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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2018

 

O maternar como atividade de trabalho

 

Mother-care as a working activity

 

El maternar como actividad de trabajo

 

 

Lívia Borges Hoffmann DornaI; Hélder Pordeus MunizII

IProfessor do Departamento e da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF)
IIDoutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a pensar sobre a experiência do maternar como um trabalho, analisado à luz da perspectiva da Ergologia e da abordagem da Psicodinâmica do Trabalho. Nesse sentido, afirmamos que ele envolve saberes desenvolvidos na atividade e escapa a qualquer tentativa de simplificação, uma vez que envolve gestão e a mobilização de uma inteligência inventiva. Sem perder de vista a perspectiva das relações de gênero, ratificamos que o maternar opera de maneira distinta à noção de instinto: trata-se de um trabalho de care, que exige competências específicas. Finalizamos com a aposta de que lançar luz sobre esses saberes pode ser um caminho promissor para dar mais visibilidade ao trabalho de mãe.

Palavras-chave: Maternar. Trabalho de care. Gênero. Competências.


ABSTRACT

The aim of the present article is to think about the experience of "mother-care" as a job analyzed in the light of Ergology and of the Psycho-Dynamics of Work. Accordingly, we state that it must involve knowledge resulting from practice. Such knowledge goes beyond any simplification attempt, since it concerns management and the mobilization of an inventive intelligence. Without losing the focus on the gender relation perspective, we herein reaffirm that 'mother-care' has a distinct operation to the sense of instinct: it is a "care" work, which demands specific competences. We end up assuming that turning the lights over such knowledge may be a promising way to highlight the 'mother work'.

Keywords: Mother-care. Care work. Gender. Competences.


RESUMEN

Este artículo se propone a pensar sobre la experiencia de maternar como un trabajo, analizado a la luz de la perspectiva de la Ergología y del abordaje de la Psicodinámica del Trabajo. En ese sentido, afirmamos que él envuelve saberes desarrollados en la actividad y escapa a cualquier tentativa de simplificación, una vez que envuelve gestión y mobilización de una inteligencia inventiva. Sin perder de vista la perspectiva de las relaciones de género, ratificamos que el maternar opera de manera distinta a la noción de instinto: trata de un trabajo de care, que exige competencias específicas. Finalizamos con la apuesta de que lanzar luz sobre estos saberes pueda ser un camino promisor para dar mayor visibilidad al trabajo de madre.

Palabras clave: Maternar. Trabajo de care. Género. Competencia.


 

 

O maternar como um trabalho

O maternar tem sido estudado por diferentes áreas de conhecimento e, em especial, pela Psicologia do Desenvolvimento ou pela Psicologia Clínica. Pretendemos neste artigo trazer contribuições do campo da Psicologia Social do Trabalho ao enfocar o maternar como uma atividade de trabalho, histórica e culturalmente vivida por mulheres. Se afirmamos o maternar como trabalho, de que concepção de trabalho estamos nos valendo? Escolhemos caminhar com a Ergologia1 por acreditarmos na sua perspectiva ampliada acerca da noção de trabalho e na sua proposta de conhecê-lo, considerando todas as complexidades que ele envolve.

Schwartz (2011a) nos ensina que o trabalho é uma realidade enigmática, "uma noção que escapa a toda definição simples e unívoca" (Schwartz, 2011a, p. 20). Nesse mesmo sentido, Tersac e Maggi (2004) nos advertem que o trabalho é um conceito complexo, não apenas porque suas práticas variam em função das diferentes situações, mas também porque seu sentido varia ao longo do tempo e de uma sociedade para outra e é perpassado por distintas categorias como gênero, classe social, geração e etnia.

No entanto, o conceito mais evocado atualmente para designar trabalho é aquele que o limita àquilo que foi desenhado e circunscrito pela Revolução Industrial e pelo assalariamento, traduzindo-o por uma troca heterogênea: o tempo trocado por remuneração, o tempo de vida vendido. Nas sociedades capitalistas, que alçaram o aspecto econômico à categoria de valor supremo, não nos causa estranhamento o fato de que o trabalho mercantil, remunerado e "juridicamente subordinado", apareça como o centro.

Temos, assim, a partir da Revolução Industrial, uma tentativa de operar o trabalho a partir de um conceito abstrato, instituindo-lhe a forma-salário, portadora de uma pretensa unidade conceitual. É nesse momento que se delimita "um tempo de trabalho exteriormente normatizado, remunerado e separado das outras esferas e temporalidades da vida social" (Schwartz, 2004a, p. 36).

Esse conceito empobrecido não pretende apenas definir o que é trabalho, mas também o que não é: a partir dele é que, em geral, tem se permitido distinguir o trabalho do "fora do trabalho" (lazer) ou do "não trabalho" (desemprego). Nessa definição estreita, portanto, o maternar estaria enquadrado fora do trabalho, visto que, numa concepção androcêntrica, o trabalho valorizado seria aquele relacionado à esfera da produção de mercadorias e serviços. A esfera da reprodução seria abordada como algo menos importante para explicar a história dos humanos, sendo apenas o suporte dessa produção. Muitas autoras feministas fazem a crítica de como essa dicotomia entre produção e reprodução é construída socialmente de modo a reproduzir as relações de gênero mantendo a desigualdade (Scott, 1995; Rago, 1998).

Para Schwartz (2011a, p. 23), o trabalho trocado por dinheiro seria a definição daquilo que ele chamou de "trabalho stricto sensu: prestação remunerada em uma sociedade mercantil e de direito". Esse autor ressalta, no entanto, que nos limitarmos a esse conceito tem por efeito abafar outras definições de trabalho que poderiam abarcar outras atividades, as domésticas, por exemplo. A atividade de trabalho "não esteve sempre e, mesmo em nossos dias, não está sempre e inteiramente subordinada à troca mercantil" (Schwartz, 2007, p. 258). A atividade doméstica e as atividades de voluntariado, são exemplos disso.

Assim, enquanto para Marx (1988) o trabalho se caracteriza por ser uma atividade com finalidade social, os ergonomistas da atividade2 o diferenciam de lazer explicando que trabalho seria aquela atividade que implica finalidade, exigências e responsabilidades, trazendo o exemplo de como um guia turístico de montanha que leva os clientes para um passeio está trabalhando e quando leva um parente para passear está se divertindo (Guérin et al., 2001). Schwartz (2011a) afirma que várias atividades não estão sob contrato e implicam uma finalidade social com responsabilidades e exigências enormes, como é o caso, por exemplo, do trabalho doméstico e especificamente do maternar. Fogeyrollas-Schwebell (2009, p. 257) define o trabalho doméstico como "um conjunto de tarefas relacionadas ao cuidado das pessoas e que são executadas no contexto da família - domicílio conjugal e parentela - trabalho gratuito realizado essencialmente por mulheres".

Para Hirata e Zarifian (2009), a noção moderna de trabalho, formalizada pela economia política clássica, nos remete a uma dupla definição. A primeira é antropológica: o trabalho é um ato que se passa entre o homem e a natureza. A segunda definição parte da primeira, mas considera que essas trocas entre homem e natureza sempre se produzem em condições sociais determinadas. Segundo esses autores, essa definição ainda é insuficiente, na medida em que parte de um modelo assexuado do trabalho, apresentando o sujeito do trabalho - o homem - como universal; e as relações suscitadas não são apreendidas de maneira idêntica, uma vez que as relações homem-natureza tendem a ser naturalizadas e fixadas como uma base imutável da produção da vida humana, enquanto as relações sociais são historicizadas. E, ainda conforme eles, é justamente o fato de considerarmos as relações sob uma perspectiva histórica que torna possível considerar o sexo social.

Assim, o que Hirata e Zarifian (2009) afirmam é a não existência de trocas genéricas entre o homem e a natureza, e sim de trocas sempre específicas entre os homens e as naturezas. E como os próprios homens são, na realidade, homens e mulheres, é preciso, então, que levemos em consideração o sexo do trabalho.

Inicialmente, dentro do debate dos estudos das Ciências Sociais sobre o trabalho, Kergoat (2009) vai propor o conceito de relações sociais de sexo para mudar o paradigma que estava restrito a uma óptica de classes sociais. Apesar de valorizar os aportes marxistas, considera limitada a maneira como se aborda a produção e a reprodução. Assim, acredita que a incorporação dessa categoria não apenas é uma inclusão, mas uma transformação radical na compreensão da constituição das classes sociais. A classe operária tem sexos, não há uma homogeneidade nessa experiência. Além disso, a esfera da reprodução é lugar também da produção: o trabalho das mulheres em casa produz vidas e valores fundamentais para a sociedade. O grupo social homens e o grupo social mulheres não devem ser confundidos com a dupla categorização biologizante machos-fêmeas. As relações sociais de sexo são caracterizadas pelas seguintes dimensões:

- a relação entre os grupos assim definidos é antagônica;

- as diferenças constatadas entre as atividades dos homens e das mulheres são construções sociais, e não provenientes de uma causalidade biológica;

- essa construção social tem uma base material e não é unicamente ideológica; em outros termos, a "mudança de mentalidades" jamais acontecerá de forma espontânea, se estiver desconectada da divisão do trabalho concreta; podemos fazer uma abordagem histórica e periodizá-la;

- essas relações sociais se baseiam antes de tudo numa relação hierárquica entre os sexos; trata-se de uma relação de poder, de dominação. (Kergoat, 2009, p. 71)

A introdução por essa sociologia da dimensão sexuada nas análises permitiu o questionamento do desenvolvimento histórico do conceito de trabalho. É a partir da problemática da "divisão sexual do trabalho" que o Grupo de Estudos sobre a Divisão Social e Sexual do Trabalho (Gedisst),3 sob a iniciativa de Danièle Kergoat, propôs uma desconstrução/reconstrução do conceito de trabalho. "Essa reconceituação abrangeu também o trabalho não assalariado, não remunerado, não mercantil e informal. Trabalho profissional e trabalho doméstico, produção e reprodução, assalariamento e família, classe social e sexo social são considerados categorias indissociáveis" (Hirata & Zarifian, 2009, p. 254).

A ampliação do conceito de trabalho, incluindo o sexo social e o trabalho doméstico não profissional, provocou assim, em consequência, a recusa no plano teórico e metodológico de uma série de categorias dicotômicas e o questionamento de categorias sociológicas construídas exclusivamente a partir de uma população masculina universal (Hirata, 1995).

Nesse sentindo, a problemática da divisão sexual do trabalho beneficiou-se, na sua constituição, do movimento feminista, que nos anos de 1960 possibilitaram

a tomada de consciência de uma opressão específica: tornou-se coletivamente "evidente" que uma enorme massa de trabalho era realizada gratuitamente pelas mulheres, que este trabalho era invisível, que era feito não para si, mas para os outros e sempre em nome da natureza, do amor e do dever maternal. E a denúncia [] se desdobra em uma dupla dimensão: basta de executar aquilo que se conviria chamar "trabalho", e que tudo se passa como se sua designação às mulheres, e somente a elas, fosse automática e que não fosse visto nem reconhecido. (Kergoat, 2009, p. 68)

 O que o movimento feminista denunciava, assim, era a invisibilidade do trabalho doméstico - todo um conjunto de tarefas relacionadas ao cuidado da casa e das pessoas e executadas no contexto da família, essencialmente por mulheres, e de forma gratuita. Trata-se, assim, de uma relação de serviço entre pessoas e que pressupõe disponibilidade permanente do tempo das mulheres (Fougeyrollas-Schwebel, 2009). "Ao contrário do que diz o senso comum, as mulheres sempre trabalharam, e muito. Diariamente, milhares e milhares delas executam um sem número de tarefas indispensáveis à sobrevivência e ao bem-estar de todos os membros da família" (Bruschini & Rosemberg, 1982, p. 9).

Para Bruschini e Rosemberg (1982), o trabalho doméstico envolve um conjunto de atividades que se realizam em dois níveis: no primeiro estão aquelas atividades executadas cotidianamente pelas mulheres para que os trabalhadores assalariados possam descansar e renovar suas forças para o trabalho produtivo do dia seguinte - tratam-se das atividades de limpeza e arrumação da casa, conserto e lavagem das roupas, preparo de alimentos, compra dos bens necessários para os membros da família, dentre outras; no segundo nível, situam-se as atividades implicadas na formação de uma nova geração de trabalhadores para a sociedade - gravidez, parto, cuidados e socialização das crianças.

Essas autoras afirmam ainda que, apesar de imprescindível para a manutenção e reprodução da sociedade do capital, o trabalho doméstico tem sido pouco valorizado e praticamente ocultado pela produção social, já que sua execução se circunscreve ao domínio privado. No entanto, para elas, nem sempre a desvalorização e ocultamento do trabalho doméstico se fizeram presentes - as tarefas domésticas eram executadas ao lado de outras atividades ligadas diretamente à produção social (Bruschini & Rosemberg, 1982). "No passado, a unidade doméstica confundia-se com a unidade básica de produção, toda a família produzia bens e serviços necessários à subsistência do grupo" (Bruschini & Ridenti, 1994, p. 32).

Como já mencionamos, foi a partir da Revolução Industrial que o trabalho passou a ser dividido em duas esferas distintas - de um lado a unidade doméstica, de outro a unidade de produção.

A essa fragmentação correspondeu uma divisão sexual do trabalho, cabendo ao homem o trabalho produtivo extra-lar, pelo qual passou a receber um salário, enquanto à mulher coube principalmente a realização de tarefas relativas à reprodução da força de trabalho, sem remuneração. A ideologia se encarregou do resto, transformando essa rígida divisão sexual do trabalho em uma divisão "natural", própria à biologia de cada sexo. (Bruschini & Rosemberg, 1982, p. 10)

Nesse sentido, o capitalismo soube utilizar, para se fortalecer, as relações de sexos que lhe preexistiam (Kergoat, 1986). Assim, o modo de produção capitalista construiu-se sobre a separação dos lugares e tempos da produção e da reprodução.

No entanto, o trabalho doméstico, forma histórica particular do trabalho reprodutivo, é inseparável da sociedade salarial (Kergoat, 2009). Mas diferentemente do trabalho assalariado, ele é o oposto da objetificação: se dá na esfera privada, está associado às relações afetivas e baseado na permanente "disponibilidade" materna e conjugal das mulheres - e, nesse sentido, é refratário à mensuração (Hirata & Zarifian, 2009).

Para Fougeyrollas-Schwebel (2009, pp. 257-258), a exclusão do trabalho doméstico das mulheres do domínio econômico não decorre da natureza da sua produção: "Quando os mesmos bens são produzidos fora da família, o trabalho que os produz é remunerado e, inversamente, o trabalho das mulheres permanece gratuito até mesmo quando sua produção é objeto de troca no mercado".

Para Louro (2012, p. 21), essa invisibilidade foi "produzida a partir de múltiplos discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo doméstico, como o 'verdadeiro' universo da mulher". A partir desses discursos, os homens podem, legitimamente, escapar do mundo doméstico. Knibiehler (2000, p. 106) nos lembra que "o trabalho assalariado foi organizado no século XI pelos homens e para os homens dispensados do trabalho doméstico.

 

O maternar e suas normas antecedentes

A partir da ideia central de Canguilhem (2011) de vida como capacidade normativa, a perspectiva ergológica afirmará que "o trabalho nunca é totalmente expectativa do mesmo e repetição - mesmo que o seja, em parte" (Schwartz, 2004b, p. 23). "Todos os tipos de infidelidades se combinam, se acumulam, se reforçam uma na outra, no conjunto de um ambiente de trabalho" (Schwartz, 2010, p. 191).

Assim, a vida e o trabalho nos convidam, o tempo todo, a fazer a gestão dos constrangimentos, das incertezas, das infidelidades do meio. O humano, ao trabalhar, não é, portanto, apenas um executor - é gestor de seu trabalho: administra as pressões e exigências; adapta seu ser, seu comportamento em função de variações de seu estado interno e de elementos da situação; decide pelas melhores formas de proceder; inventa "truques", dá "jeitinhos", permitindo, dessa forma, atingir mais seguramente os objetivos. "A gestão, como verdadeiro problema humano, advém por toda parte onde há variabilidade, história, onde é necessário dar conta de algo sem poder recorrer a procedimentos estereotipados" (Schwartz, 2004b, p. 23).

E, se a Ergonomia da Atividade postulou a defasagem irredutível entre tarefa e atividade e revelou a diferença entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado, a Ergologia reafirmou essa diferença, aprofundando e ampliando seu significado, por meio do conceito de normas antecedentes e renormatizações.

Sendo assim, qualquer situação de atividade humana está permeada de normas, designadas por Schwartz (2010) de "normas antecedentes". Antecedentes porque se referem a tudo aquilo que preexiste à atividade - tudo que está lá antes que a atividade se desenrole, tudo que visa guiá-la, orientá-la e quase enquadrá-la. É tudo aquilo que a predetermina.

O conceito de normas antecedentes apreende o prescrito, mas extrapola-o - além das formas de prescrição já elencadas pela Ergonomia da Atividade, e que se referem à organização do trabalho e às condições impostas ao trabalhador, a norma antecedente comporta outras formas de antecipação apresentadas ao trabalhador antes de o trabalho ser realizado e que servirão de referência para os protagonistas da atividade: o patrimônio oriundo de experiências anteriores, de saberes de ofício, de valores daquela cultura, daquele momento histórico. Nesse sentido, é preciso considerar inclusive as próprias normas sociais como antecipações que guiarão, de forma mais ou menos determinante, a situação de trabalho.

O maternar, por se tratar de um trabalho desenvolvido na esfera privada, talvez não esteja, de forma geral, submetido a prescrições tão visíveis ou formalizadas, como acontece com frequência em um trabalho dentro de uma empresa. No entanto, para além das prescrições, existem outras normas antecedentes que poderão enquadrar fortemente o maternar. Sendo um trabalho que existe desde sempre (ainda que com grandes variações ao longo da história humana e em diferentes culturas e meios sociais), o maternar tem um vasto patrimônio conceitual, científico e cultural. Saberes relativamente estabilizados - como aqueles descritos pela Organização Mundial da Saúde, legislações de proteção à infância, Obstetrícia, Enfermagem, Medicina Pediátrica e Psicologia, por exemplo -, mas também saberes menos formalizados, como tradições familiares, dicas dos coletivos de maternagem e expectativas sociais em relação ao maternar. Moura e Araújo (2004) mostram como a história da maternidade e dos cuidados maternos está entrelaçada com a relação entre saberes das mulheres e dos especialistas da medicina e da Psicologia. Abordando a idade média e a moderna na Europa e a história do Brasil, demonstram como esses discursos especialistas vão introduzindo mudanças nas formas de maternagem. Assim, a produção histórica da maternagem envolve uma história de embates entre saberes, e na constituição da sociedade burguesa uma maior valorização do saber científico. Porém, isso não se dá sem resistência, já que, muitas vezes, as opiniões de outras pessoas do círculo de convívio são também consideradas como orientadoras da atividade.

Quando nos propomos, então, a uma reflexão acerca das normas antecedentes do maternar, é preciso considerá-lo em toda a sua complexidade, como fenômeno social múltiplo e diretamente vinculado à história feminina; uma história repleta de invisibilidades, ocultamentos, silêncios, submissão (Scavone, 2004). Assim, mesmo os aspectos ligados à biologia precisam ser compreendidos na perspectiva da História e da cultura.

Ao longo da História, o maternar assumiu diferentes contornos diante de interesses diversos e de variadas descobertas/produções científicas (Knibiehler, 2000, p. 5). No que se refere ao Brasil, podemos evidenciar, por exemplo, na época do Brasil Colônia, as diversas formas de viver a maternidade entre tribos indígenas, entre mulheres negras escravas e mulheres brancas (esposas de poderosos senhores de terras ou mulheres pobres que precisavam trabalhar e cuidar de filhos). Percebemos como a maternidade se diferencia também em experiências a partir das classes sociais e das raças. Como deixar de perceber a importância que tiveram as escravas amas de leite (Priore, 2016) e como as babás de hoje ainda são na sua maioria mulheres negras que passam mais tempo cuidando dos filhos dos patrões do que de seus próprios?

Afirmar a perspectiva histórica da maternidade é fundamental para desnaturalizá-la, avançando para além dos fenômenos biológicos que podem ou não a acompanhar. Analisar o maternar sob essa perspectiva implica entender, por exemplo, as relações de poder aí presentes: "a produção de filhos sempre foi, e continua a ser, um jogo de poder; o controle da fertilidade feminina está vinculado por excelência à dominação de um sexo sobre o outro" (Knibiehler, 2000, p. 5, tradução nossa). É nesse sentido que Badinter (1985, p. 26) afirma que intrínseca à história do comportamento materno é "a surda luta dos sexos". Beauvoir (1970) alerta como a maternidade tem sido vivenciada muitas vezes como um momento de aprisionamento da mulher: como ela vai sendo preparada desde criança para assumir esse papel de uma maneira enganosa, já que em alguns momentos aparece como uma suposta dádiva e, logo após o nascimento da criança, ela se descobre como portadora solitária da responsabilidade de cuidar dela. Então essa mãe, que não tem o apoio social suficiente para compartilhar o cuidado da criança, se vê obrigada a abandonar seus outros sonhos, como o de desenvolver de forma mais independente uma carreira profissional. Beauvoir (1970, p. 278), depois de descrever uma variedade de experiências diferentes de maternidade, afirma que "não existe 'instinto' materno: a palavra não se aplica em nenhum caso à espécie humana. A atitude da mãe é definida pelo conjunto de uma situação e pela maneira porque a assume. É como se acaba de ver, extremamente variável".

Para Chodorow (1990), a maternação das mulheres, como um aspecto institucionalizado da vida familiar e da divisão do trabalho por sexos, se reproduz ciclicamente. A autora vai recorrer à teoria psicanalítica para afirmar que

as capacidades e aptidões das mulheres para a maternação e para obter satisfação nela estão fortemente internalizadas e psicologicamente viabilizadas, e se acham integradas desenvolvimentalmente na estrutura psíquica feminina. As mulheres são predispostas psicologicamente para a maternação por causa da situação desenvolvimental na qual crescem, na qual outras mulheres as maternam. (Chodorow, 1990, p. 60)

Para ela, a divisão do trabalho na família na qual as mulheres maternam dá um significado social e histórico específico ao próprio gênero e esse modo de atribuição de gêneros de homens e mulheres (com personalidades, defesas e capacidades particulares), ao mesmo tempo cria a condição e contribui para a reprodução dessa mesma divisão do trabalho.

No conjunto daquilo que compõe as normas antecedentes do maternar, é fundamental, portanto, que nos debrucemos sobre as relações sociais existentes entre os sexos: articular à análise do maternar uma abordagem sexuada torna-se fundamental, visto que "as relações de gênero têm também um caráter normativo/prescritivo (nesse sentido trata-se de uma imposição do meio), que se apresenta, no entanto, de forma naturalizada" (Brito, 2005, p. 888).

Assim, Brito (1999, p. 64) nos adverte para o caráter naturalizado dessas prescrições de gênero: o processo de socialização que se inicia no âmbito familiar e continua na escola, no casamento, na atividade profissional, "opera como um processo de integração às relações sociais, de designação para lugares específicos na divisão social e sexual do trabalho. Se os meninos são orientados para um 'habitus profissional', as meninas o são para um 'habitus doméstico'".

No entanto, ainda que ajudem a enquadrar a atividade, Schwartz (2010) nos alerta que, no decurso da atividade, a fim de lidar com as variabilidades que se apresentam e de estabelecer uma relação viva e singular com o meio, as protagonistas da atividade operarão reajustamentos das normas antecedentes - vão tentar, permanentemente, reinterpretar as normas que lhe são propostas e configurar o meio como seu próprio meio (Durrive & Schwartz, 2008). A esse processo, no qual as normas antecedentes são postas em correlação com a situação de trabalho, a fim de produzir normas em adequação com as condições reais da atividade, Schwartz (2010) denominou de "renormatizações". Em função das variabilidades que se apresentam e dos vazios de normas, as trabalhadoras renormatizam - apropriam-se das normas, as transgridem, criam novas normas.

Da mesma forma, no maternar, as protagonistas da atividade irão em parte afirmar, em parte contestar as normas heterodeterminadas. Devido aos vazios de normas, será necessário operar uma inventividade e, em seguida, renormatizar as próprias normas, em um processo de (re)criação permanente.

Para dar conta desse trabalho, as mães precisarão se valer de um tipo de saber que extravasa o patrimônio dos saberes organizados, genéricos, lineares (Schwartz, 2010): um saber informal, oriundo de sua experiência concreta, desenvolvido nela e por ela, no encontro - aquilo que Schwartz designou de saberes investidos na atividade, imbricados nela, históricos, situados.

Essa dialética que se estabelece entre patrimônio e encontro irá nos remeter àquilo que Schwartz (2010) designa debate de normas em um mundo de valores, que na atividade se encaixam de diferentes formas. Esse "encaixamento"4 de valores produzido pela atividade se dá muitas vezes em nível inconsciente como uma arbitragem da mãe vivente em encontro com filhos viventes. Schwartz (2011b) propõe então a atividade como dramáticas de uso do corpo-si, para evidenciar essa integração de afetos, raciocínios, pensamentos, motricidades, saberes e valores. Quando uma mãe acalma a criança no aconchego do seu peito, fazendo um balanço e cantando uma música, ou quando a põe para mamar, assume uma posição num debate de normas relacionado a valores.

Assim como a Ergologia, a Psicodinâmica do Trabalho (PDT) também vai se valer da descoberta da defasagem irredutível entre trabalho prescrito e trabalho real, para então explorar de forma relevante o que ocorre nessa defasagem.

 

O maternar e sua inteligência da prática

Dejours (2004) vai propor que existe um real do trabalho que é o que escapa do controle do conhecimento técnico e científico. Portanto, no caso do maternar, mesmo munida com todas as contribuições aportadas pelas técnicas de puericultura desenvolvidas cientificamente ou pelo patrimônio da experiência de parentes e amigas, toda mãe se deparará com situações em que sente que os saberes já aprendidos não são suficientes para lidar com elas. E apesar de um sofrimento inicial de se deparar com o imprevisto que lhe desafia, ela poderá criar formas de lidar com aquela situação inédita e se desenvolver como mãe. Assim, a definição de trabalho da PDT ajuda a compreender como essa atividade envolve não ficar preso ao fracasso: "O trabalho é a atividade coordenada de homens e mulheres para defrontar-se com o que não poderia ser realizado pela simples execução prescrita de uma tarefa de caráter utilitário com as recomendações estabelecidas pela organização do trabalho" (Dejours, 2005, p 43).

Para a Psicodinâmica do Trabalho, melhor do que utilizar os conceitos de falha e de erro humanos seria admitir que o real do trabalho é composto de fracassos, no sentido da tentativa de controlar totalmente as situações pela técnica e pela ciência. Assim, não é uma falha humana, mas uma característica do real a impossibilidade de prever e controlar tudo. E a riqueza do trabalho humano está justamente na possibilidade de retomar a iniciativa nas situações em que se fracassou inicialmente, por meio da mobilização de uma inteligência criativa, que produz novas estratégias e novos saberes (Dejours, 2005).

 Se o trabalho supõe um reajustamento em relação à prescrição dada na tarefa, se supõe percorrer caminhos investigativos que se afastam das prescrições para transpor obstáculos inéditos, será preciso que, em face da experiência do real, homens e mulheres convoquem uma forma específica de inteligência que Dejours denominou de "inteligência da prática": uma inteligência que descobre, que inventa, uma inteligência criativa, fruto da prática.

Todos os que trabalham devem mobilizar uma inteligência inventiva que é parte integrante do trabalho ordinário. (Dejours, 2012, p. 40)

Essa inteligência não fica enquadrada em uma rubrica que normalmente é imputada às competências predefinidas de situação de trabalho. Pelo contrário, é produzida no exercício mesmo do trabalho, da função. Assim, é o trabalho que produz a inteligência e não a inteligência que produz o trabalho. (Dejours, 2004, p. 278)

Esse tipo de inteligência não opera, assim, a partir de problemas dados - é posta em prática para resolver problemas que não existiam. A inteligência da prática está, fundamentalmente, enraizada no corpo - ela funciona graças a uma espécie de mimetismo com as exigências da tarefa, solicitando os sentidos. Remete, assim, à utilização da "sensibilidade" (Dejours, 2005): um ruído (choro), um cheiro (cocô?), uma vibração (espasmos, convulsões, agitações), um sinal visual (manchas, gestos, caretas) podem alertar o sujeito, mas antes chamam a atenção do corpo do sujeito (desde que este tenha vivido uma experiência prévia da situação comum de trabalho), e "suscitam a curiosidade, totalmente tensa desde o início, em busca de uma explicação, e mesmo de uma solução apaziguadora" (Dejours, 1993, p. 285).

Embora não exclua o pensamento racional, a inteligência da prática implica um funcionamento que se distingue fundamentalmente do raciocínio lógico: "É a desestabilização do corpo em seu conjunto, sua situação a partir da reação a determinado estímulo que dá início e passa a acompanhar o jogo dessa inteligência prática" (Dejours, 2004, p. 282). Em algumas situações, a trabalhadora/mãe nem sequer se dá conta conscientemente dos procedimentos que adota, tal é a maneira pela qual eles estão enraizados em seu corpo: é a dimensão corporal que se mobiliza primeiro, e é esse engajamento do corpo o responsável pelos resultados obtidos, não sem uma ocasional insolência em relação aos conhecimentos técnico-científicos.

Operar a partir da noção da inteligência da prática é afirmar que o despertar das astúcias maternas não se opera de forma automática. Mas como explicar então a tal "intuição materna", evocada com frequência pelas mães na tentativa de explicar condutas insólitas? Como explicar o fato de que algumas mães pressentem quando os filhos estão em perigo? Ou como algumas mães são capazes de ouvir o choro de seus filhos a muitos metros de distância ou em locais extremamente barulhentos? Ou como são, muitas vezes, capazes de identificar que seus filhos estão doentes antes que qualquer sintoma visível apareça?

A preocupação materna é um estado de alerta enraizado no perigo, um estado de intranquilidade, de inquietude, de não repouso, a partir do qual se desenvolve uma série de sexto sentidos, uma intuição do perigo incorrido ao outro. [...] Essa apreensão pelo corpo do perigo, nós confundimos equivocadamente com um instinto, porque nós não sabemos explicar esse surgimento sem precedentes. No momento preciso do perigo, é o corpo vivido que detém um saber que a razão ignora. [...] A corporalidade se modifica sobre o efeito do perigo, ela se aguça. [...] Instinto materno? Não, trabalho feminino. Aquele - mais frequentemente aquela - que é habitado pela preocupação materna, dorme com um olho só. (Molinier, 2006, p. 102, tradução nossa)

Lançar sobre o trabalho de mãe os olhares da Psicodinâmica do Trabalho e da Ergologia nos permite compreender a sua dimensão inventiva, gestionária, os esforços, as engenhosidades e a sensibilidade exigidos para uma resposta às necessidades do outro. As teorias do care, por sua vez, nos ajudam a desnaturalizar esses saberes/competências como "qualidades femininas", demonstrando que se tratam de qualificações adquiridas no trabalho de cuidado.

 

O maternar e as teorias do care

As teorias do care5 têm sua origem nos trabalhos de Carol Gilligan no campo da Psicologia do Desenvolvimento Moral. Com base em pesquisas que tinham meninas e mulheres como público majoritário, Gilligan (citada em Molinier, 2012) evidenciou a existência de uma "voz moral diferente", ou seja, de uma forma diferente de resolver dilemas morais. Autoras feministas mostraram, posteriormente, que essa voz diferente não era tanto uma voz feminina, e sim as vozes daqueles (na maioria das vezes daquelas) cuja experiência moral baseava-se em atividades que consistiam em cuidar dos outros. Dessa forma, desnaturalizaram essa voz diferente, situando seu surgimento não em uma pretensa natureza feminina, e sim em uma atividade, o "trabalho de care" (Molinier, 2012).

Desnaturalizar as competências e os saber-fazeres do cuidar da essência feminina não é tarefa simples. Por serem gestadas nas mulheres desde a infância, não é difícil entender porque tem-se a impressão (quando não a certeza) de que as mulheres têm maior habilidade para o trabalho de cuidar. Talvez o termo mais acertado seja familiaridade - o processo gestionário na nossa cultura tem sido muito mais desenvolvido nas mulheres, desde cedo, já no brincar: bonecas, roupinhas e panelinhas fazem parte, em geral, do universo infantil feminino. As meninas são solicitadas com maior frequência para ajudar nos cuidados com a casa, com o irmão menor. De acordo com pesquisa recente (Plan Internacional, 2013)6realizada nas cinco regiões do Brasil, a distribuição de tarefas ou dos afazeres domésticos entre meninas e meninos revela uma gritante desigualdade de gênero no espaço doméstico: enquanto 81,4% das meninas arrumam sua própria cama, 76,8% lavam louça e 65,6% limpam a casa, apenas 11,6% dos seus irmãos arrumam a própria cama, 12,5% lavam a louça e 11,4% limpam a casa; enquanto 34,65% das meninas declararam cuidar do(s) irmão(s), apenas 10% dos meninos o fazem.

É nesse sentido que Brito (1999, p. 64) afirma que a socialização de meninas e meninos está relacionada a futuros diferenciados: "A família de origem é espaço de produção de trajetórias individuais, singulares, únicas, selecionadas entre o conjunto de trajetórias possíveis ou classes de trajetórias sexuadas".

Assim, brincando, ajudando e, muitas vezes, assumindo as tarefas domésticas, as meninas aprendem competências e saberes que, depois de adultas, parecem inatos e intrinsecamente ligados à "natureza" feminina: maior destreza, minúcia, paciência, solicitude, resistência à monotonia e repetitividade... Competências ensinadas às mulheres e por mulheres - qualificações não reconhecidas porque adquiridas no espaço doméstico. Difícil mesmo dizer que já não nasceram com elas.

Conforme apontado, essa educação em parte orientada para o trabalho doméstico não figura com a mesma frequência no universo masculino. Por isso, muitas vezes, para os homens, cuidar de alguém é algo novo, estranho - ninguém lhes ensinou a fazer isso.

A naturalização das competências e dos savoir-faire do care no registro da feminilidade, ou seja, naquilo que é esperado das mulheres, possui como corolário o fato de que estes saberes, quando exercidos por homens - que serão, logo, gentis, pacientes, atenciosos, discretos, delicados - são muito mais valorizados, pois não são uma expectativa em relação a todos os homens. O resultado é que este homem será considerado uma pessoa especial, uma pessoa excepcional que obterá, por conseguinte, maiores gratificações. (Molinier, 2012, p. 33, nota de rodapé)

É o caso, por exemplo, do reconhecimento frequentemente endereçado ao pai que participa dos cuidados dos filhos: "ele é ótimo, 'até' troca a fralda!". É claro que não se pode perder de vista que há mudanças em curso no sentido de uma participação mais ativa do pai no trabalho de cuidado. Mas na forma dominante de organização familiar, o pai ainda é, em muitos casos, no máximo coadjuvante nesse trabalho.

Para Molinier (2012), lançar sobre os conteúdos do trabalho de cuidar a perspectiva de gênero permite que se dê passagem para falas e dilemas do care que mostram uma realidade bem diferente das representações estereotipadas do devotamento e da oblatividade materna. Se substituirmos, segundo a autora, o termo "maternidade" por "trabalho de care doméstico", abriremos uma porta para uma pluralidade de experiências femininas.

A atenção dada ao que conta transforma a visão estereotipada do care como expressão do amor (das mães, das famílias, até mesmo das cuidadoras) ou sua derrapagem estigmatizante rumo à má reputação (mães isoladas, cuidadoras que maltratam...) para interessar-se por visões morais particulares onde a preocupação com os outros expressa-se através de atividades concretas, mais ou menos agradáveis, que solicitam sentimentos ou afetos por vezes penosos, contraditórios, ambivalentes e marcados por defesas. (p. 41)

Molinier (2004) reforça assim que o trabalho de cuidado não é lugar apenas de prazer: cuidar dos outros não é forçosamente agradável. O trabalho de cuidado comporta, inclusive, atividades que se quereria evitar fazer, mas que são da ordem das necessidades vitais - trata-se da dimensão do cuidado que Molinier definiu de "care como trabalho sujo".

As criancinhas [] não geram só sentimentos de amor e de compaixão por parte de quem cuida delas, mas também poderosos desejos de destruição e de ódio. [] A vulnerabilidade do outro e sua dependência podem excitar o ódio no indivíduo normal, seja ele homem ou mulher. A ambivalência, a flutuação dos sentimentos contidos no serviço ao outro não são nenhum mistério para quem tem alguma experiência. Mas esse conhecimento trivial se apaga diante da ideologia tenaz sobre a meiguice natural das mulheres. (2004, p. 228)

O trabalho de cuidado foi, por muito tempo, considerado como estritamente rotineiro, como limitado a uma resposta instrumental aos desejos e necessidades corporais (Molinier, 2006). Para Molinier (2006, p. 101, tradução nossa), no entanto, "Nada é menos mecânico do que a preocupação com os outros que dependem de nós, uma vez que, por sua dependência, os outros nos impõem os ritmos, os contraintes corporais e mentais que não são os nossos, que contrariam e entravam nossos desejos".

Em pesquisa sobre o trabalho de auxiliares de puericultura, realizada em uma creche, Molinier (2004) observou que, como em outros lugares, o aspecto penoso do trabalho era extremamente eufemizado: considerava-se que essas mulheres tinham funções amenas, que o seu trabalho era fácil e agradável, e que não eram requeridas competências particulares. Esse "trabalho com fama de fácil", no entanto, é frequentemente gerador de doenças. Para defenderem-se do sofrimento no trabalho, essas auxiliares embelezavam a realidade, fazendo calar o negativo - trata-se, segundo ela, de uma estratégia coletiva de defesa contra a agressividade gerada pelo contato com as crianças, que se nutre da ideologia da ternura feminina e contribui para reforçá-la.

Afirmando a ambivalência presente nos trabalhos de cuidado, Molinier (2004) faz uma crítica à reflexão feminista sobre o caring labour: ela evidenciou e desnaturalizou, no espaço de trabalho e no espaço doméstico, atividades primordiais sem as quais simplesmente não se poderia viver, mas pecou pelo excesso de otimismo, partindo do suposto que o humano seria naturalmente bom.

Para Molinier (2006), o trabalho materno (também denominado por ela de trabalho doméstico de saúde) implica superar a crueldade inerente à preservação de si, apelando para uma ética que não tem nenhum fundamento natural. Segundo ela, "o ódio das mulheres àqueles que dependem de seu trabalho está demasiadamente ausente das teorias e dos debates sobre a ética da devoção" (Molinier, 2004, p. 240). Poucos autores tratam do ódio materno e ainda menos o fazem sem julgamento normativo.

Segundo a autora, Winnicott (citado em Molinier, 2004) foi praticamente o único a tê-lo reconhecido em seu lugar legítimo na dinâmica normal da relação mãe-filho, tendo inclusive elaborado uma lista de razões pelas quais a mãe odiaria a sua criança.

Dessa lista, pode ser citado, sobretudo, o trabalho minucioso e constante que deve ser levado a cabo para que a vida siga seu curso no ritmo da criança e numa tonalidade afetiva que lhe convenha (sem muita ansiedade etc.). [...] Não é necessariamente o corpo da criança e suas diversas manifestações (cheiros, gritos...) que deslancham o ódio ou a aversão. Pode ser também o fato de se ter que lidar com as agruras do trabalho necessário para que ela não morra. (Molinier, 2004, p. 231)

Se nos basearmos numa representação do care desprovida de ambivalência, corremos o risco de raciocinar como se existisse "trabalho de care perfeito, realizado por pessoas perfeitas e em condições perfeitas de felicidade" (Molinier, 2004, p. 230). Para Molinier (2004, p. 241), só se poderá avaliar, valorizar e reconhecer o trabalho do care sob a condição de renúncia a "embelezar a realidade", abrindo-se, assim, a "caixa-preta da subjetividade".

Outra condição para o reconhecimento do trabalho de cuidado (o de mãe, inclusive) é dar-lhe visibilidade - questão complexa, considerando que o trabalho de antecipação às necessidades do outro, quando bem-feito, não se vê: "Seu sucesso depende em grande parte de sua discrição, ou seja, da supressão de seus rastros" (Molinier, 2012, p. 33). Trata-se da dimensão do cuidado definida por Molinier (2012, p. 33) de "care como savoir-faire discreto": "Esse discreto know-how, encontrado sob diversas formas na maioria das situações de serviço, tem por característica o fato de que sua eficácia depende de sua própria invisibilidade: 'mostrar o que fazemos estragaria o trabalho'" (Molinier, 2004, p. 234).

Um gesto de afeição, de apoio, de cuidado, de atenção, ainda que de grande eficácia, não pode se tornar visível, não pode ser reconhecido como um saber-fazer profissional, como prova de destreza - torná-lo visível arruinaria o valor dessa competência, transformando-a em observação inoportuna (Dejours, 2012).

O "care primordial" que nos é dispensado na infância (Molinier, 2012) é bastante marcado por essa invisibilidade: todos (ou quase todos) fomos servidos, sem nada termos precisado pedir, por uma mãe, uma avó, uma irmã, quase sempre por mulheres. Trata-se de um trabalho que pressupõe um sujeito sempre disponível: "Existe o fantasma de um 'care sem sujeito', inesgotável, sem esperar qualquer gratidão" (p. 33).

Não se percebe esses saberes-fazer senão quando não ocorrem ou quando são malfeitos. Não se pode reconhecê-los como saber-fazer técnicos ou profissionais (Dejours, 2012), o que nos coloca diante de um desafio ainda maior: como reconhecer e valorizar um saber invisível?

 

Considerações finais

Que estatuto atribuir à maternidade? Responder a essa questão envolve uma tensão que atravessa a história dos movimentos feministas, mas também a de numerosas mulheres, que se encontram diante de contradições frequentemente insuperáveis. A maternidade constitui, ao mesmo tempo, uma especificidade valorizada - o poder de dar a vida -, uma função social em nome da qual reivindicar direitos políticos ou direitos sociais, e uma das fontes de opressão. Operadora de divisões, ela estrutura as oposições teóricas das feministas. (Collin & Laboire, 2009, p. 133)

O maternar, como vimos, carrega a marca da invisibilidade e divide opiniões mesmo entre as feministas. Devido à produção histórica discursiva da sua ligação com uma suposta "natureza" feminina (Beauvoir, 1970; Scott, 1995; Rago, 1998), o maternar é, por vezes, sequer considerado trabalho. É visto, com frequência, como uma atividade cuja aptidão é inerente à mulher: para maternar não seriam, assim, requisitadas competências específicas - o "instinto materno" daria conta. A tarefa de cuidar de crianças, mesmo quando reconhecida com o signo do trabalho, tem "fama de fácil": é considerada amena, rotineira, instrumental (Molinier, 2004). Dessa forma, se abre um caminho para a sua baixa remuneração e falta de reconhecimento.

Analisar o maternar na perspectiva das relações sociais de sexo e à luz das teorias do care nos permite, contrariando o senso comum, considerá-lo como trabalho - e dos mais nobres, já que fundamental para a sobrevivência da espécie. Nos permite, em certa medida, desnudá-lo do estereótipo de obrigatoriamente prazeroso, apontar contraintes e demonstrar que seu embelezamento pode ser parte de uma estratégia defensiva - sim, maternar também pode ser, e muitas vezes é, fonte de sofrimento.

Lançar sobre o maternar um olhar ergológico nos permite compreender que ele implica uma gestão de si - do espaço, do corpo, do tempo, da vida - para dar conta de uma criança. Apropriando-nos da deriva trabalhar, gerir (Schwartz, 2004b), afirmamos, assim, o maternar, gerir. Entre o real e o prescrito, o maternar exige que, a partir de um mimetismo com as exigências da tarefa, se opere reajustamentos, rearranjos, subversões, inventividade, uma astúcia transgressora (Dejours, 2004).

Reconhecer no maternar o seu caráter complexo nos permite considerar que ele requer competências específicas, que não são inatas nem prévias, e sim produzidas no trabalho. E uma vez produzidas, acreditamos que essas competências não se limitem necessariamente ao trabalho de maternar. Assim, acreditamos que os saberes que são criados pela mobilização da inteligência criativa para fazer face aos desafios do real do maternar não servem apenas aos seus objetivos iniciais, mas podem ser transpostos para outros tipos de atividade que a mulher vivencia, inclusive as profissionais. Porém, um melhor desenvolvimento dessa afirmação estará presente na continuidade de nossas pesquisas.

Acreditamos na importância de seguir investigando acerca das transformações que essas aprendizagens possam operar na subjetividade de quem materna - e acerca dos possíveis ecos que elas possam ter em outras atividades e nas subjetividades. É importante ressaltar que enfatizar o maternar como atividade de cuidado, que não deve ser necessariamente ligada ao gênero feminino, abre caminhos para novas pesquisas. Até aqui, temos a impressão de que lançar luz sobre as competências desenvolvidas no maternar possa ser um caminho promissor para dar mais visibilidade a este trabalho e à história das mulheres em busca de reconhecimento.

 

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Recebido em 10/11/2016
Aprovado em 19/04/2018

 

 

1 A Ergologia é uma perspectiva ética e epistemológica que afirma princípios para a intervenção de produção de conhecimento sobre a atividade humana enfatizando a importância da cooperação entre saberes acadêmicos e da experiência, a partir da colaboração entre os pesquisadores e os que vivenciam sua atividade numa direção ética construída em comum. Os trabalhadores são, assim, protagonistas e não apenas fontes de pesquisa.
2 A Ergonomia é uma arte de intervenção interdisciplinar que visa compreender o trabalho para transformá-lo. Uma das suas correntes é a Ergonomia da Atividade, que estabelece uma diferença entre o trabalho prescrito e o trabalho efetivamente realizado, já que para fazer face à variabilidade, a atividade humana tem que fazer regulações e transformações na prescrição. Assim, não há como conhecer o trabalho sem análise dessa atividade.
3 Atualmente Laboratório Gênero, Trabalho e Mobilidade (GTM).
4 No original em francês enchâssement.
5 Algumas autoras francesas preferem utilizar o termo inglês care, por acreditarem que o termo soin (cuidado em francês) tem uma excessiva conotação terapêutica. Para Molinier, os termos solicitude ou devotamento seriam igualmente inadequados porque esconderiam a ideia fundamental de que a preocupação pelo outro implica trabalho. O termo care, segundo ela, inclui a ideia de um trabalho social.
6 Pesquisa Por Ser Menina no Brasil realizada pela Plan International Brasil em 2013 com 1.771 meninas de 6 a 14 anos.

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