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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2018

 

A respeito do conceito de experiência na clínica da atividade

 

Regarding the concept of experience in the clinic of activity

 

Con respecto al concepto de experiencia en la clínica de la actividad

 

 

Charis Telles Martins da RochaI; Fernanda Spanier AmadorII

IPsicóloga. Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Servidora do Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4)
IIPsicóloga. Doutora em Educação (UFRGS). Professora e pesquisadora do Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e Institucional, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda os conceitos de atividade e de experiência no escopo da chamada Clínica da Atividade, perspectiva desenvolvida pelo francês Yves Clot, entre outros pesquisadores. Primeiramente, são apresentadas as principais concepções da Clínica da Atividade, as quais se dão a partir da consideração do trabalho como atividade. Expõe-se, em seguida, um rastreio da maneira como o conceito de experiência se apresenta nos escritos da Clínica da Atividade, demonstrando-se que a concepção de experiência encontrada nos estudos de Clot é fortemente influenciada pelas contribuições teóricas do estudioso russo Lev Vigotski. Empreende-se, então, uma discussão a respeito dos limiares conceituais entre atividade e experiência, buscando, com isso, abrir linhas de expansão conceitual e metodológica no campo das Clínicas do Trabalho.

Palavras-chave: Clínica da Atividade. Atividade. Experiência.


ABSTRACT

This article approaches the concepts of activity and experience in the scope of the so - called Activity Clinic, a perspective developed by the French Yves Clot, among other researchers. Firstly, the main concepts of the Clinic of Activity are presented, which are based on the consideration of work as an activity. We then present a survey of the way in which the concept of experience is presented in the writings of the Clinic of Activity, demonstrating that the conception of experience found in Clot's studies is strongly influenced by the theoretical contributions of the Russian scholar Lev Vigotski. A discussion is then undertaken on the conceptual thresholds between activity and experience, seeking to open lines of conceptual and methodological expansion in the field of Work Clinics.

Keywords: Activity Clinic. Activity. Experience.


RESUMEN

El presente artículo aborda los conceptos de actividad y de experiencia en el ámbito de la llamada Clínica de la Actividad, perspectiva desarrollada por el francés Yves Clot, entre otros investigadores. En primer lugar, se presentan las principales concepciones de la Clínica de la Actividad, las cuales se dan a partir de la consideración del trabajo como actividad. Se expone a continuación un rastreo de la manera con que el concepto de experiencia se presenta en los escritos de la Clínica de la Actividad, demostrando que la concepción de experiencia encontrada en los estudios de Clot está fuertemente influenciada por las contribuciones teóricas del estudioso ruso Lev Vigotski. Se emprende una discusión sobre los umbrales conceptuales entre actividad y experiencia, buscando, con ello, abrir líneas de expansión conceptual y metodológica en el campo de las Clínicas del Trabajo.

Palabras clave: Clínica de la Actividad. Actividad. Experiencia.


 

 

Quais os limiares entre os conceitos de atividade e de experiência na abordagem Clínica do Trabalho da Clínica da Atividade?

Tal indagação compõe o feixe de nossas questões de pesquisa - que giram em torno do desenvolvimento conceitual e metodológico em Clínicas do Trabalho1 - e torna-se crucial para nós, tendo em vista as inflexões que nos interessam produzir entre o campo e determinadas perspectivas filosóficas, tais como aquelas relacionadas às analíticas foucaultianas ou, ainda, deleuzo-guattarianas. Tais inflexões são operadas, sobretudo, pelo desejo de investir no caráter político da clínica do trabalho, o que implica investir na reapropriação dos modos de produção de subjetividade (Gondar, 2004) no e pelo trabalho mediante problematização das verdades constituídas por entre o processo normativo que caracteriza a experiência laboral como atividade e, além disso, investindo na abertura à emergência de novos arranjos existenciais por entre a expansão do poder de agir2 (Clot, 2010) de trabalhadores e trabalhadoras.

Afinal, se as analíticas foucaultianas posicionam a experiência como experiência histórica relativa aos jogos de saber, poder e verdade de uma época - enquanto as analíticas deleuzo-guattarianas nos indicam uma dimensão da experiência relativa à imanência do mundo, a experimente(ação) -, como operar com tais perspectivas por entre a concepção que toma a experiência como dimensão relativa ao ato do trabalho?

Movidas por essas indagações iniciais, nas linhas que seguem apresentamos brevemente a Clínica da Atividade como operação que coloca em análise o trabalho como atividade, passando a seguir para a presença do pensamento de Vigotski na Clínica da Atividade e finalizando com considerações acerca dos Limiares Conceituais entre atividade e experiência na Clínica da Atividade.

A presença de Vigotski na Clínica da Atividade se faz com força no que se refere ao conceito de experiência, sobretudo em suas considerações a respeito da arte, e é a partir daí que Yves Clot nos indica um caminho em relação à pergunta que iniciou este estudo. Mencionando Gilles Deleuze, o autor sustenta que o trabalho, tal como a arte, pode transformar nossos afetos em meios de viver outros afetos, pode se oferecer como meio para novos percursos inconscientes em um encontro com o irrealizado em nós, agenciando um devir do inconsciente (Clot, 2015), produzindo-o e recriando-o.

 

Clínica da Atividade: a atividade em análise

Para Yves Clot (2010) e colaboradores, a Clínica da Atividade - abordagem que compõe o chamado campo das Clínicas do Trabalho - tem como mote o entendimento do trabalho como atividade. Tal conceito, para Clot (2010), parte da distância entre Trabalho Prescrito e Trabalho Real, tal como assinalada pelos ergonomistas, uma vez que, quando da realização do trabalho, o Trabalho Real nunca corresponde exatamente ao prescrito. Yves Clot (2006) refere, ainda, uma terceira dimensão, chamada de real do trabalho ou, mais precisamente, real da atividade. Conforme adverte Canguilhem (2002), tal dimensão refere-se a um plano de indeterminação prévia, uma resposta singular que os trabalhadores criam em ato de maneira a dar conta das infinitas variabilidades do meio, o qual é sempre infiel.

[...] o real da atividade é também tudo o que não se faz, aquilo que não se pode fazer, aquilo que se busca fazer sem conseguir - os fracassos -, aquilo que se teria querido ou podido fazer, aquilo que se pensa ou que se sonha poder fazer alhures. É preciso acrescentar a isso - o que é um paradoxo frequente - aquilo que se faz para não fazer aquilo que se tem que fazer ou ainda aquilo que se faz sem querer fazer. Sem contar aquilo que se tem de refazer. (Clot, 2006, p. 116)

A atividade, dessa maneira, envolve todos os caminhos que os trabalhadores percorrem para que as tarefas possam vir a se efetivar.

O trabalho visto como atividade consiste, então, em um plano potencial de ação, em que forças de criação são ativadas para que novos modos de fazer (singulares no sentido de que se expressam no ato de cada trabalhador, mas apoiados no coletivo) possam emergir. Nessa criação de modos sempre novos para realizar o trabalho, característica da atividade, não apenas o trabalho é renovado, mas também aqueles e aquelas que o operam. Na medida em que os trabalhadores se veem confrontados a situações sobre as quais não encontram uma forma preestabelecida de agir, eles são obrigados a também reinventarem a si mesmos no enfrentamento dessas ocasiões. Esse é um dos motivos pelos quais Clot (2006) afirma que o trabalho carrega uma função psicológica específica: o trabalho como atividade transforma o mundo e a subjetividade dos trabalhadores. Subjetividade e atividade, então, se fazem em reciprocidade.

A função psicológica do trabalho consiste, assim, em possibilitar o desenvolvimento subjetivo do sujeito, um desenvolvimento que se dá em intimidade com a transformação concreta do mundo pelos atos do e no trabalho que emergem de sua atividade. Tal função, na perspectiva da Clínica da Atividade, teria um papel crucial na constituição do homem como sujeito relacional e criador, sendo afirmado que "o trabalho é uma base que mantém o sujeito no homem, visto que é a atividade mais transpessoal possível" (Clot, 2006, p. 8).

Segundo Silva et al. (2011), na Clínica da Atividade entende-se que a subjetividade diz respeito ao poder de ser afetado, não estando o poder de agir separado desse poder de afecção. Nessa perspectiva, em todo o tempo o homem encontra-se cheio de possibilidades não realizadas, as quais constituem um campo de forças no qual o sujeito pode agir. É importante, assim, destacar que esse poder de ação não se refere exclusivamente a fazer coisas ou a realizar tarefas; em lugar disso, trata-se de criar alternativas, ou seja, de acionar meios para viver, para fazer o trabalho e, nesse processo, para transformar si mesmo e o trabalho.

Tomar o trabalho como atividade posiciona a questão clínica do trabalho como operação por uma dimensão de transformação do trabalhador e seu meio, transformação essa que é analisada desde a perspectiva das convocações diárias para gerir a distância entre o Trabalho Prescrito e o Trabalho Real - analisada pela ação, portanto. Assim, identificamos uma operação da experiência cuja especificidade refere-se a arranjos que envolvem aderência a esferas normativas para trabalhar, bem como criação em relação a elas.

 

A presença do pensamento de Vigotski na Clínica da Atividade

É em Vigotski que Clot (2010) encontra forte inspiração para o desenvolvimento da Clínica da Atividade, sendo particularmente nesse encontro com as ideias do autor russo que a dimensão da experiência comparece em sua obra. Para iniciar a discussão a respeito da maneira como as ideias de Vigotski sobre o conceito de experiência influenciaram a Clínica da Atividade, nos referimos a um texto de Clot, publicado em 2011 e intitulado Clínica do trabalho e clínica da atividade, no qual ele se propõe a apresentar um resumo das principais formulações que lhe servem de referência. Nesse escrito, o autor defende que as mesmas características referentes à experiência artística, conforme formulada por Vigotski (1999), podem ser encontradas no trabalho do ponto de vista da atividade.

Para Clot (2011), o trabalho, tal como a arte, carrega em si a potência de ser uma fonte de alteridade, um centro de iniciativa e criatividade para os sujeitos. Ao experienciar ambos (tanto a arte quanto o trabalho), no entendimento de Clot, temos a possibilidade de acessar planos de forças circulantes, as quais o autor remete ao que Vigotski refere como "o social estando em nós" (Clot, 2011, p. 77). Tais forças são consideradas fonte de energia vital, uma vez que se entende que esse social que está em nós é, antes de tudo, um conflito. Nesse sentido, o que se produz nesse tipo de experiência diz respeito às disputas de forças de um social que se acessa na experiência. O autor explica que é nesse encontro de devires que a criação do novo em nós pode ocorrer, escapando das repetições de um inconsciente ancorado no passado. É importante destacar aqui que, no texto ao qual estamos nos referindo, Clot (2011) faz questão de diferenciar o tipo de produção psíquica, que para ele se dá por meio do trabalho como atividade - como criação de novas possibilidades, portanto tratando-se de produções de um inconsciente distinto daquele concebido pela Psicanálise, o qual se assentaria na reprodução de conflitos infantis. Esse aspecto nos parece crucial para compreendermos a noção de experiência tomada na Clínica da Atividade a partir das concepções de Vigotski: trata-se de uma possibilidade de produção "transformante" de si mesmo a partir do encontro com um social que nos atravessa.

É somente quando ele cessa de ser conflito e a vida social se fecha à controvérsia que o infantil pode exercer seu monopólio sobre o inconsciente. Enquanto o futuro segue longínquo e indeterminado, os devires em conflito atravessam e circulam na atividade psicológica e a levam a se determinar. Essa atividade, no sentido estrito, só é determinada pela infância quando se encontra apartada das possibilidades presentes de tornar-se outra. Nesse caso, ela não manda mais na infância, ela está à disposição dela. (Clot, 2011, pp. 77-78)

É na obra de Vigotski (1999), então, que Clot encontra subsídios para apontar as condições sob as quais esse novo pode se produzir no trabalho. Referindo o livro do autor russo, intitulado A Psicologia da Arte, Clot afirma a semelhança entre o mecanismo de produção criativa de si mesmo, que se dá na experiência artística, com o que se passa na atividade de trabalho. Por esse motivo, faz-se necessário voltarmo-nos à leitura do próprio conceito de experiência em Vigotski, procurando elucidar como tal conceito reverbera nas construções da Clínica da Atividade.

Primeiramente, é preciso situar o termo utilizado pelo russo ao se referir à experiência: Perejivânie. Trata-se de palavra de uso comum no russo, porém sem tradução exata para o português. Sendo assim, pode-se encontrar a mesma palavra traduzida tanto como "experiência", "vivência", "emoção" e "sentimento" (Prestes, 2010). Atuais estudiosos brasileiros da obra do autor, contudo, apontam a tradução "vivência" como o termo que manteria mais fidelidade à ideia pretendida por Vigotski (Prestes, 2010; Toassa, 2009). Conforme Toassa (2009), a utilização do termo pelo autor relaciona-se com o sentido que indica o dicionário de russo: "Perejivânie - substantivo de gênero neutro. Estado de espírito (alma), expressão da existência de um(a) forte (poderosa) impressão (sentimento); impressão experimentada" (Toassa, 2009, p. 55).

Tal termo serviria para expressar a ideia de que uma situação objetiva pode ser interpretada, percebida, experimentada ou vivida diferentemente por diversos sujeitos. A perejivânie, como utilizada pelo autor russo, refere-se a um tipo de evento que tem uma característica de transformação, de marcar uma diferença nos sujeitos nos quais ela se dá. A tradução que tem se feito para o termo "vivência" é apontada como a mais precisa, inclusive, pela associação à ideia de vida, de vivacidade, de movimento vital transformador. O autor confere, ao utilizar o conceito, um sentido geral de interação entre o sujeito e o meio, de maneira que a apreensão do real não se dá como mera interpretação, nem como mera emoção, tratando-se de um efeito que integra vários aspectos da vida psíquica (Toassa, 2009). A tradução de perejivânie como "vivência" decorre da aproximação da própria palavra ao verbo "viver" - perejit.

Encontramos aqui, então, um primeiro aspecto que pode ter servido de inspiração às formulações da Clínica da Atividade. A perejivânie de Vigotski, como uma ideia de vida que se recria na experiência, remete à concepção de saúde como recriação constante de possibilidades de viver, como defendida por Clot (2010), que reconhece a atividade como experiência vital, experiência de criação de vida.

Duas outras dimensões presentes na análise da palavra perejivânie são ainda bastante relevantes de se observar. A primeira delas é que na composição da palavra encontra-se a partícula que indica a ideia de "trans" ou "através de". Ou seja, há a concepção da perejivânie como algo que se atravessa (por exemplo, atravessar um período difícil) ou de que algo ocorre através dela. Pode-se pensar que tal tipo de experiência não é algo que se dê "de fora para dentro", pelo contrário, ela produz seus efeitos exatamente por atravessar sujeitos e contextos. Trata-se de uma experiência que diz respeito a uma relação transversal e não a uma simples troca entre instâncias isoladas.

O outro importante aspecto ligado à palavra diz respeito à natureza do verbo relacionado à perejivânie ser de natureza imperfectiva. Isso significa que esse verbo se refere a ações inacabadas, sejam no presente, no passado, no futuro, aludindo ao fluxo de seu acontecer. Dessa forma, a expressão sempre é utilizada para significar vivências de finalização incerta, seja em ocorrências habituais ou não (Toassa, 2009). Esse aspecto parece ser de especial interesse às formulações da Clínica da Atividade, uma vez que, ao tratar da experiência proporcionada pelo real da atividade de trabalho, Clot refere que a mesma precisa ser um meio para viver outras experiências (Clot, 2001). Ou seja, uma experiência que possibilite aberturas, que seja fértil para gerar outras novas experiências.

Nesse aspecto, a fecundidade entre as concepções de atividade e experiência na própria Clínica da Atividade se faz presente. Dizemos isso considerando que, como destacam Silva et al. (2011), o objetivo da clínica diz respeito à realização das atividades do sujeito e seus impedimentos, isso porque a ideia de desenvolvimento da atividade está ligada a poder traçar novos objetivos e experimentá-los. Essa problemática, assim, parece-nos demonstrar o reconhecimento de que há todo um campo experiencial no qual a efetivação e o desenvolvimento da atividade encontram-se imbricados.

Considerando que em Clínica da Atividade trata-se de pensar a articulação entre atividade e subjetividade, esse parece ser um ponto em que as contribuições de Vigotski mais uma vez se fazem valer de modo especial, pois, como seguiremos vendo, a própria noção de perejivânie aponta para uma conexão entre desenvolvimento humano e subjetividade. Além disso, é apoiando-se no autor russo que Clot (2006) afirma que o real da atividade sempre é maior do que a atividade realizada. A articulação entre real da atividade, experiência e criação do novo é referida diretamente pelo autor ao reconhecer que é na possibilidade de abertura a viver novas experiências que o trabalho permite a descoberta de novas possibilidades, que se afirmam como atos criadores no trabalho.

À clínica da atividade interessará, então, compreender as relações entre o real e o realizado e em que condições a experiência vivida pode ser ou vir a ser um meio de viver outras experiências, já que, estudando detalhadamente aquilo que os trabalhadores fazem, aquilo que eles dizem do que fazem, mas também aquilo que eles fazem do que eles dizem, nós desembocamos em um reconhecimento das possibilidades insuspeitadas pelos próprios trabalhadores. (Clot, 2001)

Ainda em relação à natureza inacabada da perejivânie, Toassa (2009) refere uma característica peculiar reconhecida na vivência como concebida por Vigotski, ela diz respeito a uma dimensão que pode estender-se ao passado e ao futuro da existência humana, presentificando elementos importantes na orientação das ações humanas. Trata-se de uma experiência que não se encerra no espaço e sim no tempo, no qual passado, presente e futuro encontram-se para seguirem produzindo-se mutuamente. Nesse sentido, a consideração de Clot (2001) a respeito da potência de uma experiência de trabalho que sirva de abertura para se fazer novas experiências encontra suporte no conceito descrito pelo autor russo. A vivência da qual nos fala Vigotski é algo que não se encerra nela mesma, sendo potente à realização de conexões espaciais e temporais, valendo-se das construções passadas para, a partir do presente, construir um futuro.

Uma das principais problematizações de Vigotski ao abordar a perejivânie trata-se da discussão da relação entre a cognição e o afeto a ela concernentes (Toassa, 2009). Não podemos esquecer que os estudos do autor russo disseram respeito, principalmente, ao desenvolvimento infantil. Nesse contexto, ao tentar desvendar os mecanismos que levam as crianças a adquirirem habilidades, a problemática entre os papéis desempenhados pela cognição e pelos afetos nesses processos se mostrou fortemente presente. Nesse sentido, a utilização do conceito de vivência teve um importante papel de articular tais dimensões. Segundo nos esclarece Toassa (2009), ao longo dos escritos de Vigotski as vivências deixam de ser apresentadas como sustentáculo irracional do psiquismo - mais próximo ao que seria o campo das emoções - para se mostrarem como articuladoras do pensamento, o qual passa a não se dar isoladamente das emoções. O autor chega a utilizar o conceito de perejivânie para referir-se à unidade sistêmica da consciência/personalidade, um conceito coringa que delimita a nossa relação com o mundo desde o nascimento (Toassa, 2009). Dessa forma, condensa em um campo comum tanto sujeito e meio quanto emoções e pensamentos, bem como dimensões psíquicas e sociais, tanto individuais como coletivas. Tal especificidade seria a chave para compreender o tipo de experiência que leva os sujeitos ao desenvolvimento. É importante, porém, destacar que os estudiosos de Vigotski reconhecem que o conceito de perejivânie não está plenamente desvendado no autor, levantando a questão sobre a importância de ampliar a relação entre a consciência da criança e sua atividade no ambiente circundante e em sua realidade objetiva (Toassa, 2009).

Nessa direção, Yves Clot sustenta que os homens só trocam saberes estando ligados entre si por interesses, motivações, afetos e emoções, quando estão envolvendo relações entre realização do gesto, confiança e autoridade social do outro. Descartar as relações entre essas dimensões é fazer da atividade um "simples apêndice da cognição, sua sombra impotente e vã" (Clot, 2006, p. 157, citando Vigotski). A efetivação da atividade como tal se daria em meio ao que o autor identifica como uma "experiência psicológica desdobrada". Para Clot (2006), a atividade - dirigida, ao mesmo tempo, ao objeto, aos outros e a si mesma - é a maneira de conciliar as dimensões cognitivas e afetivas, de forma a colocar em curso o desenvolvimento do qual trata Vigotski.

Considerando que os estudos do autor russo se concentraram principalmente no desenvolvimento infantil, tratando, muitas vezes, de especificidades concernentes a esse período de vida, o uso que Clot faz das ideias do autor a respeito da perejivânie remete, em grande parte, aos escritos a respeito da Psicologia da Arte (Vigotski, 1999). Em tais escritos, é possível reconhecer os princípios da perejivânie, a respeito dos quais vínhamos tratando até o momento, todavia potencializam-se, ainda, outras relações, tendo em vista as referências não mais apenas do desenvolvimento infantil. A potente premissa de Vigotski em relação à arte é a de que ela representa o social em nós, tendo, dessa forma, como função a superação do sentimento individual (Prestes, 2010). Por meio dela, é possibilitada a transferência de uma vivência comum, estando situado aí, também, seu aspecto criativo. A concepção de social exprimida por Vigotski, da maneira como apropriada na Clínica da Atividade, nesse sentido, parece dizer respeito a uma dimensão que se refere a um coletivo no qual os sentidos não se encontram cristalizados; um campo de sentidos compartilhados, mas não encerrados em si mesmos, no contato com os quais os trabalhadores têm a possibilidade de se produzirem de maneira diferente, de expandirem suas possibilidades de viver, produzindo-se por singularidade, de forma coletiva em lugar de individual.

Tendo como ideia básica a relação entre sujeito e meio, no contexto artístico a experiência (perejivânie) se referiria a uma relação imediata, direta e irrefletida entre crítico e obra e entre crítico e leitor (Toassa, 2009). A apreciação/leitura (tratando-se de uma obra literária) da obra produziria no espectador/leitor um forte impacto, o qual permitiria uma apreensão e reconstituição ativa da obra por ele. No encontro entre leitor e obra, é possível que se transmitam emoções, ideias, sensações e percepções. Experienciar algo seria, assim, participar de uma realidade impactante, aprendida pelo sujeito sem julgamento a priori (Toassa, 2009). Tal ausência de julgamento, porém, não diz respeito a uma transposição simples de um polo a outro de um conteúdo sem modificações. A ausência de julgamento pode ser entendida mais como a supressão do olhar de um ponto de vista individualizante, uma dissolução do ponto de vista do que seria um observador meramente externo. Isso ocorre na medida em que, quando sensibilizado pelo encontro com a obra de arte, o sujeito acessa conteúdos de um plano comum que lhe atravessa.

O engolfamento do receptor pela obra de arte proporciona que o sujeito mais participe, reaja, julgue, ou seja, crie uma espécie de "campo transicional" entre receptor e obra. As vivências revestem-se de um caráter irracional, marcado por sentimentos e sensações que demandam compreensão, porém, após sua vivência. [...] abole-se, no plano analítico, o limite entre o sujeito e o objeto da experiência. (Toassa e Souza, 2010, p. 763)

Cada sujeito, porém, passa por essa experiência de maneira singular, condizente com suas características próprias, sua história, seu contexto. A transmissão própria da vivência, como formulado por Vigotski (1999), diz de uma relação entre o sujeito - em suas características pessoais singulares - com o meio no qual se encontra.

Conforme sublinha Toassa (2009), o conceito de vivência em Vigotski (o qual estamos tomando como experiência) liga-se sempre à análise dos dramas e conflitos humanos. O próprio termo "vivência" refere-se, também, a um processo básico da vida humana, sendo utilizado pelo autor como um acontecimento profundo na existência da pessoa real ou do personagem na arte. Assim, com a experiência dita artística, o sujeito é confrontado com um universo social nem totalmente externo e nem interno a ele. Trata-se de configurações ou circulação de forças, as quais se referem a um contexto do qual o sujeito participa, gerando, no encontro com suas particularidades, um acontecimento que modifica o sujeito na sua maneira de interagir com o mundo.

Clot (2011) reconhece, nesse processo, algo que se aproxima do funcionamento do inconsciente como pensado por Deleuze, um inconsciente que é lugar de produção em vez de apenas reprodução de marcas antigas (Clot, 2011). Ao se referir à concepção de Vigotski (1999), afirma que a experiência artística, ao produzir o conflito de sentimentos - tornando presente para o sujeito o plano de forças coletivas em contato com sua singularidade - permite imaginar novos destinos para os nossos afetos e paixões. A arte seria, então, um meio pelo qual os afetos podem ser transformados, uma "via para viver novos afetos e dar forma ao inacabado" (Clot, 2011, p. 78), assim como é o trabalho para Clot. Segundo o russo (Vigotski, 1999), as obras de arte teriam uma potência de operarem procedimentos próprios do inconsciente, porém de natureza social, sendo capazes de despertar conflitos que ultrapassem a história pessoal de cada um. A arte é tomada, assim, como um devir social do inconsciente, não derivando de um inconsciente já produzido, mas recriando o próprio inconsciente em novas produções, no encontro do coletivo com o singular. E é exatamente nesse aspecto que Clot (2011) afirma existir a mesma potência no trabalho. Parafraseando Deleuze, Clot alega que o trabalho, assim como a arte, é um meio privilegiado de "fazer diferença" (Clot, 2011, p. 79) na história subjetiva. Por meio dele - sendo visto da mesma perspectiva da experiência artística de Vigotski - é possível a produção de um "objeto transpessoal inacabado", sendo a esse objeto que se atrela uma Clínica da Atividade (Clot, 2011, p. 80). Esse aspecto do trabalho como experiência transpessoal criadora, como processo que trata da produção de problemas comuns a partir dos quais se modificam os sujeitos e o mundo, nos é muito cara para pensar uma clínica do trabalho que compõe os conceitos de atividade e experiência.

A partir de tais concepções, podemos perceber como a ideia de experiência encontra-se intimamente ligada à dimensão coletiva, tanto em Vigotski quanto em Clot, como uma zona não personalizada de forças por onde ganham passagem o trabalhador e seu trabalho. Ao tratar dessa dimensão, Vigotski (1999) fala de algo que não é próprio de um ator e, então, repassado a outro; a transmissão concernente à experiência artística diz respeito a algo que só é transmissível por já habitar algum tipo de plano comum. Dessa forma, na sensibilização pela arte abre-se ao sujeito a possibilidade de acessar matérias que não dizem mais respeito ao indivíduo isolado (no sentido de serem próprias de uma individualidade), mas que se arranjam com as singularidades, efetuando novas composições. Tais composições referem-se a um plano coletivo, sendo sensíveis às contribuições próprias dos sujeitos que o habitam.

Mais uma vez podemos reconhecer uma influência das ideias de Vigotski no desenvolvimento de conceitos da Clínica da Atividade. A concepção de uma experiência capaz de modificar os sujeitos ancorada em um coletivo guarda relação com um dos operadores essenciais dessa clínica, o gênero profissional, por meio do qual se possibilita aos trabalhadores o acesso a um patrimônio coletivo para que consigam realizar o trabalho (Clot, 2010). O gênero tem sua estabilidade sempre transitória, valendo-se constantemente das renovações efetivadas pelas estilizações singulares expressas no ato de cada trabalhador que, por singularidade, oferece outras formas de lidar com os desafios que o trabalho coloca. O estilo, então, coloca-se como instrumento da ordem de singularidades capaz de transformar os gêneros, proporcionando que se mantenham em "estado de funcionamento", isto é, de forma que possam transformá-los e desenvolvê-los (Clot, 2010). Os gêneros, assim, só podem manter-se vivos com a operação dessas constantes atualizações estilísticas, e a possibilidade de os coletivos se manterem em atividade passa por essa estilização dos gêneros. Com a efetivação dos estilos se realiza o enriquecimento tanto dos contratos sociais consigo mesmo quanto das relações pessoais estabelecidas com os outros. Constata-se, assim, uma clara apropriação das ideias de Vigotski a respeito da perejivânie, a qual concilia em si a habitação de um plano coletivo com as contribuições singulares dos sujeitos, que se afirmam de cada um, mas que emergem de uma singularidade coletiva. Nesse entendimento, as contribuições singulares são sempre emergentes de um coletivo, de outra forma seriam contribuições individuais. Entendemos que é por esse motivo que tais processos guardam em si uma potência de contágio, pois tratam de formulações que emergem de problemas que são compartilhados.

Nessa proposta de rastreio do conceito de experiência na Clínica da Atividade, na qual as contribuições de Lev Vigotski se destacam, encontramos outro elemento conceitual que nos ajuda a compreender o entendimento da experiência nas formulações de Yves Clot, elemento esse que também se deve muito às influências do autor russo: a importância do papel da linguagem e do diálogo se faz presente nas teorias dos dois autores em questão (Vigotski e Clot). A visão dialógica encontra-se bastante presente na escola russa, tendo como seu maior entusiasta Bakhtin, o qual fez do diálogo um de seus principais conceitos. É principalmente por essa via que Clot remete-se ao tema, o qual toma uma dimensão considerável, também, na Clínica da Atividade, principalmente no que se refere a problematizações metodológicas. É interessante, entretanto, destacar aqui que tal temática também se apresenta nas discussões de Vigotski em relação à experiência. Como nos explicam Toassa e Souza (2010) em suas formulações a respeito da perejivânie, o autor russo alude à linguagem o laço que relaciona os conceitos de tomada de consciência (no sentido da relação de compreensão que estabelecemos com algo) e experiência. É pela linguagem que as experiências podem "se processar" nos sujeitos, adquirindo sentidos que se referem tanto aos objetos e à cultura quanto a eles mesmos. A linguagem seria vista, assim, como um meio de apropriação e transmissão das experiências.

Ao pensarmos na maneira de transmissão de experiências, podemos, ainda, avançar em mais uma relação entre experiência e linguagem encontrada nas leituras de Vigotski (1999): a linguagem é o meio pelo qual se possibilita a transmissão da experiência. "A comunicação, estabelecida com base na intenção de transmitir ideias e perejivaniia, exige necessariamente um sistema de meios cujo protótipo foi, é, e continuará sendo, a linguagem humana, que surgiu da necessidade de comunicação no processo de trabalho" (Vigotski, 2001, como citado em Delari & Passos, 2009, p. 30).

Na Clínica da Atividade, a utilização da linguagem é valorizada como algo de grande importância. A perspectiva dialógica é a base para a afirmação de que nas trocas verbais o novo tem possibilidade de emergir, transformando os sujeitos em meio à relação de diálogo que estabelecem. Clot (2006), citando Bakhtin, aponta o diálogo como um procedimento para descobrir e desvelar um vivido encerrado. Nesse ponto de vista, na concepção construída nessa clínica, o diálogo é utilizado não apenas como instrumento para se compartilhar as percepções sobre o trabalho, mas como uma atividade. "A verbalização é uma atividade do sujeito em si mesma e não apenas um meio de acessar outra atividade" (Clot, 2010, p. 146). Desse modo, cada sujeito tem a possibilidade de reformular sua ação ao se dirigir aos demais nesse movimento dialógico, encontrando, sem forçosamente procurar, algo novo de si mesmo. Estar em atividade de diálogo possibilitaria, dessa forma, a construção efetiva de novos modos de viver/trabalhar por meio do favorecimento da estilização do gênero profissional, o que implica no fortalecimento da dimensão coletiva do trabalho, entendendo que o real da atividade (Clot, 2010) - com o qual os sujeitos se encontram nesse movimento - sempre trata de uma dimensão não individualizada dela.

Indagamos, assim, limiares entre a concepção do diálogo como atividade, conforme expresso por Clot (2010), e o diálogo como produção e transmissão de experiência, segundo as formulações de Vigotski. Os próprios métodos utilizados pela Clínica da Atividade já apontam para o diálogo como meio de acessar e se fazer certa experiência que interessa. Clot (2001) afirma que o ciclo dialógico entre o que os trabalhadores fazem, o que dizem acerca do que fazem e o que fazem do que dizem pode ser uma forma de eclosão de possibilidades insuspeitadas pelos próprios trabalhadores, e que tal movimento se relaciona às condições de se fazer da experiência uma abertura para viver novas experiências. O diálogo, assim, pode ser visto como uma atividade que transforma a experiência vivida em um meio de viver outras experiências. Pensar nesse sentido talvez seja uma chave para elucidar a relação entre atividade e experiência: a atividade de diálogo como motor para seguir a experiência, como um mecanismo pelo qual ela se torna frutífera, tornando-se transmissível e fértil para gerar outras experiências.

Tal entendimento pode ser também embasado nas ideias de Vigotski que diz que a fala da criança consigo mesma, realizada em meio a uma comunidade, tem potência de modificar, senão mesmo de produzir, perejivânie (Delari & Passos, 2009).

 

Limiares conceituais: atividade e experiência na Clínica da Atividade

Em relação aos limiares dos conceitos de atividade e experiência na Clínica da Atividade, pudemos constatar que Yves Clot não se ocupa de precisar as diferenças entre tais definições. O autor, inclusive, não se detém no conceito de experiência, interessando-lhe, sobretudo, a concepção de atividade. Em nossas leituras, demonstrou-se que a aproximação do conceito de experiência de Vigotski serviu para que Clot formulasse sua visão da potência concernente ao trabalho, levando-o, assim, a desenvolver o conceito de atividade no escopo da Clínica da Atividade.

Vigotski, por tratar de questões relacionadas ao desenvolvimento humano, foca-se na superação de obstáculos com os quais o sujeito se depara ao longo de sua vida. Segundo Toassa (2009), foi o olhar para a problemática das crises de desenvolvimento que mostrou ao psicólogo russo a necessidade de trabalhar com a perspectiva da experiência, uma vez que tais crises não correspondiam diretamente a modificações no ambiente, ou seja, não podiam ser atribuídas apenas à reação da criança a fatores externos. Tal constatação se deu com a realização de experimentos que demonstravam que estímulos externos poderiam fazer com que a criança desenvolvesse respostas mais elaboradas, porém essas respostas não eram assimiladas consistentemente quando não havia um contexto social no qual tais estímulos fariam sentido. Conforme explicam Toassa e Souza (2010), nesse contexto o conceito de experiência relaciona-se à negação da preeminência das características da personalidade ou do meio, privilegiando o encontro de ambos como unidade de análise, sem com isso ter que se referir a fatores inacessíveis ao investigador. Segundo tal perspectiva, o desenvolvimento de novas características para lidar com desafios que se impõem apenas se mostrou possível na confluência entre a apresentação dos desafios, as características das crianças e o acolhimento das respostas desenvolvidas no meio social no qual a criança estava inserida.

É se deparando com conflitos que o humano tem a possibilidade de se desenvolver, apropriando-se, de certa forma, do que o plano comum lhe fornece, mas imprimindo na resolução de desafios concretos sua marca pessoal na maneira que se desenvolve, de forma a conseguir superar tais desafios. Foi nesse contexto que Vigotski sentiu a necessidade de utilizar-se da ideia de experiência, de modo a dar conta de como o desenvolvimento é possibilitado considerando os desafios externos, o contexto social e as características singulares dos indivíduos. Nesse aspecto, evidencia-se a influência de Vigotski no desenvolvimento do conceito de atividade de trabalho na perspectiva tomada por Clot. Ao tratar do trabalho como sendo da ordem da gestão de um meio sempre infiel (Canguilhem, 2002), ele afirma que é nesse tipo de experiência que o sujeito se vê compelido a desenvolver novas maneiras para viver, necessitando sustentar-se em um coletivo, o qual se encontra sempre aberto a constantes contribuições singulares.

A discussão sobre as relações entre experiência e atividade já se encontrava esboçada nos escritos de Vigotski, porém, como apontam Prestes e Tunes (2012), o estudo do próprio conceito de perejivânie não foi esgotado pelo autor. "O conceito de perejivânie não está plenamente desvendado em Vigotski e levanta a questão sobre a importância de aprofundar a relação entre a consciência da criança e sua atividade no ambiente circundante e em sua realidade objetiva" (Prestes & Tunes, 2012).

Após as leituras realizadas, arriscamos, contudo, afirmar que na própria concepção de Vigotski (1999) a respeito da experiência artística há uma pista para um tipo mais amplo de experiência. O autor trata de certo estranhamento familiar que a arte é capaz de provocar nos sujeitos, algo que impacta sem repelir e traz já consigo o acesso a sentidos aos quais o indivíduo não tinha conhecimento anteriormente, mas que se processam nele como algo da ordem coletiva. Afirmamos a diferença nesse aspecto da experiência em relação à atividade de trabalho, uma vez que nos parece haver aí um tipo de convocação diferenciada, que não se refere apenas a lidar com situações práticas a resolver, mas também diz respeito a dar conta de poder se produzir diferentemente ao ser confrontado com produções de um coletivo no qual o sujeito habita produzindo diferença.

O trabalho carrega a potência de realização da atividade, na medida em que convoca o sujeito a agir criadoramente, a reinventar a si mesmo e ao mundo para dar conta das imprevisibilidades do real. É citando o próprio Vigotski que Clot (2006) fala da necessidade de encontrar um meio em que se experimente a abertura para viver novas experiências, um plano no qual se possibilite um encontro das singularidades do sujeito com as forças e sentidos coletivos, no qual se dê uma abertura para que novos sentidos e novas formas de ser a si mesmo se efetivem. Essa perspectiva nos remete a pensar, ainda que não enfrentemos tal questão mais detidamente no escopo deste artigo, em um diálogo a respeito do que podemos identificar como uma "experiência ética de si" no pensamento de Foucault (1984), na direção da produção de uma clínica do trabalho como experiência que seja crítica. O aspecto da experiência como experiência de si parece já se afigurar, inclusive, em um dos sentidos dado pelo próprio Vigotski, como referem Delari e Passos (2009). Tais autores trazem à tona a compreensão do pensador a respeito de uma unidade de consciência que pensa a si mesmo como perejivanie perejivanii, ou "experiência de experiências".

Considerando que a atividade seria possibilitada no bojo da experiência, nos questionamos a respeito de que condições então são necessárias para que a experiência se realize. Parece-nos que Vigotski não se coloca tal questionamento, uma vez que considera a experiência como um conceito útil para explicar processos que sempre se dão na vida humana.

A vivência é campo de conflitos, entreposto do funcionamento psíquico concreto, linguagem do impacto vital do entorno no sujeito. [...] significa a própria existência do sujeito psicológico na ontogênese; de um cérebro ativo desde o seu nascimento; de um "estado espiritual suscitado por impressões e sensações". [...] se trata simplesmente da relação interior da consciência com o meio e não um estado psicológico especial. Embora nas vivências se realizem também as dinâmicas profundas da personalidade e do discurso, não se relacionam apenas às situações de grande impacto emocional. (Toassa e Souza, 2010)

Já na Clínica da Atividade, encontra-se colocada a problemática de como fazer com que a experiência seja geradora de outras experiências, dúvida na qual o fazer da atividade vem a intervir nesse sentido. Algumas pistas a respeito dessa questão podem ser encontradas no livro A Função Psicológica do Trabalho (Clot, 2006), no qual o autor se debruça na análise de certas situações concretas de trabalho e indica determinadas condições para que o trabalho se efetive como potência de agir.

[...] um estado emocional pode transformar-se num sentimento desenvolvido, "um sentimento do segundo grau", uma obra, instalada no coração da pessoa. Porém, para fazê-lo, são necessários tempo e uma organização do trabalho que facilite essa sedimentação no curso do qual as emoções se convertem em um instrumento de ação eficaz. (Clot, 2006, p. 33)

Seguindo em tais considerações, Clot (2006) refere-se a um primeiro pressuposto para a atividade humana, o qual Vigotski chama de "experiência histórica". Tal experiência relaciona-se ao uso de ferramentas e signos construídos socialmente, o que não se daria de maneira automática; a existência desses signos e ferramentas de uma forma que possam servir para o uso depende de uma passagem pelo gênero. "Nenhuma invenção técnica local entra no sistema técnico sem passar pelo acabamento de um gênero social" (Clot, 2006, p. 154). É preciso, então, existir uma sociedade e meios organizados para haver a transmissão de uma tradição, que deve ela mesma ser renovada. Dessa maneira, essa "experiência histórica", a qual se refere Vigotski (como citado em Clot, 2006, p. 157), só ocorre em determinadas condições, reconhecidas como o saudável desenvolvimento dos gêneros, incluindo suas renovações estilísticas. As ferramentas e signos que compõem um ofício e que servirão para que se possibilite a atividade de trabalho de um sujeito só se tornam realmente úteis quando investidas pela atividade de indivíduos que mobilizam o gênero vinculado com a situação (Clot, 2006). Nesse movimento, há a efetiva apropriação dessas ferramentas disponíveis no gênero, processo esse que carrega o sujeito para "dentro" do gênero do ofício, bem como carrega o ferramental disponível no ofício para a gama de possibilidades do sujeito. Importante destacar, bem como o fez Yves Clot (2006), que tal movimento não se trata de uma interiorização ou uma absorção de informações. A ferramenta de trabalho e o signo, como tais, e mesmo as técnicas do corpo, à sua própria maneira, não pertencem espontaneamente ao mundo psíquico do sujeito, elas só passam a lhe pertencer depois da apropriação por ele. Essa não é uma interiorização. Sua pertinência ao mundo psíquico vem da atividade psicológica do sujeito na comunidade dos outros sujeitos (Clot, 2006). Como referido diretamente pelo próprio autor, porém sem dar grande atenção a isso, tal apropriação é a própria experiência se fazendo.

Concluindo nossas considerações a respeito dos limiares entre os conceitos de atividade e experiência na Clínica da Atividade, entendemos que as formulações dessa abordagem indicam a existência de uma dimensão da experiência que permite que a atividade se realize na direção da ampliação do poder de agir e, em consequência, na promoção de saúde pelo e no trabalho. Para que essa experiência se dê, são necessárias condições ligadas ao contexto coletivo e às condições da organização do trabalho. Por outro lado, a atividade é necessária para que a experiência siga se renovando. Nesse sentido, pode-se identificar a contribuição dos estudos de Vigotski na relação entre experiência e atividade, considerando todas as discussões colocadas aqui. Valemo-nos, ainda, da síntese realizada por Toassa e Souza (2010) em um escrito tratando do conceito de experiência em Vigotski, no qual afirmam que toda função psíquica superior tem uma face vivencial ao lado, propriamente, de sua ação no mundo. Poderíamos entender que a face vivencial, assim, diria respeito à dimensão da experiência, como a ação no mundo se referiria à atividade. Essas duas facetas, contudo, se encontrariam intimamente relacionadas, sendo por isso difícil precisar os limites de cada uma delas.

A discussão sobre tais relações não se esgota. Ao se perguntar "em que condições a experiência profissional pode transpor as provas por que passa obrigatoriamente e, sobretudo, como são possíveis a transmissão e a renovação dessa experiência?", Clot (2006, p. 19) deixa clara a abertura a contribuições para a questão. Formulações no campo metodológico nos parecem, dessa forma, ter um grande potencial para contribuir com essa discussão.

 

Referências

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Recebido em 05/12/2017
Aprovado em 13/06/2018

 

 

1 Trata-se dos estudos e pesquisas desenvolvidos pelo n-pista(s) - Núcleo de Pesquisas Instituições, Subjetivação e Trabalho em Análise(s), no escopo do projeto de pesquisa intitulado Trabalho, Subjetivação e Clínica - análises nos setores da Assistência Social, Justiça e Comunicações, o qual conta com financiamento do CNPq.
2 Tal conceito é chave na proposta Clínica do Trabalho a partir de Yves Clot, que, pelo pensamento de Spinoza, liga a saúde à possibilidade de expansão da potência de agir, a qual, mais do que "relativa ao poder de fazer coisas, consiste em um poder de reinventá-las, de permitir-lhes que sejam o que não eram" (Amador & Neves, 2016, p. 54), a partir da afetação entre os corpos.

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