro e de outros programas (especialmente daqueles on-line, como e-mails e redes sociais) eventualmente acessíveis a partir daquele dispositivo. Ao compartilhamento outrora frequente entre leitores de livros, almejado por leitoras como Adélia (que reclama não poder emprestar o próprio aparelho, já que e-books nem sempre podem ser compartilhados), contrapõe-se agora uma personificação (i) objetiva do livro em tela, paralela àquela verificada no uso dos dispositivos digitais. As coleções de livros outrora dispostas em bibliotecas agora se condensam, em meio aos demais arquivos e objetos pessoais, armazenados em nuvem ou em pastas digitais, nos aparelhos celulares (Amanda) e e-readers (Sérgio e Heitor) de propriedade de cada um. A tendência à personificação, que restringe a circulação do livro em tela, pode ser combatida, como contratendência, pela disposição em rede dos objetos digitais, explorada em um esforço ativo dos usuários de compartilhar arquivos via Internet (por meio de bibliotecas digitais abertas, programas de compartilhamento de arquivos, blogs) e de hackers engajados na quebra de códigos de software (militância advogada por Sérgio). Contra a possibilidade de compartilhar arquivos, cunhada como pirataria, grandes companhias do mercado digital e editorial têm explorado a inflexibilidade dos livros digitais para incrementar instrumentos de controle. A personificação, combinada à crescente capacidade de processamento e automação dos dispositivos digitais, à bidirecionalidade, à ubiquidade da Internet e à alta portabilidade, contribuem para promover um verdadeiro sincretismo entre o leitor e o dispositivo. Tanto os dispositivos digitais quanto o livro remediado personificam-se, passando a reunir um conjunto de mecanismos fundamentais para o exercício de atividades produtivas e de comunicação do usuário - em meio às quais a busca por novos títulos, on-line ou em uma biblioteca digital, bem como a leitura em si, tornam-se atividades inespecíficas e eventuais.

Quanto às suas características temporais, em um contexto no qual as tecnologias têm sofrido um constante processo de desenvolvimento, o livro em tela vê comprometida uma das mais celebradas categorias dos livros tradicionais: a conservação temporal. Enquanto livros têm sido utilizados ao longo dos séculos como objeto de razoável permanência, livros na tela estão atrelados a um conjunto de condições que precisam ser atendidas para garantir seu uso constante: 1. Integridade e atualização dos dispositivos e instrumentos necessários à "leitura" daquele arquivo, tais como drivers, discos, chaves etc., especialmente em um contexto de obsolescência programada e fragilidade dos materiais utilizados na fabricação de componentes; 2. Compatibilidade entre hardware e software utilizados; 3. Compatibilidade entre o tipo de arquivo e as opções de software disponíveis; 4. Possibilidades de lembrança, busca e localização de arquivos armazenados de forma não imediatamente visível; 5. Manutenção da integridade dos arquivos em relação a mudanças voluntária ou involuntariamente realizadas por leitores ou mesmo de forma automática, por um software ou vírus, por exemplo, ou mesmo pelo administrador do dispositivo; 5. Dificuldade de identificar e retrilhar modificações realizadas em um arquivo original. Enquanto Luíza lamenta a perda de arquivos devida à rápida evolução de programas e dispositivos, e Heitor se ressente do furto do e-reader que reunia sua coleção, Taís se enraivece consigo mesma por esquecer a pasta ou nome do arquivo onde armazenou seu texto. Por razões de ordem técnica, livros digitais estão mais expostos a modificações do que o livro tradicional. A conservação temporal dos livros ora converte-se em conservação temporária (j) do livro na tela.

A conservação temporária diz respeito à possibilidade de ler o mesmo livro digital no presente e em um futuro próximo, sem mais certezas, contudo, acerca da disponibilidade daquele material para novas leituras, especialmente em um horizonte estendido. Do ponto de vista do leitor, a conservação temporária passa a demandar atividades específicas destinadas a garantir as condições para que o livro seja novamente aberto, além de uma mudança em suas próprias estratégias de leitura. Isso envolve, por exemplo, a necessidade de adquirir dispositivos atualizados e compatíveis, software adequados, assinaturas, tipos de livro especiais, formas de acesso à Internet, modos seguros de armazenamento dos arquivos digitais etc., além de instrumentos para armazenar arquivos nas próprias bibliotecas. Em se tratando de conteúdo de livre acesso e disponibilidade de rede, torna-se eventualmente mais fácil acessar o livro novamente via Internet do que aquele já salvo em arquivos pessoais. Isso porque a Internet estendeu a ubiquidade aos textos. Agora é possível que um mesmo texto disponível on-line seja visualizado simultaneamente por milhares de pessoas. Embora, convém frisar, visualizado não é o mesmo que lido. A leitura pode vir a ser simultânea no caso de um texto curto - como mensagens SMS, tweets ou comentários em redes sociais -, mas não necessariamente de um texto longo como um livro. A ubiquidade dos objetos digitais encontra limite nas características da própria linguagem escrita. O acesso à Internet possibilita o acesso e a recepção simultânea de conteúdos diversos - filmes, música, imagens, textos - em qualquer lugar do mundo com acesso à rede e um dispositivo adequado. O livro em tela alcança uma acessibilidade imediata (k).

Resta ainda a pergunta sobre o quanto a recepção das mídias digitalmente mediadas é padronizada. No que diz respeito ao livro em tela, uma recepção padronizada da obra é limitada pela mediação necessária da linguagem escrita. Desde que o texto escrito faculta ao leitor estabelecer seu próprio ritmo e tempo de leitura, bastante variável para cada leitor, mesmo a disponibilização universal do acesso ao livro na tela não é suficiente para promover uma leitura inteiramente padronizada, ainda que esta figure como uma tendência cada vez mais acentuada. Em relação ao livro tradicional, pode-se dizer que a semipadronização (l) - facilmente observada nos livros escolhidos pelos leitores - mantém-se como categoria imanente do livro em tela, embora a proximidade de uma padronização efetiva seja agora maior, devido à acessibilidade imediata que a ubiquidade dos meios digitais assegura, favorecendo o consumo e a visualização do livro em tela em detrimento da leitura em si.

 

Categorias imanentes do livro em tela: discussão

Elencamos, ao longo desta pesquisa, as seguintes categorias imanentes do livro em tela: a) efemeridade; b) bidimensionalidade; c) alta-portabilidade; d) inconstância do fundo; e) disposição em rede; f) responsibilidade; g) inflexibilidade; h) multifuncionalidade; i) personificação; j) conservação temporária; k) acessibilidade imediata; e l) semipadronização. É necessário sublinhar que essas categorias não constituem invariantes, uma vez que se articulam à experiência dos leitores. Acompanham, portanto, uma estrutura de experiência que se transforma, junto com a leitura do livro nos dispositivos digitais. Por isso, é preciso enfatizar que as categorias imanentes do livro em tela são expressão da maneira como os leitores as percebem, em seus aspectos imagéticos. Necessário destacar, ainda, que não é pretensão deste artigo esgotar um tema complexo como a descrição do livro em tela, que ensejaria maiores explicações sobre cada uma das categorias aqui apresentadas, pelo menos. Espero, contudo, que a exposição realizada neste artigo seja suficiente para oferecer uma melhor compreensão acerca das condições materiais que atravessam a leitura digitalmente mediada do livro, bem como dos modos pelos quais estas irão se articular às experiências de leitura e suas contingências atuais.

A passagem do papel às telas não constitui o primeiro golpe a atingir a leitura desde os tempos de Gutenberg. Os meios eletrônicos de comunicação de massa - rádio, cinema e televisão - já havia se tornado substitutos para um grande conjunto de experiências outrora possíveis apenas com recurso do livro. A própria invenção da máquina rotativa, possibilitando a impressão massiva de jornais e sua rápida difusão, contribuíra para alterar a experiência do leitor com o escrito, vendido como informação. A informação hoje tornou-se um medium da leitura em tela. Com o declínio da experiência (Benjamin, 2012) e a transformação das condições para a formação cultural do indivíduo, o tempo dedicado à leitura de livros fora empurrado para as últimas horas da noite. Lia-se livros para dormir, enquanto as primeiras horas do dia eram dedicadas aos jornais, leitura para despertar. Esses hábitos estão se modificando novamente. A literatura digitalmente mediada agora também nos faz acordar: sua função como arte é alterada. Mediados por novas e remediadas media, o livro e as imagens literárias buscam novos lugares, encontram novos enquadres. Quem se move hoje não são apenas as imagens do mundo reproduzidas sob a ilusão de movimento oferecida pelo cinema, mas a própria tela. A composição figura-fundo adquire uma instabilidade constante, assim como os próprios textos. Os espaços se modificam nesse baile multimidiático, no mesmo passo em que o tempo se encolhe, aproximando-se mais e mais das bordas do presente. Um novo modelo de atenção é outrossim requerido, diante de conjuntos de imagens desprovidas tanto de ponto fixo, onde ancorar a perspectiva, quanto de um horizonte determinado a alcançar. Torna-se uma questão saber se, perante tamanha instabilidade que passa a reger nossa experiência, o livro em tela pode ainda oferecer aprendizado, projeto, resistência e/ou contraponto. Isto é, se existe lugar e função para a literatura no contexto da digitalização da cultura e quais seriam eles. E ainda, como a leitura de livros participará na configuração de novos modelos formativos, educacionais e de constituição subjetiva - questões que dão ensejo a novos estudos.

 

Referências

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Recebido em 16/06/2016
Aprovado em 22/11/2017

 

 

1 Sobre o efeito da luz predominantemente azul emitida pelas telas para o ciclo circadiano e a compreensão do texto, conferir Cajochen, 2011.

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