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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.3 São João del-Rei July/Sept. 2018

 

Relações étnico-raciais e educação nas comunidades quilombolas

 

Ethnic-racial relations and education in quilombola communities

 

Relaciones étnico-raciales y educación en las comunidades quilombolas

 

 

Roseane Amorim da SilvaI; Jaileila de Araújo MenezesII

IGraduada e mestre em Psicologia. Doutoranda do programa de Pós- Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
IIDoutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

 

 


RESUMO

No presente estudo, buscamos conhecer as vivências juvenis de homens e mulheres em duas comunidades quilombolas localizadas no interior de Pernambuco, Castainho e Estivas. A discussão dos resultados teve como foco questões da educação nessas comunidades. A pesquisa foi desenvolvida em dois momentos: realizamos observação participante em Castainho e Estivas e 20 entrevistas com os/as jovens. Os dados foram analisados a partir da interseccionalidade de gênero, classe social e raça/etnia. No que se refere à educação, vários fatores dificultam a continuidade da escolarização: as jovens por necessidade de trabalhar, por terem engravidado e não possuir uma rede de apoio, por desmotivação; os homens pela necessidade de trabalhar, pela falta de incentivo. Tanto os homens quanto as mulheres da comunidade se quiserem dar continuidade ao processo de escolarização precisam se deslocar até a cidade, quando enfrentam outra dificuldade, a falta de transporte público. A população quilombola não é homogênea e abriga diferentes especificidades que precisam ser consideradas nas políticas educacionais para essa população.

Palavras-chave: Educação. Comunidades quilombolas. Jovens.


ABSTRACT

In the present study, we sought to know the youthful experiences of men and women in two quilombola communities located in the interior of Pernambuco. Here our focus is on education issues in these communities. The research was developed in two moments. We conducted participant observation in Castainho and Estivas, and 20 interviews with young people. Data were analyzed from the intersectionality of gender, social class and race/ethnicity. With regard to education, several factors make it difficult to continue schooling. The young women need to work, because they have become pregnant and do not have a support network, because of demotivation. The men for the need to work, for the lack of incentive and still, both, if they want to continue their studies must move to the city, when they face another difficulty, public transportation. The quilombola population is not homogeneous and shelters different specificities that need to be considered in the educational policies for this population.

Keywords: Education. Quilombola communities. Young.


RESUMEN

No presente estudio buscamos conocer como vivencias juveniles de hombres y mujeres en dos comunidades quilombolas localizadas no interior de Pernambuco. Aquí está nuestro foco de atención de la educación en estas comunidades. Una busque da fue desarrollada en dos momentos. Realizamos observación participante en Castainho e Estivas, y 20 entrevistas con los/las jóvenes. Los datos se han analizado desde la interseccionalidad de género, la clase social y la raza/etnia. No hay que referirse a educación varios factores dificultar una continuidad de la escolarización. Como jóvenes por necesidad de trabajo, por haberse embarazado y no poseer una red de apoyo, por desmotivación. Los hombres por la necesidad de trabajar, por la falta de incentivo y aún, los dos, se buscan dar continuidad a los estudios se necesitan se trasladan a una ciudad, una falta de transporte público. Una población que no es homogénea y que se abre con diferentes especificidades que se han considerado en las políticas educativas para la población.

Palabras clave: Educación. Comunidades quilombolas. Jóvenes.


 

 

Introdução

Nosso propósito neste artigo é compartilhar parte da discussão desenvolvida em uma pesquisa de mestrado realizada em duas comunidades quilombolas localizadas na área rural, no Agreste de Pernambuco, que têm como nomes: Castainho e Estivas. Na pesquisa buscamos conhecer as vivências juvenis de homens e mulheres e as relações dessas vivências com o uso de bebidas alcoólicas. Nosso foco estará voltado para questões da educação nas comunidades quilombolas.

Os quilombos, como eram chamados antigamente, são uma das formas mais antigas de organização social brasileira. Hoje são chamados de comunidades remanescentes de quilombos. Pensar nos quilombos é lembrar-se de uma parcela da população que sofreu muito devido à condição de raça-etnia e classe social, e que continua enfrentando diversas dificuldades. Atualmente as comunidades remanescentes ainda são invisibilizadas na sociedade de modo geral e sofrem com o preconceito e discriminação que têm perdurado ao longo dos anos. Existe uma grande luta de muitas comunidades pelo reconhecimento e pela titulação das terras e para que o Estado se responsabilize pelas demandas desses territórios.1

As comunidades quilombolas Castainho e Estivas, que fazem parte do presente estudo, conforme referido, localizam-se na área rural do município de Garanhuns, situado no Agreste do estado de Pernambuco. A distância de Castainho, primeira comunidade para o referido município é de 8 km e a única via de acesso é uma estrada de barro, transitável por qualquer tipo de transporte.

Em um trabalho sobre a Comunidade Quilombola Castainho, Monteiro (1985) relata que para as/os moradora/es do município, a comunidade se originou de um pequeno quilombo existente naquele local ou, então, teria sido povoada por famílias negras remanescentes dos antigos quilombos da região. Para algumas e alguns habitantes da comunidade, as terras pertenciam a um padre que, quando estava em outro continente, adquiriu um jovem escravo negro, este foi o companheiro mais dedicado ao seu dono e com a morte do padre recebeu as terras que correspondem à comunidade. O jovem escravo casou-se e por ali foi constituído o Castainho.

Estivas é localizada logo depois de Castainho, não há uma demarcação oficial de onde uma comunidade termina e começa a outra, os/as próprios/as moradores/as que dizem que a partir de determinado lugar é Estivas. Relatam também que era uma comunidade só e existiam duas grandes famílias, uma que morava na parte mais de cima - Castainho - e a outra na parte de baixo, essas famílias entraram em conflito e formaram as duas comunidades: Castainho e Estivas.

Em Castainho as casas são de alvenaria, a principal fonte de renda é a plantação de mandioca, existem algumas casas onde a mandioca é transformada em farinha e comercializada nas feiras de Garanhuns e regiões circunvizinhas. Tem um Centro de Referência da Assistência Social (Cras),2 que atende as seis comunidades da localidade (Castainho, Estivas, Estrela, Tigre, Caluête e Timbó). Uma igreja católica e uma escola, que atende a demanda das duas comunidades (Castainho e Estivas), onde funciona o ensino fundamental I e II. Os/as moradores têm reivindicado o aumento do espaço físico da escola, pois esta não tem estrutura para atender todos os/as alunos/as, dispõe de oito salas de aula uma sala de leitura pequena, uma cozinha, banheiro, uma sala onde funciona a secretaria.

Os/as jovens que querem dar continuidade ao processo de escolarização precisam se deslocar até a cidade. Alguns e algumas atualmente estão cursando o nível superior em universidades de Garanhuns,3 o que era algo há pouco tempo muito difícil de ser conseguido. Estivas tem uma escola, menor que a de Castainho, na qual só funciona o ensino fundamental I. As casas também são de alvenaria, há uma creche, uma igreja evangélica, e uma Unidade de Saúde que atende as comunidades já referidas.

Castainho e Estivas foram reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares como quilombolas, mas ainda há uma luta pela posse de um quantitativo considerável de terras que fazem parte das comunidades, luta travada há anos com fazendeiros das regiões circunvizinhas. Dados da Fundação Cultural Palmares revelam que desde 1988 foram reconhecidas oficialmente cerca de 3,2 mil comunidades quilombolas. Quase 80% delas foram identificadas a partir de 2003, quando foi editado o Decreto nº 4.887, que traz os procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por quilombolas.

Nesse cenário de luta de muitas comunidades para garantir os direitos civis do povo quilombola, desencadeou-se também as reivindicações pela educação escolar quilombola como política educacional - problemática denunciada constantemente pelo movimento negro, pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e setores da sociedade que exigem educação pública e de qualidade para todos (Ministério da Educação, 2011). A seguir apresentaremos como foi desenvolvida a pesquisa e depois algumas questões sobre educação nas comunidades quilombolas serão discutidas.

 

Método

Este estudo é de natureza qualitativa e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa - CEP (CAAE nº 13367213.0.0000.5208) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sendo desenvolvido em dois momentos. No primeiro realizamos observação participante nos diversos espaços existentes nas duas comunidades, Castainho e Estivas. Nosso foco serão as observações realizadas em que estiveram presentes o assunto educação escolar. A observação participante é um método em que "o/a observador/a, fica em relação direta com seus interlocutores no espaço social da pesquisa, na medida do possível, participando da vida social deles, no seu cenário cultural, mas com a finalidade de coletar dados e compreender o contexto da pesquisa" (Minayo, 2008, p. 70).

Sobre o trabalho de observação no campo de pesquisa, Sato e Souza (2001, p. 29) fazem referência a Erickson (1986) para descrever importantes questões que a observação possibilita responder, tais como:

o que está acontecendo especificamente nesta ação social que ocorre num determinado cenário particular? Que significados têm para os atores envolvidos? Como outras pessoas se fazem presentes neste mesmo cenário? Como se relaciona um cenário específico com o seu entorno, com outros níveis do sistema dentro e fora do próprio cenário? Como se comparam as formas de organização da vida diária neste cenário com outras formas de organização da vida social mais ampla?

Esses foram aspectos norteadores que possibilitaram que este estudo se desenvolvesse a partir de uma orientação etnográfica para alcançar os objetivos propostos: investigar questões referentes às vivencias juvenis, no que se refere às práticas de lazer, uso de álcool, projeto de vida, escolaridade, entre outras.

No segundo momento da pesquisa, foram realizadas 20 entrevistas semiestruturadas com os/as jovens com idades entre 18 e 24 anos, participaram 10 mulheres e 10 homens. A escolha do uso de entrevistas semiestruturadas advém do fato de que essa é uma técnica privilegiada de comunicação que permite que o/a entrevistado/a tenha a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender à indagação formulada (Minayo, 2008). A realização das entrevistas e a observação participante permitiram que este estudo se desenvolvesse em um contexto intersubjetivo, com foco na relação estabelecida entre pesquisadora e participantes, pautada no aprofundamento de conteúdos relativos aos temas investigados.

Os dados construídos a partir dos dois momentos foram analisados com base na perspectiva da interseccionalidade de gênero, classe social e raça/etnia. A interseccionalidade segundo a perspectiva de Crenshaw (2002, p. 177)

é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcado, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.

Adriana Piscitelli (2008, p. 269) ressalta que as interseccionalidades permitem "pensar como construções de diferença e distribuições de poder incidem no posicionamento desigual dos sujeitos no âmbito global". Essa produtiva valorização das categorias diferença e poder implicaria uma secundarização relativa da categoria gênero, que no pensamento feminista assumiu lugar central nas últimas décadas, obscurecendo ou subordinando outras formas de diferenciação que produzem desigualdades e opressão.

Em relação aos marcadores sociais de diferença e corroborando com as autoras que consideram a importância de trabalhar com a intersecção entre eles, Avta Brah (2006, p. 351) pontua que "estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas como variáveis independentes porque a opressão de cada uma está inscrita dentro da outra - é constituída pela outra e é constitutiva dela". Por isso, tais fatores estão sendo considerados neste estudo. É importante ressaltar que os/as jovens quilombolas fazem parte de uma parcela da sociedade em que as oportunidades de educação, trabalho e saúde são escassas, as situações de discriminação e estigmas comumente se fazem presentes, formando uma série de questões que vêm a favorecer a vulnerabilidade dessa população a vários fatores.

 

Educação para quilombolas

Em 2003, devido à luta do Movimento Negro, e quilombola em particular, foi sancionada a Lei Federal nº 10.639 que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/96, o que tornou obrigatório o ensino de história e da cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar da educação básica. Em consequência, foram criadas também as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais que estabelece a inclusão de conteúdos sobre a História e a cultura africana e afro-brasileira no currículo, orientam novas práticas e atitudes pedagógicas no processo de formação nacional (Ferreira & Castilho, 2014).

A Conferência Nacional de Educação - Conae (Ministério da Educação, 2011, p. 9) definiu que a educação quilombola é da responsabilidade do Governo Federal, estadual e municipal e que estes devem:

a) Garantir a elaboração de uma legislação específica para a educação quilombola, com a participação do movimento negro quilombola, assegurando o direito à preservação de suas manifestações culturais e à sustentabilidade de seu território tradicional.

b) Assegurar que a alimentação e a infraestrutura escolar quilombola respeitem a cultura alimentar do grupo, observando o cuidado com o meio ambiente e a geografia local.

c) Promover a formação específica e diferenciada (inicial e continuada) aos/às profissionais das escolas quilombolas, propiciando a elaboração de materiais didático-pedagógicos contextualizados com a identidade étnico-racial do grupo.

d) Garantir a participação de representantes quilombolas na composição dos conselhos referentes à educação, nos três entes federados.

e) Instituir um programa específico de licenciatura para quilombolas, para garantir a valorização e a preservação cultural dessas comunidades étnicas.

f) Garantir aos professores/as quilombolas a sua formação em serviço e, quando for o caso, concomitantemente com a sua própria escolarização.

g) Instituir o Plano Nacional de Educação Quilombola, visando à valorização plena das culturas das comunidades quilombolas, a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica.

h) Assegurar que a atividade docente nas escolas quilombolas seja exercida preferencialmente por professores/as oriundos/as das comunidades quilombolas.

A Resolução nº 8, de 20 de novembro de 2012, considerando as deliberações da I Conferência Nacional de Educação Básica - Coneb (2008), a Conferência Nacional da Educação Básica - CONAE (2010) e as manifestações e contribuições provenientes da participação de representantes de organizações quilombolas e governamentais, pesquisadores e de entidades da sociedade civil em reuniões técnicas de trabalho e audiências públicas promovidas pelo Conselho Nacional de Educação estabeleceram Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, para escolas nos territórios quilombolas rurais e urbanos e escolas localizadas próximas aos territórios quilombolas que recebem a população das comunidades.

Apesar dos avanços, mencionados, as pesquisas revelam (Ferreira & Castilho, 2014; Castilho, 2011) que a escola vem sendo implementada nas comunidades quilombolas considerando pouco ou quase nada das suas especificidades. Continua com suas características predominantemente excludentes e seus currículos se baseiam no modo de vida urbano, de classe média "branca".

Nas comunidades estudadas, observamos que muitas das pautas de responsabilidade das três instâncias do governo ainda não estão em vigor, não existem materiais didático-pedagógicos contextualizados com as comunidades. Em Garanhuns existe uma universidade estadual e uma universidade federal, em ambas vários cursos de licenciatura, mas nenhum voltado às especificidades da educação para quilombolas. Embora existam moradores/as nas comunidades graduados/as, a exemplo das duas pedagogas que fizeram estágio na escola de Castainho, depois de formadas elas não foram contratadas. Atuam na escola professoras/es que moram na área urbana. Com isso, podemos refletir sobre a política educacional para os quilombolas que, é descontínua tanto em relação ao processo de escolarização quanto na escolarização e no ingresso no mercado de trabalho.

A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais, a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Na estruturação e no funcionamento das escolas quilombolas deve ser reconhecida e valorizada sua diversidade cultural. (Ministério da Educação, 2011, p. 21)

Em Castainho e Estivas, além da não existência da formação específica do quadro docente (existem apenas algumas capacitações pontuais), as escolas só funcionam até o fundamental II e os/as jovens que desejam dar continuidade ao processo de escolarização precisam se deslocar até a área urbana. Se nas escolas da comunidade as especificidades étnico-raciais já são pouco estudadas, quando se chega à área urbana é muito menos considerado e os/as jovens sofrem preconceito e discriminação por serem negros/as, quilombolas, moradores/as de áreas rurais. Nas entrevistas com os/as participantes dessa pesquisa, que estudam em escolas na área urbana, questionamos se é falado na escola sobre a cultura quilombola, sobre questões raciais. Eles afirmaram que geralmente essa discussão só ocorre em períodos comemorativos, a exemplo do dia 20 de novembro, que se comemora o dia da consciência negra e as instituições fazem alguma atividade.

Em um estudo realizado pelas autoras Tosta e Costa (2013) com os/as jovens das comunidades quilombolas localizadas próximas ao Vale do Jequitinhonha, foi investigada a contribuição da instituição escolar para a construção da identidade quilombola. As autoras compreenderam que as identidades são forjadas, construídas ou negadas no interior de diversos tempos e espaços, e sempre em oposição ou contraste a outras identidades, num jogo relacional de reconhecimento ou não das alteridades. Dentre os resultados obtidos, destacam que a escola silencia diante da cultura quilombola, dessa forma, não segue o proposto pelo plano para educação quilombola, não contribuindo em vários aspectos da vida dos povos quilombolas, como o fortalecimento da identidade investigado pelas referidas autoras.

Em um levantamento bibliográfico realizado por Ferreira e Castilho (2014) sobre a temática educação quilombola, as autoras encontraram pesquisas que mostraram que a escola está muito aquém das necessidades das comunidades quilombolas em suas especificidades. É necessário se fazer um maior diálogo, visando ao vínculo afetivo, familiar, territorial, cultural e religioso, aspectos importantes para contribuir na solidificação da identidade quilombola, no sentimento de pertença dos/as moradores/as desses territórios. Mostraram também que esses povos são portadores de uma sabedoria única e que devem ser considerados nos currículos formais ou nas atividades cotidianas e que o Movimento Negro tem um papel fundamental na efetivação do reconhecimento desses saberes por meio da atuação política em favor de uma educação antirracista.

Essa é também uma das lutas e desafios da Escola de Castainho. Em conversa com a gestora, foi relatada a dificuldade da participação familiar na escola, por mais que chamem as famílias, que busquem a participação no território, ainda é algo muito delicado. Muitos/as não consideram ser direito/responsabilidade ir à escola, integrar-se às atividades, lutar por uma educação melhor, por uma escola que atenda as necessidades da comunidade, que tenha ensino médio, mesmo quando alguns deles/as têm filhos e parentes que estudam na escola ou que precisam se deslocar à cidade, porque a escola local não atende as necessidades de todos/as.

A Universidade de Pernambuco, Campus Garanhuns, fundou o Núcleo de Estudos sobre África e Brasil (Neab) - órgão suplementar da Universidade -, formado por um conjunto de professores voluntários, que têm interesse na área de Estudos da Cultura e da Sociedade em África e no Brasil. O Neab tem como alguns dos seus objetivos: discutir, elaborar e implantar projetos de pesquisa e ações recorrentes do ensino e da extensão na área dos Estudos da Cultura e da Sociedade em África e no Brasil; promover estímulo à aplicação das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que diz respeito ao trabalho com conteúdos de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, no âmbito da educação básica, entre outros.

Essa é uma iniciativa de outras universidades também, a exemplo da Universidade Federal de Pernambuco, campus Recife, que fundou o núcleo e tem disciplinas eletivas envolvendo a discussão sobre educação e relações étnico-raciais. O objetivo é formar profissionais que contribuam com essa discussão em suas práticas profissionais a fim de promover relações igualitárias na sociedade.

 

Jovens quilombolas e escolaridade

Na pesquisa nas comunidades Castainho e Estivas, foram realizadas 20 entrevistas semiestruturadas com os/as jovens com idades entre 18 e 24 anos, 10 mulheres e 10 homens. Das 10 jovens participantes, quatro estudavam, as demais interromperam os estudos, algumas antes de concluir o ensino fundamental II, conforme podemos observar No Quadro 1. Os motivos para abandonar o processo de escolarização são diversos: necessidade de trabalhar, falta de motivação, engravidaram e não tinham apoio para cuidar da criança, entre outros. Percebemos que a idade das jovens é incompatível com o nível de escolaridade esperado para cada faixa etária.

Dos 10 jovens participantes, três estudam, os demais interromperam os estudos, principalmente devido à necessidade de trabalhar, conforme podemos observar no Quadro 2. Outros estão em busca de qualquer tipo de ocupação, mesmo que seja na informalidade, pois em alguns casos trabalhar implica na própria sobrevivência. As questões de gênero, raça/etnia e classe estão bem presentes quando observamos esse cenário de dificuldade para os jovens permanecerem na escola, conseguirem um trabalho. Os homens jovens assim, como as mulheres quilombolas, têm nível de escolaridade incompatível com o que é esperado para a faixa etária.

Quando refletimos sobre questões educacionais e quilombolas, não podemos deixar de considerar as desigualdades raciais presentes nessa população. A ideia de raça é uma construção social que remete a discursos sobre as origens de um grupo com base em traços fisionômicos, transpostos para qualidades morais e intelectuais. Também há discursos sobre o lugar de onde se veio; nesse caso, são discursos que remetem à etnia, ou seja, ao conjunto de indivíduos que histórica ou mitologicamente têm um ancestral, uma língua em comum, a mesma religião e cultura, e compartilham o mesmo território. No Brasil, a distinção de raças, especificamente, é pautada: na cor da pele (concentração de melanina), nos traços corporais (como forma do nariz, lábios e tipo de cabelo) e na origem regional e social (Guimarães, 2003). A raça é constitutiva de diferenças que hierarquizam e localizam os sujeitos na sociedade em lugares diferentes.

Os/as negros/as são os/as brasileiros/as com menor escolaridade em todos os níveis e enfrentam as piores condições de aprendizagem e maior nível de defasagem escolar. Embora se verifiquem progressos no nível educacional da população, como redução de quatro pontos percentuais na taxa de analfabetismo na última década, a desigualdade racial persiste. Em qualquer grupo etário, inclusive entre aqueles/as em idade escolar, a taxa de analfabetismo entre negros/as ainda representa mais que o dobro da população branca. Em 2010, 14% dos jovens de 18 a 24 anos cursavam o ensino superior. Entretanto, a frequência de jovens brancos era 2,5 vezes maior se comparada com o acesso de jovens negros a um curso universitário (Silva, 2013).

As desigualdades no acesso aos mais elevados níveis educacionais, bem como a disparidade de qualidade e eficiência da educação ofertada desigualmente entre áreas urbanas e rurais, rede pública e privada, brancos e negros, reforçam a reprodução dos padrões de desigualdade no mundo do trabalho. Com o nível de escolaridade baixo, quando as jovens quilombolas buscam trabalho na área urbana do município, e conseguem algum, geralmente é na informalidade. Das jovens que afirmaram trabalhar, nenhuma tem carteira assinada, algumas trabalham na área urbana de Garanhuns, outras nas comunidades. Além disso, as relações de gênero, raça/etnia e classe contribuem para essas desigualdades sofridas pelas jovens no modo como são vistas na sociedade, pois é comum as mulheres negras serem associadas ao trabalho doméstico, que não é valorizado socialmente. O mesmo acontece com os homens jovens que participaram do estudo. Dos que afirmaram trabalhar, nenhum tem carteira de trabalho assinada, alguns trabalham na comunidade como serventes de pedreiro e na agricultura, outros na área urbana, na informalidade, como vendedor nas feiras, servente de pedreiro também, entre outras funções.

Os negros recebem salários 36,11% menores do que os brancos no país. Os negros ainda têm maior instabilidade no trabalho e buscam emprego por mais tempo que os brancos. As mulheres negras ocupam um lugar ainda mais precário no mercado de trabalho. O salário médio da trabalhadora negra continua sendo a metade do salário da trabalhadora branca. A taxa de desemprego das jovens negras chega a 25%. Uma entre quatro está desempregada e estão em maior número nos empregos considerados precários e informais, cerca de 71% contra 54% das mulheres brancas e 48% dos homens brancos. Os rendimentos das mulheres negras em comparação com os homens brancos e negros nas mesmas faixas de escolaridade não ultrapassam os 53% (Ferreira, 2017).

No que se refere às relações de gênero, quando falamos aqui, estamos considerando gênero a partir da noção que foi desenvolvida e utilizada em oposição ao sexo, para descrever o que é socialmente construído em referência ao masculino e ao feminino, e em oposição ao que é biologicamente dado. Nogueira (2003, p. 21) pontua que "os processos relacionados com o gênero influenciam o comportamento, os pensamentos e os sentimentos dos indivíduos, afetam as interações sociais e ajudam a determinar a estrutura das instituições sociais". Vale salientar que esse é um modo de pensar sobre gênero a partir da perspectiva construcionista social, e esta se diferencia das perspectivas essencialistas.

Os modelos essencialistas assumem o gênero em termos de atributos internos e persistentes, mas separados das experiências de interação que se vão sucedendo nos contextos diários, sociopolíticos da vida (Nogueira, 2003). A perspectiva construcionista, por sua vez, aponta para a constituição do gênero nas relações sociais, e são estas que têm um papel extremamente importante no modo de vivência de homens e mulheres, em que inclui a relação destes/as com a sexualidade, o trabalho, a escolaridade, entre diversos fatores.

Em relação aos/as jovens, outra questão que percebemos foi uma diferença entre os/as que estudam em escolas das comunidades e os/as jovens que se deslocam para estudarem em Garanhuns, no que se refere aos objetivos de terminar os estudos e realizar um curso de nível superior. Isso é mais frequente nos projetos de vida dos/as que estudam na área urbana. A interação com os/as jovens urbanos/as, em escolas com estruturas diferenciadas das existentes nas comunidades, que têm um pouco mais para oferecer aos/as jovens, pode ser um fator que tem funcionado como motivador, e feito com que eles acreditem que é possível realizar seus projetos de vida. Ainda que na escola urbana também se faça presente situações de discriminação pela condição identitária desse público.

Algumas jovens afirmaram que pretendem concluir os estudos, e duas das 10 participantes se referiram ao desejo de fazer um curso superior; um dos 10 jovens participantes deseja fazer um curso superior. Outras/os jovens disseram não querer dar continuidade aos estudos porque querem trabalhar, como podemos observar a seguir.

Futuramente pretendo conseguir um trabalho na cidade, não penso em voltar a estudar agora não. (Ghedi, sexo masculino, 20 anos)

Eu pretendo arrumar um emprego estável, terminar os meus estudos, estudar pra medicina, ficar firme na minha igreja. (Dara, sexo feminino, 19 anos)

Sei lá, pretendo terminar meu estudo também, e ser alguém na vida, porque o povo fica criticando, tanto os daqui como os da rua, é pobre não tem estudo bom, não vai ser alguém na vida, aí eu queria lutar pra mostrar a essas pessoas que gente do sítio também pode ser alguém na vida. Porque antigamente o pessoal aqui só estudava até 2ª, 3ª série, 4ª, nunca continuava o estudo, aí depois começava a engravidar, a casar, aí essas pessoas mais velhas querem um futuro melhor para suas filhas. (Halima, sexo feminino, 22 anos)

No relato da jovem de 22 anos, Halima, é possível perceber que, embora exista em seu discurso uma motivação para enfrentar as dificuldades, o processo de escolarização para os/as quilombolas nunca foi fácil. Ela se refere ao nível de escolaridade dos/as quilombolas das gerações passadas como sendo baixo, mas quando entrevistamos as 10 jovens e os 10 jovens vimos que essa realidade não é tão antiga como aparece no relato.

Outra questão que nos chama atenção é a situação socioeconômica, quando Halima se refere que as pessoas dizem que pobre não tem estudo e não será alguém na vida. Estamos considerando aqui a intersecção de classe, raça e gênero, e temos observado que a posição de classe é um fator que dificulta os/as jovens darem continuidade aos estudos, ou porque precisam interrompê-los para trabalhar, conforme já abordamos, ou porque não têm transporte para se deslocarem até as escolas da cidade. E mais uma vez nos diz da falha das políticas públicas para os quilombolas, que não constroem escolas nas comunidades que funcionem até o ensino médio, não disponibilizam um transporte de qualidade, entre outras questões. Observamos também que a jovem se refere às gravidezes como algo que interfere nos estudos, principalmente para as mulheres, assim percebemos o quanto as desigualdades de gênero se fazem presentes no contexto investigado.

Uma das jovens participantes relatou que desistiu dos estudos por "falta de coragem" (Bahati, sexo feminino, 22 anos), diante disso foi possível refletirmos sobre várias questões. Vimos durante o período de observação da pesquisa que são diversas as dificuldades enfrentadas pelos/as jovens que querem dar continuidade aos estudos. Eles precisam se deslocar até a cidade, pois as escolas das comunidades só funcionam até o ensino fundamental II, conforme já referimos aqui. O trajeto para a cidade nem sempre é tranquilo, existe um ônibus da prefeitura que transporta os/as estudantes, mas quando este tem algum problema e não pode funcionar, eles vão à cidade em um caminhão tipo F.4000, que geralmente faz o transporte dos/as quilombolas que comercializam seus produtos nas feiras da cidade. Um desses acontecimentos foi possível ser vivenciado no período de observação participante nas comunidades.

Nas conversas com os/as jovens, quando soube5 que alguns estudavam na área urbana de Garanhuns, combinei com uma jovem (Gina, 21 anos) para esperarmos à noite o ônibus que leva os/as quilombolas que estudam na cidade. O lugar é escuro, pois a comunidade não tem iluminação nas ruas, apenas nas casas, e era possível ver uma ou outra casa com as luzes ligadas, neste dia também chovia. A falta da iluminação é também um dos fatores que desmotiva os/as jovens que trabalham a estudar na cidade à noite, pois principalmente as mulheres sentem-se vulneráveis, têm receio de acontecer assaltos e algum tipo de violência com elas.

No dia combinado, ficamos esperando o ônibus, que chegou próximo às 19h trazendo alguns alunos/as e levaria os/as que estudam à noite. Durante o percurso até a cidade, fui observando que esse momento é usado pelos/as jovens para se atualizarem sobre notícias de festas, jogos, atividades escolares, existência das paqueras, entre outras questões. Em outro dia, chegou um caminhão para transportar os/as aluno/as, pois o ônibus havia quebrado. Os/as jovens foram logo subindo no caminhão que tinha uns bancos de madeira e foram sentando, se organizando, porque não era a primeira vez que isso ocorria. Para mim era uma situação inesperada, e fui também no caminhão com os/as jovens até a cidade. No percurso, escutei quando uma jovem dizia que ia descer antes de chegar à escola, porque toda vez que isso acontecia passava vergonha: "eu não vô descer na escola hoje não, quando ele parar em outro lugar vô descer, toda vez é uma vergonha que a pessoa passa, os menino ficam tudo rindo e dizendo coisa, com piadinha, já vem os nego do Castainho, abriram as porteiras" (Halima, sexo feminino, 18 anos).

Nesse dia, pude perceber que por mais que estivesse no mesmo lugar, experienciando o que significa para aqueles/as jovens deslocar-se à noite para a cidade a fim de estudarem, conforme pontua Geertz (1997), jamais poderemos virar nativos, ou seja, experimentar os acontecimentos da mesma forma que as pessoas que participam das nossas pesquisas, porque eu sabia que aquela situação para mim era pontual. Já para os/as jovens quilombolas, muitas vezes isso acontece, e se quiserem estudar precisam enfrentar mais esse desafio, de andar em um carro inapropriado para transportar pessoas, no frio, e que contribui para reforçar o estigma de que são matutos, do sítio, algo que já é tão presente na história deles/as.

Podemos observar no discurso anterior o modo como algumas pessoas da cidade se referem às do Castainho: "já vem os nego do Castainho, abriram as porteiras" que o preconceito e a discriminação racial estão presentes na sociedade, de modo geral e específico em Garanhuns, onde esses jovens transitam. Ainda se referem aos/as negros como os animais, os selvagens, os que requerem cuidados e provocam medo porque são vistos como uma ameaça social.

Em conversa com uma jovem que estuda em Garanhuns, ela relatou: "as meninas da escola que eu estudo são muito metidas, aí eu fico mais com as meninas do sítio mesmo, os trabalhos nós fazemos juntas, é melhor". Ou seja, por mais que estejam em outro contexto os/as jovens tendem a buscar a companhia daqueles/as que têm as mesmas condições que as suas, como uma forma de se fortalecerem para enfrentar as adversidades que surgem no cotidiano. Para se protegerem das situações discriminatórias de raça e classe social, pois podemos inferir pelos discursos que as jovens da cidade se sentem superiores às da comunidade, principalmente por morarem na área urbana, pois quando investigamos quem são essas jovens, muitas também fazem parte de famílias de classes sociais menos favorecidas economicamente, moram em regiões periféricas, precárias, enfrentam várias dificuldades devido a isso, mas quando em contato com as quilombolas querem colocá-las em uma posição inferior, que pode ser um modo de se sentirem em uma posição melhor em algum momento, mas quando isso acontece não há uma reflexão sobre o fato de que causam sofrimento às outras jovens.

Um dos jovens relatou que "não dá pra estudar mais não, porque tem que ir pra cidade, e toma o tempo de trabalhar" (Taye, sexo masculino, 19 anos).

A falta de uma escola que atenda as demandas da comunidade pode ser um dos motivos para que muitos/as jovens não se sintam motivadas a estudar, e também a falta de oportunidades, inclusive para os que estudam, pois uma jovem no decorrer da entrevista pontuou: "tem menino aqui formado, tão tudo trabalhando arrancando mato, plantando feijão, que não tem trabalho para ninguém" (Shena, sexo feminino, 21 anos), ou seja, a falta de exemplo de jovens que conseguiu realizar seus projetos de vida pela via dos estudos é também um fator que contribui para a desmotivação dos/as jovem darem continuidade aos estudos.

Outra questão que observamos que também tem relação com a continuidade dos estudos nas localidades estudadas são as relações de gênero. Para alguns e algumas jovens, principalmente os homens, ter um trabalho é mais importante, e mais valorizado por algumas famílias daquela coletividade do que os estudos, inclusive na imagem de homem, porque homem "direito" no contexto das comunidades são aqueles que trabalham, que são responsáveis pela família, independentemente da idade, escolaridade e do tipo de trabalho. A seguir podemos observar essas questões nos relatos:

eu penso em casar, mas agora não. E também só se for com um homem direito, que trabalhe, goste de trabalhar, porque os daqui meu Deus, a maioria não querem nada com a vida, não trabalham, não estudam, tem uns que só vão para escola e não querem fazer mais nada, passa o dia andando por aí, jogando bola, que futuro vão ter? Nenhum. (Dara, sexo feminino, 18 anos)

Os homens daqui, a maioria, não querem nada com a vida, não trabalham, ficam o dia inteiro por aí, sem fazer nada, na cachaça, no jogo, mais são muito preguiçoso. (Chinaka, sexo feminino, 22 anos)

Quando perguntamos aos/às jovens em relação às mulheres que não trabalham, já que para os homens esse é um marcador fundamental para serem vistos "com bons olhos", responderam: "as mulheres têm umas direita aqui, que ficam em casa ajudando nas coisas, ajudam as mães, vão pras feiras, para escola, outras vivem no mundo, rua acima, rua abaixo" (Mali, sexo feminino, 24 anos).

Muitos jovens, principalmente os homens, trabalham na informalidade, pois precisam arcar com as responsabilidades financeiras da sua família, os que ainda não constituíram família, também precisam trabalhar se quiserem ser bem vistos e considerados homem pra casar. As mulheres que trabalham também são olhadas de forma diferente, como responsáveis, batalhadoras, porque para os/as quilombolas estudados o trabalho atribui status positivo, sendo bem mais valorizado do que os estudos.

 

Considerações finais

Observamos no presente estudo que muitas são as dificuldades enfrentadas pelas comunidades quilombolas, desde o reconhecimento oficial como remanescentes de quilombos, a posse do território, e outras questões como educação, saúde, lazer, oportunidades de trabalho. No que se refere à educação, vários fatores se fazem presentes que dificultam a continuidade do processo de escolarização de homens e mulheres. As mulheres por necessidade de trabalhar, por terem engravidado e não ter uma rede de apoio que ajude com a criança, e por desmotivação. Os homens também pela necessidade de trabalhar, pela falta de incentivo. Para ambos, independentemente de ser homem ou mulher, se quiserem dar continuidade aos estudos precisam se deslocar até a cidade. Para isso enfrentam outras dificuldades, não existe transporte público nas comunidades, tem um ônibus escolar disponibilizado pela prefeitura do município, mas é comum a ocorrência de problemas: quebrar, não ir buscar os/as estudantes, entre outras.

Não podemos esquecer as questões étnico/raciais e de classe, os/as negros/as sempre foram excluídos e esquecidos socialmente, são-lhes delegadas as piores situações em todos os setores sociais. E é assim que essas comunidades são esquecidas e que os investimentos mal chegam elas. Atualmente o ensino fundamental é responsabilidade do município e o ensino médio do estado. Há anos que existe uma luta das lideranças das comunidades por uma escola de ensino médio, mas até agora o estado não se pronunciou. A escola que existe também não comporta toda a demanda das comunidades e precisa de um olhar para a formação especializada dos/as profissionais que atuam nelas, material didático contextualizado, de projetos que trabalhem a cultura quilombola e a relação desta com a educação no campo, que não sejam só atividades pontuais em datas comemorativas, a exemplo do Dia da Consciência Negra, em que sempre tem alguma atividade na qual se fala dos/as negros/as e das comunidades.

A escola precisa trabalhar também o fortalecimento da identidade quilombola, o que não é uma tarefa fácil, mas que é uma das suas funções, para que os/as alunos se fortaleçam para enfrentarem outras dificuldades e realizem seus projetos de vida. Ainda é lugar de ser discutido a cultura da localidade, uma cultura sexista em que determinados comportamentos são destinados aos homens e outros às mulheres, o que faz com que várias outras problemáticas se façam presentes, a exemplo da violência contra as mulheres em suas mais variadas formas. Umas das jovens nos relatou que deixou de estudar quando engravidou porque na escola os meninos não a respeitavam, não era bem vista porque não era casada, sendo alvo de piadas e difamação. Isso não acontece com os homens que se tornam pais, mas eles nem sempre são incentivados a darem continuidade aos estudos, a conciliarem estudos e trabalho. O trabalho é visto como algo mais importante para um "homem de bem".

Garantir a educação nos territórios quilombolas, respeitando sua história e suas práticas culturais, é pressuposto fundamental para uma educação antirracista. A implementação da Lei nº 10.639/03 não se restringe à existência do espaço escolar nas comunidades quilombolas, mas para a garantia de uma educação que contemple as particularidades étnicas, culturais e políticas dessas comunidades, uma vez que suas trajetórias históricas constituem o exemplo da resistência afro-brasileira. Portanto, a estruturação e o acompanhamento da educação quilombola e a implementação da Lei nº 10.639/03 em todo o sistema público de ensino devem ser entendidas como ações interdependentes. Há um longo caminho a ser percorrido, tanto no sentido de romper o silêncio e a invisibilidade histórica que acompanham a trajetória dessas comunidades como para reconhecer a importância da cultura afro-brasileira e a longa história de luta dessas populações.

É importante também não esquecermos que além das dimensões econômicas, sobretudo na diferença da distribuição da renda, que afeta a continuidade dos estudos, o ingresso no mercado de trabalho formal, são múltiplas as desigualdades a que os/as quilombolas estão sujeitos, diversidade de classe social, gênero, raça, entre outras. A população quilombola não é homogênea e abriga diferentes especificidades que produzem efeitos em suas vivencias.

 

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Recebido em: 30/7/2017
Aprovado em: 6/9/2018

 

 

1 Para mais informações sobre o histórico das comunidades quilombolas no Brasil, consultar: Schwarcz, L. M., Gomes, F. (Orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
2 O Cras tem como proposta constituir-se como espaço de referência e porta de entrada para os serviços da Assistência Social. Essas atuações ocorrem na lógica de trabalho em rede, articulado, permanente e não ocasional, no reconhecimento da realidade local, na sua complexidade, nas suas brechas, nas suas possibilidades de alterar o que está posto. O objetivo principal é o desenvolvimento local, buscando potencializar o território de modo geral. O foco da atuação do Cras é a prevenção e promoção da vida, por isso o trabalho dos profissionais deve priorizar as potencialidades. A atuação deve se voltar para a valorização dos aspectos saudáveis presentes nos sujeitos, nas famílias e na comunidade. (Crepop, 2008)
3 O ingresso de jovens quilombolas nas universidades de Garanhuns, ocorreu principalmente a partir de 2012, quando as universidades públicas federais tiveram que adotar 50% de cotas para alunos de escolas públicas (de forma gradativa, 12,5 a cada ano - 4 anos). A UFRPE - Campus Garanhuns, decidiu adotar de imediato os 50% em 2012. Nos 50% para alunos de escolas públicas, 25% são reservadas para os que têm renda familiar igual ou menor que 1,5 salário mínimo, e os outros 25% para aqueles com renda superior a 1,5 salário mínimo. Nos dois casos, dentro dos percentuais dos 25%, são reservadas cotas para negros, pardos e índios nos percentuais estabelecidos pelo IBGE para a região onde fica localizada a universidade. Outro facilitador ao ingresso dos estudantes nas universidades foi o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), que no período do Governo Lula, ampliou as possibilidades de acesso à faculdade privada.
4 No intuito de preservarmos a identidade dos/as jovens, escolhemos nomes africanos para representá-los/as.
5 Para relatar a situação vivenciada com os/as jovens quilombolas, foi usado o verbo em primeira pessoa, a fim de especificar esse momento vivenciado em campo pela pesquisadora.

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