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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.3 São João del-Rei July/Sept. 2018

 

O jovem e a educação indígena Tremembé de Almofala no Ceará

 

The young and the Tremembé of Almofala indigenous education in Ceará

 

El jóven y la educación indígena Tremembé de Almofala en Ceará

 

 

Maria do Socorro Sousa e SilvaI; Maria Isabel S. Bezerra LinharesII

IMestranda em Geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Pertence ao quadro de professores do curso de Pedagogia e dos cursos de primeira e segunda licenciatura do Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica (Parfor), da universidade supracitada. E-mail: msserasmo@gmail.com
IIPossui graduação em Serviço Social (Universidade Estadual do Ceará - UECE) e Formação Especial Pedagógica (Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA), Especialização em Serviço Social e Políticas Sociais (Universidade de Brasília - UNB), Especialização em Psicopedagogia (UVA), Especialização em Metodologia da Pesquisa Social (UVA) e Mestrado em Gestão Pública (UVA). Doutora em Sociologia, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Bolsista da CAPES desde agosto de 2011. É Professora Adjunta da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Atualmente é Coordenadora do Curso de Especialização em Psicopedagogia e do Curso de Especialização em Gestão Educacional pela mesma Universidade. Possui experiência e atuação na área de Políticas Públicas (Política de Assistência Social, Criança, Adolescente e Juventude e Trabalho), Gestão Social (Assessoria Municipal). Pesquisadora e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Culturas Juvenis (GEPECJU), coordenando a linha de pesquisa: "Juventudes, Transformações Sociais e Políticas. Membro e Pesquisadora do Laboratório Trabalho, Educação, Gênero e Subjetividade (LATEGS/UVA). E-mail: isabelblinhares@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva narrar a experiência da comunidade Indígena Tremembé, na constituição da educação na Escola Maria Venância, assim como o surgimento do Magistério Indígena Tremembé (Emit), e do Magistério Indígena Tremembé Superior (Mits), levando em consideração a participação dos jovens indígenas daquela comunidade na implementação dessa educação. A pesquisa, de natureza qualitativa, teve como técnica principal a observação participante, optando-se pela realização de entrevistas, registros no diário de campo, rodas de conversas e participação em eventos nas comunidades indígenas. A compreensão dos fatos se deu a partir das percepções dos próprios indígenas, pois eles fizeram parte desse processo de modo direto e ativo. Incluem-se, nas análises aqui empreendidas, as contribuições de estudiosos como Grabner (2006), Alarcão (2008), Grupioni (2001), bem como as leituras de documentos oficiais como o Parecer 14/99 (CNE, 1999), entre outros, e, sobretudo, as falas e análises dos jovens da aldeia sobre como eles percebem a relevância da conquista da educação indígena Tremembé.

Palavras-chave: Jovem indígena. Escola diferenciada. Educação indígena.


ABSTRACT

The present article objectives to narrate the experience of the Tremembé Indigenous Community, in the education's constitution at the School Maria Venância, as the emergence of the Tremembé Indigenous Mastership (Emit), and of the Superior Tremembé Indigenous Mastership (Mits), taking into consideration the participation of the young indigenous of that community in the implementation of this education. The research, of qualitative nature, had as main technic the participative observation, choosing for the realization of interviews, registers in the field diary, conversation wheels and the participation in events in the indigenous communities. The comprehension of the facts it was made by the perceptions of the indigenous themselves, because those made part of this process in a direct and active way. It includes, in the reviews here undertaken, the contributions of scholars as Grabner (2006), Alarcão (2008), Grupioni (2001), as the reading of the officials documents as Parecer 14/99 (CNE, 1999), among others, and, above all, the speaks and analysis of the young in the village about how they perceived the relevance of the conquest of the Tremembé indigenous education.

Keywords: Young indigenous. Differentiated school. Indigenous education.


RESUMEN

El presente artículo objetiva narrar la experiencia de la comunidad indígena Tremembé, en la constitución de la educación en la Escuela Maria Venância, así como el surgimiento del Magisterio Indígena Tremembé (Emit), y del Magistério Indígena Tremembé Superior (Mits), teniendo en cuenta la participación de los jóvenes indígenas de aquella comunidad en el implemento de esa educación. La pesquisa, de naturaleza cualitativa, tuvo como técnica principal la observación participante, eligiéndose por la realización de entrevistas, registros en el diario de campo, ruedas de charlas y participación en eventos en las comunidades indígenas. La comprensión de los factos se dio a partir de las percepciones de los propios indígenas, pues estos hacían parte del proceso de manera directa y activa. Incluyese, en los análisis acá emprendidos, las contribuciones de estudiosos como Grabner (2006), Alarcão (2008) Grupioni( (2001), así como de lecturas de documentos oficiales como lo Parecer 14/99 (CNE, 1999), entre otros, y, especialmente, las palabras y análisis de los jóvenes de la aldea sobre como ellos perciben la relevancia de la conquista de la educación indígena Tremembé.

Palabras clave: Joven indígena. Escuela diferenciada. Educación indígena.


 

 

Introdução

Este trabalho objetiva investigar o jovem e a Escola Diferenciada Indígena Tremembé de Ensino Fundamental e Médio Maria Venância. Nessa empreitada, leva-se em consideração o direito à educação conquistado na Constituição Federal de 1988 simultâneo ao movimento de luta dos indígenas para a implementação dessa educação.

A etnia Tremembé de Almofala é considerada a pioneira no processo de educação indígena no Estado do Ceará. Assim, pretende-se focar, neste trabalho, a escola supracitada, localizada na Comunidade da Praia no aldeamento de Almofala, localizada no município de Itarema, no oeste do estado. O citado aldeamento é dividido em duas regiões, sendo denominadas de Praia e a da Mata. Além disso, o aldeamento é composto por 18 comunidades indígenas (aldeias), englobando aproximadamente 4.500 habitantes, segundo moradores indígenas do referido aldeamento, em Itarema/CE. Dessas comunidades, sete têm a denominada Escola Indígena, atendendo o Ensino Fundamental e Médio: Mangue Alto, Varjota, Lameirão, Tapera, Passagem Rasa, Saquinho e Praia.1

A escolha do referido aldeamento de Almofala para a realização deste trabalho tem uma significação por tratar-se de um aldeamento cuja historicidade é marcada pela luta e conquista de um "tipo diferenciado de escola para os indígenas", fato largamente expresso por muitos índios e índias das comunidades estudadas.

O interesse por essa temática se iniciou a partir de 2007, por ocasião da participação no Seminário Temático de Movimentos Sociais e Educação Popular, promovido pelo curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e de caráter obrigatório na proposta curricular. Na programação do evento, contemplou-se a participação de representantes da etnia Tremembé. Dentre eles, vale destacar a presença do cacique João Venâncio, os jovens professores Getúlio, Andreína, Cristina, Neide e a coordenadora pedagógica Aurineide Marques, em companhia de alguns parceiros da Universidade Federal do Ceará (UFC) e colaboradores das Escolas Diferenciadas Indígenas Tremembé.

Nesse contexto, surgiram possibilidades para uma rica aproximação com essas comunidades indígenas e, ao mesmo tempo, um despertar para elaborar vários questionamentos sobre a participação do jovem na escola indígena Tremembé, os quais embasam este trabalho. Além disso, proporcionou-se uma convivência que veio acrescentar e alargar a amizade com os Tremembé, em especial com os jovens, principalmente por ocasião de ministrar aulas em língua espanhola para o Ensino Médio Indígena Tremembé (Emit), por uma das pesquisadoras.

A pesquisa, de natureza qualitativa, foi realizada num período de dois anos consecutivos, tendo como técnica principal a observação participante, visto que as pesquisadoras se envolveram ativamente nas ações decorrentes da implementação da Escola Diferenciada, no período de 2014 a 2016. Para tal empreitada metodológica, optou-se pela realização de entrevistas, registros no diário de campo, rodas de conversas e participação em eventos nas comunidades indígenas. Vale ressaltar que a participação das pesquisadoras nas atividades da comunidade Tremembé, inicialmente, foi pontual e específica na discussão, mobilização e implementação da Escola Diferenciada.

Somente depois as pesquisadoras foram participando de outras ações na comunidade, inclusive colaborando como professora de língua espanhola. A esse respeito, vale ressaltar que adentrar na vida dessa comunidade indígena exigiu uma postura ética e respeitosa com os valores e costumes desses povos. Fato esse que possibilitou participar de várias atividades em períodos específicos, conforme os movimentos iam se organizando em prol da implementação da Escola Diferenciada.

Portanto, o percurso metodológico deste estudo foi se constituindo no ritmo dos acontecimentos na comunidade, de tal modo que optou-se por narrar as experiências da comunidade indígena a partir do olhar dos próprios sujeitos envolvidos no processo. Ou seja, pretendeu-se compreender os fatos a partir da percepção dos próprios indígenas, respeitando sua cultura, seu modo de ser e ver a realidade.

A partir da observação participante, foi feito uso da coleta de dados pela comunicação com os jovens indígenas, e o diário de campo foi instrumento usado pelas pesquisadoras como recurso de registro, por meio de dados e anotações relevantes.

Desses contatos, emergiu um rico material que foi devidamente sistematizado (gravações, filmagens, fotos e diários de campo). Outra fonte importante foi a documental (escritos pelos jovens em forma de cartazes, desenhos, poesias), material esse que, após analisado, foi fundamental para a elaboração deste artigo. Incluem-se as análises de Grabner (2006), Alarcão (2008), Grupioni (2001), Parecer 14/99 (Conselho Nacional de Educação - CNE, 1999) e, sobretudo, as falas e análises dos jovens e demais membros da aldeia sobre educação indígena Tremembé.

Desse modo, o presente artigo encontra-se dividido em duas seções, além da introdução e das considerações finais. A segunda seção faz uma breve incursão sobre a Educação Indígena Brasileira, à luz dos documentos oficiais e da legislação brasileira vigente. No terceiro tópico, empreende-se uma análise da inclusão do jovem indígena na escola, a partir da experiência da implementação da Escola Diferenciada Indígena Tremembé, cujas análises emergem das percepções dos próprios sujeitos envolvidos naquele processo.

 

Educação indígena

Pode-se falar, como conceito da educação indígena, o que é apresentado pelo Parecer nº 14/99 (CNE, 1999, p. 4):

Designa o processo pelo qual cada sociedade internaliza em seus membros um modo próprio e particular de ser, garantindo sua sobrevivência e sua reprodução. Diz respeito ao aprendizado de processos e valores de cada grupo, bem como aos padrões de relacionamento social introjetados na vivência cotidiana dos índios com suas comunidades. [...] toda a comunidade é responsável por fazer que as crianças se tornem membros sociais plenos.

Costumeiramente, as comunidades indígenas transmitem seus conhecimentos e saberes pela oralidade, principalmente, no âmbito das escolas e eventos, comunicando e perpetuando a herança cultural de geração a geração. Os grandes investimentos em pesquisa e apoio à produção intelectual indígena têm possibilitado a transmissão de suas heranças culturais por meio da escrita e de gravação de sons e imagens.

No ano de 2007, a Secretária de Educação do Estado do Ceará (Seduc) produziu uma coleção de livros, fruto de pesquisas realizadas por professores e alunos das escolas indígenas de todas as etnias do Ceará. Esse material serve de instrumento didático-pedagógico para a transmissão dos costumes e cultura nas escolas indígenas. A produção de vídeos de eventos e festas, documentários, fotos e CDs já faz parte da vida cotidiana dos indígenas que se utilizam desses novos mecanismos tecnológicos para melhor se comunicar com a sociedade não índia e garantir a preservação de sua história e lutas.

Com os processos educativos próprios das sociedades indígenas veio equacionar a experiência escolar com as várias formas de modalidades assumidas ao longo da história de contato entre índios e não índio no Brasil. Essa escola assumiu diferentes formas ao longo da História num movimento que começa pela "imposição" de modelos educacionais aos povos indígenas, por meio da dominação, da negação de identidades e da homogeneização cultural, por meio da catequização, civilização e pela integração forçada dos índios à sociedade nacional. Dessa forma, toda diferenciação étnica seria anulada ao se incorporar os índios à sociedade nacional. A ordem era que o índio, ao tornar-se brasileiro, deveria abandonar sua própria identidade (CNE, 1999).

Com o passar dos anos, modelos educacionais passaram a ser reivindicados pelos índios, dentro de paradigmas de pluralismo cultural e de respeito e valorização de identidades étnicas. A escola, entre indígenas, seria um meio para garantir acesso a conhecimentos gerais, sem precisar negar as especificidades culturais e a identidade daqueles grupos.

Nesse contexto, diferentes experiências surgiram em várias regiões do Brasil, construindo projetos educacionais específicos para a realidade sociocultural e histórica de determinados grupos indígenas, praticando a interculturalidade e o bilinguismo, adequando essas experiências ao projeto de futuro daqueles grupos. As comunidades indígenas já eram entendidas como categoria étnica e social transitória e fadada à extinção. As mudanças e as inovações garantidas pelo atual texto constitucional e a crescente mobilização política de diversas lideranças indígenas ensejaram a necessidade de se estabelecer uma nova forma de relacionamento jurídico e de fato entre as sociedades indígenas e o Estado brasileiro.

A Constituição Brasileira de 1988 inovou ao garantir às populações indígenas o direito à cidadania plena, libertando-as da tutela do Estado, no que concerne ao reconhecimento de sua identidade diferenciada e de sua manutenção, incumbindo a Nação de assegurar e proteger as manifestações culturais das sociedades indígenas. Assegurou, ainda, o direito das sociedades indígenas a uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngue, o que vem sendo regulamentado por meio de vários textos legais.

A certeza dada pela Constituição veio somar-se à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 de 20/12/1996) e o Plano Nacional de Educação (Lei nº 10.172 de 9/1/2001), nos quais é abordado o direito dos povos indígenas a uma educação diferenciada, caracterizada pela utilização das línguas maternas, pela valorização dos conhecimentos tradicionais e saberes milenares e pela capacitação de professores indígenas para atuarem em suas próprias comunidades, encontrando, para tanto, a complementação nas esferas estaduais que procuram adequar preceitos nacionais às suas peculiaridades locais.

Nesse passo, a Resolução nº 3 do Conselho Nacional da Educação, de 10 de novembro de 1999, ao interpretar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), criou a categoria Escola Indígena e Professor Indígena, fixando diretrizes nacionais para o funcionamento das escolas indígenas, definindo, por exemplo, as esferas de competências e responsabilidade pela oferta da educação escolar aos povos indígenas. Estabelece-se, assim, um regime de colaboração entre União, estados e municípios, cabendo à União legislar, definir diretrizes e políticas nacionais, apoiar técnica e financeiramente os sistemas de ensino para o provimento de programas de educação intercultural e de formação de professores indígenas, além de criar programas específicos de auxílio ao desenvolvimento da educação.

Aos estados cabe a responsabilidade pela oferta e execução da educação escolar indígena, diretamente ou por regime de colaboração com os municípios, integrando as escolas indígenas como unidades próprias, autônomas e específicas no sistema estadual e provendo-as com recursos humanos, materiais e financeiros, além de instituir e regulamentar o magistério indígena (CNE, 1999).

A educação indígena diferenciada e de qualidade é garantida, ainda, pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) - aprovada no Brasil pelo Decreto legislativo nº 143 de 20 de junho se 2002 -, que conclama os governos membros a reconhecerem o direito desses povos de criarem suas próprias instituições e meios de educação, possibilitando o ensino ministrado, também, na língua indígena, a formação de membros desses povos e a participação na formulação e execução de programas de educação de modo a atender as suas necessidades particulares, abrangendo sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas as suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais (Grabner, 2006).

Assim, a política nacional da educação indígena já se encontra traçada no texto constitucional e dispõe de mecanismos legais que permitem a sua aplicabilidade. Desse modo, a educação indígena passa a receber um tratamento no Ministério da Educação (MEC) focado na asserção dos direitos humanos, entre eles o dos índios terem seus projetos societários e identitários fortalecidos nas escolas indígenas.

 

O jovem e a escola Diferenciada Indígena Tremembé

O aparecimento das escolas diferenciadas indígenas aconteceu no fim dos anos 1990 e, como decorrência dessas escolas, iniciou-se também a aproximação dos jovens para adquirirem formação de professores indígenas para o atendimento às necessidades dessas escolas. Para isso, a qualificação profissional existe nos cursos de Ensino Médio que os habilita para o magistério indígena no Ensino Fundamental - séries iniciais. Além deles, os cursos de Ensino Superior em Licenciatura Indígena têm formado jovens docentes para atuarem no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

Os Tremembé iniciaram a organização de sua escola diferenciada em 1991, sem apoio de qualquer instituição governamental ou não governamental. A necessidade que chegava pelas experiências de discriminação que as crianças e jovens indígenas sofriam nas escolas convencionais, citada por eles nas escolas dos não índios, levou as lideranças (idosos) das comunidades a iniciar, por conta própria, a primeira experiência de escola indígena na comunidade da praia de Almofala.

 

Figura 1

 

Embora não tendo continuidade, a necessidade gerou o interesse em lutar por escolas indígenas na área, bem como a necessidade de formar professores indígenas para lecionar nessas escolas. E, aos poucos, os jovens foram compreendendo as dificuldades e desafios que encontrariam. Vejamos o que diz um desses jovens:

Sabe-se que no Brasil a questão do analfabetismo é uma situação parcial, é que ainda não exorcizamos do inconsciente uma solução para esse problema que passa e derruba as barreiras que impedem a população de crescer no ritmo que precisa, a falta de apoio político é parte onde descaracteriza o povo de torna-se alfabetizado numa forma clara de perceber as coisas ao seu redor, a sua volta. (João Evandro Marciano, jovem Tremembé, 18/3/2014)

Dessa maneira, como fruto desses questionamentos e debates, foram criadas escolas nas demais comunidades e, no ano de 2001, os indígenas "tomaram a iniciativa de criar um curso de magistério específico, com o apoio de parceiros, alguns dos quais já inseridos há tempos no campo de produção dessa escola" (Faced/UFC, 2004, p. 4). A coordenação geral ficava, por um lado, com os próprios indígenas representados pelo Conselho Indígena Tremembé de Almofala (Cita) e, por outro, a Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (Faced/UFC). Nesse contexto, vejamos a seguinte fala:

Esta é uma oportunidade muito significativa para os Tremembé, pois a educação para nós sempre foi um sonho. As lideranças indígenas, nós e os parceiros temos contribuído muito para que realmente nossa formação fosse do nosso jeito de pensar e agir como indígenas, pois nós temos memória e história, por isso continuaremos na luta pela nossa educação. (Aluno Getúlio Tremembé, 10/3/2015)

Os indígenas tiveram participação direta em todo o processo de elaboração do Magistério Indígena Tremembé (MIT). Um dos momentos importantes desse processo foi a realização do Seminário Magistério Indígena Tremembé intitulado Planejando e Consolidando a Escola Diferenciada, em maio de 2001, para discutir a proposta curricular do MIT. Nesse evento, lideranças, pais, mães, alunos, professores, jovens indígenas, somaram-se a esse mutirão político-pedagógico, buscando, a cada passo, a forma mais adequada de traduzir os grandes ideais do povo Tremembé para a formação de seus professores. Eis a fala de uma jovem participante do MIT:

É muito bom estudar e saber que esse estudo poderá proporcionar ao povo Tremembé a conservação e respeito de nossa identidade, cultura e costumes, porque sempre lutamos por uma educação que tivesse nossa cara, o nosso jeito de ser. É um sonho tudo isso! Agradecemos ao Pai Tupã. (Aluna Cristina Tremembé, 21/3/16)

É nessa perspectiva que Alarcão (2008) pensa a Escola como um projeto próprio e coerente ao afirmar: "quero uma escola comunidade, dotada de pensamento e vida próprios, contextualizada na cultura local [...]" (Alarcão, 2008, p. 82.

Refletindo sobre o pensamento da autora, podemos identificar na escola diferenciada indígena Tremembé uma filosofia educacional comunitária em um contexto próprio com suas peculiaridades que impulsiona o fortalecimento de uma formação docente étnica. Contudo, a trajetória de luta pela implantação da educação deu-se, inicialmente, com a proposta discutida no Seminário, que continuou passando por um processo de elaboração ininterrupta frequentemente revista e ampliada, nas etapas mensais do MIT.

Outras entidades como a Fundação Nacional do Índio (Funai), UFC, Igreja Metodista, Universidade Estadual do Ceará (Uece) se tornaram parceiras na efetivação do trabalho, contribuindo para o fortalecimento do processo de autonomia dos índios. O curso foi concluído em setembro de 2003 e os benefícios foram para muito além da certificação que os indígenas receberam. Eis que:

Iniciado com os Tremembé da Praia de Almofala, entre os quais se desenvolveu a maior parte da pesquisa empírica, a ideia do Curso se difundiu entre os Tapeba, Pitaguary e Jenipapo-Kanindé, com desdobramentos e repercussões em muitas dimensões de suas vidas, no movimento indígena regional e, até mesmo, em nível nacional. (Filho, 2003, p. 2)

Assim, a difusão da ideia do Curso entre outros povos deu impulso à luta pela educação diferenciada indígena no estado do Ceará. Atualmente, todas as etnias organizadas no estado já contam com escolas diferenciadas indígenas, tendo já iniciado as discussões sobre as condições de formação dos professores em nível superior. A esse respeito, vejamos o que diz Júnior (1998, p. 20):

A crescente mobilização étnica que vem ocorrendo no Estado do Ceará constitui-se num caso particular de um fenômeno mais amplo que há duas décadas emergiu em praticamente toda a Região Nordeste, onde vários grupos indígenas "reaparecem" e passaram a reivindicar suas identidades, bem como o direito à posse das terras que tradicionalmente ocupam.

Os Tremembé, ao pensar o Projeto MIT para a formação de professores em Magistério de Nível Médio, já concebiam, no seu início, o sonho de um projeto futuro de formação no nível superior. Tendo concluído o Curso em 2003, os jovens indígenas aguardavam a certificação para então dar início à nova etapa de sua formação. O diploma do MIT foi entregue em julho de 2005 e, em novembro do mesmo ano, sob a orientação de Marly Schiavini, começaram as discussões sobre o Curso de Magistério Indígena Tremembé Superior (Mits).

 

Figura 2

 

O ano de 2006 marca o início de uma nova etapa de formação dos jovens professores Tremembé. Em janeiro desse mesmo ano, aconteceu um seminário para esboçar o Projeto do Curso. Nesse seminário, foram discutidas as possíveis disciplinas e eleita a Coordenação. Assim, em 2006 teve início o Curso Mits, com a primeira etapa de estudo acontecendo no mês de julho. Nessa etapa, foi trabalhada a Disciplina de História (posteriormente chamada de Estudos Antropológicos), ministrada pela profa. Joina Borges, da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Seguindo o mesmo processo de autonomização, já conhecido pelos jovens indígenas durante a produção do Curso MIT, o Mits vem sendo construído com assessoria dos parceiros, respeitando as decisões dos índios relativas à construção e efetivação do curso. Nessa perspectiva, a jovem aluna Andreína comenta:

É muito bom perceber que a nossa formação tem sido baseada no que acreditamos e sonhamos como educação para nosso povo, embora a luta seja constante, já avançamos, porque esse pensar e realizar a educação participando de todo processo não é tão fácil, é um privilegio. Mas, esta conquista não é e nunca foi sem luta. É uma força coletiva que se fortalece a cada dia. (24/3/2016)

Tendo em vista a grande importância que os Tremembé do município de Almofala tiveram na efetivação do MIT, faz pensar que esse grupo étnico tenha sua contribuição a dar ao debate sobre a formação superior para jovens professores indígenas. Uma vez que a experiência de formação de professores em nível médio (experiência essa mapeada por Fonteles Filho (2003) em sua tese de doutorado) foi marcante pela originalidade e pioneirismo, terá essa nova etapa de luta a expressividade que se espera? Dará contribuição significativa na luta em defesa ao direito de reconhecimento e respeito às diferenças? Que novas contribuições poderão dar para o fortalecimento da autonomia construída na luta por educação diferenciada?

 

Figura 3

 

Como já foi dito, o Mits seguiu um caminho já conhecido pelos jovens indígenas. Caminho esse trilhado no curso de nível médio. Como é costume, entre os Tremembé, as decisões são tomadas em comunidade, sendo assim, todos, índios e índias, independentemente de cargos ou funções que ocupam, podem opinar e decidir juntos. Esse modo comunitário de agir expressa-se não apenas na política dos Tremembé, mas também na construção do conhecimento, o que, possivelmente, poderá ir norteando seus processos de ensino-aprendizagem.

Dando continuidade às discussões em torno do Projeto Político Pedagógico, um novo seminário foi organizado em maio de 2007. Sob a coordenação do prof. Babi Fonteles (2003) com as parcerias, professores indígenas, lideranças e comunidades indígenas Tremembé, discutiram as questões relativas ao Projeto Político Pedagógico do Curso, como disciplinas, eixos temáticos, carga horária, etc. Nesses "mutirões do conhecimento", os indígenas vão se apropriando dos termos técnicos e construindo o Curso segundo sua cultura, seus costumes. Nesse processo, o papel dos colaboradores parceiros tem sido o de facilitar o trabalho dos índios, respeitando sua autonomia.

Os especialistas e os docentes do programa, como antropólogos, pedagogos, linguistas e outros, devem atuar, nos cursos e nas demais situações de formação, como facilitadores dessa discussão e não como propositores de práticas pedagógicas, que normalmente seguem padrões culturais de uma pedagogia oriunda de parâmetros e realidades estritamente ocidentais. (CNE, 1999, p. 35)

Concomitantemente ao processo de elaboração do Projeto Político Pedagógico do Mits, aconteceram as etapas de estudo. Mensalmente, durante cinco dias, professores e professoras indígenas afastaram-se de suas atividades escolares, reunindo-se em uma das comunidades Tremembé para cursar uma disciplina, previamente combinada. O professor ou professora ministrante daquela disciplina ficava a semana na aldeia dando aula e convivendo com os índios.

Essa formação específica está prevista na legislação que trata do direito dos índios a uma educação intercultural diferenciada dos demais segmentos da população brasileira. Nessa legislação garante-se que os professores indígenas possam ter essa formação "em serviço", ou seja, paralelamente à sua atuação em sala de aula, e concomitante à sua formação básica. (Grupioni, 2001, pp. 13-14)

Essa prática procura garantir uma formação sólida, aproveitando a atuação dos professores em sala de aula como parte de sua formação, de modo que o seu cotidiano profissional seja uma constante reflexão e construção do conhecimento e, mais particularmente, do que venha a ser a educação diferenciada Tremembé. Com essa prática, os Tremembé desenvolvem uma contínua experiência de serem pesquisadores, mentores de novos conhecimentos e sistematizadores do conhecimento dos mais velhos a ser transmitido às novas gerações.

De forma geral, pode-se dizer que os professores indígenas são os mediadores por excelência das relações sociais que se estabelecem dentro e fora da aldeia, por meio também da escola. Eles têm, assim, a complexa tarefa de protagonizar os processos de reflexão crítica sobre os diversos tipos de conhecimentos a serem estudados, interpretados e reconstruídos na escola: os normalmente denominados conhecimentos "universais", transmitidos pela instituição escolar, e os denominados conhecimentos "próprios", "étnicos" ou "tradicionais", a serem pesquisados, registrados, sistematizados e reinterpretados no processo intercultural.

Para tal, os professores indígenas têm a difícil responsabilidade de incentivar as novas gerações para a pesquisa dos conhecimentos, visando sua continuidade e reprodução cultural; por outro lado, eles são responsáveis também por estudar, pesquisar e compreender, à luz de seus próprios conhecimentos e de seu povo, os conhecimentos tidos como universais reunidos no currículo escolar. (CNE, 1999, pp. 20-21)

De igual modo, os docentes formadores desses professores têm a responsabilidade de transitar entre as diferentes culturas numa atitude continuada de pesquisadores e aprendizes de um processo formativo em construção.

 

Considerações finais

No decorrer deste estudo, foi possível perceber que a Escola Diferenciada Indígena Tremembé de Ensino Fundamental e Médio Maria Venância, por meio do direito à educação adquirido legalmente no Brasil e a junção da luta dos jovens indígenas para uma educação pensada e organizada pelos Tremembé, tem sido motivo de autonomia e relevância para o processo de formação docente e escolar. Costumeiramente, esse contexto educativo transmite seus conhecimentos e saberes comunicando e perpetuando a herança cultural de geração a geração.

Assim, esses indígenas procuram garantir uma educação sólida aproveitando a atuação dos jovens professores em sala de aula como parte de sua formação para que o seu cotidiano profissional seja uma constante reflexão e construção do conhecimento. Com esse modelo de educação, os Tremembé desenvolvem uma contínua experiência de serem pesquisadores, mentores de novos conhecimentos e sistematizadores do conhecimento dos mais velhos, considerando-os como livros vivos a serem transmitido às novas gerações.

Contudo, os jovens Tremembé têm buscado para o atendimento às necessidades dessa escola e, para isso, a qualificação profissional existente no curso de ensino médio, Magistério Indígena Tremembé (MIT), que habilita para o magistério no ensino fundamental - séries iniciais. Além dele, o curso de ensino superior em Licenciatura Indígena, Magistério Indígena Tremembé Superior (Mits) tem formado jovens docentes para atuarem no Ensino Fundamental e no Ensino Médio.

E, para finalizar, deve-se registrar a intenção de aprofundar, em outro momento, questões relativas à etnia, sobretudo à formação docente, currículo e às práticas pedagógicas. Sendo assim, não cabe considerar os pontos aqui relatados como concluídos e resolvidos.

 

Referências

Alarcão, I. (2008). Professores reflexivos em uma escola reflexiva (6a ed.). São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Conselho Nacional de Educação (CNE). (1999). Parecer 14/99. Brasília: CNE.         [ Links ]

Constituição da República Federativa do Brasilia. (1988). Brasília: Senado Federal.

Filho, J. M. F. (2003). Subjetivação e Educação Indígena. Tese de doutorado, Universidade Federal do Ceará, Faced/UFC, Fortaleza.         [ Links ]

Faced/UFC. (2004). Curso de Magistério Indígena Tremembé - Nível Médio [Relatório], Fortaleza.

Grupioni, L. D. Benzi (Org.). (2001). As leis e a educação escolar indígena: "programa parâmetros em ação de educação escolar indígena". Brasília: Ministério da Educação, Secretária de Educação Fundamental, 2001.         [ Links ]

Grabner, M. L. (2006). Educação Indígena. Brasília. Recuperado em 12 janeiro, 2017, de http://www.esmpu.gov.br/dicionário/tiki-index.php?page+Educa%C3%A7%A3%C3ADgena

Júnior, G. A. da S. (2000). Educação Inclusiva e Diferenciada Indígena. São Paulo. Recuperado em 12 fevereiro, 2007, de http://scielo.bvs-psi.org.br/pdf/pcp/v20n1/v20a06.pdf

Lei nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996. (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Estabelece as diretrizes e bases para a educação nacional. Brasília, 1996.

 

 

Recebido em: 29/4/2017
Aprovado em: 11/4/2018

 

 

1 Estas escolas são diferenciadas pelo modo como planejam sua gestão, coordenação pedagógica e currículo escolar, pois se baseiam na identidade, cultura e costumes Tremembé.

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