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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.3 São João del-Rei jul./set. 2018

 

"A periferia invade o centro": uma análise sobre a apropriação do espaço urbano por jovens pobres

 

"the periphery invades the center": an analysis of the urban space appropriation by poor young people

 

"la periferia invade el centro": un análisis sobre la apropiación del espacio urbano por jóvenes pobres

 

 

Maira Ribeiro de SouzaI; Juliana PerucchiII

IMestranda em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora
IIProfessora Adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora

 

 


RESUMO

O presente artigo trata dos conflitos advindos da apropriação do espaço central por jovens pobres de uma cidade de médio porte da Zona da Mata Mineira. Isto a partir da participação em um projeto realizado por uma Organização não Governamental no qual são desenvolvidas batalhas de rap. As análises foram construídas a partir das observações registradas em diário de campo, um grupo focal desenvolvido com cinco jovens e duas entrevistas semiestruturadas: uma individual, realizada com o organizador da batalha, e a outra em dupla, desenvolvida com dois jovens colaboradores. Para a análise de dados, foi utilizada a Análise do Discurso Foucauldiana. Com o estudo, pôde-se constatar a presença de dois principais conflitos: a relação com a prefeitura e com os moradores do centro. Nesse contexto, identificaram-se diferentes posicionamentos dos interlocutores a respeito dos conflitos vivenciados, que apontam tanto para possibilidades de resistência quanto para a incorporação dos discursos dominantes.

Palavras-chave: Juventude pobre. Apropriação do espaço urbano. Cultura hip hop. Conflitos.


ABSTRACT

The present article deals with conflicts arising from the appropriation of the central space by poor young people from a medium sized city in the Zona da Mata Mineira. This, based on the participation in a project accomplished by a non-governmental organization in which rap battles are developed. The analyzes were constructed from the observations recorded in field diary, a focal group developed with five young people and two semi-structured interviews: one individual conducted with the organizer of the battle and the other in double developed with two young collaborators. For the data analysis, it was used Discourse Analysis from Foucault. Through the study, it was possible to find the presence of two main conflicts: the relationship with the city hall and with the center residents. In this context, it was identified different positions of the interlocutors about the experienced conflicts that points both for possibilities of resistance and for the incorporation of the dominant discourses. In this context, it was identified different positions of the interlocutors about the experienced conflicts that points both for possibilities of resistance and for the incorporation of the dominant discourses.

Keywords: Poor youth. Urban space appropriation. Hip hop culture. Conflicts.


RESUMEN

El presente artículo trata de los conflictos resultantes de la apropiación del espacio central por jóvenes pobres de una ciudad de tamaño mediano de la Zona da Mata Mineira. Todo ello a partir de la participación en un proyecto realizado por una Organización no Gubernamental en el cual se desarrollan batallas de rap. Los análisis se construyeron a partir de las observaciones registradas en diario de campo, un grupo focal desarrollado con cinco jóvenes y dos entrevistas semiestructuradas: una individual realizada con el organizador de la batalla y la otra en pareja desarrollada con dos jóvenes colaboradores. Para el análisis de datos fue utilizado el Análisis del Discurso Foucaultiano. A través del estudio se puede constatar la presencia de dos principales conflictos: la relación con el ayuntamiento y con los residentes del centro. En este contexto, se identificaron diferentes posicionamientos de los interlocutores a respecto de los conflictos vividos que apuntan tanto para posibilidades de resistencia como para la incorporación de los discursos dominantes.

Palabras clave: Juventud pobre. Apropiación del espacio urbano. Cultura hip hop. Conflictos.


 

 

Introdução

O presente artigo compreende uma apresentação de parte da pesquisa de mestrado vinculada ao Programa de Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, que aborda as temáticas: juventudes e participação política no contexto de uma associação de cunho cultural formada predominantemente por jovens de camadas populares. A pesquisa se desenvolveu em uma cidade de médio porte da Zona da Mata Mineira, cuja população estimada é de aproximadamente cem mil habitantes. No recorte realizado para este artigo, as análises construídas se concentram em torno dos conflitos advindos da apropriação do espaço central por jovens pobres e sobre a "moralização" das condutas juvenis via projetos sociais, que, neste contexto em particular, utiliza a linguagem do rap como estratégia de intervenção. Com os resultados da pesquisa pretende-se contribuir para o debate científico e social com relação à investigação do lugar designado aos jovens no contexto das práticas socioculturais brasileiras. Ao problematizar tais práticas, buscou-se, por meio do poder do discurso, contribuir para estruturar novas práticas e espaços de participação dos jovens no cenário social e político.

Para entender as dinâmicas imbricadas na relação entre jovens pobres e intervenções artístico-culturais, desenvolvidas nas tramas da cidade, partiu-se das contribuições de Magnani (2002, 2005). Conforme o autor, é necessário analisar tanto as vivências e os comportamentos juvenis pela compreensão da sociabilidade dos atores sociais com suas especificidades, quanto os espaços, instituições e equipamentos urbanos nos quais os jovens se inserem, a fim de identificar as regularidades e os conflitos presentes nesse contexto (Magnani, 2005). Distoante da proposta de que os grupos juvenis estabelecem uma relação aleatória com a cidade, a apropriação dos espaços urbanos acontece a partir de um conjunto de normas que norteia as escolhas e sinaliza as (im)possibilidades no uso de equipamentos e circulação por certos territórios (Magnani, 2005). Para compreender esse processo, é preciso estar "de perto e de dentro" da realidade sociocultural pesquisada (Magnani, 2002, p. 17), nesse caso influenciada pelo hip hop. Isso exige que o/a pesquisador/a esteja aberto/a para as realidades que emergem a partir de sua inserção no campo investigativo que é, sobretudo, um campo relacional (Magnani, 2005). Nesse sentido, de acordo com o recorte aqui proposto, torna-se necessário entender como a realidade cultural do hip hop afeta jovens de camadas populares.

 

Juventudes, projetos artístico-culturais e a apropriação do espaço urbano

O hip hop se constitui como uma manifestação cultural juvenil que surgiu em meados dos anos 1970 nos subúrbios de Nova Iorque. Nesse contexto, jovens afro-americanos e caribenhos buscavam, por meio dos elementos da dança (break), da música (rap) e da arte (grafite), expressar suas vivências e denunciar as desigualdades a que estavam imersos. No Brasil, a cultura hip hop emergiu nos anos de 1980 nas periferias de São Paulo e rapidamente se expandiu para outras regiões brasileiras (Menezes & Costa, 2010). Ao contrário de ser uma simples reprodução dos parâmetros estrangeiros, o hip hop brasileiro ganhou peculiaridades regionais nas quais também são evidenciadas "questões sociais geradoras de exclusão" (Duarte, 1999, p. 18). O que se vê como um traço comum nos diversos contextos é a apropriação do espaço urbano como lócus privilegiado de intervenção e expressividade, seja no contexto comunitário, seja nos espaços públicos dos centros das cidades (Dayrell, 2001). Assim, os jovens hip hoppers, ao ocuparem as ruas e as praças do centro, por exemplo, colocam em evidência as desigualdades sociais, situações de subordinação e opressão vivenciadas cotidianamente, além de visibilizarem o ordenamento desigual das cidades (Costa & Menezes, 2009; Menezes & Costa, 2010).

Atualmente, as atividades artístico-culturais que lançam mão de elementos da cultura hip hop, como estratégia de intervenção, se constituem como principais formas de produção e intervenção realizadas pelos/com jovens pobres e moradores de comunidades periféricas (Tommasi, 2004), realidade essa consoante com o campo encontrado na pesquisa em questão. É importante frisar que diferentes discursos se articulam e se conflitam no campo dessas práticas, tais como: a utilização da arte e da cultura como um instrumento de governo da juventude; como promoção da sociabilidade juvenil; como possibilidade de problematização da realidade ou como lógica mercadológica (Tommasi, 2004, 2013; Dayrell, 2001; Donato et al., 2012). Isso aponta para a necessidade de se excluir fórmulas simplistas e dicotômicas buscando focalizar na relação do que se processa "entre" as ambivalências (Tommasi, 2013). Nesse contexto, as análises que têm como foco manifestações culturais juvenis desenvolvidas no espaço urbano devem considerar suas linguagens e dinâmicas com vistas a ampliar o entendimento das relações estabelecidas nesse cenário (Donato et al., 2012).

 

Método: estratégias de ação e interlocutores da pesquisa

O presente estudo teve como delineamento metodológico a abordagem qualitativa, exploratória de inspiração etnográfica, sob a forma de estudo de caso. Este, a partir da abordagem construcionista da pesquisa social, focaliza o local e busca compreender os modos de vida, suas resistências e ressignificações em um contexto sócio-histórico, em um tempo e espaço determinados que são marcados por contradições, rupturas e continuidades (Cardona, Cordeiro & Brasilino, 2014). Partiu-se, nesta proposta metodológica, de um modelo em consonância ao proposto por Donna Haraway (1995), que considera a ciência como um jogo de poder de produção de verdades e historicidades. Nesse sentido, abdica-se da noção de neutralidade, base da ciência positivista.

A originalidade da pesquisa se deve por se tratar de conflitos gerados a partir da utilização do espaço central de uma cidade mineira de médio porte para realização de um evento de rap promovido por jovens moradores de comunidades periféricas. Percebe-se que o recorte territorial de cidades de médio e pequeno porte ainda é pouco explorado pelas pesquisas sobre juventudes, tendo em vista que no contexto brasileiro tem sido priorizado o estudo das juventudes em metrópoles e cidades de grande porte (Dayrell, 2001; Teperman, 2011; Costa & Menezes, 2009; Donato et al., 2012; Santos Filho, 2013).

A escolha da associação cultural ocorreu por se tratar de uma organização que já tem uma história de desenvolvimento de ações com jovens na região estudada. Além de contemplar a temática estudada, ocupa um lugar de destaque na cidade em que a pesquisa se realizou, pelo fato de as políticas públicas para a juventude serem raras e pontuais naquele contexto. Visando ampliar as possibilidades de interação e compreensão das dinâmicas sociais, foram utilizadas diferentes ferramentas, tais como: observação participante realizada no projeto Batalha de Rap entre os meses de julho de 2015 e abril de 2016; duas entrevistas semiestruturadas, divididas nas seguintes categorias: uma entrevista individual, realizada com o organizador da batalha, e uma entrevista em dupla, desenvolvida com dois jovens colaboradores do projeto; e grupo focal realizado com cinco jovens participantes do projeto. O perfil dos interlocutores pode ser observado nos quadros a seguir.

Como pode ser observado nos Quadros 1 e 2, todos os interlocutores são do gênero masculino. Quanto ao aspecto étnico-racial, com exceção de Bruno, todos os interlocutores se autodeclararam como pardos ou negros. É possível verificar uma diferença no recorte etário/geracional, pois os colaboradores e o organizador têm idades entre 28 e 35 anos, e os interlocutores beneficiários encontram-se na faixa etária mais baixa, entre 19 e 21 anos. Existe também uma diferença com relação ao nível de escolaridade. Enquanto o organizador e os colaboradores concluíram o ensino médio, dos jovens beneficiários, apenas Elder finalizou a educação básica. Os demais interromperam os estudos. No que tange à profissão, também se verifica diferenças, já que o organizador e os colaboradores têm empregos formais e os jovens beneficiários transitam entre empregos formais, informais ou se encontram desempregados.

Com relação aos aspectos éticos, a pesquisa obteve parecer favorável do comitê de ética e todos os interlocutores assinaram o termo de conscentimento livre e esclarecido, permitindo sua participação voluntária e consentida. A identidade dos participantes foi preservada com a utilização de nomes fictícios, entretanto, as idades permanecem reais às respectivas faixas etárias dos interlocutores da pesquisa. Optou-se também por manter em sigilo o nome da associação e qualquer outro tipo de informação que pudesse inflingir os princípios de sigilo e confidencialidade.

As análises foram construídas a partir de registros do diário de campo e do material transcrito na íntegra das entrevistas e do grupo focal. Para tanto, foi utilizada a Análise do Discurso a partir da perspectiva teórico-metodológica de Michel Foucault (2008), que considera que os discursos são forjados em conformidade com as condições de possibilidades circunscritas no tempo e no espaço de um contexto histórico, político, social e cultural delimitado.

 

Contextualizando o campo da pesquisa

Em 2010 um grupo formado por dez rapazes, que são amigos e moravam em periferias vizinhas, se reuniu para promover a cultura hip hop na cidade, com a intenção de divulgar o próprio trabalho. O mais velho dos jovens tinha, na época, vinte e oito anos, e os outros nove tinham entre dezessete e vinte anos. Sem maiores pretensões, formaram um grupo de rap (três vocalistas e sete dançarinos) e começaram a produzir e divulgar os trabalhos conjuntamente. Porém, enfrentaram muitas dificuldades, pois o Rap não constituía um gênero reconhecido na cena cultural e musical da cidade. Posteriormente, o grupo se inseriu em um projeto desenvolvido pela Central Única das Favelas (Cufa), a convite de uma assistente social responsável pelo desenvolvimento do projeto. Eles aceitaram a empreitada por considerarem o convite uma boa oportunidade para divulgarem seu trabalho. A proposta de ação era a realização de uma parceria para atuar na divulgação e difusão da cultura hip hop nas escolas públicas do município e das regiões vizinhas. Com a participação nesse projeto, o grupo ampliou sua rede de contatos e começou a ganhar visibilidade e reconhecimento no cenário social e cultural da cidade. Três deles passaram a realizar batalhas de rap nas periferias e no centro da cidade. Outros se engajaram em projetos de dança, especialmente o ensino de hip hop para jovens em comunidades periféricas. A partir de então, começaram a designar-se como um coletivo com ações mais sistematizadas em forma de projetos sociais de cunho cultural. Incentivados pelo presidente de uma Organização não Governamental (OnG), que trabalha com adolescentes e jovens em uma periferia da cidade, alguns dos integrantes do grupo se juntaram com outros jovens e decidiram institucionalizar seus projetos, uma vez que a formalização facilitaria a captação de recursos para gerir os projetos realizados pelo grupo. No início de 2013, os jovens oficializaram o trabalho e constituíram uma associação cultural. Além da facilitação de captação de recursos, o fato de o grupo ser cada vez mais solicitado para falar sobre a cultura hip hop, sobretudo para jovens, também os motivou a formalizar o projeto. A associação cultural se caracteriza como personalidade jurídica de direito privado (Brasil, 2002). Conforme as informações cadastradas no Ministério da Fazenda, sua atividade principal consiste no ensino da dança, e como atividades secundárias encontram-se a produção teatral, o ensino de esportes, a regulação das atividades de saúde, de educação, serviços culturais e outros serviços sociais. O logradouro que consta no documento refere-se ao endereço pessoal de um dos administradores da associação. Esse fato deve-se à ausência de um local permanente para o estabelecimento de uma sede, na ocasião da institucionalização. Atualmente, a sede da associação funciona no centro cultural de um bairro periférico, cedido pela igreja católica.

 

A praça central

O Projeto Batalha de Rap acontece em um espaço público, localizado na praça principal do centro da cidade. Em seu entorno se concentram prédios residenciais e inúmeros estabelecimentos comerciais, entre eles: lojas de calçados, vestuário, drogarias, lanchonetes e restaurantes. Além desses estabelecimentos, existe também um banco, uma lotérica, um prédio público. No lado direito da praça, encontra-se um monumento histórico e uma banca de jornal. Ao lado desta, durante o período da tarde e da noite, ficam distribuídas, em uma das partes da praça, cadeiras e mesas pertencentes a dois restaurantes/lanchonetes que se localizam no outro lado da rua. Ao lado das mesas, existe um ponto de táxi. Logo à frente, encontra-se o espaço público no qual o Projeto Batalha de Rap acontece. Este é um espaço circular. Na parte subterrânea, funcionam atividades direcionadas ao público idoso. A parte superior, onde são realizadas as batalhas de rap, fica acima do nível da rua. O acesso ao local se dá por duas entradas, uma delas por uma rampa (localizada à direita da praça) e outra por uma escada (localizada à esquerda da praça), sendo a primeira mais utilizada pelos/as frequentadores/as da batalha. O local é coberto por uma estrutura de metal e é cercado por grades de aproximadamente um metro de altura. Em frente à rampa que dá acesso ao local, existe um banco que é sempre ocupado por jovens antes de a batalha ter início. Na extremidade esquerda da praça, existe um estacionamento de motocicletas e um pequeno canteiro de flores.

 

O Projeto Batalha de Rap

Na cidade em que a pesquisa se realizou, a difusão da cultura hip hop entre os jovens é relativamente recente, ocorreu na segunda metade dos anos 2000. Desde então, houve maior desenvolvimento do elemento rap, especialmente a partir da implementação do Projeto Batalha de Rap, desenvolvido pela associação cultural pesquisada. O Projeto acontece desde o ano de 2013, toda quinta-feira, às vinte horas, em um espaço público estratégico e de grande visibilidade localizado na praça central da cidade descrito no tópico anterior.

A praça e suas adjacências demarcam os aspectos objetivos e funções materiais e simbólicas hegemônicas dese espaço urbano: o consumo e local de moradia da classe média. Diferentemente dos centros das grandes metrópoles brasileiras que funcionam intensamente durante 24 horas, a realidade do cenário no qual a pesquisa se desenvolveu apresenta outra dinâmica. Típico de uma cidade interiorana, relativamente pequena, a praça central e seus arredores concentram durante o dia um volume maior de pessoas que circulam pelo espaço, interessadas, principalmente, no consumo de bens e serviços, contudo, durante a noite, há pouca circulação pelo espaço. A presença de pessoas nesse período se deve especialmente às lanchonetes, que são frequentadas, em maior parte, por pessoas da camada popular.

A pouca movimentação garante a tão desejada "paz" e "tranquilidade" noturna aos moradores dos prédios residenciais da classe média e alta presentes no local. Porém, a partir da implementação do Projeto Batalha de Rap, as noites de quinta-feira nessa região nunca mais foram as mesmas, já que, como enunciaram diversos interlocutores, no dia da batalha "a periferia invade o centro". Esta é mais do que uma enunciação qualquer, constitui um poderoso enunciado que define bem o que passou a acontecer no local: a apropriação do espaço central por jovens de comunidades periféricas. Sendo assim, os marcadores de classe e território se constituem como elementos importantes para compreender as disputas vivenciadas pelos jovens interlocutores na apropriação do espaço central.

No início, os jovens que participavam das batalhas pertenciam ao próprio grupo de amigos que desenvolvia a atividade. Atualmente, o projeto é frequentado por um número expressivo de pessoas, predominantemente jovens, rapazes de camada popular de diferentes comunidades periféricas, principalmente aquelas que se localizam próximo ao centro da cidade. É válido ressaltar que a atividade abarca também jovens de classe média e garotas de ambas as classes. Conforme informações obtidas de uma reportagem concedida pelos organizadores a um jornal local, a atividade já atingiu a média de oitenta expectadores em uma edição, fato que mostra que o Projeto se uma atividade de sociabilidade significativa, especialmente entre jovens pobres. Os duelos de rap representam também uma importante forma para a associação disseminar e valorizar a cultura hip hop na cidade.

O interesse pelo rap e pela cultura hip hop é o que confere uma identidade coletiva aos jovens que participam do Projeto. Eles chegam ao local do evento em grupos, alguns mistos, outros formados somente por garotas ou por rapazes, e ficam espalhados por toda a praça conversando. Muitos fazem uso de bebidas alcoólicas e cigarro antes de a batalha começar. Além disto, compartilham informações sobre rap, sobre a cultura hip hop e formam uma roda de freestyle (modalidade de rimas de improviso) assim que o som é ligado. As garotas que participam e/ou se identificam com a cultura hip hop também trocam informações sobre rap e hip hop, porém não é usual que elas participem da roda de freestyle, ou seja, a participação delas no Projeto é, predominantemente, de expectadora. Esse aspecto também foi identificado por Santos Filho (2013) ao pesquisar a Roda Cultural Cocotá, realizada em uma praça pública da Ilha do Governador, no estado do Rio de Janeiro, e por Teperman (2011), que estudou a batalha da Santa Cruz, desenvolvida na cidade de São Paulo, apontando que as batalhas de rap são um espaço de expressão da masculinidade e, consequentemente, apresenta um contexto marcado por vetores machistas.

Os rapazes envolvidos diretamente com a cultura hip hop costumam estar vestidos com roupas largas, com figuras e mensagens que fazem referência ao Hip hop ou com o emblema do Projeto. Como acessórios, optam por tênis, bonés, tocas e correntes prateadas. Muitos deles também têm tatuagens no corpo que fazem referência ao rap. Já as roupas e acessórios das garotas variam conforme a relação que estabelecem com a cultura hip hop. Aquelas que se identificam com esse gênero musical, usam blusas largas ou com o emblema do Projeto, além de bonés; as que não têm ligação direta com optam por roupas justas que delineiam seus corpos.

No dia da batalha, os equipamentos são levados até a praça pelos membros da associação no carro de uma OnG parceira. No local, o computador é acomodado em mesas de bar. Ao ligarem os equipamentos, músicas de rap são colocadas. Após algum tempo, inicia-se uma roda de freestyle, que funciona como um aquecimento para os Masters of Ceremony (MCs). É comum eles optarem por rimas de saudação e de camaradagem. Enquanto isso, o organizador fica responsável por montar a lista dos MCs que vão duelar no dia. Geralmente, os duelos são compostos por oito MCs, em sua grande maioria rapazes. As batalhas são chamadas de "bate-volta" e tem como objetivo "atacar" o oponente, desestabilizando-o com rimas improvisadas. Em geral, os MCs utilizam características corporais e outros marcadores de diferença, como forma de atacar o oponente. Por vezes, observei rimas de conteúdo sexista, racista e homofóbico, aspectos também observados por outros pesquisadores (Santos Filho, 2013; Teperman, 2011). É comum que a plateia grite "eu quero ver sangue", sendo assim, quanto mais ofensiva é a rima, mais alvoraçados ficam os expectadores. Contudo, são proibidas rimas que ofendam a família, principalmente mãe, irmã e a parceira do oponente. Esse é mais um aspecto em comum com os resultados encontrados por Teperman (2011). Na análise do autor, as batalhas de rimas constituem-se como "rituais de reprodução da masculinidade que, em alguma medida, propõem a sublimação da competitividade por mulheres ao figurar a competitividade entre homens. Por isso, mãe, irmã e 'mina' são elementos que não podem entrar no jogo" (Teperman, 2011, p. 169). São vetadas, também, rimas que fazem apologia às drogas e rimas com conteúdo pornográfico, palavrão e pederastia, aspectos frequentemente infligidos pelos competidores. Essas regras são sempre ditas no início pelo animador da batalha e, se infringidas, podem levar, após a avaliação do organizador ou do juiz central, à eliminação do MC. As normas são flexíveis e dependem da forma com que a "zuação" é enunciada e do contexto em que é dita, ou seja, uma mesma ofensa, dita de forma diferente, pode ser aceita ou rechaçada. Especialmente no que tange à pederastia, Teperman (2011) observou que esse é um tema tabu no rap. Na batalha da Santa Cruz, constatou ser um valor enraizado a proibição de se cogitar duvidar da masculinidade e heterossexualidade dos MCs participantes, aspectos também observados no contexto da pesquisa.

Os oito MCs são divididos por sorteio em quatro duplas. Os vencedores de cada dupla vão se enfrentando até restarem os dois melhores, que farão a disputa final, definidora do campeão da noite. Para avaliar as performances dos participantes, são escolhidos dois juízes formados por jovens colaboradores da batalha ou por algum visitante. O público também tem direito a um voto, que é contabilizado pelo barulho das palmas e gritos. Enquanto isso, o DJ fica responsável por selecionar, colocar, pausar e trocar os bits (bases instrumentais mixadas) em cada round durante a batalha. Geralmente, essa função é ocupada pelo organizador, sendo também realizada, esporadicamente, por jovens. Outro membro da associação é responsável por ser o juiz central, que faz a contagem do tempo das rimas dos MCs que estão duelando. O organizador ou outro membro da associação fica encarregado pela apresentação dos competidores, animação do público e anúncio do início da batalha, convocando os participantes, que vão para o "centro do ringue", círculo formado pela plateia em torno dos competidores, que ficam frente a frente para a disputa acontecer.

Em muitas batalhas, o vencedor é premiado com camisetas, acessórios ou convites para eventos doados por empresários da cidade. Após os duelos, o vencedor tem direito a uma rima livre, "rima do campeão", que em seguida se torna uma nova roda de freestyle. Nesta, os jovens criam rimas espontâneas, além de agradecerem ao público e aos "parceiros" num tom de camaradagem por "fortalecerem" a cultura hip hop. Também é comum que raps autorais sejam cantados. Durante a atividade, alguns jovens utilizam o espaço para andar de skate, conversar, paquerar e namorar. Porém, a apropriação do espaço central não acontece de forma harmônica, pelo contrário, é permeada por diversas tensões. É justamente sobre os conflitos vivenciados que as análises a seguir irão se concentrar.

 

Análise e discussão dos resultados

O espaço no qual a atividade se desenvolve foi considerado pelos interlocutores como "o ponto da ferida" gerador de discordâncias entre os diversos participantes do Projeto e membros da associação que organizam a Batalha de Rap. Dentre as inúmeras tensões enfrentadas, foi possível perceber que duas dimensões conflitivas se destacam nos relatos dos jovens, a saber: as negociações e apoio da prefeitura para o uso do local; e os incômodos provocados pela atividade nos moradores dos prédios residenciais que se localizam em torno da praça, como pode ser verificado a seguir.

 

A relação com a prefeitura

A relação com a prefeitura foi destacada por diversos interlocutores como um aspecto dificultador da fala autônoma dos jovens no espaço central. Nesse sentido, pode-se dizer que o poder público emerge como um dispositivo (Foucault, 2015) regulador das condutas juvenis, como pode ser verificado nas falas a seguir.

Ah, cara, por ser da prefeitura. Eu acho que tinha que ser um espaço nosso [...]. A gente não pode fumar, cara. [] Maconha mesmo (Risos) [] Então, tipo assim, ali já não pode, cara. Se você acender um baseado ali []. Eu acho que, tipo assim, o que tá errado ali é tá no centro, do foco ali mesmo e, tipo assim, ser uma parada que tá ganhando voto, porque aquilo ali, pra mim, é pra voto []. (Renan, 21 anos, Grupo focal)

Se não tivesse a mão da prefeitura, eu creio que teria muito mais conteúdo pra dizer ali, pra poder falar porque [] não é nem pela questão do baseado, é pra gente poder falar algumas coisas da cidade, os problemas da cidade, sacou? [] porque a gente não puxa sardinha nem pra PT, nem pra PMDB, nem PSDB, nem pra "porra" nenhuma, sacou? [...] (Pablo, 19 anos, Grupo focal)

Os MCs ali, quando eles pegam o microfone, eles não são MCs, eles são um pau mandado, eles são [trator], entendeu? [] O rap é isso, é liberdade. Ali não, se você já falar de mãe, seu microfone abaixa na hora, TUF, na hora assim ó, você não pode falar, entendeu? Então, tipo assim, os caras já botou político porque incomoda, hip hop, rap, aonde tá, não importa se é cidade grande ou cidade pequena, favela ou centro, bairro nobre, incomoda. (Renan, 21 anos, Grupo focal)

Esses relatos apontam para diversas críticas associadas ao apoio da prefeitura, como o fato de os jovens não poderem fazer uso de álcool e outras drogas no local, bem como o fato dos políticos se aproximarem do projeto para fins privados e de terem restringido a possibilidade de realização de críticas a respeito dos problemas da cidade. O que todas as falas têm em comum é a denúncia de terem cerceada a liberdade de expressão pelo organizador da batalha, com vistas a não comprometer o apoio concedido pela prefeitura. Isso demonstra que a lógica de controle pauta as relações estabelecidas. Esse aspecto também foi destacado pelos jovens colaboradores entrevistados.

NO começo, o cara que tava comigo lá, ele não queria aceitar gente bebendo lá em cima, não podia fumar, não podia fazer nada, entendeu? Aí assim também já perde a essência do rap, que é a liberdade de expressão. A batalha, pô, você quer ir ali para extravasar, ouvir um som, ouvir uma música, trocar uma ideia, tomar uma cerveja, já vende, [porque] aquele espaço que é dentro da própria praça se você não pode tomar uma cerveja? (Vitor, 28 anos, colaborador da batalha. Entrevista em dupla).

A gente trabalha junto, mas, tipo assim, quando for, quando for falar de música, parceiro, pode chegar aqui e conversar comigo, agora, se quiser falar de política, você toma seu rumo, né, velho, porque eu não tô nem aí pra essa "porra" não, sacou? (Bruno, 28 anos, colaborador da batalha. Entrevista em dupla).

É válido ressaltar que os membros da associação têm alguns subsídios pontuais da prefeitura direcionados aos projetos desenvolvidos pela instituição, por exemplo, auxílio financeiro para a produção de um CD coletivo, que contou com a participação de alguns jovens MCs que participam do projeto; confecção de um banner do projeto, que fica exposto durante o evento; auxílio financeiro angariado no ano de 2015 por uma lei municipal de incentivo à cultura, que propiciou a aquisição de alguns equipamentos e a liberação para utilização do local para a realização do projeto, local esse que nomeia o evento e por isso lhe confere identidade. Para obter esse apoio, os organizadores acordaram com a prefeitura certas normas de condutas a serem seguidas pelos participantes, como a proibição do uso de substâncias psicoativas no local, aspecto questionado pelos jovens participantes e explicitado nos fragmentos de suas falas. O parâmetro normativo de participação prescrito pela prefeitura e reproduzido pelo organizador, Elias, pode ser analisado como forma de forjar "subjetividades dóceis, sociáveis, menos violentas, correspondentes às normas, e que não causam problemas ou medo à segurança da sociedade" (Donato et al., p. 226). Esse padrão de comportamento desejável é pautado na moralidade vigente e "afeta as possibilidades de emergência de deslocamentos desses jovens ou de conflitos estabelecidos por eles, referenciados em suas leituras do mundo, o que podem servir à interpretação de um estado de coisas nomeado como desigual" (Donato et al., 2012, p. 232). Assim, o projeto realizado no dispositivo público central se apresenta como possibilidade regulada de participação associada à boa sociabilidade juvenil (Silva & Silva, 2008). O hip hop, como fator de boa sociabilidade, é concebido como "instrumento preventivo em relação a uma suposta violência potencial dos jovens" (Silva & Silva, 2008, p. 139). Nessa lógica, as condutas ligadas à desobediência não tutelada são desautorizadas (Donato et al., 2012), como é o caso do uso das substâncias psicoativas. Esse aspecto se difere da realidade da batalha Roda Cultural Cocotá, estudada por Santos Filho (2013), pois os organizadores não contam com o apoio do poder público, fato que lhes possibilita mais autonomia. Naquele contexto, o uso especialmente da maconha ocupa padrão de sociabilidade entre os jovens. Conforme Santos Filho (2013), para os frequentadores da batalha, o uso da cannabis sativa, além da finalidade recreativa, significa resistência ao status quo, além de ser associado à criatividade, visto que, para os jovens, a substância auxilia na criação de rimas inteligentes e sagazes.

Sobre a aproximação do projeto por representantes do poder público ou por candidatos a cargos políticos, os jovens denunciam que seus objetivos estão ligados exclusivamente a interesses pessoais. Para eles, o espaço da batalha é utilizado pelos políticos como palanque eleitoral com vistas a angariar futuros votos. Esse ponto está diretamente relacionado ao terceiro aspecto enunciado pelos jovens: a limitação da expressão de suas críticas a respeito dos problemas da cidade. Os relatos dos interlocutores sugerem que o apoio concedido pelos grupos políticos partidários e representantes do Estado funciona como mecanismo de controle e tentativa de desmobilização política do movimento como ação coletiva autônoma dos jovens. A expressão "os caras" enunciada pelo interlocutor Renan é utilizada para designar os membros da associação que emergem como cooptados pelo poder público e pelos partidos políticos e que, por isso, acabam por contribuir para a manutenção da ordem vigente. Tal cooptação pode ser verificada pelo fato de os organizadores permitirem que os políticos usem o espaço do Projeto para os fins citados e pelo fato de controlarem suas falas a fim de não comprometer o apoio da instância governamental. Conforme os jovens, eles podem até se expressar, porém sem que suas falas "incomodem", o que caracteriza a fala tutelada.

Tal aspecto também foi encontrado por Menezes e Costa (2012) ao pesquisarem uma rede que abarca inúmeros grupos juvenis ligados ao hip hop da cidade de Recife. Assim como a maioria dos interlocutores da pesquisa, os participantes da rede compreendem o Estado como um aparelho de manipulação e controle da juventude. A aproximação de representantes de partidos políticos dos movimentos culturais é identificada, por sua vez, como um jogo eleitoreiro em que vigoram o interesse pessoal e descompromisso com as questões que afetam a coletividade.

Voltando ao contexto da pesquisa, como alternativa para a situação de conflito explicitada sobre o desenvolvimento da atividade no espaço público central, os jovens indicam para a realização de batalhas de rap um espaço afastado do centro da cidade, onde, segundo eles, teriam liberdade para se expressarem de forma autônoma. Apesar disso, pontuam que o Projeto desenvolvido no centro deve permanecer, pois consideram que este representa "a vitrine do movimento".

Mas, continuar tendo a do (nome do local onde ocorre o evento), claro, mano, porque a do (nome do local onde ocorre o evento) é a vitrine [...] É uma oportunidade de você cantar, uma forma da prefeitura saber que rola o rap na cidade, porque também não adianta a gente parar de ir (no nome do local onde ocorre o evento) e ir pro (nome do local sugerido para realizar o evento) e, pô, não rolar mais igual tá rolando o (projeto audiovisual de literatura) [] Esse negócio da gravação do CD, porque isso daí querendo ou não tá ajudando, entendeu? Infelizmente a gente não queria tá sendo ajudado pela prefeitura, [mas a gente tá, cara], entendeu? [inaudível]. (Renan, 21 anos, Grupo focal)

Nóis não depende deles, a questão é que a gente não depende deles pra nada. (Samuel, 20 anos, Grupo focal)

Mas, a questão é que a gente não depende, mas é direito da gente, e por ser direito a gente tem que correr atrás []. (Pablo, 19 anos, Grupo focal)

Apesar de terem realizado diversas críticas a respeito do apoio da prefeitura, Renan aponta para sua importância, uma vez que a "ajuda" do poder público tem proporcionado a eles alguns benefícios, como o auxílio no projeto de literatura e para a efetivação do CD gravado pelo Coletivo. A fala de Pablo também vai nessa mesma direção. Porém, ao contrário de considerar o apoio como uma "ajuda", ele o destaca como dever do Estado, tendo em vista que o acesso à cultura é enunciado pelo interlocutor como um direito. Assim, ao mesmo tempo em que os jovens criticam o discurso vigente, reproduzem valores afinados ao processo de moralização a que estão submetidos, por vezes, se ajustando a eles (Donato et al., 2012). A relação com o poder público emergiu já na minha primeira ida ao projeto. Em uma conversa informal realizada com Elias, registrada em diário de campo, ele relatou o seguinte aspecto: [...] a participação da prefeitura é mais na parceria de ceder o espaço do (nome do espaço público em que as batalhas de rap acontecem) para a realização das batalhas [...]. (Relato do Elias, 35 anos, organizador da batalha. Trecho do Diário de campo, 02/04/15).

A utilização do espaço público emerge na fala do organizador como um "favor" concedido pela prefeitura, já que Elias relata que o local é "cedido" para a realização das batalhas de rap. Isso ocorre porque na cidade em que a pesquisa se desenvolveu a utilização das praças públicas pela população para a realização de eventos necessita de um alvará concedido pela prefeitura, constituindo-se como um dispositivo de poder que age na regulação da apropriação do espaço público. Tal aspecto aponta para o que Tereza Sales (1994) designou como relações de "mando" e "subserviência", características históricas da cultura política estabelecida no Brasil e ainda fortemente presentes em cidades do interior, como é o caso da cidade em questão. Nesta, a cidadania é traduzida como um favor, um bem exercido pelo Estado, o que coloca em evidência "as relações entre desigualdade social e cultura política" e entre "cidadania e desigualdade" (Sales, 1994, s/p). Nessa lógica, a viabilização do projeto emerge como dependente da aprovação da prefeitura, de modo que ele seja enunciado como uma dádiva e não como direito dos jovens à cultura e à cidade.

Na entrevista realizada com os jovens colaboradores Vitor e Bruno, ambos criticaram a postura do organizador referente à ocupação do espaço central. Isso evidencia que tal aspecto aponta para posicionamentos diferentes entre os participantes do movimento.

[...] os caras hoje em dia, eles até falam "não, esse espaço que a gente conseguiu da prefeitura" não é um espaço que a gente conseguiu, o espaço de prefeitura, espaço público tem que ser conquistado, você tem que é.. ocupar, entendeu? [...] (Vitor, 28 anos, colaborador da batalha. Entrevista em dupla)

É. Eles acham que é um favor que a prefeitura tá fazendo, tá liberando. (Bruno, 28 anos, colaborador da batalha. Entrevista em dupla)

[...] a prefeitura está cagando e andando para nós, tá ligado? Nóis acabar de sair de lá e eles mandarem a polícia ir lá dar em nóis uma dura ali eles vão dar [] não é uma parada que eu concordo, chegar ali e gritar que foi a prefeitura que te deu espaço não, a gente conquistou aquele espaço na época, na correria, na batalha, a gente conseguiu aquele espaço ali ocupando [] a gente invadiu aquele espaço. [...] Eles foram e corromperam aqueles moleques da (nome da OnG) [] os caras têm um poder grandão nas mãos deles e não sabem disso, aí eles falam isso, aí eu fui e me afastei da batalha por causa dessa questão aí. (Vitor, 28 anos, colaborador da batalha. Entrevista em dupla)

Em contraponto ao enunciado "ceder" utilizado por Elias, Vitor lança mão dos enunciados "ocupar", "conquistar" e "invadir" o espaço público. "Ceder" aponta para um ato passivo do grupo na utilização da praça, na medida em que pressupõe que o uso do espaço necessitou da permissão da prefeitura. Ao contrário disso, Vitor reivindica o processo de apropriação do espaço central como uma ação ativa por parte dos jovens, conforme demonstram os enunciados utilizados por ele. Nessa perspectiva, a ocupação do espaço central emerge como uma transgressão a algo instituído, uma forma de resistência e agenciamento dos jovens. Segundo Vitor, o espaço foi ocupado "na correria, na batalha", expressões que apontam para uma luta dos jovens na busca por sua efetivação. "Correria" ou "fazer correr" são termos usados por jovens hip hoppers que, entre outros significados, apontam para "um investimento ativo e estratégico para a realização de enfrentamentos e rompimentos com relações ou situações de subordinação ou exclusão [...]". (Donato et al., 2012, p. 222). O relato de Vitor vai nessa direção, já que a ocupação do espaço central pelos jovens constitui-se como uma forma de enfrentamento coletivo contra a ordem hegemônica (centro como um local das pessoas ricas e brancas e que, por isso, não deve ser ocupado por jovens pobres, negros e/ou moradores de comunidades periféricas). Assim, ao "invadirem" esse espaço central com sua música e sua cultura, eles questionam a lógica desigual presente no ordenamento das cidades, rompendo, assim, com tal lógica de opressão e subordinação.

Na fala de Vitor, a prefeitura é apontada como uma adversária (termo entendido em seu sentido político) dos jovens (Rancière, 1996). Além disso, aparece associada como aquela que, a qualquer momento, pode lançar mão do dispositivo de segurança "polícia" para conter suas expressões. A ação repressiva por parte da polícia diante das expressões culturais juvenis é uma ação recorrente, especialmente com relação às manifestações desenvolvidas pelo seguimento pobre (Dayrell, 2001). Ao estudar jovens ligados ao movimento hip hop e ao funk na cidade de Belo Horizonte, Dayrell (2001) conclui que "quando estes se reúnem em alguma ação coletiva, geralmente são vistos como 'baderneiros', e suas formas de lazer, como ameaças à ordem, expressão de um imaginário dominante há muito arraigado que vê nos pobres a 'classe perigosa'" (Dayrell, 2001, p. 61). Nesse sentido, vê-se que a atuação da polícia se baseia na perspectiva de que os jovens pobres representam um perigo em potencial para a sociedade (Coimbra & Nascimento, 2003).

Conforme Vitor, o grupo estava mobilizado e ocupariam o espaço de qualquer forma. Assim, ele denuncia que a prefeitura resolve "apoiar" o projeto por interesses individuais dos representantes do poder público, ou seja, os políticos estariam utilizando da demagogia como forma de deslegitimar um movimento subversivo dos jovens. Os membros da associação são acusados de terem sido cooptados pelo poder público, na medida em que passaram a se submeter a negociações para não "perderem o espaço cedido pela prefeitura", o que aponta para as mesmas questões levantadas pelos interlocutores do grupo focal. Devido ao desencontro de ideias, Vitor relatou ter se afastado da atividade. Deixar de participar, temporariamente, foi a saída que ele encontrou para se posicionar contrariamente ao organizador, atitude essa que demonstra uma forma de resistência do jovem. Ao mesmo tempo, tal postura aponta para uma esquiva do conflito, uma vez que sua permanência seria importante para tensionar e forjar uma reconfiguração desse campo de experiência (Rancière, 1996).

Apesar da realização da batalha ser uma ideia que surgiu a partir desse interlocutor, que inclusive faz parte do quadro oficial de sócios da OnG cadastrados no site da Receita Federal, ele não se considera como possuidor de voz ativa e poder de decisão dentro do movimento, como pode ser verificado no trecho "os caras (membros da OnG) têm um poder grandão na mão deles e não sabem disso". Tal enunciado o posiciona como indivíduo que não tem poder de transformação, além de colocá-lo, simbolicamente, fora da OnG, o que reforça a falta de um posicionamento crítico por parte do jovem que coloque em evidência um litígio no contexto em questão (Rancière, 1996). Assim, pode-se inferir que as possibilidades de fala e negociação dentro do Projeto são forjadas por relações de força, em que os organizadores, por vezes, ocupam lugar de poder e são tomados como os únicos aptos a tomarem decisões sobre o Projeto, já que se constituem como representantes legais e legítimos do evento. Isso faz com que as falas e posicionamentos dos jovens beneficiários e dos colaboradores sejam, em muitas ocasiões, relegados à invisibilidade.

 

A relação com a vizinhança

A vizinhança também foi destacada pelos interlocutores como um ponto negativo da utilização do espaço central para a realização da Batalha de Rap. Conforme os participantes, os moradores ricos dos prédios próximos à praça se sentem incomodados com a presença dos jovens pobres e lançam mão de diferentes dispositivos com vistas a embargar a atividade, como pode ser verificado nos depoimentos a seguir.

Jogam pedra lá do último andar lá, pô, aquele pedrão cai no telhado e dá aquele barulhão. (Elder, 19 anos, Grupo focal)

Aí, vamos supor, "ah aquilo dali? Ah, aquilo dali toda quinta-feira tem aquilo dali, vamos fazer um abaixo-assinado pra acabar com aquilo dali porque aquilo dali só tá trazendo droga pra cá", entendeu? "Só tá trazendo mal elemento, é... nego fazendo bagunça na cidade, anarquizando tudo", mas, não é isso, cara. Vamos supor, é procurar entender, vamos procurar entender o que tá rolando, entendeu? Porque o que acontece? A gente não pode ser prejudicado por esse tipo de gente, entendeu? Porque a gente tem que correr atrás daquilo que a gente tá fazendo. Aí o que acontece? A gente tem que parar e pensar, velho, vamos supor, assim, "não, vamos botar essa galera na linha, vamos passar a mensagem pra eles do que a gente pensa", entendeu? Sobre o que pode ser feito pra melhorar, entendeu? E o que pode ser feito também pra batalha não acabar, pra continuar a prosseguir, entendeu? Porque, vamos supor, ah, a galera tá lá, tá anarquizando, tá fazendo bagunça, aí os vizinhos tão lá fazendo abaixo-assinado. Aí vai na prefeitura, aí vai e liga pra polícia, aí é vinte e cinco denúncias, aí que não sei o que []. (Júlio, 21 anos, Grupo focal)

Jogar pedra na estrutura metálica, fazer abaixo-assinado, reclamar sobre o evento na prefeitura e contatar a polícia são algumas das estratégias destacadas pelos participantes como forma de os moradores tentarem impedir o desenvolvimento do projeto. No relato de Júlio, emergem alguns enunciados, tais como, "trazendo droga pra cá", "só tá trazendo mal elemento", "nego fazendo bagunça na cidade, anarquizando tudo" que seriam ditos pelos moradores como forma de criminalizar o movimento. Assim, vê-se a associação do projeto à atividade ilícita e perturbadora da ordem pública. Nesse contexto, Júlio aponta para a necessidade de os MCs conscientizarem os jovens "bagunceiros" por meio de suas "mensagens" com vistas a "colocá-los na linha". Ao lançar mão desses enunciados, o jovem aponta para o rap como dispositivo que possibilita evitar a adoção de condutas desviantes e inadequadas pelos demais jovens, o que remete novamente à lógica preventivista do hip hop (Silva & Silva, 2008). Dessa forma, a perspectiva adotada por Júlio, que também são compartilhadas por outros interlocutores, entres eles o organizador Elias, apontam para um modelo prescritivo de participação baseada na postura consciente por parte dos jovens alinhada às normas vigentes (evitar práticas consideradas causadoras de desordens pela polícia, pela prefeitura e pela vizinhança, tais como: uso e venda de drogas no local, ligar sons altos nos carros, permanência no local após as vinte duas horas, entre outras). A partir do exposto, pode-se notar que possibilidades de resistência dos jovens interlocutores se conflitam com modos de tutela e controle, pois ao mesmo tempo em que os organizadores adotam e incentivam a postura crítica dos jovens, a respeito das desigualdades sociais e situações de subordinações e opressões cotidianas, reproduzem discursos moralizantes que contribuem para a permanência da condição de subalternidade em que os jovens se encontram imersos.

 

Considerações finais

Com o estudo, foi possível verificar que tanto os conflitos com o órgão público quanto com a vizinhança apontam para a mesma direção: a moralização das condutas juvenis via projetos sociais. A difusão desse discurso é amplamente disseminada no contexto de práticas sociais direcionadas a jovens pobres. Sua sustentação parte da fabricação de um "padrão" de comportamento a ser adotado pelos jovens de camadas populares que se distancie de condutas ilícitas. No contexto da pesquisa, diferentes dispositivos e atores como a prefeitura, os organizadores, os vizinhos e a polícia emergiram de forma articulada a fim de manter a lógica vigente e o ordenamento da cidade conforme os interesses da classe dominante. Outro aspecto observado se refere às tensões internas presentes no movimento, que evidenciam disputas relacionadas aos jogos de poder. A presença de hierarquias no âmbito das relações sociais pesquisadas designam lugares diferentes aos interlocutores conforme o lugar de poder que ocupam naquele contexto.

Ao mesmo tempo em que foi possível identificar dispositivos de cerceamento da fala dos jovens e sua captura pelos discursos hegemônicos, foram explicitadas a produção de litígios, pois, ao se apropriarem do espaço central, os jovens (re)configuram a produção do sensível ao forçarem uma nova forma de se fazerem visíveis e de ressignificarem o espaço central. Portanto, apesar de todos os conflitos, não se pode negar que o desenvolvimento do Projeto se tornou um espaço de sociabilidade que possibilita o agenciamento dos interlocutores, na medida em que os jovens pobres de "cá" incomodam a burguesia de "lá" ao "invadirem o centro", insistindo e persistindo em fazer de "lá" um pedaço do povo de "cá".

 

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Recebido em 05/02/2017
Aprovado em 12/04/2018

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