SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.13 número3A escola dos alunos reprovados: um estudo qualitativoTrajetórias escolares de adolescentes em conflito com a lei: permanência e evasão escolar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.3 São João del-Rei jul./set. 2018

 

Escola e demais redes de proteção: aproximações e atuações (im)possíveis?

 

School and other protection network: approximations and (im)possible actions?

 

La escuela y otras redes de seguridad: enfoques y acciones (im)posibles?

 

 

Carolina Nascimento DiasI; Raquel Souza Lobo GuzzoII

IGraduação em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (2015) e mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (2017)
IIGraduada em Psicologia pela PUC-Campinas (1973), Mestre em Psicologia Escolar e Desenvolvimento pela USP (1981) e Doutora pela mesma Universidade (1987)

 

 


RESUMO

O presente trabalho teve como objetivo apresentar e discutir as relações possíveis da Psicologia com a rede de proteção à criança e adolescência por meio do Projeto Ecoar (Espaço de Convivência Ação e Reflexão) e as possibilidades de mediação da escola com as demais redes de proteção. Foram realizadas ações com professores, gestores, crianças, famílias e profissionais da rede e produzidos diários de campo como fontes de informação sobre as ações. Cada diário de campo foi analisado indicando as distintas ações da Psicologia em unidades de sentido, buscando uma narrativa que incluísse a crítica ao contexto da rede e ao papel da Psicologia tendo a escola como referência. Como resultado ficaram evidentes diversas possibilidades de atuação da Psicologia Escolar diante desse cenário, desde que sejam adotadas práticas cooperativas que promovam a crítica à realidade vivida pelas crianças, isto é, ações que dialoguem com demandas da vida concreta.

Palavras-chaves: Rede de Proteção. Infância e adolescência. Psicólogo Escolar. Vulnerabilidades.


ABSTRACT

The present work had the objective to present and discuss the possible relations of Psychology with the children and adolescents protective network through the Ecoar Project (Convenience Action and Reflection Space) and the possibilities of mediating the school with other protection networks. Were carried out actions with teachers, managers, children, families and network professionals and produced field journals as sources of information about actions. Each field journal was analyzed indicating different actions of Psychology in units of meaning, seeking a narrative that included criticism of the network context and the role of Psychology having the school as a reference. As a result, were evident several possibilities for performing School Psychology in this scenario, if adopted cooperative practices that promote a critique of the reality lived by children, in other words, actions that dialogue with the demands of concrete life.

Keywords: Protection network. Childhood and adolescence. School Psychologist. Vulnerabilities.


RESUMEN

El presente trabajo tuvo como objetivo presentar y discutir las relaciones posibles de la Psicología con la red de protección al niño y adolescencia a través del Proyecto Ecoar (Espacio de Convivencia Acción y Reflexión) y las posibilidades de mediación de la escuela con las demás redes de protección. Se realizaron acciones junto a los profesores, gestores, niños, familias y profesionales de la red y producidos diarios de campo, como fuentes de información sobre las acciones. Cada diario de campo fue analizado indicando las distintas acciones de la Psicología en unidades de sentido, buscando una narrativa que incluyera la crítica al contexto de la red y al papel de la Psicología teniendo la escuela como referencia. Como resultado quedaron evidentes diversas posibilidades de actuación de la Psicología Escolar frente a este escenario, desde que se adopten prácticas cooperativas que promuevan la crítica a la realidad vivida por los niños, es decir, acciones que dialoguen con demandas de la vida concreta.

Palabras clave: Red de protección. Infancia y la adolescencia. Psicólogo de la escuela. Vulnerabilidades.


 

 

Introdução

O Ecoar (Espaço de Convivência Ação e Reflexão) é um projeto que envolve alunos de graduação e pós-graduação do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e está inserido em um projeto maior denominado "Do risco à proteção: busca de indicadores para uma intervenção preventiva", tendo por objetivo contribuir para a atuação de psicólogos nas escolas de comunidades marcadas pela violência e opressão (Guzzo, 2000).

Por meio de ações comunitárias com a família, escola e rede de proteção, o processo de tomada de consciência das crianças, famílias, professores e demais profissionais é proposto para que haja compreensão acerca da realidade que estão inseridos. A mobilização desses grupos é entendida como possibilidade para uma atuação crítica na comunidade, fortalecendo as redes de apoio existentes (Sant'Ana, Euzébios Filho & Guzzo, 2010).

A relação entre educação e comunidade faz com que a compreensão de escola seja abrangente, uma vez que vai além do ambiente institucional e amplia a análise para um contexto macrossocial, incluindo as famílias, os diferentes atores e dispositivos que compõem a comunidade (Sant'Ana, Euzébios Filho & Guzzo, 2010). A Psicologia, nesse sentido, tem como foco o(s) sujeito(s) em sociedade e as relações que são estabelecidas a partir desses múltiplos encontros e desencontros.

Com uma atuação em seis escolas municipais de educação básica da região noroeste do município de Campinas, o Ecoar tem como foco a realização de diferentes atividades para o enfrentamento da violência nas escolas, criando espaços para formação de vínculo e expressão de sentimentos relacionados às condições de violência, negligência e abandono que muitas crianças e jovens vivenciam. Para isso, defende a inserção da Psicologia no cotidiano escolar, uma vez que esta contribui para a dinâmica da escola, de modo que esse seja um espaço potente e promotor do desenvolvimento integral das crianças e adolescentes.

Por meio do acompanhamento do desenvolvimento dos estudantes, participação nos espaços da sala de aula, formação continuada de professores, realização de reuniões e atividades com as famílias e a comunidade, contribuição na elaboração do projeto pedagógico e desenvolvimento de ações em rede, esse tipo de atuação da Psicologia rompe com um modelo clínico e individualizante muito presente desde a regularização da profissão no país, em que as ações eram remediativas e curativas. Em seu lugar, preconiza intervenções de cunho emancipatório e preventivo em que há um comprometimento com a dimensão social dos contextos de desenvolvimento (Guzzo, 2014).

Para que esse tipo de atuação seja possível, é importante que o psicólogo tenha algumas práticas e ações pautadas nos princípios descritos. Algumas delas são: considerar as políticas públicas referentes à proteção à infância e à adolescência; saber o que é a rede de proteção, intersetorialidade e de que modo elas estão relacionadas com a educação em tempo integral, além de ter conhecimento sobre os fundamentos do trabalho da Psicologia e de que maneira ela pode contribuir para a dinâmica escolar, intersetorialidade e proteção das crianças e adolescentes.

 

Políticas sociais para a infância e adolescência brasileira

O direito e a proteção da criança brasileira foram influenciados pela Declaração dos Direitos da Criança, a qual foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1959 e preconizava os direitos da criança como igualdade, proteção, alimentação, moradia, assistência médica, educação, dentre outros, em uma época marcada pela violação dos direitos humanos presente em governos ditatoriais, principalmente, na América Latina. As mudanças ocorridas no âmbito político no cenário nacional e internacional, sobretudo aquelas relativas à defesa dos direitos humanos, possibilitaram nos anos 1980 a promulgação da Constituição de 1988 - conhecida como Constituição Cidadã, período marcado pela participação social em movimentos de defesa das causas sociais (Rizzini, 2000).

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inaugurou uma mudança em relação à concepção de infância, colocando-a como portadora de direitos. Foi a partir dela que a educação passou a ser um direito constitucional da criança (Rehem & Faleiros, 2013).

O art. 227 da Constituição aborda os direitos da criança e do adolescente.

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Brasil, 1988)

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lançado em 1990 no Brasil, dá continuidade à garantia de direitos ao preconizar a proteção integral das crianças e dos adolescentes, considerando as particularidades do desenvolvimento desses sujeitos e garantindo formas específicas de proteção, com conquistas de direitos individuais e coletivos. Sociedade, comunidade, família e poder público são os responsáveis pela garantia desses direitos, já que devem prezar pela vida, educação, liberdade, saúde, cultura, respeito e lazer das crianças e dos adolescentes.

O Estatuto atribui como responsabilidade do Estado a proteção e assistência integral ao jovem durante todo seu processo de desenvolvimento. Tal definição rompe com o modelo anterior, o Código de Menores, em que o Poder Judiciário era o responsável pela questão da infância e da juventude (Scheinvar, 2004).

O ECA, ao defender princípios democráticos como base para gestão, formulação e execução das políticas para a infância e adolescência, incluiu a sociedade civil como participante de tais processos, por meio do conselho municipal, estadual e nacional dos direitos das crianças e adolescentes. Desse modo, nota-se que há uma descentralização do poder público, o que contribui para que cada território tenha autonomia para pensar nas demandas locais e nas políticas possíveis para aquele contexto (Scheinvar, 2004).

No entanto, é preciso problematizar o ECA, uma vez que o Brasil é um país de muitas infâncias e adolescências e grande parte das crianças e jovens ainda vive na invisibilidade e em situação de vulnerabilidade. A existência de normas jurídicas não garante, necessariamente, sua efetivação e transformação da realidade.

O extermínio dos jovens, sobretudo dos negros que vivem nas periferias, é um exemplo que ilustra a situação de vulnerabilidade que muitos jovens vivenciam, elucidando os limites das políticas de proteção, como o ECA, no contexto brasileiro. Ações repressivas e violentas dirigidas a esse grupo são corriqueiras e não representam intervenções eficientes nas comunidades e na sociedade como um todo.

 

Intersetorialidade, rede e escola

A articulação da rede, isto é, entre escola, assistência social, saúde e demais órgãos destinados à proteção da infância e da adolescência faz sentido no contexto das escolas públicas brasileiras, pois possibilita uma alternativa de equidade e proteção para a população infantojuvenil que se encontra em grupos menos favorecidos. Para isso, é importante entender o significado de rede e de intersetorialidade: o que elas representam? Por que usar essas nomenclaturas? Como organizar uma rede intersetorial?

Nessa perspectiva, redes são relações entre pessoas, sistemas e instituições que têm diferentes funções e que são desenvolvidas para facilitar o cotidiano de vida de pessoas e suas comunidades. Elas constroem o tecido social, estabelecem fluxos sociais e direcionam movimentos. O trabalho em redes surgiu como uma proposta de intervenção capaz de forjar uma nova abordagem de enfrentamento das demandas da população, baseada nas trocas de saberes e práticas entre o Estado, as empresas privadas e a sociedade civil organizada (Pereira & Teixeira, 2013).

No formato de rede, a responsabilidade é compartilhada e o peso é dividido. Ela representa, portanto, descentralização, articulação, parceria e cooperação, visando à integralidade dos serviços. Esse tipo de organização tem maior relação com as demandas da atualidade, as quais carecem da interação entre o global, o nacional e o local, bem como entre a política, a economia e a sociedade (Castells, 1998). Desse modo, as redes rompem com o modelo fragmentado, centralizado e verticalizado acerca do modo de gestar as políticas. Elas servem para deixar claro qual/quais caminho(s) as pessoas podem seguir e com quais equipamentos e/ou serviços elas podem contar nos contextos comunitários.

A intersetorialidade vem do conceito de rede e representa a combinação de diferentes elementos, bem como espaços e pessoas, na gestão e no atendimento às necessidades dos cidadãos, e tem como desafio articular os saberes e práticas para que seja possível alcançar melhores resultados do que um trabalho isolado. Para isso, os diferentes setores devem ter objetivos comuns e trabalharem na mesma direção (Pereira & Teixeira, 2013).

No que diz respeito às políticas sociais, a intersetorialidade é condição para que o ECA seja de fato respeitado, isto é, atenda às crianças e adolescentes integralmente, considerando o papel do Estado, das famílias e da comunidade na proteção social desses sujeitos (Gonçalves & Guará, 2010).

O cuidado e a proteção às crianças e adolescentes perpassam diversas áreas de estudo, como a Psicologia, a Educação, a Saúde e os Direitos Humanos. Por meio delas, podemos entender quais práticas e ações estão sendo construídas e como elas se articulam para que os direitos desses sujeitos sejam garantidos, de modo que haja possibilidade para o desenvolvimento integral deles, no sentido crítico, ético, estético e político.

Vigotski (1931) construiu uma Psicologia de base Materialista Histórico-Dialética, a Psicologia Histórico-Cultural, em que o sujeito é pensado a partir do meio em que vive, sendo este fonte de desenvolvimento daquele. Nessa perspectiva, o ser humano constitui a sociedade e, ao mesmo tempo, é constituído por ela, de modo que tal constituição se dá pela mediação da cultura, por meio de um processo de atribuição de significados e sentidos. A mediação possibilita a superação das funções psicológicas elementares do ser humano, de ordem instintivas, involuntárias e comum a todos os animais, para a existência de funções psicológicas superiores, como a atenção voluntária, memória, consciência e pensamento, tipicamente humanas.

Desse modo, os sujeitos são seres sociais que se desenvolvem plenamente, na medida em que incorporam as objetivações historicamente construídas pelo gênero humano. Isto é, quanto mais o indivíduo for capaz de conduzir sua vida de forma livre e racional, tendo acesso aos artefatos que a cultura produziu até então, mais ele será desenvolvido (Duarte, 2013).

A escola, nesse sentido, tem grande importância, pois possibilita o aprendizado por meio da apropriação dos bens culturais existentes na história, ou seja, daquilo que a humanidade produziu até os dias de hoje. No espaço educativo ocorrem ricas trocas e relações humanas que deveriam prezar pelo desenvolvimento e humanização dos indivíduos (Facci, 2009).

A intersetorialidade no âmbito educacional dialoga com o que foi exposto. Ela é uma forma de se conquistar o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, uma vez que engloba a heterogeneidade dos agentes educativos, além de representar um meio para a construção de redes pelo fato de que na escola circulam diferentes pessoas que integram a comunidade (Nilson, 2009).

A articulação intersetorial é o foco da educação em tempo integral,1 especificamente. Por essa razão, seu funcionamento depende da inter-relação do poder público nas suas diversas instâncias. Segundo a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, do Plano Nacional da Educação (PNE), a estratégia 7.29 visa

Promover a articulação dos programas da área da educação, de âmbito local e nacional, com os de outras áreas, como saúde, trabalho e emprego, assistência social, esporte e cultura, possibilitando a criação de rede de apoio integral às famílias, como condição para a melhoria da qualidade educacional. (Brasil, 2014)

A Educação em tempo integral é uma proposta que tem como objetivo oferecer a complementação de oportunidades de aprendizagem, por meio de diversas atividades educativas que visam a um melhor aproveitamento do espaço escolar, bem como outros espaços públicos. Propõe a existência de educação para além da escola, articulando os saberes escolares com aqueles que advêm de outros contextos educacionais (Guará, 2009).

Segundo o Plano Nacional de Educação (PNE 2011-2020), a meta 6 prevê: "oferecer educação em tempo integral em 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas de educação básica" (p.30). Desse modo, para a consolidação da exigência da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de educação em tempo integral, é preciso instaurar uma rede de serviços multissetoriais.

Segundo Leclerc e Moll (2012), é importante que exista uma superação entre turno fixo e contraturno flexível na educação integral, sendo o primeiro representado pelas disciplinas e conteúdos formais e o segundo pelas atividades complementares, geralmente mais prazerosas. A proposta é a superação dessa dicotomia por meio da capacitação dos professores para novas dimensões educativas e para a inclusão de diferentes discussões e práticas no projeto político pedagógico, de modo que se repense a formação humana, os espaços, as articulações entre os saberes e a relação experiência e aprendizado.

Nesse sentido, a Educação que visa formar sujeitos que tenham uma leitura da realidade, sejam críticos e sensíveis deve ser o foco das políticas públicas. A maior permanência na escola, no sentido temporal, não garante isso, sendo assim, é preciso conhecer as ideologias existentes e encontrar parcerias na atuação.

 

Psicologia e políticas públicas

A inserção da Psicologia no setor social se deu de modo tardio em relação à época de sua criação e às demandas sociais existentes. Ela se configura como uma classe profissional voltada, sobretudo, à classe dominante, que pouco se envolve com as causas sociais e a mudança da realidade. Essa tradição da Psicologia como instrumento de dominação faz com que os conhecimentos e técnicas psicológicos estejam a serviço do poder, de um modelo de sociedade que preza pela individualização e fragmentação social (Marvakis, 2011).

Nos últimos anos, esse cenário tem se transformado, haja vista a inserção dos psicólogos nas políticas públicas de Saúde e de Assistência Social. No entanto, ainda é necessária a politização da Psicologia e o uso de seus conhecimentos em favor de sujeitos oprimidos e dos trabalhadores, como ferramenta para favorecer a emancipação (Marvakis, 2011).

A partir do momento em que é possível realizar uma crítica que seja capaz de desnaturalizar as ideologias presentes na sociedade, isto é, os discursos e práticas que sustentam o poder, é possível resgatar a consciência história e social das relações humanas. Tal mudança leva à adoção de práticas psicossociais contextualizadas e às possibilidades transformadoras de ação (Tassara & Ardans, 2007).

Deriva-se daí o papel político da Psicologia e a necessidade de que hajam alternativas para que essa ciência e prática deixe de ser instrumento de dominação e de conformação dos povos dentro de normalidades preconcebidas. Uma nova Psicologia faz-se pertinente, de modo que busque abarcar os fenômenos históricos, sociais e políticos que perpassam a realidade, apresentando possibilidades e intervenções que tenham caráter emancipatório.

O profissional da Psicologia, no âmbito das políticas públicas, pode contribuir para romper com as injustiças sociais e a desigualdade, ao trabalhar com a garantia de direitos dos cidadãos e ao incentivar a participação destes na criação de uma sociedade diferente. Assim, é importante que o psicólogo tenha clareza acerca da sua atuação, isto é, tenha um olhar crítico sobre as políticas públicas e entenda suas contradições.

 

Psicologia na escola

Na literatura contemporânea da Psicologia Escolar, percebe-se hoje uma grande crítica social e um comprometimento com as dimensões históricas, políticas, culturais e ideológicas que envolvem os processos educacionais e psicológicos, concebendo o desenvolvimento humano a partir das relações sociais que estabelecemos com o meio. No entanto, embora essa seja uma realidade, sabemos que concepções patologizantes e individualizantes acerca do fracasso escolar ainda são presentes, como se os sujeitos fossem seres descolados de uma realidade histórica e cultural (Colaço, 2016; Collares & Moysés, 2014; Eidt, Franco, Tuleski, 2014).

Diante desse cenário contraditório - porém passível de transformação - a defesa pela inserção dos psicólogos na escola é também uma luta política. Objetiva-se a presença de profissionais que sejam críticos e tenham uma leitura da realidade que percebe e considera a totalidade dos fenômenos sociais que nos constitui, adotando práticas que visem às potencialidades de desenvolvimento dos sujeitos e o fortalecimento deles para serem ativos e transformadores da sua história.

A característica elitista e muitas vezes despolitizada do profissional de Psicologia é uma questão que a Psicologia Crítica visa superar. Embora o ensino de Psicologia da maioria das universidades seja embasado na história dominante da área, tendo um caráter conservador, apolítico, neutro e distanciado das questões sociais, a Psicologia Crítica faz uma leitura do mundo de modo diferente. Ao perceber as estruturas de poder que dividem e alienam os sujeitos em classes, a Psicologia Crítica rompe com a Psicologia tradicional, valorizando, portanto, os movimentos sociais e a emancipação política e social (Guzzo, 2015).

A Psicologia da Libertação é uma dessas possibilidades. Ela surge a partir da Teologia da Libertação como um movimento de ruptura, pois preconiza a libertação das opressões sociais que o povo da América Latina sofre. Busca-se, portanto, voltar a atenção aos pobres e às condições concretas de vida que os fazem ser oprimidos, objetivando a salvação desses sujeitos, entendendo salvação como contrário de fatalismo, isto é, possibilidade de escreverem uma nova história sobre si, sendo autônomos e livres para escolher (Martín-Baró, 2011).

Com o foco na autonomia, emancipação e com práticas que são contra a dominação, a Psicologia da Libertação tem um comprometimento com as maiorias populares no sentido de contribuir para a transformação da sociedade. Para isso, Martín-Baró propõe a valorização dos aspectos históricos que envolvem a vida dos povos marginalizados e o abandono de um paradigma positivista que naturaliza questões e fenômenos de ordem social (Martín-Baró, 2011).

No contexto escolar, a atuação crítica dos psicólogos deve romper com o modelo médico e individualizante para que seja possível intervenções de cunho emancipatório e preventivo. Moreira e Guzzo (2017) destacam a defesa de uma Psicologia que visa ao fortalecimento das pessoas e grupos como forma de resistência ao paradigma capitalista.

Defender a prevenção do âmbito educativo, sobretudo no campo da Psicologia, significa destacar seu papel e suas contribuições no contexto da escola. Isso requer o envolvimento com as pessoas que compõem o cenário e o entendimento de como elas interagem e quais as contradições e desafios existentes para que, por meio da organização de informações e ações participativas, seja possível promover desenvolvimento (Moreira, 2015).

 

Objetivo

A partir do projeto Ecoar, apresentar as possibilidades de atuações do psicólogo escolar no que diz respeito à mediação da escola com as demais redes de proteção.

 

Método

A pesquisa foi desenvolvida em uma Escola de Educação Integral (EEI) onde o projeto Ecoar está instalado e nos serviços da rede de proteção - centro de saúde e entidade cofinanciada2 da prefeitura. Os participantes da pesquisa consistiram nos profissionais da EEI (orientador pedagógico e professores), nos profissionais que atuam na rede de proteção à infância e adolescência na área da saúde, assistência social e conselho tutelar (psicólogos, médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, educadores sociais e conselheiros tutelares), nas famílias das crianças matriculadas na escola e nas próprias crianças.

Tais participantes estiveram presentes nas seguintes situações: reuniões no contexto da escola (seja com familiares ou com os profissionais da rede); reuniões nos serviços da rede (centro de saúde ou instituição ligada à assistência social) e atividades coletivas e individuais elaboradas pela equipe do Ecoar na escola com a participação dos professores, gestão e crianças.

Tal equipe era formada pela pesquisadora-mestranda, uma psicóloga especialista e três estagiários - integrantes do projeto Ecoar que estavam inseridos na EEI da região noroeste - e esteve presente na rotina da escola por quatro horas semanais durante o ano letivo de 2015 e o primeiro semestre do ano letivo de 2016. A presença na escola possibilitou o contato com a dinâmica da instituição, as concepções dos professores, dos profissionais da gestão e as relações entre professor-aluno; professor-família; professor-professor; professor-gestão, alunos-gestão, gestão-família e escola-rede.

A metodologia adotada, a pesquisa-ação-participação, a qual é baseada na práxis e no compromisso social, possibilitou o conhecimento do contexto e a contribuição por meio de ações práticas que levaram em consideração as reais demandas da localidade (Diéguez, 1983). Desse modo, a partir do interesse em investigar a relação da escola com os demais serviços da rede de proteção, as estratégias de atuação da equipe do Ecoar foram sendo elaboradas conforme as demandas da escola e as possibilidades de inserção no seu contexto.

Todas as ações desenvolvidas pela equipe do Ecoar foram registradas nos diários de campo, que consistiram nos relatos relativos às observações, experiências e pensamentos durante o processo de investigação qualitativa. Após a leitura atenta dos diários de campo, selecionou-se aqueles que continham elementos relacionados ao objetivo da pesquisa e, então, foram extraídos os trechos que chamaram a atenção e que expressavam ideias e ações relativas às possibilidades de atuação do psicólogo escolar.

Cada um dos trechos do diário de campo foi identificado e, em seguida, foram agrupados segundo as frentes de atuação: Psicologia com os professores e profissionais da gestão escolar; Psicologia com as crianças; Psicologia com as famílias e Psicologia e ações intersetoriais em rede. Idendificados e agrupados segundo as temáticas, foi feita a interpretação dos trechos.

 

Resultado: possibilidades de atuação da psicologia escolar

Os resultados e as reflexões geradas nesta pesquisa foram construídos a partir do objetivo proposto. Durante toda a análise das informações obtidas, foi considerada a relação estabelecida entre a escola pública e a rede de proteção à infância e adolescência e as possibilidades de atuação da Psicologia Escolar no que diz respeito à mediação com a rede. Desse processo, foram estruturados alguns eixos que serão apresentados a seguir, são eles: Psicologia com os professores e profissionais da gestão escolar; Psicologia com as crianças; Psicologia com as famílias e Psicologia e ações intersetoriais em rede.

 

Psicologia com os professores e profissionais da gestão escolar

Algumas das possibilidades de atuação que surgiram a partir da inserção na escola com os professores e gestão foram: visita domiciliar, acompanhamento de crianças, relação família e escola, mediação escola e rede, desconstrução de estigmas e da patologização no cotidiano escolar, orientação e formação de professores e articulação intersetorial. Seguem alguns trechos3 que elucidam tais possibilidades de atuação.

O OP (Orientador Pedagógico) relatou sobre a dificuldade dos professores e da equipe em saber como e quando acessar a rede, quais as instituições mais adequadas e quando é que se esgotam as possibilidades de atuação no âmbito da escola. Diante disso, pensamos em fazer essa discussão em algum espaço do TDC - Trabalho Docente Coletivo. (DC120815P)

A equipe de Psicologia Escolar percebe a necessidade de se discutir coletivamente a relação entre a escola e a rede de proteção, contribuindo para a formação dos professores e demais profissionais da escola. Segundo Martinez (2010), faz parte das atuações emergentes da Psicologia Escolar a implementação das políticas públicas, de modo que o psicólogo facilite esse processo de forma crítica, reflexiva e criativa. Por isso, cabe a esse profissional um olhar abrangente sobre as questões escolares, considerando as dimensões psicossociais que as influenciam, isto é, a compreensão acerca do funcionamento das políticas públicas da educação e seguridade social e a defesa pela intersetorialidade.

A professora formulou um relatório sobre Murilo, solicitando uma avaliação médica devido aos comportamentos inadequados que a criança vem apresentando [...] Ela apresentou o mesmo para nós e pediu nossa opinião. Dissemos que considerávamos precipitado o encaminhamento e que, antes disso, gostaríamos de mais tempo com a criança, assim como conversas com a família da mesma. Desse modo, a professora disse que iria segurar o encaminhamento por um mês, sendo que nesse tempo nós do Ecoar iremos cuidar do caso. Nessa ocasião, marcamos reunião com a família de Murilo para a semana seguinte. (DC120815P)

Conversamos com a professora que veio nos procurar com a queixa de que seu aluno Murilo seria um "minipsicopata". Explicamos o conceito de psicopatia e colocamos nossas observações sobre a criança, desconstruindo esta imagem individualista sobre a criança e tentando alcançar uma compreensão mais global, que agregasse todo o âmbito relacional do aluno - família, amigos, professores, escola, etc. (DC090915E)

É papel da Psicologia Escolar, que se pretende crítica, expor sua forma de trabalho baseada na prevenção e no vínculo com a criança e com a família, rompendo com a prática do encaminhamento desnecessário para a saúde e consequente medicalização dos estudantes. Ao oferecermos perspectivas diferentes e amplas sobre a criança, auxiliamos no processo de desconstrução de noções estigmatizantes sobre os alunos. Essa visão problematizadora, segundo Sant'Ana, Costa e Guzzo (2008), tem como objetivo desconstruir rótulos, preconceitos e práticas institucionalizadas para que se promova a conscientização e a consequente mudança nos âmbitos pessoais, políticas e sociais.

Após o momento com pai de Murilo, eu e a professora da criança sentamos para reunir temas que ele se interesse para a elaboração de atividades. Orientei-a a manter esse hábito, tentando investigar "coisas" que dão certo para ele, tentando desafiá-lo, já que muitas atividades parecem ser pouco atrativas e interessantes para ele. A professora relatou ter gostado da maneira que fizemos, sentando para construirmos uma reflexão. (DC061015PE)

A reflexão com a professora de modo a enfatizar os interesses da criança para incluí-la nas atividades contribui para que a escola faça sentido a ela. Para isso, é preciso conhecer os alunos, saber das suas histórias, das suas preferências e o que a escola representa para eles, para que assim seja possível acessá-los e contribuir com seu processo de desenvolvimento. Pequenas mudanças nas práticas pedagógicas podem resultar em grandes diferenças no cotidiano da escola.

Segundo Souza et al. (2014), a forma como o sujeito vivencia algo é modificado, na medida em que se muda a situação social de desenvolvimento. Nesse sentido, as razões pra o desinteresse, apatia, descompromisso e baixo resultado de ensino-aprendizagem poderiam ser decorrentes da falta de mudança da escola. A mudança dessas condições implica em novas situações sociais de desenvolvimento, as quais favoreçam vivências de ensino e aprendizagem que possibilite novos sentidos e significados sobre o aprender e o ensinar, de modo que tanto os professores quanto os alunos se apropriem de suas condições de existência. A Psicologia pode contribuir com esse processo ao se tornar parceira dos educadores, favorecendo a existência de mudanças nas práticas desses profissionais.

O OP nos apresenta uma lista com diversas crianças que se encontram em situação de vulnerabilidade. Diz que já deveria ter feito os encaminhamentos para o conselho tutelar e que os fará com urgência. Digo que uma alternativa seria chamar para a escola o Conselho Tutelar e os demais serviços que acompanham as crianças e suas famílias, a fim de que possamos discutir conjuntamente os casos e saber o que pode ser feito antes de se judicializar as crianças e suas famílias. Ela concorda com a ideia e diz que irá marcar essa reunião o quanto antes. (DC210316P)

A equipe de Psicologia sugere uma reunião intersetorial na escola para a realização de discussão compartilhada dos casos, favorecendo uma visão ampla de cada situação específica, na tentativa de romper com a possibilidade de judicialização das crianças. Essa atuação na perspectiva da articulação intersetorial, assim como já colocado por Pereira e Teixeira (2013), visa à integração das pessoas e das políticas para atendimento às necessidades dos cidadãos e o alcance de melhores resultados do que o trabalho isolado.

 

Psicologia com as crianças

As atuações da Psicologia Escolar com as crianças têm o caráter de possibilitar o acompanhamento do desenvolvimento delas, garantindo que elas tenham expressão e voz no ambiente escolar e possam conviver em meios que as provoquem a ser reflexivas e críticas. Nesse sentido, tanto atividades individuais (acolhimentos) quanto intervenções coletivas foram priorizadas para que fosse possível conhecer os estudantes e a forma como significam suas vivências, contribuindo para o processo de fortalecimento desse público.

Será apresentada aqui uma ação desenvolvida individualmente com uma criança para que se possa refletir suas especificidades e importância.

Fomos chamadas para acolher Carla,4 uma criança que tinha se trancado no banheiro com uma tesoura e que dizia querer se matar. Carla estava chorando muito, levei-a para a sala do OP, que estava menos movimentada. Foi um acolhimento, ela chorava e não falava nada. Ficamos algum tempo conversando, ela contou que tinha tentado enfiar uma tesoura na perna porque a vida não valia a pena. Tinha brigado com as colegas de sala, que a excluíram e disseram que ela era muito mandona. Quando ficamos sozinhas, Carla quis brincar de stop e falou muito de seus problemas familiares, como a prisão da mãe, o retorno dessa mãe com síndrome do pânico, a morte do irmão e a cirurgia da avó, dizendo várias vezes que a vida não valia a pena, mas que queria ser estilista. O momento foi inteiramente de escuta, quando já estava mais calma, perguntei se tinha condições de assistir a um espetáculo de circo teatral que ia ocorrer naquele momento, ela concordou. Conversei com a professora para prestarmos atenção em seu desenvolvimento nos próximos dias e que juntas poderíamos sentar para ver quais os encaminhamentos que a escola poderia tomar. (DC160915PE)

A partir do acolhimento de Carla, várias questões surgiram, assim como encaminhamentos. A possibilidade de escuta oferecida foi reveladora das angústias vividas por uma criança que tem preocupações decorrentes das condições concretas de vida. Isto é, uma criança que precisa segurar o peso da desigualdade, da violência e da opressão, tendo dificuldade de, simplesmente, ser criança, pois a vida lhe exige muito mais.

A escuta do sofrimento da criança precisa ser transformada em ações que visem a retirá-la dessa condição de vítima. Nesse sentido, para além das ações de acolhimento, conversas e orientações à criança, cabe à Psicologia acionar a rede interna e externa, a qual consiste nos professores e demais profissionais dos serviços protetivos, respectivamente.

As intervenções coletivas também favorecem a existência de espaços em que as crianças possam falar e ser ouvidas, sendo protagonistas das suas histórias e das regras escolares, como no caso das assembleias.

A atividade da assembleia sobre violência foi interessante e grande parte dos alunos participou ativamente. Percebemos que as crianças têm bastante necessidade de falarem e serem ouvidas, o que nos fez refletir sobre o quanto elas, de fato, conseguem se colocar, quais os espaços destinados para elas manifestarem suas experiências e os seus sentimentos diante daquilo que vivenciam no cotidiano da escola. (DC281015P)

Tais ações, na medida em que se tornam práticas cotidianas, podem reduzir significativamente os encaminhamentos para a rede de saúde nos casos em que a demanda é relativa aos comportamentos e dificuldade de concentração das crianças.

 

Psicologia com as famílias

A atuação com as famílias consistiu nas reuniões em que a escola e os pais/responsáveis puderam dialogar sobre as percepções relativas às crianças. Nessa ocasião as famílias relatavam sobre o histórico do desenvolvimento da criança e os profissionais da escola expunham suas questões, visões, procedimentos adotados, projetos e orientações necessárias. Tais famílias eram compostas pelos responsáveis pelas crianças que foram acompanhadas mais diretivamente, seja por ações na escola, seja com os profissionais da rede de saúde, assistência social e conselho tutelar.

Durante a reunião com a mãe de Rafael,

ela relatou que ele frequenta a OnG que oferece atividades de contraturno, depois da escola, e que ela é atendida no serviço de assistência e psicologia desta instituição. Assim, vimos a necessidade de entramos em contanto com os profissionais desses serviços para termos uma visão mais abrangente dessa família. (DC190815P)

O contato com os profissionais que acompanhavam a família de Rafael consiste em uma atuação que a Psicologia deve desempenhar para se ter outras perspectivas sobre a criança e representa uma ação em rede, na medida em que colocam em diálogo os diferentes serviços e espaços nos quais a crianças circula.

A partir das reuniões com a família de Murilo,

Perguntamos sobre as preferências e gostos do filho, na visão do pai, para podermos montar atividades que despertem curiosidade e interesse. (DC061015PE)

A mãe disse que Murilo teria uma consulta com a pediatra no Posto de Saúde e nós combinamos que faríamos uma carta de encaminhamento para que ele pudesse ser atendido pelas psicólogas do posto, que desenvolvem psicoterapia em grupo com crianças. (DC281015P)

Sobre o questionamento ao pai de Murilo relativo aos gostos e preferências da criança, entende-se que essa atuação visa encontrar os fatores de proteção existentes. Eles consistem nas condições identificadas pelos pais que podem favorecer o desenvolvimento da criança (Guzzo & Marques, 2007).

Cabe à equipe de psicologia encaminhar as crianças para os serviços, quando considerar pertinente. Em relação a Murilo, a criança já estava em acompanhamento psicológico particular, porém a família nos relatou que devido a questões de ordem financeiras, este iria ser interrompido. Após a reunião com a mãe da criança, momento em que ela trouxe os processos dolorosos que ela e sua família viveram e têm vivido e o quanto isso influencia na vida do filho, considerou-se que seria importante tanto a criança quanto a mãe serem acompanhadas pelos psicólogos do serviço de saúde.

Nota-se que o diálogo e a participação dos diferentes atores que compõem a escola são fundamentais para a adoção de práticas transformadoras. Segundo Freire (1980), a participação dos professores, educandos, funcionários, famílias e comunidade local contribuem com o processo de libertação dos sujeitos, quando se tem voz e poder de decisão nessa prática educativa. A coletividade é capaz de desconstruir estruturas hierarquizadas e inflexíveis para, então, instaurar um modelo que representa as demandas da sociedade civil e das classes populares.

 

Psicologia e ações intersetoriais em rede

As possibilidades de atuação da Psicologia Escolar com as ações intersetoriais em rede representam as práticas que vão para além da escola, isto é, aquelas que pressupõem o diálogo com as outras instituições para que seja possível romper com a cultura da patologização, judicialização e dos estigmas, de modo a contribuir para que os diferentes profissionais percebam as crianças e suas famílias de forma integral.

Durante a participação em uma reunião intersetorial no centro de saúde, percebeu-se:

A professora trouxe o caso de Murilo e reforçou a necessidade que ela encontra de que o aluno passe por avaliação psiquiátrica. A professora levou uma lista com diversos comportamentos da criança que chamam atenção e que, segundo ela, apontam para um desvio da normalidade. Nessa ocasião, pontuei que nós, psicólogos do Ecoar, tínhamos discordância em relação ao modo que vemos o caso de Murilo, uma vez que acreditamos que seus comportamentos são decorrentes do modo como vivencia as relações familiares conflituosas, sendo a escola um espaço onde ele expressa tais contradições. Disse que percebemos isso por meio das conversas com ele, observação da criança na sala de aula, reuniões com seus pais e com os professores. Assim, quando a psiquiatra leu a lista, disse que não existe um medicamento que elimine aqueles comportamentos e que estes deveriam ser trabalhados em psicoterapia e nas relações familiares e escolares, sendo mais aconselhável um acompanhamento psicológico. (DC261015P)

Essa passagem exemplifica as diferentes perspectivas entre a professora e equipe de Psicologia na escola. Aquela insiste em encontrar uma origem psicobiológica para os comportamentos da criança, mesmo após várias discussões feitas conosco. Quando a professora apresenta a lista para a psiquiatra e esta relata que tais comportamentos devam ser tratados de outras formas e não pela via da medicalização, percebe-se um avanço na perspectiva da proteção infantil.

É possível destacar que as reuniões intersetoriais são espaços que devem ser ocupados por psicólogos que fazem uma leitura da realidade de forma crítica. Nesse sentido, cabe aos psicólogos questionarem as práticas remediativas e classificatórias dos sujeitos, adotando posturas contrárias à patologização.

Entende-se que as distintas formas de se compreender os fenômenos fazem parte do processo de rede e são importantes, na medida em que oferecem outros pontos de vista sobre os fatos, bem como outras formas de nele se atuar. Não há garantia de que as discussões e decisões coletivas promovam, de fato, a proteção integral dos casos discutidos, no entanto, podem provocar os profissionais, contribuindo para que tenham posicionamentos mais críticos.

A partir da reunião intersetorial na escola, com a participação do conselho tutelar. "Percebi, nos conselheiros, profissionais capacitados e que fazem uma leitura crítica da realidade. Durante uma de suas falas, o conselheiro diz: 'O Estado é quem mais viola os direitos, não são as famílias'" (DC300316P).

Essa fala revela a necessidade de se questionar para que e para quem a rede de proteção serve, como ela está estruturada e a sua eficiência. Percebe-se que existe algo muito maior por trás de todas as políticas, que é um Estado que não proporciona igualdade, acesso à informação, educação e saúde de qualidade devido à sociabilidade capitalista. Desse modo, considerou-se que os encontros com a rede foram movimentos importantes e que deveriam acontecer com maior periodicidade, pois fortalece os profissionais e os faz compreender as contradições do sistema e a necessidade de se articularem, pressionarem as políticas públicas e adotarem posturas críticas e questionadoras.

 

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi o de demonstrar que é possível fazer parcerias a partir da escola, e que os psicólogos têm elementos pra contribuir para a dinâmica da escola e da rede de proteção quando estabelecem vínculos com os sujeitos, procuram conhecer suas histórias de vida e suas famílias, buscam trazer a comunidade para a escola, propõem discussões coletivas e formação com os professores, ampliam o significado de medicalização e judicialização da vida e da escola, realizam acompanhamento longitudinal das crianças, com relatório/registro sobre seu desenvolvimento, buscam parceiros nas outras instituições que se fazem presentes na escola, lançando mão de diversas estratégias para aproximação das crianças.

Acredita-se que profissionais de Psicologia, por compreenderem as dimensões do desenvolvimento, podem contribuir com o fortalecimento das instituições e problematizações destas, desde que tenham como foco o que está por trás do não aprender, dos atos violentos e da ausência da família na escola. Isto é, se realizarem uma leitura crítica da realidade, incluindo os diferentes atores que compõem a comunidade. Por isso, a importância da atuação não apenas na escola, mas também nas suas mediações.

A Psicologia Escolar deve buscar romper com a existência de muros da escola, adotando uma intervenção psicossocial na realidade e se atendo às diferentes necessidades dos sujeitos. A escola integral que visa ao desenvolvimento integral não pode se voltar apenas aos conteúdos pedagógicos. É necessário conhecer o sujeito situado no seu contexto, dentro das relações que estabelece, reconhecendo-o como ser ativo, ser de direitos, ser da transformação.

Na perspectiva de elucidar a forma como a sociedade está configurada e o quanto a lógica do controle, repressão e alienação dificultam os processos intersetoriais, visa-se despertar a corresponsabilização e a discussão e reflexão na escola com os profissionais que nela atuam para que eles percebam a importância da multidisciplinaridade e do trabalho coletivo. Cientes das contradições da realidade, espera-se que seja possível fortalecer uns aos outros, somando esforços para a construção de uma educação que dialogue com as demandas de vida da população brasileira. O diálogo coletivo aparece como uma fonte de superação de barreiras cristalizadas e práticas naturalizadas.

Este trabalho oferece alguns elementos de que as aproximações e atuações entre a escola e a as demais redes de proteção não estão no âmbito do impossível, porém, é clara a necessidade de muitos outros estudos que aprofundem a qualidade dessa relação. Suas reflexões não se esgotam, pelo contrário, ampliam-se, na medida em que for possível contar com profissionais de Psicologia nas escolas públicas brasileiras.

 

Referências

Castells, M. (1998). Hacia el estado red? Globalización economica e instituciones políticas en la era de la información. Seminário Sociedade e Reforma do Estado. Brasília.

Colaço, L. C. (2016). A produção de conhecimento e a implicação para a prática do encaminhamento, diagnóstico e medicalização de crianças: contribuições da Psicologia Histórico-Cultural. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná         [ Links ].

Collares, C. A., & Moysés, M. A. A. (2014). Educação na era dos transtornos. In L. S. Viégas, M. I. Ribeiro, E. C. Oliveira & L. A. Teles (Eds.). Medicalização da educação e da sociedade. Ciência ou mito (pp. 47-69). Salvador: EDUFBA.         [ Links ]

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988). Brasília. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Constiuicao/Constitui%C3%A7aohtm

Dias, C. N. (2017). Psicologia na escola e rede de proteção à infância e adolescência: enfrentando vulnerabilidades. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo.         [ Links ]

Duarte, N. (2013). Vigotski e a pedagogia histórico-crítica: a questão do desenvolvimento psíquico. Nuances: Estudos sobre Educação, 24(1), 19-29.         [ Links ]

Eidt, N. M., Franco, A., Tuleski, S. C. (2014). Atenção não nasce pronta: o desenvolvimento da atenção voluntária como alternativa à medicalização. Nuances, 25, 79-96.         [ Links ]

Facci, M. G. D. (2009). A intervenção do psicólogo na formação de professores: contribuições da Psicologia Histórico-cultural. In C. M. Marinho-Araujo (Org.). Psicologia Escolar: novos cenários e contextos de pesquisa, formação e prática. Campinas, SP: Alínea.         [ Links ]

Freire, P. (1980). Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez e Moraes.         [ Links ]

Gonçalves, A. S., & Guará, I. M. F. R. (2010). Redes de proteção social na comunidade. In I. M. F. R. Guará. Redes de proteção social. São Paulo: Associação Fazendo História: NECA; Associação dos Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente.         [ Links ]

Guará, I. M. F. R. (2009). Educação e desenvolvimento integral: articulando saberes na escola e além da escola. Em Aberto, 22(80), 65-81.         [ Links ]

Guzzo, R. S. L. (2000). Voo da Águia - uma intervenção preventiva nas escolas. Projeto de Extensão - CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Guzzo, R. S. L. (2014). Consciência e ação diante da violência: desafios para a escola pública e psicologia. Projeto de Extensão - CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Guzzo, R. S. L. (2015). Psicologia Crítica: um movimento de ruptura dentro da Psicologia. Estudos de Psicologia (PUCCAMP, Impresso), 32, 519-520.         [ Links ]

Guzzo, R. S. L., & Marques, C. de A. E. (2007). Falando da criança e sua vida: compreendendo a visão dos pais. In R. S. L. GUZZO (Org.). Desenvolvimento infantil: família, proteção e risco. Campinas: Alínea.         [ Links ]

Leclerc, G de F. E., & Moll, J. (2012). Programa Mais Educação: avanços e desafios para uma estratégia indutora da Educação Integral e em tempo integral. Educar em Revista. Curitiba. Brasil Editora UFPR,91-110.

Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2017. (2014). Plano Nacional de Educação. Recuperado em novembro, 2015, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm

Martín-Baró, I. (2011). Para uma Psicologia da Libertação. In R. S. L. Guzzo & F. Lacerda Jr. (Orgs.). Psicologia Social para a América Latina: o resgate da Psicologia da Libertação. Campinas: Editora Alínea.         [ Links ]

Martinez, A. M. (2010). O que pode fazer o psicólogo na escola?. Em aberto, 23(83), 39-56.         [ Links ]

Marvakis, A. (2011). La psicología (crítica) permanentemente em la encrucijada: sirvientes del poder y herramientas para la emancipación. Teoría y crítica de la psicología, 1, 122-130.         [ Links ]

Moreira, A. P. G. (2015). Situação-limite e potência de ação: atuação preventiva crítica em Psicologia Escolar. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo.         [ Links ]

Moreira, A. P. G., & Guzzo, R. S. L. (2017). Violência e prevenção na escola: as possibilidades da Psicologia da Libertação. Psicologia & sociedade (online), 29, 1-10.         [ Links ]

Nilson, L. H. (2009). Intersetorialidade e contextos territoriais. Educação Integral e Intersetorialidade. In Ministério da Educação (pp. 22-29). Recuperado em 5 fevereiro, 2016, de http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/materiais/0000012175.pdf

Pereira, K. Y de L., & Teixeira, S. M. (2013). Redes e intersetorialidade nas políticas sociais: reflexões sobre sua concepção na política de assistência social. Textos & Contextos, Porto Alegre, 12(1), 114-127.         [ Links ]

Prilleltensky, I. (1999). Critical Psychology: Foundations for the Promotion of Mental Health. Annual Review of Critical Psychology, 1, 100-118.         [ Links ]

Rehem, F. Q. N., & Faleiros, V. de P. (2013). A educação infantil como direito: uma dimensão da materialização das políticas para a infância. Rev. Diálogo Educ., Curitiba, 13(39), 691-710.         [ Links ]

Rizzini, I. A criança e a lei no Brasil. Revisitando a história (1822-2000). (2000). Brasília, DF: Unicef; Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária, 142 p.

Sant'Ana, I. M., da Costa, A. S., & Guzzo, R. S. L. (2008). Escola e Vida: Compreendendo uma Realidade de Conflitos e Contradições. Pesquisas e Práticas Psicossociais 2(2), São João del-Rei.         [ Links ]

Sant'Ana, I. M., Euzébios Filho, A., & Guzzo, R. S. L. (2010). O psicólogo escolar no ensino fundamental: referência para uma intervenção preventiva. Extensão em Foco, Curitiba, 5, 111-120.         [ Links ]

Scheinvar, E. (2004). Tensões, rupturas e produções na relação entre Conselho Tutelar e a escola. In E. Scheinvar & E. Algebaile (Orgs.). Conselhos participativos e escola (pp. 7-184). Rio de Janeiro: DP&A.         [ Links ]

Souza, V. L. T., Petroni, A. P., Dugnani, L. A. C., Barbosa, E. T., & Andrada, P. C. (2014). O psicólogo na escola e com a escola: a parceria como forma de atuação promotora de mudanças. In R. de S. L. Guzzo (Org.). Psicologia Escolar: desafios e bastidores na educação pública. Campinas: Alínea.         [ Links ]

Tassara, E. T de O., & Ardans, O. (2007). A relação entre ideologia e crítica nas políticas públicas: reflexões a partir da psicologia social. Revista Psicologia Política, 7(14), 317-330.         [ Links ]

Vigotski, L. S. (1931/2000). Método de investigación. In L. S. Vigotski. Obras Escogidas, Tomo III (pp.28-63). Academia de Ciencias Pedagógicas de la URSS. Recuperado em 1º dezembro, 2015, de http://www.taringa.net/perfil/vygotsky

 

 

Recebido em 14/03/2017
Aprovado em 06/04/2018

 

 

1 Destacamos que não é apenas a escola de educação em tempo integral que pode favorecer o desenvolvimento dos alunos. O destaque a ela, no contexto dessa pesquisa, se dá por duas razões: ela é uma política pública da Educação, como consta no Plano Nacional da Educação (PNE 2011-2020) e o cenário onde se desvela a trama da pesquisa é uma Escola de Educação em tempo integral do município de Campinas.
2 As entidades cofinanciadas consistem em OnGs (Organizações não Governamentais) que são, majoritariamente, ligadas a entidades religiosas. A existência delas está relacionada ao processo de terceirização dos serviços. Nesse caso em específico, terceirização da assistência social.
3 Os trechos deste artigo são provenientes de : Dias, C. N. (2017). Psicologia na escola e rede de proteção à infância e adolescência: enfrentando vulnerabilidades. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo.
4 Os nomes descritos neste trabalho são fictícios, garantindo o sigilo e não identificação dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

Creative Commons License