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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.1 São João del-Rei abr. 2018

 

TDAH na infância contemporânea: um olhar a partir da sociologia da infância e da psicologia histórico cultural

 

ADHD in contemporary childhood: a view from sociology of childhood and cultural historical psychology

 

TDAH en la infancia contemporánea: una mirada desde de la sociología de la infancia y la psicología histórico cultural

 

 

Marina Serejo GirãoI; Veriana de Fátima Rodrigues ColaçoII

IMestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. marinasgirao@gmail.com
IIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pós-doutorado em Psicologia pela Universidade de Barcelona (UB/ES). verianac@gmail.com

 

 


RESUMO

Diversos estudos têm sido realizados sobre o transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH) desde o início dos anos 2000. Muitos parecem abordá-lo de forma biomédica, desconsiderando fatores sócio-históricos em sua constituição. Realizou-se uma revisão sistemática de literatura a respeito do TDAH a fim de ampliar o olhar sobre ele no contexto atual, tendo como pergunta de partida: A psicologia histórico-cultural e a sociologia da infância podem ajudar a compreender o TDAH na contemporaneidade? Realizou-se busca de artigos no Portal Periódicos Capes com os critérios de inclusão: artigos publicados em português e inglês nos últimos dez anos, disponíveis na íntegra e que retratassem a temática referente à pergunta norteadora. Foram obtidos oito artigos para análise e pôde-se perceber que há diversas contribuições da sociologia da infância e da psicologia histórico-cultural para o entendimento do TDAH na sociedade atual, ainda que isso tenha sido pouco explicitado nos artigos levantados.

Palavras-chave: Transtorno de deficit de atenção e hiperatividade. Sociologia da Infância. Psicologia histórico-cultural.


ABSTRACT

Several studies have been conducted on Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) since the early 2000s. Many appear to approach it biomedically, disregarding socio-historical factors in its constitution. A systematic review of the literature on ADHD was carried out in order to broaden the perspective on ADHD in the current context, starting with the question: Can cultural historical psychology and the sociology of childhood help to understand ADHD in contemporary times? We searched for articles in the Portal Periódicos Capes with the inclusion criteria: articles published in Portuguese and English in the last ten years, available full-text that portrayed the theme referring to the guiding question. Eight articles were obtained for analysis and it was possible to perceive that there are several contributions of the sociology of childhood and cultural historical psychology to the understanding of ADHD in the present society, although this has been little explicit in the articles raised.

Keywords: Attention Deficit Hyperactivity Disorder. Sociology of Childhood. Cultural-historical psychology.


RESUMEN

Se han realizado varios estudios sobre el trastorno por déficit de atención con hiperactividad (TDAH) desde principios de la década de 2000. Muchos parecen acercarsen a ella en forma Biomédica, sin tener en cuenta los factores sociales e históricos en su constitución. Se realizó una revisión sistemática de la literatura sobre el TDAH con el fin de ampliar las perspectivas sobre el tema en el contexto actual, con la pregunta inicial: la psicología histórico cultural y sociología de la infancia pueden ayudar a entender el TDAH en la época contemporánea? Se realizó también una búsqueda de artículos en el "Portal de Periódicos Capes" con los siguientes criterios de inclusión: artículos publicados en portugués y en inglés en los últimos diez años, disponibles en su totalidad, que reflejan el tema relacionado con la pregunta de orientación. Se obtuvieron ocho artículos de análisis y fue posible ver que hay varias contribuciones de la sociología de la infancia de la psicología histórico cultural para la comprensión del TDAH en la sociedad actual, aunque hayan sido poco explicitadas en los artículos estudiados.

Palabras clave: Trastorno por déficit de atención e hiperactividad. La sociología de la infancia. La psicología histórico-cultural.


 

 

Introdução

O transtorno de deficit de atenção e hiperatividade (TDAH) tem sido apontado como uma das alterações comportamentais infantis mais estudada em crianças em idade escolar nos últimos anos, sendo, possivelmente, o principal motivo de encaminhamentos a serviços de saúde (Barkley, 2009). A concordância a respeito de tal transtorno e de sua prevalência varia bastante de acordo com critérios metodológicos utilizados nas pesquisas, critérios diagnósticos, fonte de informações, dentre outros, gerando dados conflitantes em diferentes países. Apesar das controvérsias a respeito de sua caracterização como um transtorno, a prevalência do diagnóstico TDAH em crianças e adolescentes tem sido crescente nas últimas três décadas, bem como a prescrição medicamentosa para seu tratamento (Polanczyk, Willcutt, Salum, Kieling & Rohde, 2014).

As primeiras descrições relacionadas ao que hoje se conhece como TDAH foram feitas pelos médicos George Still e Alfred Tredgold no início do século XX, apontando o fenômeno como dificuldade moral com a aceitação de regras e limites, acompanhado de inquietação e desatenção (Santos & Vasconcelos, 2010). Sua história remonta a outros transtornos, tais como a Síndrome da Encefalite Letárgica e a Disfunção Cerebral Mínima, e apenas em 1994, com o Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais, 4ª edição revisada, DSM IV-R, adquire a nomenclatura atual.

A conduta padrão atual para diagnóstico do TDAH aponta que deve ser eminentemente clínico, feito a partir de observação médica criteriosa com base no Manual de Estatística e Diagnóstico da Associação Americana de Psiquiatria, 5ª edição, DSM V, não havendo, portanto, exames complementares que confirmem a presença do transtorno. De acordo com o referido manual, o TDAH caracteriza-se por sintomas de hiperatividade/impulsividade ou desatenção, que dificultem a adaptação da criança em mais de um contexto de vida e prejudiquem sua qualidade de vida por, pelo menos, seis meses. Além disso, deve haver claras evidências de prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional em, pelo menos, dois contextos de vida da criança (American Psychiatric Association, 2013). O DSM V também classifica o TDAH em três tipos distintos: desatento, hiperativo/impulsivo e misto. Além dos critérios objetivos delimitados no manual, é importante observar o contexto social da criança, uma vez que, dentre os prejuízos relatados, aqueles que se referem às competências sociais estão dentre os recorrentes (Graham & People, 2008).

No decorrer de sua história, o que hoje se caracteriza como TDAH foi adquirindo um caráter cada vez mais biologicista, a ponto de se chegar ao entendimento de que o TDAH seria resultante de um deficit de autocontrole e de inibição de respostas, considerando-o como um desvio da vontade e do desenvolvimento moral (Barkley, 2009). A partir dessa compreensão, diversos autores na área da saúde defendem a utilização de medicação estimulante para crianças com TDAH, uma vez que solucionariam o desequilíbrio da dopamina nas regiões do cérebro responsáveis por autorregulação, controle dos impulsos e percepção, desequilíbrio este que, segundo os autores, seria de base genética (Rothenberger & Banaschewski, 2007). Tal posicionamento, embora desconsidere quaisquer outros fatores históricos e culturais envolvidos no desenvolvimento desses comportamentos, é defendido até hoje por diferentes correntes na área da saúde, sendo, possivelmente, o mais difundido. A disseminação do entendimento do TDAH como um problema de origem estritamente orgânica, por si só, fortalece a ideia de que os ambientes sociais e culturais não contribuem para o desenvolvimento do problema, além de reforçar a opinião geral de que o melhor - e quem sabe o único - tratamento é aquele de base farmacológica t

O termo medicalização se refere principalmente ao processo de simplificação de questões de caráter complexo, com cunho sociocultural e político, além de fisiológico, em questões puramente biologizantes, de tal forma que se busca encontrar apenas no campo médico as causas e as soluções para esses problemas. Com esse enfoque, discute-se o processo saúde-doença unicamente centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista (Zorzanelli et al., 2014). Isto é, tratar o TDAH na perspectiva da medicalização significa entender tal transtorno como problema individual, perdendo de vista sua constituição social e a compreensão de que o processo saúde-doença se inscreve nas vivências culturais, que constitui a pessoa em seu contexto de relações.

Além do aspecto biologizante, a percepção atual do TDAH também expressa uma teoria moral, uma vez que, de modo geral, o tratamento proposto para o TDAH impõe, além do uso da medicação, a reestruturação da família, culpabilizada por tal problema (Caliman, 2010). Assim, os envolvidos no diagnóstico e tratamento do transtorno esquivam-se da responsabilidade de reflexão acerca dos múltiplos fatores envolvidos nas dificuldades com as crianças no mundo contemporâneo, oferecendo soluções imediatistas, com tratamentos de efeito sintomático à base de estimulantes, e com orientações para auxiliar o enquadramento da criança em padrões de comportamentos aceitos socialmente. Tais orientações extrapolam o contexto da saúde, invadindo todos os territórios infantis, principalmente os escolares e familiares. Partindo dessa reflexão, tal diagnóstico, assim como o tratamento, podem, portanto, ser abordados como um tipo de controle social.

Com a difusão do diagnóstico, o TDAH passa a ser cada vez mais recorrente em nossa sociedade, ganhando nova roupagem nos diversos contextos e sendo propagado por meio de diferentes discursos. Embora tenha surgido no cenário da saúde, o TDAH tornou-se parte do cotidiano, de forma que os discursos a seu respeito mesclam aspectos provenientes da saúde, da escola, da família e da moralidade social, podendo ser interpretados de inúmeras formas em uma cultura local, inclusive pelas crianças. Imersas nessa multiplicidade de sentidos e significados atribuídos ao TDAH, as crianças produzem sua própria cultura de pares apropriando-se, reproduzindo e reinventando os diversos discursos e constituindo-se a partir deles (Corsaro, 2011). Essa, entretanto, é uma perspectiva pouco discutida e o que se percebe é a prevalência de estudos a respeito do assunto que privilegiam o aspecto fisiológico e individual em detrimento de discussões sobre a constituição social do problema, principalmente no que diz respeito ao olhar da criança para o fenômeno.

Com uma preocupação de examinar em que medida os estudos sobre TDAH têm tratado esse transtorno, levando em consideração as marcas da vida contemporânea, este artigo apresenta os resultados de revisão sistemática de pesquisas acerca do TDAH com enfoque na sociologia da infância e na psicologia histórico-cultural, que à luz de seus pressupostos poderão ampliar o olhar para além do aspecto fisiológico.

Processo metodológico

Para alcance dos objetivos deste estudo, realizou-se um levantamento bibliográfico, com posterior análise e discussão sobre os achados, partindo da seguinte questão: A psicologia histórico-cultural e a sociologia da infância têm contribuído para a compreensão do TDAH na contemporaneidade?

Como procedimento metodológico, realizou-se uma busca na base de dados do Portal de Periódicos Capes, nos últimos dez anos. Foram utilizados para busca dos artigos os descritores combinados: "Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade" e "Teoria histórico-cultural", "Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade" e "Sociologia", "Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade" e "Psicologia Social", "Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade" e "Psicologia da criança", "Transtorno do Deficit de Atenção com Hiperatividade" e "Psicologia do Desenvolvimento", além de "Psicologia Social" e "Psicologia do Desenvolvimento", "Sociologia" e "Psicologia da criança" e "Sociologia" e "Psicologia do Desenvolvimento". Tendo em vista que a expressão Sociologia da Infância não figura como descritor de ciências da saúde (DeCS), ela não foi utilizada na busca bibliográfica direta.

Os critérios de inclusão definidos para a seleção dos artigos foram: artigos publicados em português ou inglês; artigos que retratassem uma abordagem histórica, cultural ou sociológica da temática referente à pergunta norteadora e artigos publicados e indexados na referida base nos últimos dez anos. Como critérios de exclusão foram descartados os trabalhos de teses e dissertações, livros e capítulos, estudos em outras línguas, bem como aqueles cuja fundamentação se restringiam a uma visão biológica ou médica da problemática.

Tanto a análise quanto a síntese dos dados extraídos dos artigos foram realizadas de forma descritiva, possibilitando quantificar, classificar e descrever os dados, com o intuito de reunir o conhecimento produzido sobre o tema explorado na revisão.

 

Resultados e discussão

Foram localizadas 151 publicações com as combinações de descritores, das quais foram excluídas aquelas indexadas repetidamente. Após refinamento, de acordo com os critérios de inclusão e de exclusão, foram elencados oito artigos científicos para análise, sendo três estudos empíricos, quatro teóricos e uma entrevista, que estão compilados Quadro 1.

Embora haja diversos artigos publicados nos últimos anos acerca do TDAH, nota-se que pouquíssimos deles retratam estudos que apresentem enfoque analítico que se aproxime da psicologia histórico-cultural ou da sociologia da infância, principalmente no que diz respeito a estudos empíricos. Os artigos obtidos na revisão apontam posicionamentos críticos a respeito da caracterização do TDAH como um problema primordialmente biológico, levantando questionamentos e possibilidades de reinterpretações dessa condição a partir de um olhar contextual, social e cultural. Apenas três dos artigos foram publicados em periódicos voltados para a psicologia, ao passo que os demais foram publicados em revistas de saúde coletiva.

Dentre os estudos teóricos, percebe-se que as temáticas reducionismo biológico e medicalização são recorrentes. Em Eidt e Tuleski (2010), aborda-se a psicologia histórico-cultural propriamente dita na análise do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, especificamente a atenção e o controle voluntário do comportamento humano, as quais são hegemonicamente apontadas como alteradas no TDAH como contraponto à visão biologicista predominante.

Em Brzozowski e Caponi (2012), há também um questionamento a respeito do reducionismo biológico e da ideia de que o TDAH é um transtorno que pode ser identificado por meio de técnicas de neuroimagem e que é tratável por meio de psicoestimulantes como o metilfenidato. As autoras não negam um possível componente fisiológico, entretanto, levantam possibilidades de uma constituição dialética, com componentes biológicos e sociais, sugerindo cautela diante da generalização das explicações sobre neurotransmissores, localização cerebral e genes, no caso específico do TDAH. Em artigo posterior, Brzozowski e Caponi (2013) seguem na mesma linha argumentativa, tecendo uma crítica ao diagnóstico excessivo de doenças mentais e a transformação de situações que poderiam ser resolvidas sem a interferência médica em doenças, tais como o TDAH. Desse modo, levantam uma reflexão acerca das configurações contemporâneas de nossa própria sociedade e de suas instituições e sua influência na constituição de problemas de comportamento.

Bowden (2014) vai ao encontro do que se discute nos demais artigos de construção teórica, argumentando que ainda que sejam reconhecidos fatos biológicos sobre distúrbios, isso é insuficiente para uma compreensão completa do TDAH, sendo necessário um complemento sociológico. Assim, sugere um olhar biopsicossocial para o TDAH, afirmando que é impossível tratá-lo como uma entidade a-histórica e a-cultural.

No que diz respeito aos estudos empíricos, as investigações vão no sentido de perceber de que modo o contexto sociocultural constitui o TDAH. Singh (2011) investigou as dimensões sociais e morais do diagnóstico de Transtorno de Deficit de Atenção com Hiperatividade perguntando o que significa o TDAH no cotidiano das crianças no Reino Unido e o que as crianças fazem com esse diagnóstico. Pôde-se perceber que a exploração do diagnóstico das crianças pode apoiar e comprometer a resiliência cognitiva, comportamental e social, variando não somente com fatores biológicos, mas principalmente de acordo com a cultura local. Sendo assim, a autora aponta que os sintomas do TDAH não emergem e tomam forma unicamente, ou mesmo predominantemente, como consequência de deficit biológico primário. Assim, propõe que o desenvolvimento de modelos complexos de diagnóstico e conduta para além de critérios biológicos, que aprofundem a compreensão e promovem intervenções relevantes, dinâmicas e efetivas, englobando aspectos de estilo de vida, normas sociais, cultura local e percepção da própria criança a respeito de si.

Frigerio, Montali e Fine (2013), por sua vez, buscaram investigar as interações dos discursos dos atores sociais centrais sobre crianças com Transtorno de Deficit de Atenção com Hiperatividade no contexto italiano, concentrando-se nos discursos de profissionais de saúde mental, professores e pais dessas crianças. Em seu estudo, mostra-se a relação dialógica entre a construção da própria subjetividade e os locais simbólicos atribuídos aos demais envolvidos nas narrativas. Percebe-se que as relações conflitantes entre os agentes sociais que supostamente trabalham juntos para a criança não são meramente uma questão de acreditar que o TDAH é biologicamente determinado ou relacionado a fatores psicossociais. Em vez disso, essas relações dizem respeito a questões de conformidade, autoridade e moralidade, que vão para além das próprias criança e de seus comportamentos.

O estudo de Dorneles et al. (2014) é o mais destoante em relação aos demais, seguindo por uma outra perspectiva, a qual busca estabelecer relações entre o TDAH e transtornos de aprendizagem. Não há aqui questionamento a respeito da constituição do Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade, mas sim o quanto a descrição diagnóstica do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição, impacta na prevalência de deficit da aprendizagem naquelas crianças com diagnóstico de TDAH.

As contribuições da sociologia da infância e da psicologia histórico-cultural

Ainda que os artigos obtidos na revisão não utilizem explicitamente como pressupostos teóricos os estudos de Psicologia Histórico-Cultural e da Sociologia da Infância, nota-se muitas proximidades em suas interpretações a respeito do desenvolvimento infantil e suas alterações.

A expressão Sociologia da Infância aparece nos estudos de sociologia desde a década de 1930, com estudos clássicos sobre socialização. Entretanto, é apenas a partir do fim do século XX e sobretudo nos anos 2000 que a infância adquire o estatuto de objeto de estudo e surge como categoria sociológica, adquirindo a designação de nova Sociologia da Infância para diferenciar-se dos estudos prévios (Sarmento, 2008). Assim, "A Sociologia da Infância surgia então com uma dupla tarefa: criar um espaço para a infância no discurso sociológico e encarar a complexidade e ambiguidade da infância como um fenômeno contemporâneo e instável" (Prout, 2010, p. 5).

Essa nova corrente da sociologia vem ganhando maior expressão à medida que vêm sendo cunhados conceitos próprios, teorias e abordagens distintas. O desenvolvimento dessa corrente decorre sobretudo da necessidade de compreender o fato de que as crianças nunca foram objeto de tantos cuidados e atenções, ao mesmo tempo em que se acumulam aspectos de exclusão e de sofrimento dessa faixa etária da sociedade. Assim, a Sociologia da Infância preocupa-se com as interpretações das condições atuais de vida das crianças, a partir de uma reflexão contemporânea sobre a realidade social e, portanto, não se foca apenas nas crianças, mas sim na totalidade social (Sarmento, 2008). A partir da perspectiva da Sociologia da Infância, as crianças são consideradas como atores em seu processo de socialização e não mais como agentes passivos na socialização adulta, como outrora eram consideradas. Concebe-se, portanto, a realidade social em toda sua multiplicidade, incluindo as relações de classe, gênero, etnia, etc., que se associam a características interindividuais e se complexificam, constituindo culturas de pares infantis (Corsaro, 1990).

A constituição de culturas de pares é uma tentativa de dar sentido e resistir, em certa medida, ao mundo adulto (Corsaro, 2011, 1992). Um dos elementos fundamentais para sua constituição é a reprodução interpretativa, que se refere à apropriação e reinvenção da cultura por parte das crianças (Corsaro, 2011). A reprodução interpretativa diz respeito aos aspectos inovadores e criativos da participação das crianças na sociedade, partindo da concepção de que elas não se limitam a repetir o que vivenciam em sua cultura, mas a interpretam e modificam, contribuindo ativamente para a produção e a mudança cultural. Dessa forma, a atividade interativa entre as crianças, produção coletiva de culturas de pares, mostra-se tão importante para o seu desenvolvimento quanto para a interação com os adultos.

Não são identificados nos artigos da revisão os conceitos cunhados na Sociologia da Infância, entretanto, percebe-se indícios de seu olhar nas análises feitas sobre a perspectiva infantil. O estudo que mais se aproxima dessa concepção teórica é o de Singh (2011). A autora explora um modelo sociológico de interpretação do TDAH pelas próprias crianças. Pode-se inferir pelos achados que as crianças reproduzem interpretativamente o transtorno em sua cultura de pares, utilizando-se dos sintomas atribuídos às crianças com TDAH para defender a si mesmo e aos seus amigos e ganhar posições na hierarquia social que produzem. Evidencia-se também características da reprodução interpretativa quando a autora relata a mobilização criativa de comportamentos atribuídos ao TDAH para manejo de conflitos entre as crianças, como, por exemplo, no uso do TDAH ("[I ] use my ADHD") para livrar os amigos de problemas (Singh, 2011, p. 894).

No que diz respeito ao desenvolvimento infantil e ao processo de socialização, nota-se maior aproximação dos estudos com a compreensão da Psicologia Histórico-Cultural, ainda que apenas em um deles seja colocada de forma explícita essa filiação. Na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, o desenvolvimento humano deve ser compreendido como uma inter-relação entre os componentes biológicos, sociais e históricos, os quais fazem parte da constituição do ser humano. Assim, o desenvolvimento da criança não se dá apenas como um processo maturacional, mas envolve também o domínio dos conteúdos da experiência cultural, dos meios de pensamento e das formas de comportamento, uma vez que estão intimamente relacionadas às dimensões orgânica e cultural (Vygotsky, 2009).

O desenvolvimento humano, notadamente no que diz respeito às funções psicológicas, como a memória mediada, a percepção seletiva e a atenção dirigida, dá-se com base nas relações com o meio sociocultural, mediadas pelo uso de signos, sendo a linguagem um dos signos mais importantes para o desenvolvimento psicológico (Vygotsky, 1999). A mediação semiótica exerce fundamental papel nesse processo, e a inclusão do signo em qualquer processo psicológico remodela toda a estrutura das operações psicológicas, possibilitando a transformação das funções psicológicas elementares em funções superiores, sem que aquelas deixem de existir.

Do ponto de vista histórico-cultural, as funções psicológicas superiores, incluindo a atenção dirigida, aspecto fundamental na caracterização do diagnóstico do TDAH, originam-se como atividade interpsicológica, que se reconstrói pelo processo de internalização, tornando-se intrapsicológicas, sendo, portanto, resultantes das relações reais entre os sujeitos. Desse modo, "[...] cada pessoa é em maior ou menor grau o modelo da sociedade, ou melhor, da classe a que pertence, já que nela se reflete a totalidade das relações sociais" (Vygotsky, 1999, p. 368). Compreende-se, em vista disso, que o indivíduo se torna sujeito na interação social, ou seja, como membro de algum grupo social, que, por sua vez, está inserido em um contexto histórico. A personalidade de um indivíduo está, portanto, ligada intimamente com a evolução social e com os aspectos do grupo, sendo impossível analisar o desenvolvimento sem compreender as mudanças culturais.

Em todos os artigos levantados, nota-se uma preocupação em apontar o desenvolvimento infantil como uma constituição que se dá no entrelaçamento de aspectos biológicos, socioculturais e individuais, tal como no olhar histórico-cultural. É ponto de acordo nos estudos levantados que a participação das crianças nas rotinas culturais, atravessadas pelos discursos a respeito do TDAH, possibilita que elas ressignifiquem e interpretem sua condição. Portanto, a compreensão da criança a respeito de si mesma e do outro perpassa aquilo que ela vivencia em seu contexto.

Tendo em vista a preocupação em demonstrar o desenvolvimento como algo socialmente constituído, a percepção sobre os aspectos da sociedade contemporânea também é ponto de pauta nos estudos apresentados, principalmente no que diz respeito à medicalização e ao avanço tecnológico da sociedade. A cultura ocidental vigente é marcada por relações sociais pautadas pelo imediatismo, pela rapidez (Bauman, 1999, 2001). Cada vez mais, percebe-se no mundo adulto uma dificuldade para lidar com as crianças, uma vez que não se tem mais tempo para dedicar-se a elas. Como alternativa, as agendas infantis também se tornam superlotadas, com escola em tempo integral, atividades extracurriculares, além do uso muito precoce de dispositivos tecnológicos como smartphones, tablets, dentre outros. Exige-se, portanto, das crianças o processamento de uma grande quantidade de estímulos e um desenvolvimento intelectual cada vez mais acelerado, produzindo-se um modo de vida ao mesmo tempo intenso e disperso, o que se reflete nas suas condições de aprendizagem e de raciocínio. Nesse contexto, como distinguir entre a falta de concentração e o comportamento hiperativo resultante dessas exigências da contemporaneidade, de transtornos neurológicos que configurem patologias como o TDAH? Essa questão em geral é pouco ou nada considerada nas avaliações e definições diagnósticas, o que provavelmente tem repercussões, comprometendo a precisão dos índices desse tipo de diagnóstico.

Vygotsky (1998) pondera que as personalidades humanas se apresentam de forma heterogênea em diferentes períodos históricos. Dessa forma, o estudo do desenvolvimento infantil também deve levar em consideração o nosso tempo histórico, além das particularidades relativas às condições de classe social, sua distinção e natureza, uma vez que as personalidades humanas se constituem social e singularmente. "As várias contradições internas que são encontradas nos diferentes sistemas sociais encontram sua expressão tanto no tipo de personalidade quanto na estrutura da psicologia humana naquele período histórico" (Vygotsky, 1998, p. 111). Em vista disso, as crianças com TDAH refletem, em maior ou menor grau, as características da sociedade em que estão inseridas e se constituem também a partir disto.

O TDAH é descrito no DSM V (American Psychiatric Association, 2013) como um conjunto de dificuldades para processar e mediar adequadamente uma grande quantidade de estímulos e impulsos que atravessam o campo da percepção e da atenção dos indivíduos e dos grupos. Entretanto, ao se considerar essas dificuldades como um problema puramente fisiológico, ignora-se uma tentativa das crianças de resistência ou adaptação à aceleração cotidiana em sua cultura de pares. Em vez de se considerar a multiplicidade da constituição de culturas infantis e adultas, tem-se um único olhar, com um viés biologicista e moralizante, gerando estigmatização daqueles que não se adaptam à realidade da forma esperada pela cultura adulta. É interessante notar que, ao mesmo tempo em que se espera das crianças um comportamento atento e submisso, oferece-lhes um variado e excessivo conjunto de recursos, exige-se delas uma sobrecarga de compromissos diários e impõe-se a sua preparação a um mundo adulto em que a hiperatividade e a atenção flutuante constituem a marca do seu cotidiano.

O mundo contemporâneo se transforma com intensa velocidade e exige das pessoas, desde muito cedo, sucessivos processos adaptativos. O que se aprende e se constrói está em constante revisão e superação e a criança não fica alheia, mas em seu processo de desenvolvimento acompanha essa dinamicidade e responde a ela com os elementos que dispõe. Assim, estaria ela desadaptada se seu comportamento mantivesse as mesmas características que se observava nas crianças de décadas atrás. É extremamente atual a afirmação de Vygotsky (2003, p. 97).

O desenvolvimento da criança é um processo dialético complexo caracterizado pela periodicidade, desigualdade no desenvolvimento de diferentes funções, metamorfose ou transformação qualitativa de uma forma em outra, embricamento de fatores internos e externos, e processos adaptativos que superam os impedimentos que a criança encontra.

 

Considerações finais

A partir da revisão sistemática realizada, percebe-se que diferentes estudos têm questionado a preponderância do aspecto biológico na caracterização do TDAH em detrimento de sua constituição social. Ainda que não se utilizem diretamente de uma análise a partir da sociologia da infância e da psicologia histórico-cultural, diversas aproximações podem ser percebidas nos estudos elencados. Eles sustentam uma crítica à unilateralidade das visões sobre TDAH, partindo de pressupostos que advogam a complexidade e a plurideterminação dos comportamentos infantis, que se sobressaem como sintomas, mas não necessariamente decorrem de transtornos ou patologias e sim podem refletir os caminhos encontrados pelas crianças para interagir e se organizar perante as exigências do mundo atual. Assim, ao retomar a pergunta de partida "A psicologia histórico-cultural e a sociologia da infância podem ajudar a compreender o TDAH na contemporaneidade?", não se pode dizer que sua resposta está explícita nos estudos levantados na revisão. Entretanto, com uma análise mais criteriosa e expansão do olhar, é possível sim vislumbrar contribuições das bases que fundamentam essas teorias para a compreensão do TDAH na contemporaneidade.

Como foi discutido ao longo deste texto, as demandas da sociedade atual são cada vez mais complexas e geram necessidades adaptativas também complexas. No entanto, muitas vezes, exatamente para evitar lidar com essa complexidade, tenta-se reduzir e simplificar os fenômenos com respostas parciais e paliativas, que, no caso do TDAH e outros problemas de natureza semelhante, são facilmente localizados no plano orgânico e buscado na medicalização a alternativa mais eficiente para controlar a conduta da criança. Perde-se de vista as consequências para a construção subjetiva e as repercussões para o aprendizado e desempenho escolar dessas crianças, quando se define um diagnóstico que encerra em si os objetivos das avaliações.

Desse modo, compreende-se que o TDAH precisa ser analisado em suas múltiplas facetas, observando-se não somente uma possível causa orgânica, mas, principalmente, a sua expressão na conduta das crianças e nas suas narrativas, revelando a reprodução interpretativa que fazem dessa problemática na cultura de pares infantil e seus constituintes sócio-históricos e também afetivas. A compreensão de que o diagnóstico de TDAH não apenas direciona o modo de agir dos adultos para com a criança, mas também a constitui subjetivamente, na medida em que ela reproduz e reinterpreta essa sua condição, possibilita pensar as implicações nefastas das intervenções que visam unicamente aplacar os sintomas, como a medicalização. Esse entendimento, por sua vez, aponta para a necessidade do compromisso com a transformação do ritmo acelerado e exigente imposto às crianças, sem que lhes seja dado espaço para opinar e expor seus medos e limites. Há que se ter em conta a potência das crianças e de suas famílias para perceber o que se passa com elas e para participar ativamente nas decisões e intervenções a elas dirigidas.

 

Referências

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Recebido em 06/06/2017
Aprovado em 09/02/2018

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