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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.3 São João del-Rei jul./set. 2017

 

ARTIGOS

 

A experiência de ser trabalhador na assistência social: imagens de vidas implicadas com o campo da desigualdade social

 

The experience of being a worker in the social assistance: images of life involved with the field of social inequality

 

La experiencia de ser trabajador en la asistencia social: imágenes de vidas implicados con los campos de la desigualdad social

 

 

Allan Henrique GomesI; Letícia de AndradeII; Kátia MaheirieIII

IMestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutorando em Psicologia na UFSC
IIGraduanda em Psicologia e monitora do Laboratório de Psicologia Social Comunitária na Associação Catarinense de Ensino - Faculdade Guilherme Guimbala - Joinville/SC
IIIGraduada em Psicologia pela UFSC. Mestre e Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e estágio pós doutoral na UNICAMP

 

 


RESUMO

O presente texto apresenta os resultados de uma atividade realizada em um percurso de formação, com ênfase no recurso imagético, para trabalhadoras da proteção social básica do Suas/Joinville-SC. A atividade analisada diz respeito à elaboração de uma narrativa imagética, resultado do convite feito às profissionais para realizarem um projeto de filme expressando nele suas experiências com seus respectivos espaços de trabalho. A orientação teórica e metodológica deste trabalho foi a Psicologia Social em diálogo com algumas leituras e conceitos de Jacques Rancière. A pesquisa possibilitou pensar o modo como a constituição do trabalhador da Assistência Social é perpassada por questões relativas a essa política pública, mas também pelas relações, dilemas e práticas do trabalho em que a presença do profissional não se faz de modo passivo, mas é visceralmente sentida e significada pelas experiências que participam do trabalho socioassistencial.

Palavras-chave: Assistência Social. Proteção Social Básica. Audiovisual. Desigualdade Social.


ABSTRACT

This paper presents the results of an activity performed on a training course with emphasis on imagery feature, for workers of basic social protection SUAS / Joinville - SC. The analyzed activity concerns about the development of a imagery narrative, outcome of a invitation made to the professionals to produce a film project expressing their experiences with their workspaces. The theoretical and methodological orientation of this work was the Social Psychology in dialogue with some readings and concepts of Jacques Rancière. The research allowed to think how the constitution of the Social Assistance worker is permeated by concern questions about this public policy, but also the relations, dilemmas and in the work practices where the presence of the professional is not done passively, but is viscerally felt and signified by the experiences participating in the social assistance work.

Keywords: Social Assistance. Basic Social Protection. Audio visual. Social Inequality.


RESUMEN

El presente texto presenta los resultados de una actividad realizada en un itinerario de formación, con énfasis en recursos imaginéticas, para trabajadoras de la protección social básica del SUAS/Joinville - SC. La actividad analizada dice acerca de la elaboración de una narrativa imaginéticas, resultado de la invitación hecho a las professionales para hacer un proyecto de película expresando en él sus experiencias con sus respectivos espacios de trabajo. La orientación teórica y metodológica de este trabajo fue la Psicología Social en diálogo con algunas lecturas y conceptos de Jacques Rancière. La investigación permitió pensar la manera cómo la constitusión del trabajador de la Asistencia Social sobrepasa por cuestiones relativa de esta política publica, sino también por las relaciones, dilemas y prácticas del trabajo dónde la presencia del profesional no se hace de un modo pasivo, pero es profundamente sentida y relevante por las experiencias que participan del trabajo socioasistencial.

Palabras clave: Asistencia Social. Proteccíon Social Básica. Audiovisual. Desigualdad Social.


 

 

Introdução

A participação do Estado no campo da desigualdade social é uma discussão longínqua e com desempenhos duvidosos nas formas de governo realizadas pelo poder estatal. A "assistência social" foi, durante algum tempo, concebida como ajuda material destinada àqueles que não desfrutavam de recursos próprios para a sua subsistência, ou seja, o legado assistencial foi marcado pela beneficência e filantropia. No Brasil, a Assistência Social foi compreendida como direito assegurado ao cidadão na Constituição de 1988, entretanto, somente aplicada como política pública com a instituição, em 2005, do Sistema Único de Assistência Social - Suas (Yamamoto & Oliveira, 2010).

Do final dos anos 1980 até a implantação do Suas, algumas medidas públicas fortaleceram os preceitos constitucionais relativos à Assistência Social, tais como a Lei Orgânica da Assistência Social (1993). Outras ações também afirmaram o caráter público dos direitos sociais e tiveram efeitos no setor socioassistencial, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Mas foi, em 2004, com a Política Nacional de Assistência Social (Pnas) que se desenhou um sistema com a primazia da responsabilidade estatal, integrado nos três níveis de governo e organizado em modalidades de proteção social. A Pnas também injetou no Suas princípios de gestão como a descentralização e o controle social, os critérios de financiamento e a exigência de conselhos, fundos e planos de Assistência Social (Yamamoto & Oliveira, 2010).

Quanto à execução dos serviços socioassistenciais, o Suas foi gestado em dois níveis articulados de atenção: 1. A Proteção Social Básica (PSB), que compreende um arranjo de atividades socioassistenciais destinado às pessoas e famílias em situações de vulnerabilidade pessoal/social e com ênfase no fortalecimento da convivência familiar e comunitária. 2. A Proteção Social Especial (PSE), que atende famílias e indivíduos em situação de violação de direitos, condição geradora de risco e comprometimento dos vínculos familiares e comunitários. A PSE divide-se em média e alta complexidade e, no caso dessa última, a estratégia principal é o acolhimento institucional (Yamamoto & Oliveira, 2010).

Compreendemos que o Suas está ancorado em normativas, legislações e em princípios constitucionais que comprometem o Estado com a proteção social de seus cidadãos. Contudo, entendemos também que a política social não se faz somente por ato legislativo. No plano sócio-histórico as práticas efetivamente protetivas vão sendo negociadas na convivência dos serviços, dos novos e velhos serviços instituídos, nos diálogos e disputas entre as categorias profissionais, nos interesses partidários e econômicos que marcam a ação de sujeitos em cargos públicos e, ainda, pelas tensões que também ocorrem na relação dos serviços públicos com os seus usuários - sujeitos que, especificamente no caso da Assistência Social, são marcados pela experiência da exclusão e da desigualdade social.

Esta compreensão relativa às condições do trabalho na política social tem sua orientação teórica e metodológica na Psicologia Sócio-Histórica, uma perspectiva que tem como pressuposto que as relações sociais são constitutivas do sujeito. Essas relações são processos semióticos mediatizados e forjados por múltiplos fatores que configuram as dimensões históricas e culturais, sem perder de vista os aspectos singulares de uma experiência/existência (Maheirie, 2002).

Nesse sentido, esta pesquisa privilegiou não somente os princípios da gestão pública e seus aspectos históricos e normativos. Na verdade, as diretrizes técnicas e a produção de documentos legais relativos à Assistência Social vêm se multiplicando e exigindo conhecimento especializado e interdisciplinar. Sendo assim, além do entendimento dos domínios específicos, das nomenclaturas e siglas que batizam os serviços e suas funções, temos buscado interlocução com conceitos que permitam flagrar a configuração do sensível nesse setor. Ou seja, o modo como pensar, sentir, agir, trabalhar e estar nesse contexto da proteção social (Suas) passa por atravessamentos históricos e culturais e remete a relações e concepções de mundo que extrapolam em muito o campo específico da Assistência Social.

Para entender a dimensão sensível que ordena o setor socioassistencial, temos feito interlocução com a obra de Jacques Rancière, um filósofo contemporâneo que compreende a igualdade em uma perspectiva ontológica e, portanto, nega a existência de qualquer arkhé fundante na sustentação da desigualdade. Rancière (1996), analisando a estética como realidade própria da configuração do sensível e, portanto, ordenadora das experiências humanas, compreende o ato político como uma quebra do sensível. Essa ruptura ofende um plano de relações justamente porque flagra uma igualdade impensável e não percebida até então.

Dito de outra forma, "há política porque nenhuma ordem social está fundada na natureza ou em uma lei divina" (Pallamin, 2010, p. 7), o que permite pensar que a desigualdade em toda a sua extensão histórica e com seu caráter avassalador de desumanizar/desigualar o humano, ainda assim, não altera o princípio de uma condição ontológica que implica na igualdade de todo humano com qualquer (outro) humano.

Quando o autor afirma o princípio da igualdade como uma condição ontológica, opera um giro discursivo importante. Rancière (1996) não propõe saídas utópicas à questão da desigualdade, antes afirma o dissenso como conflito sempiterno da sociedade. O giro no pensamento que opera, não diz respeito à promoção de uma teoria de como seremos iguais, mas, antes, na afirmação de que a igualdade é a primeira forma e a "razão/sentido" que mobiliza a emergência política. "A igualdade é trabalhada como ponto de partida a alimentar as lutas de natureza política e não um objetivo a ser atingido, uma meta ou um destino que nunca chega" (Pallamin, 2010, p. 8).

As condições de cidadania e o exercício dos direitos sociais são realidades que se alteram em cada tempo, expressando a constante lógica do dissenso, condição característica da história política das sociedades. Esses conflitos são nutridos por aqueles que lutam para se fazerem percebidos como sujeitos de sua época e lugar (Rancière, 1996).

O dissenso instaura a dúvida, abre o questionamento de que existe contingencial sem uma parte nessa partilha, desnaturalizando a distribuição de lugares sociais. Mas esse desentendimento não significa falta de informação ou desconhecimento. "O dissenso, agindo na divisão sensível entre dois mundos, não diz respeito apenas às palavras, mas também à posição mesma daquele que fala, à sua situação - quem fala o que, a partir de onde" (Pallamin, 2010, p. 8).

Interessante pensar que o dissenso pode ser uma espécie de dano no senso comum, uma fratura em determinada racionalidade que até então suportava formas de relações sociais, costumes, lugares, sujeitos em uma condição privilegiada na ordem naturalizada da desigualdade, que "só é, em última instância, possível pela igualdade" (Rancière, 1996, p. 31). Ou seja, ao afirmar uma desigualdade histórica constitutiva e permanente no mundo, afirma-se que a igualdade entre todos e quaisquer seres humanos é radicalmente a primeira realidade do próprio humano.

Para Rancière (1996, p. 31), são esses raros acontecimentos de verificação da igualdade que podem ser qualificados como ato político. "Existe política quando pela lógica supostamente natural da dominação perpassa o efeito dessa igualdade". Assim, o que nos parece óbvio do ponto de vista da reflexão, ou seja, que a desigualdade não se sustenta em nenhuma forma de essência natural, não é o que é sentido e refratado nas relações ordenadoras do senso comum. Os pressupostos conceituais da obra de Jacques Rancière orientaram teórica e metodologicamente esta investigação.

O trabalho de campo desta pesquisa foi realizado a partir de um projeto de formação no qual participaram trabalhadoras dos serviços de proteção social básica da Secretaria Municipal de Assistência Social de Joinville (SAS). Essa agenda de formação foi desenvolvida em parceria com a coordenação da Gestão do Trabalho da SAS e configurou-se como projeto de extensão universitária.

A finalidade dessa formação foi promover encontros com as trabalhadoras de diferentes serviços da proteção social básica sobre suas trajetórias de trabalho na Assistência Social, tendo como recurso dos encontros o trabalho com imagens e filmes. Neste texto apresentamos os resultados e discussões relativos ao primeiro encontro da formação. O percurso formativo contemplou sete encontros em um período de cinco meses.

O presente texto visa apresentar cenas de pesquisa que retratam e problematizam as experiências e as condições de ser trabalhador(a) no campo da desigualdade social, especificamente, no âmbito da PSB/Suas. Para isto, a análise dispõe de narrativas imagéticas produzidas pelas próprias trabalhadoras na pesquisa-intervenção, resultante do convite para realizarem um projeto de filme expressando nele suas experiências de trabalho no Suas. Sendo assim, consideramos que a atividade imagética realizada nesta investigação, ao extrapolar a predominante estratégia verbal de produção das informações na pesquisa, pode potencializar compreensões desse campo, tanto nos resultados e discussões da pesquisa como também para as trabalhadoras participantes.

 

Método

A presença das trabalhadoras ocorreu mediante o convite da Gestão do Trabalho da SAS aos serviços que integravam a Gerência de Proteção Social Básica da SAS. Também para garantir a participação efetiva das trabalhadoras e oferecer uma contrapartida ao programa de formação, a SAS dispensou as profissionais de seus locais de trabalho nos dias agendados para os encontros, de modo que as atividades da formação foram contadas como horas trabalhadas.

Participaram deste encontro 16 trabalhadoras, entre assistentes sociais, pedagogas, psicólogas e terapeutas ocupacionais dos seguintes serviços: Centros de Referência de Assistência Social (Cras), Centro de Convivência do Idoso (CCI) e Serviço de Referência de Proteção Básica (SRPB). O encontro analisado neste texto aconteceu na "Casa dos Conselhos", um espaço habitualmente utilizado pela SAS para reuniões e formações e teve como tema "a constituição dos trabalhadores na Assistência Social".

Depois de uma apresentação inicial, na qual discorremos brevemente sobre o programa de formação, com datas, temas e facilitadores convidados, conversamos com o grupo sobre o trabalho de pesquisa que ocorreria nesse processo, realizando a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e discutindo com elas, especialmente, a necessidade de gravação em vídeo dos nossos encontros.

No TCLE solicitamos o consentimento para a gravação em vídeo1 dos encontros da formação. Um fator que corrobora com a manutenção da câmera de vídeo ligada em todo o percurso formativo, diz respeito à familiarização com a câmera pelos participantes. As filmagens se configuram como uma técnica de documentação que permite visualizar e produzir inteligibilidades acerca de "vários aspectos do universo pesquisado" (Minayo, 2015, p. 63).

Pode-se dizer que o encontro da pesquisa foi orientado pela perspectiva das oficinas estéticas (Reis & Zanella, 2015), iniciando com uma atividade em pequenos grupos que deveria ter como produto final uma narrativa imagética (simulando rolos de filme) e, em seguida, a apresentação dessas narrativas de cada grupo. As oficinas estéticas são dispositivos no trabalho com grupos, mediadas por atividades criadoras. Também podem ser definidas como ferramentas de intervenção psicossocial, pois promovem o exercício de coautoria e, por meio de atividades com artes plásticas, fotografia, audiovisual, jogos, etc., visam fomentar processos criativos.

As oficinas estéticas também podem ser entendidas como dispositivos de pesquisa-intervenção. Nesse sentido, associamos o encontro da pesquisa ao conceito de in(ter)venção, conforme pensado por Axt (2008, p. 91), como um "ato que não se reproduz, sendo único e irreversível, emergindo exatamente num certo espaço-tempo, o contexto para o qual foi inventado".

Para a criação dos projetos de filmes foram distribuídos rolos de papel, simulando os rolos de filmes cinematográficos. As imagens foram retiradas por nós de diversas revistas e distribuídas na forma de banco de imagens para as profissionais elaborarem uma narrativa imagética. Na construção do banco de imagens, não foram feitas seleções, as imagens foram retiradas das revistas para facilitar a produção das narrativas.

O que analisamos desse processo inicial da formação são as elaborações imagéticas das profissionais em relação ao trabalho socioassistencial. No momento em que a atividade foi colocada, as profissionais prontamente acolheram a proposta iniciando diálogos, nos pequenos grupos (quatro pessoas), significando as imagens oferecidas relacionando-as às suas trajetórias e vivências no campo da Assistência Social. Elaboraram quatro narrativas, uma por grupo, na forma de projeto de filmes que foram exibidos no fim do encontro, possibilitando que as narrativas de cada grupo fossem assistidas por todas as participantes.

Nessa última parte do encontro, as equipes apresentavam o seu "rolo de filme", passando as figuras por uma cartolina recortada na altura dos rolos (25 cm). À medida que exibiam as cenas enquadradas na abertura da cartolina, elas contavam o modo como significaram as imagens utilizadas.

As narrativas imagéticas foram analisadas, com as transcrições feitas, a partir do que as trabalhadoras contaram durante a exibição. A atividade realizada possibilitou narrativas da prática profissional daquilo que está compartilhado no que se refere ao ser trabalhador. A apresentação dos resultados e discussões deste trabalho será realizada por cenas.

A aproximação teórica e metodológica com a obra de Rancière (2014) também contribui para pensarmos na montagem das cenas. Consideramos que as cenas na pesquisa não expressam simplesmente os relatos cotidianos, mas são elaborações dialógicas e polissêmicas que podem sintetizar certo consenso no campo investigado. As cenas deflagram o encontro de lógicas vigentes na ordenação e configuração de uma partilha de sentidos em uma superfície de relações que podem transitar entre os níveis macroinstitucional e microssocial.

No caso desta pesquisa, as cenas investigadas foram mediadas por uma objetivação imagética, significada na polissemia das situações vivenciadas e que nem sempre tem o seu espaço de comunicação no setor de trabalho da política social. As cenas contemplam diversas realidades, parecem se localizar no inverso de algumas compreensões, pois demarcam que não existe nada a priori que explique, enquadre ou categorize a experiência. O que o trabalho de pesquisa faz é reunir experiências, neste caso, contadas na forma de narrativas imagéticas, que forjam essas cenas.

A montagem da cena na pesquisa é um exercício de observação dos detalhes da vida que expressam questões do campo no âmbito de relações singulares. A cena não se liga à vontade científica de achar qualquer fenômeno com força de explicação generalizada. Logo, compreende-se que o trabalho com cenas tem potência para ser "anti-hierárquico", podendo desvelar consensos e naturalizações, na medida em que privilegia palavras (imagens, ideias, sentidos, etc.) ainda não pensadas e/ou percebidas na relação com o campo de pesquisa e conhecimento (Oliveira Junior, 2016).

 

Resultados e discussões

Os resultados desta pesquisa serão apresentados e discutidos a partir dos indícios de cenas flagradas nas narrativas imagéticas. Manter-se-á uma leitura que privilegie certa exposição dos temas, imagens e ideias produzidas por cada um dos quatro grupos que foram organizados com a tarefa de montar um projeto de filme.

A questão disparadora apresentada ao grande grupo foi: que filme poderíamos fazer sobre o trabalho na Assistência Social?. A reação imediata foi de uma assistente social: uma mistura de drama, romance, alegria. A resposta parece fazer referência à multiplicidade das vivências no campo socioassistencial, especialmente pela comparação com gêneros cinematográficos diversos, fato que, indiciariamente, aponta os sentimentos ambíguos que o trabalho nesse setor pode mobilizar. Curiosamente, elas não falam em comédia, mas referem a alegria, algo que pode indicar certa realização profissional. E as respostas se seguiram por meio da citação de outros gêneros cinematográficos: terror [risos], e ainda uma psicóloga acrescentou: suspense tem bastante. Todas essas citações de gênero sinalizam a diversidade de sentimentos e situações vivenciadas no Suas, mobilizando múltiplos sentidos, inclusive, conflitantes entre si.

Cena 1 - Pão com manteiga ou o "básico" da proteção social

Uma das narrativas imagéticas foi intitulada "confissões e reflexos" e nela foram expressos alguns aspectos do cotidiano das trabalhadoras nessa política pública. Parte dessas confissões remete a certa insegurança sobre o próprio fazer socioassistencial. A narrativa já inicia revelando que o trabalho nesse setor é movido muito mais pelas dúvidas do que pelas certezas daquilo que configura a função das profissionais.

Nesse projeto de filme também trouxeram para o grupo uma imagem que marcou a equipe de pesquisa. Trata-se do "pão com manteiga" (ver Figura 1) - no tempo em que selecionávamos páginas de revistas a fim de compor um banco de imagens para ser utilizada na atividade que seria proposta, a referida imagem foi pensada por um dos pesquisadores com certa referência à "fome" que bate à porta dos serviços. Por mais que não selecionamos imagens com uma intencionalidade determinada para o uso delas, até porque organizamos um banco de imagens com a maior diversidade de revistas que nos foi possível, é involuntária a associação e/ou prévia leitura que realizamos de imagens na vida.

 

 

Na elaboração da narrativa, o "pão com manteiga" passou a ser o "pão com margarina", simbolizando a escassez de recursos (ambientes não adequados, falta de estrutura, equipamentos arcaicos, caos e o tempo que corre, entre outros ditos na apresentação do filme). Elas viram nesse popular alimento da vida do brasileiro uma referência à administração dos serviços, em que no dia a dia a partir do pouco que se tem para o trabalho (recursos mínimos de trabalho), faz-se necessário que as profissionais recombinem cotidianamente esses recursos básicos como forma de garantir práticas de trabalho dignas aos usuários que demandam atendimento.

O xerife entre pessoas falando ao telefone é uma montagem que elas significaram como sendo a relação entre as histórias de vida com o aparato legal que sustenta a política da Assistência Social: "nós temos leis para seguir, que nos orientam em nosso trabalho, então, além das histórias, nós precisamos estar por dentro das leis".

O caráter legal na Assistência Social está relativamente ligado às ações socioassistenciais de garantia de direitos, embasadas constitucionalmente e sistematizadas a partir do Suas. Entretanto, apesar dessa direção equitativa assumida pelo setor público da Assistência Social na operacionalização de serviços e estratégias potencializadoras de vidas no enfrentamento da desigualdade social, não se pode abandonar o pensamento crítico e a problematização das relações sociais, especialmente quando tratamos do "sensível" no diálogo com Rancière (1996, 1999).

Concordamos com Lemos (2013, p. 175) que "a visão de corpos em perigo e corpos perigosos nos auxilia a problematizar a lógica que percorre a judicialização da assistência em toda a sociedade", ou seja, há na Assistência Social a existência de uma relação de forças que ultrapassa os limites do próprio campo da gestão da assistência, naturalizando toda a história relativa à maneira como a cultura capitalista instituiu modos de sentir e perceber a desigualdade social.

Acreditamos já estar claro que a reflexão que estamos desdobrando não tem o propósito de responsabilizar os profissionais pela condição do estado burocratizado da Assistência Social ou tampouco assumir a defesa liberal de comprometimento individual, mas nisso também se compreende aquilo que por elas é pronunciado como "angústia".

No delineamento de ações da política pública de Assistência Social, desde a sua institucionalidade federativa na forma de um sistema único, até as relações cotidianas dos serviços, o Suas não acontece somente regido pela normativa do direito (leis), que tem como horizonte a igualdade de todos perante a lei, mas, também, sofre os efeitos de uma sociedade configurada por uma ordenação sensível hierarquizada, na qual a desigualdade ainda funciona, em quase todos os planos dessa sociedade, como a regra das relações sociais.

Cena 2 - (Des)encontros (des)iguais

Em outra narrativa também apareceram elementos que ajudam a compreender um pouco dessa "angustia" do trabalhador social. O grupo organizou o projeto de filme tendo como trilha sonora durante a exibição da narrativa a música "Não vou me adaptar", da banda Titãs (1985).

 

 

No filme elas fazem referência ao início da trajetória profissional (subentende-se que estão falando da própria experiência), quando alguém ingressa acreditando no ideal da transformação social pela política pública. Afirmam que há nisso um "desejo que não se pode perder", que não podem se tornar "insensíveis à realidade social", ao mesmo tempo em que previnem a qualquer outro profissional do setor socioassistencial de que é preciso "ter filtros" para não adoecer no envolvimento com as histórias contadas pelos usuários.

A máxima do movimento de ambiguidade na experiência de ser trabalhadora no campo da desigualdade social aparece quando elas aconselham, no próprio filme, ser necessário "acolher e distanciar". Com isso, subentende-se que parte da angústia diz respeito às impotências de (quase) nada poder fazer diante da história do outro e, ciente dela, agora se faz participante e tendo a noção de que não vai transformá-la como um dia acreditou que poderia fazer.

Com isso, compreendemos que o campo da Assistência Social constitui-se um território propício às experiências inéditas. Um território que, ao mesmo tempo em que reafirma o instituído pelo senso que contorna os (não) lugares dos sem parcela (Rancière, 1996), também forja encontros com outras formas de vida e até mesmo mundos. Nesses encontros a "dor" como conhecimento confuso e pensamento não pensável (ou seja, não significado fora do plano experimental da dor) mobiliza um processo de subjetivação e a emergência de um sujeito peculiar, justamente pelos avessos vividos e "assistidos" no campo socioassistencial: o trabalha-DOR.

A prática socioassistencial se faz mediadora, em boa medida, do contato com uma realidade social mais dura. O trabalha-DOR da Assistência Social pode estar exposto a uma condição de "dor", ou mais propriamente à "angustia", como elas citam em alguns momentos. Não afirmamos com isso que o trabalhador do Suas experimenta um ato político, tampouco atribuímos uma natureza "dissensual" ao trabalho nesse contexto. Porém, vale ressaltar que investigar experiências relacionadas à desigualdade social pode desvelar outras formas de partilha do sensível, linhas de dissensões no comum ou, ainda, danos nessa realidade:

O dano é simplesmente o modo de subjetivação no qual a verificação da igualdade assume figura política. [...] O dano institui um universal singular, um universal polêmico, vinculando a apresentação da igualdade, como parte dos sem-parte, ao conflito das partes sociais. (Rancière, 1996, p. 51)

Nesse sentido, a desigualdade social é uma realidade que na Assistência Social pode afetar algumas normativas capitalísticas tão visceralmente consensuada sobre os modos de percepção da miséria, das violações e daquilo que está à margem. A partir disso, não é coerente afirmar que a exposição à desigualdade pode por si só gerar um processo de dissenso nesses modos perceptivos que configuram o campo comum que marca as relações entre humanos, especificamente, na marcação das diferenças sociais, por exemplo, profissionais e usuários.

A distribuição desigual da vida, apesar de ser constantemente naturalizada e/ou relativizada, tem seus indícios. Ao trabalhador esses modos de ordenação, ainda que bem orquestrados, podem manifestar seus efeitos levando-os a suspeitar daquilo que percebem, cheiram, escutam e até mesmo tocam em seu cotidiano de trabalho. É bom lembrar que alguns desses sujeitos não estariam nesses lugares se não fosse pelo trabalho na política pública e, portanto, não estariam expostos a essa conjuntura de "dor" e angústia. Na última cena, voltaremos a falar das possíveis compreensões desse afeto vivenciado pelas trabalhadoras no setor socioassistencial.

Ainda fazendo referência ao grupo que elaborou o projeto de filme "Não vou me adaptar", uma citação delas estabelece relação entre a música do Titãs e as suas atividades socioassistenciais: "não queremos nos adaptar a um modelo de como fazer o trabalho social". A frase proferida no momento da apresentação da narrativa ao grande grupo faz referência a algumas problemáticas que as trabalhadoras entendem que atravessam os modos de trabalho nesse setor. A ideia de não se adaptar, de acordo com o contexto narrativo, diz respeito àquilo que elas entendem que trazem de suas histórias de vida para o campo socioassistencial, algumas vezes na forma de um ideal, em boa medida, construído durante a graduação. Mas também, não se adaptar, significa manter uma abertura à compreensão da vida do outro (do usuário). E ainda, não se adaptar, remete à necessidade de um cuidado pessoal. A fala de uma trabalhadora apresenta esta síntese:

para estar ali e depois ir pra casa e lidar com as suas questões, se distanciar daquilo. E ao mesmo tempo também acolher o sofrimento e fazer alguma coisa por aquele sujeito que está ali. Na trajetória também não são só dores e só dificuldades de adaptações, a gente também percebe muitas relações afetivas, muito interessante no meio de todo esse contexto.

Apesar dessa discussão sobre regulação social ter sido tema de outro grupo, aqui, entretanto, a narrativa mostra a pressão da cultura sobre os usuários e os serviços. Neste primeiro, o desejo por resistência é diante das normativas que regem a própria política pública.

Antes de problematizar com maior ênfase a experiência de outras imagens que possam surgir da vida/dor nos territórios da exclusão social e, com isso, colocarem sob suspeitas a racionalidade do senso comum que regula a desigualdade, é preciso refletir que antes de qualquer novidade, a Assistência Social tem características de vigilância e controle do Estado sobre as populações, funcionando como prática pública na qual "se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão dos populares, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição" (Rancière, 1996, p. 372).

Relacionando a emergência do Suas com a lógica capitalista, avaliamos que o nascimento da política pública de Assistência Social, em especial sua atenção voltada "para quem dela necessitar", expressa algumas ingerências do neoliberalismo. O Estado visa intervir nas demandas sociais, porém essas intervenções são "gestadas no interior da ordem burguesa", tendo como uma das funções a "suavização de tensões sociais, de forma a preservar e controlar a força de trabalho necessária à manutenção e reprodução do capital". Em outras palavras, os avanços com o Suas são inegáveis, mas não podemos deixar de problematizar que as questões são trabalhadas pelo Estado de forma parcial, não contribuindo para a extinção dos fatores que mantém a exploração (Oliveira, Solon, Amorim & Dantas, 2012, p. 560).

Com isso, o usuário da Assistência Social ainda, por vezes, é concebido como alguém que precisa ser assistido por não se esforçar para superar a condição de pobreza. Não pretendemos com isso justificar as condições da política da Assistência Social, mas, antes, problematizar o lugar de vivência e o campo de atuação de nossos sujeitos de pesquisa. Ser trabalhador nesse contexto é ser forjado por movimentos de contradição, pois a prática socioassistencial está calcada em uma perspectiva que presume a obrigatoriedade do Estado no acesso aos direitos sociais dos usuários, em contraposição aos ditames de uma cultura neoliberal que prevê no indivíduo a capacidade e os recursos para manutenção da vida, discursos comuns que também forjam/modelam seus modos de pensar e sentir o mundo.

Pensando a dimensão ordenadora dos modos sensíveis e dos processos de significação, não é difícil de compreender que na trama das relações sociais a Assistência Social se movimenta não somente pela normativa do direito que tem como horizonte a igualdade de todos perante a lei, mas, também, é produzida nas relações de mundos. E isso, também, diz respeito aos sentidos e às trajetórias dos trabalhadores desse sistema de serviços socioassistenciais.

Cena 3 - "Desobstruções de protótipos"

O terceiro grupo elaborou uma narrativa na qual problematizavam a institucionalização da vida. Nela, elas apontam que os modos de regulação social (economia, trabalho, educação, família, etc.) geram modelos de padronização nas pessoas

é o que a sociedade quer, esse quadradinho, esse padrão, todo mundo tem que ser assim, todo mundo tem que ser magra, bonita, [leve pausa] tem que produzir, tem que estudar, não pode deixar de trabalhar, se não, não presta! [...], tem que ter toda essa padronização que a sociedade hoje nos exige.

A imagem que mobilizou essa fala na trabalhadora que apresentava o projeto de filme do grupo foi a primeira da Figura 3.

Na narrativa do grupo, elas apontam que a intervenção socioassistencial "tem que ser sem certo ou errado", ou seja, a presença do Suas na vida dos usuários não pode ser uma presença moralizadora, de "enquadramento". É consenso entre as trabalhadoras que a Assistência constitui-se como espaço de afirmação da vida onde os sujeitos podem encontrar possibilidades de organização das questões pessoais, inclusive os sonhos, desejos e realizações. Entretanto, ao mesmo tempo, elas não ignoram os atravessamentos da dimensão econômica que configuram as formas instituídas de viver na atualidade, em que o trabalho ocupa lugar central (ver a segunda imagem da Figura 3).

Mesmo sentindo-se pressionadas por essas demandas econômicas "desenfreadas", elas defendem a possibilidade de fazer escolhas, que podem, inclusive, serem protagonizadas a partir dos espaços oferecidos pelos serviços socioassistenciais. Defendem também que "diferentes tipos de trabalhos precisam ser considerados" e que a diversidade dos modos de vida precisa ser concebida pelo trabalhador como forma de propor ("mostrar" "orientar") caminhos alternativos aos usuários.

A elaboração pensada na narrativa do projeto de filme indica que o trabalhador da Assistência experimenta, a partir de seu cotidiano, movimentos de contradição do capital que são forjados nesse campo de atuação. Nesse lugar social elas realizam uma prática calcada em uma perspectiva que presume a obrigatoriedade do Estado no acesso aos direitos sociais dos usuários, em contraposição aos ditames de uma cultura neoliberal que prevê no indivíduo a capacidade e os recursos para manutenção da vida, discursos comuns que também modelam seus modos de pensar e sentir o mundo.

Assim, refletindo sobre essas emblemáticas condições, refletimos a montagem da cena no processo de análise desta investigação. Nesse plano metodológico, o campo parece exprimir um pouco mais de suas próprias marcas e pode participar com certa autoria na montagem da cena, pois a montagem só é possível com o material específico do campo e dos sujeitos que dele partilham. Essa alternativa metodológica marca um posicionamento que visa negar o uso de falas ilustrativas na pesquisa, citações que supostamente confirmam a argumentação teórica sobre um determinado campo.

O título da cena "desobstruções de protótipos" tenta expressar um pouco daquilo que se pode conjecturar como uma imagem daquilo que pode implicar um trabalhador no setor socioassistencial. É curioso que elas dizem que não podem impor modos de vida aos usuários, ao mesmo tempo em que sentem que devem oferecer algum caminho: "escolhas". Esses enunciados sinalizam o quanto que suas práticas podem ser tomadas de provisoriedade, incertezas e implicações relativas aos modos de trabalho no campo desigualdade social.

Desse modo, compreendemos que a potência da atividade imagética nesse encontro foi, em boa medida, pujante para mobilizar reflexões que qualificam a oficina estética na pesquisa intervenção. Os recursos imagéticos possibilitaram, assim, não somente a produção de informações, mas, também, um espaço/tempo coletivo de significação e diálogo entre as trabalhadoras sobre suas experiências e desafios da atuação no Suas.

Cena 4 - Ver, olhar, assistir...

O quarto projeto de filme apresentou o Cras como porta de entrada da Assistência Social, listando uma série de situações (conflitos familiares, racismo e discriminação, violência, exploração, negligência, evasão escolar, mulheres sobrecarregadas com diversos e diferentes papéis) que afetam as pessoas que cotidianamente adentram nos serviços em busca de apoio e assistência. A narrativa, que intercalou palavras e imagens, foi intitulada por elas "Um pouco de nós", pois remetia à "importância do olhar diferenciado" (ver segunda imagem da Figura 4) como fundamento da "conquista da autonomia" pela pessoa e/ou família acompanhada.

No Cras fica evidente o princípio de descentralização da política com oferta de serviços em bases territoriais que expressam maiores demandas para o atendimento socioassistencial. O Cras é a "porta de entrada" na política da Assistência Social e a sua finalidade é o fortalecimento das relações familiares e comunitárias com vistas à autonomia dos sujeitos, ainda que, por vezes, ligados continuamente à política social.

A vinculação dos Cras aos territórios onde residem famílias usuárias da política de transferência de renda segue o pensamento de que é preciso conciliar o benefício financeiro às estratégias de suporte relacional de famílias e comunidades. Disso, se pressupõe que a política compreende as potencialidades das pessoas e das famílias como espaço vital para o desenvolvimento humano e, diante disso, a assistência social na sua concepção pública deve escapar das capturas históricas que impunham aos usuários comportamentos e disciplinas que fragilizavam ainda mais o processo de autonomia.

Essa perspectiva de proteção social básica, com ênfase na implantação dos Cras, teve um impacto significativo nos modos presumíveis de trabalho na Assistência Social. A presença dos Cras nas proximidades das moradias das famílias que se relacionam com os programas socioassistenciais visa ofertar serviços e atividades contextualizadas e com a participação efetiva das pessoas usuárias desse serviço.

Vale ressaltar que o Cras não tem a pretensão de ser um serviço de assistência exclusivo no território onde está inserido, mas ser a "referência" comunitária com respeito ao trabalho socioassistencial, exigindo, nisso também, uma competência técnica dialogal do serviço, ou seja, uma "lógica de trabalho em rede, articulado, permanente e não ocasional, no reconhecimento da realidade local, na sua complexidade, nas suas brechas, nas suas possibilidades de alterar o que está posto" (Alberto, Freire, Leite & Gouveia, 2014, p. 151).

Nesse projeto de filme, a primeira imagem retrata as corujas, animais que têm alta capacidade de visão e perspectiva, mais aguçada do que a visão humana. Uma dessas corujas está com a cabeça virada e, nisso, as trabalhadoras relacionam a atividade da "assistência" ao olhar, ou seja, o quanto do trabalho delas pode acontecer no "assistir", na medida em que a intervenção acontece com "um olhar diferenciado" para as pessoas e famílias usuárias dos serviços.

A imagem da "coruja" pode estar aqui sugerindo um efeito dessas discussões produzidas por elas nesse encontro de formação com a ideia de fazer um filme de seus trabalhos na Assistência Social. A inscrição do "olhar diferenciado" associado à coruja, conforme pode ser observado na Figura 4, informa sobre a compreensão das trabalhadoras de que suas perspectivas precisam estar cindidas das leituras consensuais que naturalizam a desigualdade social. O "olhar diferenciado" é uma expressão desse campo, que pode estar significando a não pactuação com o instituído e a necessidade de perceber os efeitos da desigualdade social, exigindo das trabalhadoras pensar continuamente (e complexamente) a experiência de atuar nesse setor.

Anteriormente já observamos o modo como atravessamentos ideológicos (que mobilizam o sensível) podem participar da construção das imagens que essas trabalhadoras fazem das suas trajetórias de trabalho com o campo das (des)igualdades. Mas, apesar disso, compreendemos que nas experiências sensíveis emanadas do dissenso pode residir uma potência, com um efeito mobilizador para deslocar o olhar e o lugar de onde muitas vezes percebemos o mundo, apontando para outros possíveis de sua construção.

Essas imagens nos ajudam a compreender os enlaces do processo de relação de trabalho com os dramas da desigualdade social. Falamos isso porque imaginamos que existe um corpo de conhecimentos nas práticas das trabalhadoras da assistência, algo nelas parece não se acomodar em relação àquilo que experimentam nos encontros com as desigualdades e que, quase nunca, são contemplados como saberes ou escutados como experiência de trabalho. Desse lugar sofrível, podem se tornar sujeitos com um deslocamento nos modos de pensar, sentir e trabalhar.

Com a implantação da Política de Assistência Social, as relações estabelecidas e consensuadas nesse setor podem ser problematizadas, afinal não existe lei natural que sustenta a desigualdade entre humanos. Com o estabelecimento do Suas, os modos assistencialistas e clientelistas que marcavam os programas assistenciais brasileiros foram protestados, pois o sistema parte de uma lógica de igualdade de direitos sociais. É possível compreender então, que esse processo histórico costura uma mudança na compreensão de usuário. Outrora, essa concepção era perpassada pela desigualdade, possivelmente, sem as problematizações e questionamentos que na atualidade se avolumam em torno das temáticas relativas aos direitos humanos e cidadania. Em contrapartida, com a garantia jurídica de direitos, decorrentes do caráter universalista e igualitário das políticas públicas, todos os cidadãos passam a ser vistos, a começar pela Constituição de 1988, como sujeitos de direitos (Yamamoto & Oliveira, 2010).

Essa perspectiva de análise demanda olhar a assistência em sua dimensão histórica, ou seja, exige uma análise praticamente comparativa entre aquilo que era concebido e aquilo que hoje aparece no corpo/sentido/prática dessas profissionais. Não é gratuito que a "angústia" apareça como expressão desse campo de atuação, pois aqui se refere à subjetivação do direito e daquilo que está colocado como princípio norteador do trabalho socioassistencial (ainda que por vezes inexequível).

Portanto, a angústia pode ser lida como um afeto vivenciado por uma série de fatores que perpassam esse lugar de trabalho. Em nossa leitura, essa angústia pode ser lida também como um efeito da compreensão dos direitos que, apesar de promovidos legal e conceitualmente pelo Suas, não são efetivados plenamente, em boa medida, por conta de uma lógica histórica e econômica desigual, na qual a política de assistência social não é suficiente para modificar.

A angústia pode ser também uma expressão dos modos como, mediadas pela instituição do Suas e seus princípios, as trabalhadoras sentem, vivenciam e compreendem a desigualdade social. Tem-se como hipótese que a implantação do Suas vem gerando rompimentos com aquilo que estava convencionado historicamente em torno do tratamento à pobreza.

Com a implantação do Suas, os novos modos de concepção e atuação socioassistencial convocam a rupturas das práticas clientelistas anteriormente deliberadas, e isso somente parece ser possível mediante uma negociação (ainda que ambígua e paradoxal) de sentidos, especialmente, sobre o que pode significar o pressuposto da igualdade de direitos sociais. Compreendemos que é justamente dessa trama que emanam as narrativas imagéticas e essas cenas de pesquisa que, indiciariamente, permitem pensar possíveis alterações no sensível, ou seja, nos modos de ver, sentir, pensar, agir e ser trabalhador no campo da Assistência Social.

 

Considerações finais

Apesar de estar atravessado por interesses neoliberais e, consequentemente, marcado pela suavização das tensões advindas de demandas sociais, a implantação do Suas vem operando uma ruptura conceitual e institucional com respeito às formas praticadas anteriormente em nome da Assistência Social. Ainda assim, não se pode negar a existência de pontos indigestos aos modos capitalísticos que ordenam a vida social e que, sem dúvidas, podem afetar as práticas socioassistenciais nos seus interstícios, como também interferir nos níveis institucionais, a ponto de ofender princípios constitucionais relativos à Assistência Social.

A apropriação conceitual da obra de Jacques Rancière possibilitou uma leitura do campo da Assistência Social, fazendo ver as configurações do sensível e a disposição dos modos de estar, agir, pensar, sentir, ordenar, entre outras expressões que contornam os consensos de uma política social. Com isso, assumimos uma perspectiva que reconhece que a implantação do Suas democratizou um campo social com a instituição de uma política pública pautada nos direitos humanos, mas sem deixar de problematizar a permanente presença de outros atravessamentos que, assim como o marco teórico-legal, também configuram as experiências dos trabalhadores do Suas.

O desdobramento metodológico desta pesquisa-intervenção, na forma de narrativas imagéticas, fez emergir questões e discussões com efeitos significativos nos modos de pensar e sentir o trabalho na Assistência Social. No processo de análise desses textos imagéticos (projetos de filmes), foi possível refletir alguns dos dilemas, sentidos e desafios do trabalho socioassistencial e compreender que a presença das trabalhadoras não se faz de modo passivo, mas é visceralmente sentida e significada pelas experiências que constituem o Suas, a saber, nos embates entre novas e velhas práticas, entre dimensão institucional e cotidiana, entre direitos sociais e senso comum, etc.

Finalmente, podemos considerar que o Suas, na sua concepção de direitos, sujeito/usuário e ainda perspectiva de atuação orientada para as potencialidades das comunidades e famílias, pode estar mobilizando efeitos nos modos de ser trabalhador social. Compreendemos que a presença (sistemática e direta) dos trabalhadores nesses espaços marcados pela exclusão pode estar gerando deslocamentos identitários. O Suas, nesse sentido, vem se constituindo um lugar profícuo à experimentação da alteridade, de encontros com dilemas insólitos e outros possíveis modos de relações e implicações com a desigualdade social.

 

Referências

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Recebido em 31/08/2016
Aprovado em 17/10/2017

 

 

1 Os projetos de filmes, bem como os vídeos e transcrições estão sob a guarda do Laboratório de Psicologia Social Comunitária da Associação Catarinense de Ensino/Faculdade Guilherme Guimbala (ACE/FGG).
2 Banda brasileira de Rock. "Não vou me adaptar" é uma música composta por Arnaldo Antunes e lançada no disco "Televisão", em 1985. Site oficial: http://www.titas.net/. Recuperado em 20 maio, 2016.

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