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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.1 São João del-Rei abr. 2018

 

Cartografando a atividade do educador de um abrigo institucional1

 

Mapping the activity of the educator of an institutional shelter

 

Cartografiando la actividad del educador de uno refugio institucional

 

 

Willian Mella GirottoI; Fernanda Spanier AmadorII

IMestre em Psicologia Social e Institucional - Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIPós-Doutora em Educação, Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional - Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

Este artigo versa sobre uma pesquisa-intervenção que investigou a atividade de trabalho do educador em um abrigo da cidade de Porto Alegre (RS). Analisando o trabalho como atividade, operou-se com as abordagens clínicas do trabalho da Ergologia e da Clínica da Atividade. Como estratégia metodológica, seguiram-se pistas do método da cartografia usando as seguintes estratégias: participação nas rotinas e proposição de coletivos de análise do trabalho com os educadores do abrigo. A atividade desses trabalhadores implica a gestão dos afetos engendrados nas relações com os acolhidos e demais trabalhadores, que nenhuma dimensão prescritiva é capaz de antecipar. Devido ao vazio de normativas acerca dos modos operatórios do trabalho de educar, o coletivo de trabalho configura-se como recurso para o enfrentamento das provações do real. Apontam-se, assim, espaços coletivos dos trabalhadores que catalisam análises acerca de sua atividade laboral.

Palavras-chaves: Trabalho como atividade. Educador. Abrigo.


ABSTRACT

This article deals with an intervention research that investigated the work activity of the educator in a shelter in the city of Porto Alegre (RS). Analyzing the work as an activity, we operated with the clinical approaches of Ergology and Clinic of Activity. As a methodological strategy, the following cartographic strategies were used: participation in the routines and proposition of collective analysis of the work with the shelter educators. The activity of these workers implies the management of the affections engendered in the relations with the sheltered ones and other workers that no prescriptive dimension is able to anticipate. Faced with the emptiness of normative about the operative modes of the work of educating, the collective of work configures itself as a resource to face the probations of the real. Thus, collective spaces of the workers that catalyze analyzes about their work activity are pointed out.

Keywords: Work as an activity. Educator. Shelter.


RESUMEN

Este artículo versa sobre una investigación-intervención que pesquisó la actividad de trabajo del educador en un refugio de la ciudad de Porto Alegre (RS). Analizando el trabajo como actividad, se operó con los abordajes clínicos del trabajo de la Ergología y de la Clínica de la Actividad. Como estrategia metodológica, se siguieron pistas del método de la cartografía, usando las siguientes estrategias: participación en las rutinas y proposición de colectivos de análisis del trabajo junto a los educadores del refugio. La actividad de esos trabajadores implica la gestión de los afectos engendrados en las relaciones con los acogidos y demás trabajadores, que ninguna dimensión prescriptiva es capaz de anticipar. Ante el vacío de normativas acerca de los modos operatorios del trabajo de educar, el colectivo de trabajo se configura como recurso para el enfrentamiento de las pruebas de lo real. Se apunta, así, espacios colectivos de los trabajadores que catalizan análisis acerca de su actividad laboral.

Palabras claves: Trabajo como actividad. Educador. Refugio.


 

 

Introdução

No presente artigo, apresentamos aspectos de uma pesquisa-intervenção que investigou a atividade de trabalho do educador em abrigo institucional destinado a crianças e adolescentes cujos vínculos familiares se encontravam rompidos. O abrigo institucional é operacionalizado por diferentes trabalhadores e volta-se para o acolhimento provisório de crianças e adolescentes. Ele deve apresentar dinâmica semelhante à de uma residência e estar inserido na comunidade, em áreas residenciais, sem distanciar-se, do ponto de vista geográfico e socioeconômico, da realidade de origem dos acolhidos.

Com a estruturação da Assistência Social como Política de Estado (Brasil, 2004), os Abrigos Institucionais encontram-se inseridos no Sistema Único de Assistência Social (Suas), configurando-se como um dos serviços da Proteção Social Especial - Alta Complexidade. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS), ao propor orientações quanto aos seus recursos humanos, destaca que as transformações pelas quais o mundo do trabalho vem passando, bem como o encolhimento da esfera pública do Estado, têm implicado na precarização nas condições de trabalho e, logo, do atendimento à população.

No que tange aos trabalhadores sociais que atuam nesse âmbito, as Orientações Técnicas aos Serviços de Acolhimento (Brasil, 2009) apontam para a existência de um histórico de desprofissionalização do trabalho no abrigo, atrelado ao voluntariado, bem como à existência da concepção de que "basta o bom coração" para trabalhar nesses serviços. Tais diretrizes apontam, então, para a necessidade de qualificação dos trabalhadores, "visto se tratar de uma tarefa complexa, que exige não apenas 'espírito de solidariedade', 'afeto' e 'boa vontade', mas uma equipe com conhecimento técnico adequado" (Brasil, 2009, p. 57).

Lima (2012) acrescenta que a caridade e o voluntariado, além da naturalização do cuidado como tarefa da mulher, figuram como vetores que marcam a invisibilidade da atividade como sendo de trabalho, nesse contexto. Além disso, a autora afirma que nessa modalidade de trabalho podemos encontrar, não raras vezes, proporção inadequada de cuidadores/as para a quantidade de crianças e adolescentes acolhidos, instabilidade no vínculo empregatício e falta de profissionalização e capacitação dos/as cuidadores/as. Além disso, alguns fazeres são tidos como mais "invisíveis", como o trabalho de cuidado com pessoas doentes ou em situação de vulnerabilidade, o que nos remete para a dimensão social do que é considerado como trabalho ou não (Masson, Brito & Sousa, 2008). Assim, por não terem o objetivo de produção de mercadorias e renda, esses fazeres, entre os quais podemos considerar a Assistência Social, são inferiorizados quando considerados em relação a outras categorias profissionais.

Para realizar o trabalho de acolhimento institucional, a equipe profissional mínima deve ser composta por um coordenador, equipe técnica, educador/cuidador e auxiliar de educador/cuidador. O coordenador é o responsável pela guarda legal das crianças e adolescentes mantidas no acolhimento, sendo exigido para o cargo formação em ensino superior e conhecimento na área de proteção à infância e juventude. A equipe técnica, por sua vez, deve ser composta por dois profissionais de nível superior (psicólogos e/ou assistentes sociais) que devem atender até 20 acolhidos, com carga horária de, no mínimo, 30h semanais (Brasil, 2006). Os educadores têm como especificidade o convívio diário com crianças e adolescentes em acolhimento, sendo exigida a formação mínima de nível médio com capacitação específica e desejável experiência em atendimento a crianças e adolescentes.

Além dos aspectos mencionados, que nos parecem justificar a importância de pesquisas realizadas com aqueles que trabalham na Política de Assistência Social, destaca-se, também, a escassez de estudos no que diz respeito aos trabalhadores de abrigos, ainda que haja abundância de estudos na área da psicologia que tomam o abrigo institucional do ponto de vista dos impactos no desenvolvimento das crianças e dos adolescentes (Cavalcante & Côrrea, 2012).

Nascimento, Lacaz e Travassos (2010) afirmam que as modificações legais introduzidas a partir 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, rompendo com a legislação anterior do Código de Menores2, são fundamentais para sustentar a garantia de direitos. Porém, ao apontarem para uma distância entre o que a promulgação de uma política de Estado sustenta e o que persiste existindo nas práticas cotidianas, as autoras afirmam que a lei não assegura a implantação de seus preceitos. Considerando que os trabalhadores sociais atuam na produção de subjetividade, conforme dizem Guattari e Rolnik (2010), entendemos que os trabalhadores sociais de abrigo institucional, educadores/cuidadores, psicólogos e assistentes sociais, entre outros, encontram-se em uma encruzilhada política e micropolítica fundamental, na qual, no mínimo, duas vias são possíveis: a reprodução de modelos ou a produção de processos de singularização que fortalecem as ações coletivas.

Foi pelas razões mencionadas que nos colocamos a investigar o trabalho de educadores sociais como atividade, recorrendo às abordagens clínicas do trabalho3, especificamente à Ergologia (Schwartz, 2000) e à Clínica da Atividade (Clot, 2006, 2010). Essas abordagens se voltam para o estudo do trabalho como atividade, isto é, como gestão operada pelos trabalhadores, e para a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real, já que a atividade consiste em um processo incessante de renormatização do trabalho devido ao encontro dos trabalhadores com elementos imprevistos que compõem o real do trabalho. Reconhecendo a impossibilidade de se trabalhar no estrito limite das prescrições, tais abordagens levam em consideração, portanto, que trabalhar é gerir variabilidades, é enfrentar obstáculos e superá-los; afinal, o trabalho é tomado como prova (Lhuilier, 2011).

Ao estudarmos o trabalho como atividade (Clot, 2010; Schwartz, 2000), a ênfase recai na processualidade do trabalho, entendendo-a como nunca finalizada, nem natural, mas como "efeito concreto de um modo de produzir, distribuir e consumir meios de vida num dado momento histórico" (Barros & Fonseca, 2004, p. 1). Isso implica fugir das dicotomias entre trabalho prescrito/realizado, singular/coletivo, corpo/mente, cognição/emoção, bem como trabalhador-trabalho, sujeito-trabalhador, concepção-execução.

Nosso objetivo com a pesquisa consistiu em produzir um plano analítico a respeito da produção de subjetividade engendrada nos processos e na atividade de trabalho a fim de cartografar seus efeitos, sobretudo, na vida dos trabalhadores-educadores que atuam em abrigos institucionais. Como estratégia metodológica, operamos com pistas do método da cartografia: análise documental, visitas ao cotidiano laboral e proposição de coletivos de análise do trabalho com trabalhadores-educadores de um abrigo institucional da cidade de Porto Alegre (Rio Grande do Sul).

O trabalho como atividade

Schwartz (2011) define a atividade em sua tessitura individual e coletiva como "produtora, matriz de histórias e de normas antecedentes que são sempre renormatizadas no recomeço indefinido das atividades" (p. 42). Afirma ele, ainda, que a atividade implica o desenrolar de protocolo normatizado, mas também um encontro de encontros, isto é, "uma combinatória sempre parcialmente renovada, uma interface sempre parcialmente ressingularizada entre meios técnicos, objetos técnicos e humanos no trabalho" (Schwartz, 2011, p. 138).

Entre o ser vivo e o meio, trabalhar implica em escolhas e reações, de modo que trabalhar é fazer uso de si (Schwartz, 2000). O uso de si desdobra-se em dois aspectos que estão em constante tensão, incitando um ao outro: o uso de si por si e o uso de si pelos outros. O uso de si pelo outro denota a heterodeterminação do trabalho, tendo em vista o engendramento histórico que produz as normas (científicas, técnicas, organizacionais, gestionárias, hierárquicas, etc.) e as prescrições e os valores que regem a atividade de trabalho (Schwartz & Durrive, 2007). Por outro lado, para além do uso que se quer ser feito de você, o uso de si por si implica um recentramento do trabalho ao redor das possíveis renormatizações singulares que criam um espaço onde o trabalhador se reconhece, imprimindo sua marca. Por sua potência de antecipação, o ser humano procura programar, organizar e enquadrar a vida e o trabalho em diferentes níveis, codificações e prescrições, o que é denominado de normas antecedentes (Schwartz, 2000).

Como não existe a norma, mas uma pluralidade de normas, Schwartz (2000) afirma que, de uma norma a outra, os processos de renormatização colocam em movimento e em debate as normas que o trabalhador encontra no universo de valores estabelecidos. Desse modo, no encontro com a situação concreta de trabalho, o trabalhador, ao estar em atividade, renormatiza e debate normas. Por outro lado, as normas antecedentes não dizem exaustivamente o que, nem como, temos de fazer, implicando um vazio de normas (Schwartz & Durrive, 2007) que convoca um processo de criação de saberes contingentes na situação a ser vivida. Em face da insuficiência das normas antecedentes, o vazio de normas dispara o debate sobre o uso de si, já que, na situação de trabalho, em atividade, é preciso criar para si normas e leis para gerir o vazio de normas.

Schwartz (2011) sustenta que a atividade, em sua dimensão de renormatização e de tratamento do vazio de normas, se faz em uma gestão coletiva. Esse coletivo nunca é dado em sua composição, isto é, não é prescrito, mas tecido na atividade. Ultrapassando o organograma e a concepção de equipe em que reinam os ideários de cooperação e colaboração, o coletivo aproxima-se da heterogeneidade, da possibilidade de juntos ser diferente.

Clot (2010) argumenta que é preciso o exercício de um trabalho sobre o trabalho, um ofício ao quadrado, coletivamente organizado. Esse trabalho coletivo de organização do trabalho envolve acordos e negociações na composição do comum que conjuga os trabalhadores em um mesmo meio para superar os conflitos do real. Sem a homogeneização do grupo, o coletivo é composto pela controvérsia e pela pluralidade das vozes que mobilizam o coletivo profissional. O autor parte do trabalho coletivo e nos leva a pensar no coletivo de trabalho, essa dimensão genérica do ofício. Inspirado no conceito de gênero discursivo, que Bakhtin cunha ao estudar os gêneros literários, Clot (2010) propõe o gênero profissional como um instrumento coletivo da atividade no embate com o real, não se restringindo a uma filiação, nem a uma normativa ou obrigação que se deve respeitar, sendo restrição e recurso para a atividade.

Como recurso da história acumulada a serviço da ação no momento em que ela acontece, o gênero se configura como um pré-elaborado social que define modos de trabalhar aceitáveis, como também como um conduzir-se em situação de trabalho, sendo assim uma memória transpessoal para predizer. Como instância coletiva do trabalho, o gênero se encontra encarnado no corpo dos trabalhadores, permitindo-lhes avaliar a si e aos outros em atividade, configurando-se como um intermediário social. É no patrimônio gerado pelo e com o gênero que o trabalhador encontra possibilidades de ação diante do real, não ficando sozinho perante suas provações.

Para situar o gênero como recurso a renovar e método a ajustar, Clot (2010) coloca os processos da estilização por meio dos quais o trabalhador imprime sua marca ao ter se apropriado das dimensões genéricas do ofício na situação de trabalho. Desse modo, o estilo não é da ordem de um interior privatizante, mas sim pessoal, evidenciando uma distância interposta pelo trabalhador entre si e o gênero ao qual pertence, somente sendo possível ser desenvolvido após a apropriação do gênero profissional, isto é, o não domínio do gênero impede a estilização e impede o trabalho coletivo. Esse processo, pelo qual o homem se apropria do meio, possibilita a variação do gênero, fazendo com que este seja sempre inacabado, não sendo um estado fixo, o que faz com que a atividade também seja móvel e inacabada.

Desse modo, o poder de agir dos trabalhadores se amplia ou é amputado na caixa-preta da atividade, até mesmo sob coação externa, evidenciando o raio de ação dos sujeitos em sua esfera profissional habitual, o que pode ser denominado de irradiação da atividade (Clot, 2010, p. 15). A ampliação do poder de agir pode se dar na descoberta de novas metas na e pela ação, o que implica na produção de outros objetivos e de outros destinatários. Já a amputação do poder de agir e o sentimento de impotência que o envolve levam ao sofrimento no trabalho, impedindo a atividade.

Por fim, o ofício, o métier, configura-se como elemento vital que conecta o trabalhador à atividade; trata-se de uma discordância criativa ou destrutiva entre quatro instâncias: impessoal, interpessoal, transpessoal e pessoal. As migrações funcionais de uma instância a outra as fazem se retroalimentarem, conservando a vitalidade do ofício, meio de realização para a atividade. Na dimensão impessoal do ofício, temos a descrição do trabalho, suas prescrições e a organização das tarefas (Clot & Kostulski, 2011), configurando-se como uma instância descontextualizada de cada situação particular, mas sustentando o ofício em suas cristalizações na organização e nas instituições. A dimensão interpessoal é composta pelas relações entre os profissionais. Essa instância pode se ampliar se deslocarmos o trabalhador da relação com os pares para pensá-lo, também, em relação com os trabalhadores que o precederam e os que o sucederão: esse patrimônio histórico profissional, também conhecido como gênero, é a instância transpessoal do ofício, no qual as pessoas se inspiram para contribuir para a humanidade. Após o ingresso em um gênero profissional, o trabalhador toma o trabalho para si, fazendo-o do seu jeito, o que caracteriza a instância pessoal do ofício. Clot e Kostulski (2011) afirmam que a supressão da instância impessoal e a eliminação da transpessoal estão no coração dos problemas envolvendo trabalho e saúde.

Sobre trabalho social com crianças e adolescentes

Problematizar o trabalho social e, mais especificamente, o trabalho relativo à Política de Assistência Social, leva-nos a atentar ao processo de transformação que ele sofre em seus enlaces com as mutações pelas quais passa o capitalismo. Silva (2004) propõe pensarmos em uma primeira configuração do social caracterizada por um modelo social-assistencial, no qual um conjunto de práticas leva à criação de equipamentos institucionais, tais como asilos, hospícios, orfanatos, entre outros, a fim de atender a determinados segmentos populacionais. Tais equipamentos têm como objetivo proteger e integrar aqueles considerados incapazes de trabalhar. Já a segunda configuração do social emerge na segunda metade do século XIX na aurora da Revolução Industrial, rearticulando a relação entre o trabalho e a pobreza, colocando em cena as contradições do modo de produção capitalista. É nesse cenário que surgem as ciências humanas a fim de objetivar o que escapa da intersecção entre o jurídico e o econômico.

Podemos pensar que essa nova configuração do social profissionaliza o trabalho social, fazendo com que a Assistência Social se configure como trabalho, em uma política de Estado ancorado em distintos saberes. Donzelot (2001) denomina de trabalho social o fruto do agenciamento estratégico das instâncias judiciária, psiquiátrica e educacional, que emerge no fim do século XIX e que conjuga uma série de profissões, tais como as dos assistentes sociais, educadores especializados, e orientadores (animateurs), dentro da estratégia neoliberal e biopolítica de governo de populações e indivíduos. Esses trabalhadores substituem o professor primário na missão docilizadora do corpo social e não se vinculam somente a uma instituição, mas espraiam-se nos diferentes aparelhos existentes: judiciário, assistencial e educativo.

Em nosso país, no âmbito do trabalho social com crianças e adolescentes, é somente a partir do século XIX que a infância se torna objeto de ações e intervenções, com a criação das Casas da Roda ou Casa dos Expostos, na Bahia (1726), no Rio de Janeiro (1738), em São Paulo e em Minas Gerais (1831), como uma prática em que bebês eram abandonados nas instituições religiosas durante o período colonial brasileiro e em que o trabalho era predominantemente marcado pela escravidão.

Na passagem para o século XX, a questão da infância sai das mãos da Igreja e passa para os higienistas, que conjugam proteção da ordem social com assistência aos menores. Ancorada no discurso científico, a filantropia toma para si a caridade, vinculada à religiosidade, o governo das classes pobres, o que se expressa na promulgação do primeiro Código de Menores em 1927, que ganha uma nova versão em 1979, declarado o Ano Internacional da Criança, conforme decisão da Assembleia das Nações Unidas.

Com a promulgação da Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, a população de zero a dezoito anos ganha outro estatuto na sociedade brasileira: as crianças e os adolescentes passam a ser reconhecidos como sujeitos de direitos e em desenvolvimento. Não mais sob a égide do paradigma da Situação Irregular4, as políticas de atendimento à infância e adolescência passam a se ancorar na Proteção Integral, tentando substituir práticas tutelares ao mesmo tempo em que o controle estatal vai ganhando outros contornos. Por outro lado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) introduz uma cisão entre Medidas Protetivas e Medidas Socioeducativas, rompendo com a única política para os menores que colocava em um mesmo espaço menores infratores, abandonados e órfãos. Promulgado no enlace dos movimentos políticos brasileiros e das pressões internacionais, bem como da investida neoliberal que vai permeando o Brasil, o ECA tem similitude com as legislações de outros países no campo dos direitos da criança e do adolescente, sendo necessário pensar nas peculiaridades locais no que se refere a esse movimento global (Fonseca, 2004).

No mesmo fluxo dos movimentos políticos brasileiros que possibilitaram a emergência do ECA, a Assistência Social, com a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) em 1993, passa a se estruturar como uma política de Estado de caráter não contributivo. Com isso, ela passa a configurar o campo da Seguridade Social, em conjunto com a Saúde e a Previdência Social, sendo dever do Estado e direito do cidadão que dela necessitar. Desse modo, inicia-se um movimento de retirar o caráter histórico caritativo, benemerente, tutelar-assistencialista, clientelista e focalizado da proteção social.

Com a criação do Sistema Único de Assistência Social, a Assistência Social passa a se estruturar em rede, dividindo-se em Proteção Social Básica (materializada nos Centros de Referência em Assistência Social - Cras) e Proteção Social Especializada (PSE), dividida em Média Complexidade e Alta Complexidade, o que exige uma articulação entre os diferentes estabelecimentos da rede socioassistencial em suas diferentes modalidades de proteção. Além disso, esses serviços e suas ações intersetoriais devem ter estreita interface com o sistema de garantia de direitos, exigindo uma gestão compartilhada com o Poder Judiciário, Ministério Público e outros órgãos e ações do Executivo.

A partir das considerações a respeito do trabalho social realizado com crianças e adolescentes, a linha indagativa que perseguimos foi a seguinte: por um lado, tal trabalho consiste em plano de intervenção do Estado sobre as populações e, por outro, envolve o desafio de fazer política efetivamente pública com as populações5. Se, por exemplo, pela primeira dimensão, os trabalhadores sociais podem atuar a serviço das engrenagens da maquinaria estatal servindo de instrumentos do capitalismo pela produção de um capital humano que busca garantir uma criança ou um jovem que "dará certo" em uma direção individualizante, por outro, podem favorecer a diferença e os coletivos.

Estratégia metodológica: cartografia para análise do trabalho como atividade

Ao recusar o isolamento do objeto das conexões com o mundo e de suas articulações históricas, conforme os métodos que fundaram a ciência moderna, o método cartográfico configura-se como estratégia metodológica para a pesquisa da atividade (Teixeira & Barros, 2009). A cartografia busca orientar o trabalho de pesquisa de modo não prescritivo, isto é, não partindo de regras prontas e de objetivos preestabelecidos. Assim, a cartografia reverte o sentido tradicional do método metá-hódos feito de metas para percorrer um caminho em hódos-metá, ou seja, em caminho pelo qual se dão os encontros, de modo que cartografar não se trata de uma prática sem direção, já que ela traça, no percurso, suas metas (Passos & Barros, 2010).

Em vez de procedimentos que buscam assegurar o acesso à verdade, o método cartográfico opera com pistas que põem em movimento o processo de pesquisa. Com as pistas do método cartográfico, habitamos, então, o abrigo institucional no qual situamos nossa pesquisa, como território existencial (Alvarez & Passos, 2010), buscando acompanhar os processos em curso (Barros & Kastrup, 2010), a fim de criar um ethos da confiança (Sadez, Ferraz & Rocha, 2013), que fornecesse as condições para uma experiência do dizer (Tedesco, Sade & Caliman, 2013) o trabalho. Foi assim que utilizamos diferentes estratégias para a entrada e permanência no campo de pesquisa durante seis meses: análise documental e participação nas rotinas do abrigo, visando à proposição de coletivos de análise do trabalho com os trabalhadores-educadores.

Nossa pesquisa desenvolveu-se em um abrigo institucional para crianças e adolescentes vinculado à prefeitura Porto Alegre (RS) após a autorização institucional por parte desta. O abrigo onde a pesquisa aconteceu atende, em média, cinquenta crianças e adolescentes com diferentes idades. O tempo de permanência dos acolhidos não excede dois anos, sendo que alguns são transferidos para outros estabelecimentos da rede de assistência social do município. O estabelecimento tem uma divisão de espaços por gênero (Casa dos Meninos e Casa das Meninas), tratando-se de locais onde os acolhidos realizam as refeições e dormem, bem como realizam outras atividades.

Quanto aos documentos, analisamos o livro de registro das atividades de trabalho e um documento orientador elaborado pela Equipe Técnica e pela Coordenação Pedagógica do Abrigo, o qual contempla normas por eles elaboradas a fim de traçar fluxos de trabalho, bem como de melhorar as relações de trabalho atendendo a necessidades dos trabalhadores e das crianças e adolescentes. Podemos pensar que esse documento formaliza os saberes produzidos no trabalho como atividade. Já quanto à participação nas rotinas do Abrigo, participamos de reuniões de equipe operacional, bem como realizamos visitas semanais em diferentes turnos e momentos de trabalhos.

Há uma diversidade de vínculos empregatícios: cargos de confiança, empresa conveniada prestadora dos serviços, bem como concursados celetistas e estatutários. Os Educadores do Abrigo onde a pesquisa foi realizada, bem como os Coordenadores Pedagógicos e uma Assistente Social, são vinculados a um convênio entre o Estado e uma organização religiosa; uma Psicóloga e uma Assistente Social são vinculadas à prefeitura. Os porteiros (um durante o dia e outro à noite), os motoristas e os funcionários da cozinha e da lavanderia pertencem a diferentes empresas terceirizadas. A coordenadora, responsável legal pela guarda dos educandos6, e uma psicóloga tinham vínculos com cargo de confiança. A alta rotatividade de acolhidos acompanha, também, a rotatividade dos funcionários. Durante o período em que estivemos no Abrigo realizando a pesquisa, três educadores foram desligados e dois começaram a trabalhar.

Em cada plantão, há um educador que fica de referência para orientar os demais educadores, ocupando a função de Articulador do Plantão. Esse posto geralmente é ocupado por educador que tem mais tempo de trabalho como educador, como se após conhecer as dimensões genéricas do ofício pudesse orientar os demais. O articulador organiza a agenda de atividades externas dos educandos e as saídas com o transporte, além de mediar situações de conflito, dar suporte para educadores em situações difíceis e articular coordenação e equipe técnica, o que inclui a participação em reunião semanal da equipe operacional com os coordenadores pedagógicos e a equipe técnica. Por executar essa função e não receber remuneração complementar, o educador-articulador tem direito a uma folga semanal de um turno de seis horas de trabalho. O coordenador pedagógico, por sua vez, é responsável pela gestão dos educadores e pela articulação com o órgão não governamental responsável pelo serviço de acolhimento.

As jornadas de trabalho dos educadores se organizam conforme as normativas (Brasil, 2009) com a adoção de turnos fixos de trabalho a fim de assegurar constância e estabilidade da prestação dos cuidados, fazendo com que sempre o mesmo educador desenvolva determinadas tarefas e evitando o esquema de plantões (rodízios de 12h trabalhadas e 36h folgadas). Os educadores do turno da manhã trabalham seis horas diárias, iniciando às oito horas e terminando às catorze horas, momento em que se se inicia o plantão da tarde - que se estende até as vinte horas, quando, então, se inicia o plantão noturno, no qual se trabalham doze horas e folgam-se trinta e seis, contando com dois grupos de trabalhadores. Os Educadores trabalham, ainda, nos fins de semana, ou no sábado ou no domingo, em um plantão de doze horas.

As trocas de plantão ocorrem quinze minutos antes do início do plantão, quando, então, o articulador do plantão que está trabalhando, ou outro educador, transmite informações a respeito do acompanhamento da rotina, do clima do grupo que está em cada casa e de situações pontuais aos educadores que iniciarão sua jornada de trabalho. Nesse momento, educadores e educandos ficam dentro das casas esperando a troca do plantão acontecer. Esse procedimento passou a ser adotado a fim de evitar evasões por parte dos educandos. Para a troca de plantão, é utilizado o livro de registro, no qual todos os Educadores registram eventos que transcorreram durante o turno de trabalho até meia hora antes do término do plantão. Os registros de cada plantão iniciam-se e terminam com os nomes e o número de Educandos, bem como com o relato de situações cotidianas.

A atividade do Educador acontece no encontro entre fazer as engrenagens da organização girarem, mantendo uma ordem nas rotinas da casa, e as imprevisibilidades do real do trabalho7 que implicam uma gestão dos afetos produzidos nos vínculos com os acolhidos. Apesar de determinadas normas organizarem a rotina e a execução das tarefas, o modo como elas acontecem não cessa de variar, como podemos observar a partir da fala de uma Educadora durante as visitas: "Aqui a gente é muito tarefeiro, mas não repetitivo"8.

Trabalho como atividade no abrigo institucional - diálogos com os educadores

Apostar na produção de um ethos da confiança com os trabalhadores-educadores implicou buscar uma zona compartilhada, um inter-esse que produzisse uma experiência do dizer o trabalho. Para orientar nosso percurso nas situações coletivas de análise da atividade, recorremos às pistas propostas por Tedesco, Sade e Caliman (2013) acerca da entrevista no método cartográfico. Assim, orientando-nos pela busca da experiência do trabalho no dizer dos trabalhadores e trabalhadoras do abrigo, tomamos os momentos de debate nos coletivos de educadores sociais como possibilidade de abertura à experiência do processo de dizer, buscando, ainda, a pluralidade de vozes, isto é, o coletivo de forças que engendra o dizer no e pelo trabalho.

Após habitarmos o território existencial da atividade dos trabalhadores-educadores, buscamos propor a realização de coletivos de análise da atividade. Isso aconteceu em quatro encontros realizados com cinco educadores do turno da manhã, quatro encontros com quatro trabalhadores do turno da tarde e dois encontros com cinco trabalhadores do turno da noite. Esses encontros ocorreram dentro do abrigo após o término da jornada de trabalho em momentos nos quais visamos cartografar a dimensão coletiva em diálogo, buscando os movimentos entre as dimensões genéricas da atividade e os processos de estilização (Clot, 2010) que emergiam na experiência do trabalho no dizer, bem como acessar as dramáticas do uso de si (Schwartz & Durrive, 2007).

Compreendendo a dimensão ética9 da pesquisa e do manejo do vínculo entre pesquisador e sujeitos participantes da pesquisa, recorremos à pista cartográfica do ethos da confiança proposta por Sade, Ferraz e Rocha (2013), que afirmam que pesquisar não implica somente a utilização de um dispositivo metodológico, mas também do manejo dos vínculos entre os sujeitos implicados no processo de pesquisa, o que faz essa diretriz metodológica operar, sobretudo, em conexão e a partir da dimensão ética. Ao convidarmos os trabalhadores-educadores para participar dos coletivos de análise, informávamos os objetivos, esclarecendo que a participação era voluntária e que poderia ser interrompida a qualquer momento durante a realização da pesquisa, de acordo com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Apresentaremos abaixo algumas narrativas sobre a experiência do trabalhar como educador em abrigo institucional.

Oficio de educador: gestão das sensibilidades

O vínculo com as crianças e adolescentes acolhidos é condição de viabilidade do trabalho do Educador, implicando que ele esteja em atividade para poder investi-lo. A não existência de um acolhido idêntico ao outro faz com que o trabalhador crie diferentes estratégias para criar o vínculo, o que o lança aos embates com o real da atividade. Portanto, no calor do trabalho em situação, há uma pluralidade de vínculos envolvidos, tais quais: entre os acolhidos, entre os acolhidos e os educadores, entre os educadores, colocando o Educador e a Educadora à prova.

O trabalho de produção do vínculo implica a construção de uma zona de proximidade entre o educador e o acolhido na qual o trabalhador depara-se com um vazio de normas no calor da situação, evidenciando a dimensão não antecipável do trabalho. Tal dimensão não antecipável, remete, contudo, à abertura aos possíveis do trabalho como atividade, colocando os trabalhadores e trabalhadoras à prova na relação com o acolhido, já que, nesse encontro, há uma dimensão de inacabamento que nenhuma dimensão prescritiva pode assegurar, inacabamento esse que dispara o des-envolvimento da atividade.

O afeto, quando agressivo por parte do acolhido, exige do Educador que ele faça uma gestão de suas sensibilidades. Diz um educador: "Entendo que a agressão dela não é para mim, só que é em mim que ela passa isso porque é isso, é aquele amor que ela, né, eu te amo, mas eu te, eu sei que tu vai me entender". Esse dizer expressa a marca de uma relação de trabalho entre educador-acolhido na qual se espera que um dos lados da relação, o Educador, não responda da mesma maneira, com agressividade. Nesses dizeres, podemos acessar a dramática a ser vivida no trabalho, na tensão de ter que suportar essa expressão afetiva do acolhido e fazer um uso de si pelo outro, mesmo não sendo ele o destinatário desse afeto, remetendo ao debate do uso de si por si na trama das relações que se estabelecem no abrigo. O dizer, por sua vez, "Que tipo de educador tu é? Tu vai dar um empurrãozinho? Tu vai dar um tapinha?" remete ao debate do uso de si por si no embate com o uso de si pelo outro na trama das relações que se estabelecem no abrigo.

Lhuilier (2011) afirma que os estudos da atividade precisam extrapolar uma concepção amorfa de objeto de trabalho, já que quando o objeto do trabalho é o homem, nas profissões "de relação", há uma construção conjunta da atividade. A atividade própria do trabalhador e de quem utiliza esse serviço, que comporta o traço da qualidade do trabalho, "objeto-vínculo" com o utilizador (Clot, 2010, p. 289), convergem no setor dos serviços. O trabalho de educar e cuidar implica, então, sempre um encontro singular do sujeito-trabalhador com o sujeito-destinatário, entre trabalhadores, entre outros acolhidos, bem como do trabalhador consigo. Silva, Martins e Osório (2010), ao falarem do cuidado realizado por profissionais de enfermagem, mencionados por desenvolverem seu ofício na relação de cuidado de pessoas, apontam que, no trabalho de cuidar, além da dimensão técnica, há uma dimensão relacional. Sendo assim, além do diálogo com o gênero profissional, a participação daquele que é cuidado integra a atividade de cuidar. Perante o drama a ser vivido, o educador cria a si mesmo nas fronteiras com o outro, produzindo um campo de ações e de relações possíveis, seja do trabalhador para com o usuário, seja do usuário para com o trabalhador, atravessadas por diversas instituições.

Cartografar o trabalho do educador de abrigo institucional como atividade implica acessar a pluralidade de normas presentes nesse trabalho: normas ancoradas na trajetória pessoal, normas da organização na qual se trabalha, normas jurídicas, normas sobre a infância e adolescência derivadas dos diferentes saberes como o pedagógico e o psicológico, entre outras. Por outro lado, há um vazio de normativas sobre os modos operatórios relativos a como o trabalhador-educador deve fazer seu trabalho, o que convoca os educadores e educadoras à criação ativa no trabalho por meio dos usos de si. A ausência de normas formalizadas que possibilitaria definir o que faz e como faz um educador, os leva a recorrer às normas oriundas da sua experiência pessoal para enfrentarem o real do trabalho. Buscando muitas vezes elementos em sua formação familiar, no exercício da atividade, os educadores criam um meio para viver entre o lugar no qual o usuário de seu trabalho o coloca como trabalhador e o lugar no qual ele se põe na sua relação com o acolhido.

Assim, o trabalho do educador tensiona as fronteiras entre os aspectos profissionais e pessoais dos educadores, o que se expressa em várias direções e evidencia a complexidade desse trabalho, por entre diferentes linhas que o compõem e que precisam ser geridas na atividade de trabalho. Segue um trecho do diálogo entre educadores e pesquisador.

- Porque assim, ó, educador ele tem que ter todos os olhares. Ele não pode ser simplesmente aquele cuidador que vai dar um cafezinho, vai cuidar do cabelinho, vai colocar uma roupa.

- O tarefeiro.

- É. Sabe, vai colocar um tenisinho, aí a criança vai ficar bonitinha, sentadinha, olhando uma TV. Ou então eu aqui, ó, ou então ali no cantinho ali, ó, no cantinho brincando, ensinando a montar, ou ensinando a fazer as letrinhas. Não é assim.

- A nossa população não é assim.

- Eu tenho que virar a mesa pra cá, eu tenho que brincar com esse aqui, cuidar os outros quatro e dar uma volta e tem que tá ouvindo aqui, ó.

Nesse dizer, podemos tangenciar a experiência de dizer o trabalho como atividade que não diz respeito somente ao que os trabalhadores pensam, mas inclui o que eles fazem. Nas microgestões realizadas pelo corpo-si 10 em uma dramática que convoca ao uso de si, podemos acompanhar a produção dos modos operatórios na tensão entre um educador tarefeiro que auxiliaria na manutenção da ordem da casa e o educador que identificaria as demandas afetivas presentes em simples pedidos das crianças, expressando os saberes genéricos produzidos na experiência laboral quando do ingresso no gênero profissional. Segundo os educadores, não são somente os acolhidos que devem se adaptar à rotina institucional, mas os trabalhadores também precisam conhecer o acolhido, de modo que nesse meio se processa uma atividade de trabalho que se faz com o outro.

Ao ter "todos os olhares", os educadores apontam para um saber cultivado na experiência de trabalhar. Nesse sentido, eles saberiam identificar as demandas que se expressam pelos pedidos do acolhido. Ao dizerem existir algo mais em um pedido concreto do acolhido, os educadores expressam os saberes genéricos do ofício, entrando em atividade na criação de um meio para viver com os acolhidos. Isso, por sua vez, exige outra relação com o tempo que não é imediata, como podemos acompanhar no desdobramento do diálogo a seguir. Nesse relato podemos acompanhar o debate a respeito das normas que orientam o trabalho do educador apontando que este não se restringe ao cuidado físico, sendo necessário atentar paras as dimensões afetivas envolvidas na situação.

- Então se a gente vem só na, no cuidador, do tarefeiro, tipo assim, ó, eu preciso, porque às vezes assim, ó, a gente vê muitas pessoas que vêm aqui e olham as crianças ali. Eles tão com uma camisetinha, de calção, de chinelo, correndo, brincando, às vezes tão com tênis no pé, o outro tá do lado. Eles tão brincando, eles tão conversando. As adolescentes tão lá sentadas ali, uma tá brincando com uma bebê ou, sabe, tá ai, traz água aqui, ela quer água. Uma tá indo buscar água. Se as crianças tão assim, e às vezes não estão assim, ó, naquela caixinha de vidro, todos bonitinhos, todos de tenizinho, meinha, lacinho. Eles não estão assim, mas a gente sabe quando as crianças estão bem.

- Isso mesmo.

- Sabe? Porque assim, ó, encontrar as crianças de bainho tomado, cabelinho arrumado, tenizinho sempre bonitinho, todas sentadas aqui, ó. Ninguém, chega, deu, todo mundo quietinho sentado aí. Isso é um educador aí, o que que um educador faz?

A descoberta de novos objetivos em atividade e com vínculo assegura a eficácia e amplia o poder de agir, fazendo com que o trabalho se desloque dos meros cuidados higiênicos, implicando, ainda, na produção de sentidos pelo e no trabalhar, de modo que o trabalhador reconhece sua contribuição para uma história coletiva (Clot, 2010). Os dizeres apontam para a centralidade da relação que se estabelece com o acolhido marcando o trabalho de educador, diferentemente do cuidador que se ocuparia apenas dos cuidados de higiene e manutenção da ordem organizacional. Essa proximidade afetiva com o acolhido viabiliza ao educador operar diferenças nele, "E aí se tu retoma, normalmente quando tu retoma e tu acerta o ponto, aí a criança desmonta assim. Ela chora ou ela reage de uma maneira não, aí tu pelo menos tu acessou e aí que deve ser trabalhado, né".

Coletivo de trabalho como instrumento para enfrentar o real

O cultivo do gênero nos remete aos modos operatórios na relação direta com o acolhido, em que a gestão do vínculo é central para o trabalho e para o trabalhador realizá-lo. A organização de um trabalho coletivo precisa ser des-envolvida, possibilitando aos trabalhadores recorrerem ao coletivo de trabalho que se torna um instrumento para enfrentar a relação direta do trabalhador com o acolhido. Quando essa relação entra em um embate, outro educador pode "tomar as rédeas", assumindo a situação em uma expressão de como o coletivo de trabalho configura-se como um intercessor que potencializa a gestão dos afetos e do uso de si na situação de trabalho.

- Quando a gente não sabe mais o que vai fazer, quando a gente já fez tudo que podia fazer e não deu certo. Daí assim, ó, tem que passar porque se não eu acho que a pessoa enlouquece assim. Então é melhor tu passar e pedir pra alguém te ajudar do que tu ficar ali. Porque não tem, é uma coisa que, o negócio não anda. Não anda.

- Porque chegou um momento que tu tá dando murro na ponta da faca, né. Não vai. Tu tá indo, tá indo, então tua fala desgastou, com a tua fala, com o teu jeito com aquele educando. Desgastou. Aí a gente tem que ter esse, esse, sensibilidade, né. De dizer que não tá dando certo, que tu vai ficar insistindo só vai se desgastar. Só vai desgastar. Ele pode se desgastar de uma forma de tu quebrar o vínculo que tu tem com a criança assim. [...] E aí a gente tem que ter essa percepção de ver que isso não tá adiantando. Assim como o nosso colega, graças a Deus, nosso plantão tem isso. Ver a visão, tem a visão, a percepção de que o colega tá se desgastando ali, e ir ali e sutilmente tomar a rédea da situação, sabe.

A existência de um coletivo de trabalho amplia o poder de agir no enfrentamento do real, o qual implica diretamente a relação com os acolhidos. Nas trocas entre os pares, o coletivo de trabalho é cultivado, já que a relação com o acolhido não se torna centrada em somente um educador. A não pessoalização das relações implica uma dimensão comum que é de todos e ao mesmo tempo não é de nenhum. As estratégias "desaquecer a cena em intervenções mais pesadas" e "tomar a rédea da situação" indicam como o coletivo de trabalho torna-se instrumento para o enfrentamento do real. Segue mais um trecho do diálogo.

- Se eu estiver numa situação e a C. [educadora] entrar e tomar partido, ficar acima de mim, isso fortalece.

- Eu já dou um jeito que assim, ó, a criança tá dando de frente contigo. Então tu tá ali, tem a C. [educadora], entra a C. [educadora], acabou a C. [educadora], eu vou saindo de fininho.

- É, é.

- Naquele momento poderia ser comigo. Então, depois vou falar, retoma com a criança, mas sai de cena. Que a C. [educadora] conseguiu.

- Que isso é desaquecer a cena, né, quando a gente tira o educador, tu desaquece a cena. Porque daí o educador e a criança tão muito ali, daí entra um terceiro. Por isso que intervenção a gente nunca faz sozinho geralmente, uma intervenção mais pesada. Ela deu um exemplo assim, né. Mas intervenção mais pesada geralmente a gente não vai sozinho. Sempre tem que ter um segundo pra, ou desaquecer a cena. Tipo, vai lá o primeiro, vai lá e tira aquela pessoa, a gente tenta circular. Porque se não tu não consegue.

- É, mas assim, ó, isso é uma característica muito boa assim, ó, que outras pessoas diriam assim, ó "ah, agora não vou fazer mais nada, eu ia fazer ela se meteu". Não, muito pelo contrário.

- Ou assim, ó, ou eu nunca mais falo com essa criança.

- É, isso muito pelo contrário, pra fortalecer, isso é pra, e assim, ó, qualquer uma de nós temos isso. Se instalar, outra chega, auxilia ali.

Nessa discussão, podemos acompanhar a interferência do trabalho de uns sobre os outros de forma complementar a fim de enfrentar a situação-problema que se apresenta no trabalhar. Essas microgestões realizadas na atividade pelos trabalhadores-educadores carregam a dimensão coletiva do trabalho, em que os trabalhadores esperam pela intervenção do colega ou a convocam, a fim de encarar as provações do real, ampliando o poder de agir e fortalecendo o trabalho coletivo.

Uma queixa presente durante os coletivos de análise do trabalho refere-se à ausência de formação que forneceria normas para o enfrentamento da situação de trabalho. Contudo, a pesquisa evidencia que há uma formação operada no exercício do trabalho como atividade, o que nos leva a pensar que, além das estratégias de educação continuada para o trabalho nos abrigos, seria pertinente, também, investir em estratégias de educação permanente13, efetivadas por meio da análise da atividade de trabalho. Pelo fato do acolhimento institucional ser marcado pela multiprofissionalidade e interdisciplinaridade, identificamos a demanda por intervenções e estudos que articulem o trabalho dos educadores/cuidadores com a equipe técnica, tendo em vista que eles se afetam mutuamente em meio a disputas e acordos, necessários para fazer o trabalho nos abrigos acontecer.

 

Considerações finais

Nossas análises consideraram o trabalho em situação avaliando as microgestões realizadas pelos trabalhadores para gerirem a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Assim, a pesquisa colocou em cena uma série de aspectos relativos às normas e às instituições implicadas nessa gestão, tanto do ponto de vista da dimensão prescritiva do trabalho quanto do trabalho que efetivamente se realiza, em forma de trabalho real. Os impasses experimentados em atividade pelos trabalhadores-educadores expressam a dramática do uso de si no campo do acolhimento institucional de crianças e adolescentes, marcado pela educação e o cuidado, tensionando os modos de trabalhar entre assistência e judicialização, cuidado e controle.

Desse modo, apontamos para a importância do fomento da dimensão coletiva do trabalho a fim de que o coletivo, forçosamente heterogêneo e ancorado no comum, produza as normas que ampliem o poder de agir. Isso tem extrema importância em um contexto de trabalho marcado por uma intensa variabilidade e convocação afetiva, marcado, ainda, pela judicialização, já que o abrigo está entrelaçado com o Sistema Judiciário (Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Judiciário). Isso coloca o trabalhador-educador em um jogo de forças em que ele pode ser punido ou culpabilizado por não manter a ordem e a higiene, ao mesmo tempo em que tem que possibilitar condições para que as crianças e adolescentes construam uma trajetória de sucesso.

A pluralidade e complexidade do cotidiano laboral no abrigo institucional expressa a tensão entre o prescrito nas políticas de Estado e a política efetivamente pública operada no cotidiano com os usuários do serviço de acolhimento. Os instrumentos legais são bastante fortes para assegurar essa direção de trabalho, mas, por si só, não concretizam um efetivo acolhimento. Nesse sentido, é pela atividade de trabalho que podem se produzir práticas de acolhimento a crianças e adolescentes. A elaboração das provações do real, coletivamente, renova o debate acerca dos modos de criação de um meio para viver, não apenas sofrendo-o, para falar como Canguilhem (2001). Por meio de estratégias que tornem coletivo o debate de normas é que há o des-envolvimento da dimensão genérica dos saberes produzidos no enfrentamento dos problemas e provações do trabalhar, bem como dos processos de estilização que daí podem decorrer.

 

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1 Este artigo refere-se à pesquisa financiada pelo CNPQ e CAPES.
2 Legislação voltada para a população de zero a dezoito anos no período anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente conjugava ações higienistas e assistencia-listas levando crianças e adolescentes, outrora denomi-nados menores, a regime de internato em complexos de atendimento afastados dos grandes centros urbanos (Coelho, Tavares e Carmo, 2012).
3 Campo que se refere a um conjunto de abordagens que se ocupa das relações trabalho-subjetividade (Ben-dassoli e Soboll, 2010) e, ainda, conforme Lhuilier (2011), campo que pensa em "clínicas" como modalidades de intervenção que visam à relação entre traba-lho, saúde, sofrimento e adoecimento mediante enfoque de situações laborais.
4 A doutrina da situação irregular é uma teoria do cam-po do Direito da Criança e do Adolescente associada ao Código de Menores, com forte caráter individualis-ta, punitivo e assistencialista, que produzia uma cisão entre menor e criança. O "menor" era entendido como a criança ou jovem que estava em situação irregular, podendo estar em perigo e/ou ser perigoso por ser carente, pobre, ou abandonado. Por outro lado a "cri-ança" era entendida como ser saudável que tinha famí-lia e que ia a escola, não necessitando de assistência especial. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1988 opera a partir da proteção inte-gral, não realizando essa distinção, compreendendo todas as crianças e adolescentes como sujeitos de direi-to e em desenvolvimento.
5 Em conexão com os distintos projetos políticos em disputa que fazem uso e que movimentam o aparelho estatal na encruzilhada de forças entre Políticas de Estado, de Governo e Pública (Barros & Pimentel, 2012), produzem-se trabalho e trabalhadores que põem em debate diferentes valores, intencionalidades, con-cepções de indivíduo e sociedade, público e privado. Para Barros e Pimentel (2012, p. 7), as políticas de Estado constituem-se "por meio de ações estruturantes nas quais os governantes que se alternam no poder devem garantir que tal política seja efetivada, devendo seguir e cumprir determinadas linhas, programas e projetos". Diferentemente dessa institucionalização, as políticas de governo são descontínuas e articuladas em função de conjunturas, isto é, exercidas a partir de um projeto de forças políticas que assumem o aparelho estatal a cada quatro anos. As políticas públicas, por fim, remetem às forças presentes nos coletivos, que não se restringem ao Estado e governantes, na construção de um modo de governo pautado na gestão do comum e da multiplicidade composta por diferenças.
6 Expressão utilizada pelos educadores para se referir às crianças e adolescentes em acolhimento institucional.
7 Segundo Clot (2010), o real do trabalho comporta o inusitado que coloca o trabalhador à prova e nas provas em que os trabalhadores se colocam na situação de trabalho. Já o trabalho realizado é somente um ante a tantos possíveis da atividade, assegurando que o traba-lho realizado não é a mera projeção do trabalho pres-crito. Ao atentarmos somente para o trabalho realizado, perdemos o domínio do real da atividade, o qual com-porta um jogo de forças que se atualiza na atividade e não cessa na ação.
8 Palavras e frases dos educadores e educadoras serão apresentadas em itálico.
9 A pesquisa, seus procedimentos e os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido foram aprovados pelo Comitê de Ética de Pesquisa em Psicolo-gia/UFRGS.
10 O corpo-si configura-se como um centro de arbitra-gens no qual o trabalhador faz escolhas com ou sem ciência e no qual são solicitados e incorporados na atividade "o social, o psíquico, o institucional, as nor-mas e os valores [do contexto e retrabalhados], a rela-ção às instalações e aos produtos, aos tempos, aos homens, aos níveis de racionalidade, etc." (Schwartz, 2011, p. 24). Com esse conceito, Schwartz (2000; 2007) busca integrar uma série de dicotomias que atra-vessam os estudos sobre o trabalho, intelectual-manual, corpo-mente, consciente-inconsciente, interioridade-exterioridade, indivíduo-social

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