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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.4 São João del-Rei Oct./Dec. 2018

 

Movimentos de um movimento social nas redes digitais: lutas quanto à publicidade infantil

 

Movements of a social movement in digital networks: struggles concerning child advertising

 

Los movimientos de un movimiento social en las redes digitales: la lucha con respecto a la publicidad infantil

 

 

Mirian Raquel MionI; Inês HennigenII

ICientista Social formada pela UFRGS. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Buizmion@hotmail.com
IIPsicóloga. Doutora em Psicologia pela PUCRS. Docente do PPG em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Ineshennigen@gmail.com

 

 


RESUMO

Apresentamos uma pesquisa que focalizou o surgimento e desdobramentos do "Movimento Infância Livre de Consumismo" (iniciativa de um grupo de mães ativistas que utilizam as redes digitais para difundir suas posições) cujo objetivo é analisar discursos produzidos quanto à relação criança e consumo. Concepções de Michel Foucault e a abordagem cartográfica (Kastrup, 2007), adequada quando se acompanham processos, foram nossas bases teórico-metodológicas. A análise de postagens em diferentes espaços virtuais nos permitiu identificar e discutir aqui algumas questões e linhas de luta: o alvo maior é a publicidade infantil, que deve ser regulada pelo Estado e não autorregulada pelo mercado; a condição de mães das integrantes, muito ressaltada, a querer denotar uma posição privilegiada de saber-poder em relação ao adequado à infância; e o emprego estratégico dos recursos da comunicação. Fechamos o artigo tecendo considerações sobre sua vontade de conduzir condutas, a não inclusão de outras vozes, e o uso paradoxal das estratégias da comunicação.

Palavras-chave: Redes sociais digitais. Publicidade. Consumo. Infância.


ABSTRACT

We present a research that focused on the emergence and unfolding of the "Consumerism-Free Childhood Movement" (an initiative of a group of activist mothers who use digital networks to disseminate their positions), aiming to analyze discourse produced regarding the relation between child and consumption. Michel Foucault's conceptions and the cartographic approach (Kastrup, 2007), suitable when the purpose is to follow processes, were our theoretical-methodological bases. The analysis of its posts in different virtual spaces made it possible to identify and discuss here some questions and struggle strategies: the biggest target is adverting to children, which the group advocates must be regulated by the State and not self-regulated by the market; the condition of the mothers of its members, strongly highlighted, trying to denote a privileged position of power-knowledge regarding what is suitable to childhood; and the strategic use of communication resources. We conclude the article with comments about their willingness to rule conducts, the non-inclusion of other voices, and the paradoxical use of communication strategies.

Keywords: Digital social networks. Advertising. Consumption. Childhood.


RESUMEN

Presentamos una investigación que se centra en lo surgimiento y el desdoblamiento del "Movimiento Infancia Libre de Consumismo" (una iniciativa de un grupo de madres activistas que utilizan las redes digitales para difundir posiciones), siendo nuestro objetivo analizar discursos producidos en cuanto a la relación niño y consumo. Las concepciones de Michel Foucault y el abordaje cartográfico (Kastrup, 2007), adecuada cuando se acompañan procesos, fueron nuestras bases teórico-metodológicas. El análisis de las publicaciones en diferentes espacios virtuales nos permitió identificar y discutir aquí algunas cuestiones y líneas de lucha: el más importante objetivo es la publicidad infantil, abogando que ella debe ser regulada por el estado y no auto-regulada por el mercado; la condición de madres de los miembros del grupo, muy destacada, queriendo indicar una posición privilegiada de saber-poder en cuanto el apropiado a la infancia; el uso estratégico de los recursos de comunicación. Cerramos el artículo con consideraciones sobre su voluntad de conducir conductas, la no inclusión de otras voces, y el uso paradójico de las estrategias de comunicación.

Palabras clave: Redes sociales digitales. Publicidad. Consumo. Infancia.


 

 

Introdução

As redes formadas pelos computadores conectados à internet, que possibilitam a existência das redes sociais digitais, configuram-se como uma trama de processadores potentes e heterogêneos que podem atuar como fontes e como escoadouros de informações. Nessa treliça surgem diversos mundos que são possíveis, sendo a não linearidade uma característica do mundo digital, onde não há começo ou fim, somente meio. Nesse espaço digital, que é múltiplo, há possibilidade de se expressar as mais diversas ideias e opiniões, advindas de todos os componentes da rede, de forma horizontal (Santaella, 2010).

As redes sociais digitais, próprias da chamada web 2.0, abrem um novo campo de possibilidades de participação política (Antoun, 2008). Os sujeitos hoje se movimentam pelas redes sociais de forma fluida, afetados pelos discursos que circulam no ciberespaço, que podem ser tanto de captura quanto de exercício crítico e de resistência. Para além de grandes movimentações populares, há uma série de pequenos movimentos políticos, das mais diferentes ordens, que proliferam pelas redes - como é o caso do Movimento Infância Livre de Consumismo, em análise neste artigo. É pelo espaço digital que tais movimentos sociais espraiam seus ideários e arregimentam novos seguidores.

O chamado ciberespaço é conceituado como o conjunto de redes informatizadas que abriga um novo território e abre-se à interação humana; tal espaço produz novas formas de experiências coletivas e um saber virtual coletivo (Levy, 1999). Trata-se de um lócus virtual, transnacional, parte essencial da sociedade e cultura contemporânea. Configura-se como um espaço social híbrido ao articular base técnica e disposições sociais, que engendra a construção de subjetividades complexas. Para Levy (1999), o ciberespaço potencializa o ato de comunicar-se que, em última instância, também seria uma ação de liberdade. Nesse sentido, o autor aponta para o surgimento de uma ciberdemocracia, ressaltando a potência do ciberespaço como um ambiente de lutas políticas.

A internet, conjugada a outras tecnologias, modificou as formas de se relacionar dos seres humanos; a comunicação mediada pelas máquinas produz uma relação de humano e não humano que possibilita a criação de agrupamentos sociais que se arregimentam por interesses em comum, potentes na invenção de novos territórios existenciais e outros mundos. Nestes, ganha corpo o trabalho imaterial, voluntário e ativista, capaz de mobilizar milhares de pessoas ao redor do mundo em uma teia de parcerias, acionadas por uma infinidade de mensagens trocadas via chats, redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneas, e-mails, blogs, sites e outros dispositivos informacionais (Antoun, 2004).

 

Relações de poder, condução de condutas e redes digitais

Tais encontros podem abrir fissuras, rachaduras naquilo que se coloca como instituído na contemporaneidade. Brechas que, a partir de Foucault (1999), entendemos como resistências - conceito que não se dissocia de sua dupla face que é poder. Para o autor, poder não está circunscrito a alguns pequenos círculos que manipulam e/ou esmagam o resto da sociedade, não é algo que alguns têm e outros não. Poder se dá nas relações e qualquer relação está imbuída dele: embates e estratégias que empoderam uns e outros perpassam as relações familiares, amorosas, de trabalho, etc. Há um constante jogo de tensões que nutre as tessituras dessas relações, pois toda relação de poder é dinâmica, nada passiva, o que possibilita a existência de resistências. "Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa... Mas sim resistências, no plural" (Foucault, 1999, p. 91).

Pensar poder em sua positividade, entendendo-o não como mero cerceamento, mas como ação sobre ações possíveis ao outro (Foucault, 1999), implica atentar às formas como funciona. Sendo assim, cabe referir o olhar genealógico que Foucault (2008b) lançou sobre a arte de governar, mostrando como certos dispositivos de segurança foram sendo aprimorados - e articulados aos disciplinares - para conduzir o comportamento da população. Retomar suas discussões nesse âmbito, fugiria ao escopo deste escrito, contudo é pertinente apontar que a arte de governar passa a ser marcada pela maneira de bem gerir os indivíduos, a maneira de conduzir comportamentos, sustentada e sustentando relações de saber-poder, objetivando a obtenção de determinados fins. Sendo interessante ao Estado que as pessoas vivam e produzam de certas formas e não de outras, é nesse sentido que ele atuará sobre os diversos corpos.

Para melhor compreender tal processo e efeitos, importante abordar o conceito de biopolítica (Foucault, 2008a). Para bem governar as condutas, cada vez mais, foram sendo produzido saberes, associados a poderes, mirando a totalidade da vida do sujeito, que passou a ser esquadrinhado e objeto de diversas áreas, tais como a Medicina, a Pedagogia, a Psicologia, entre várias outras, de modo a viabilizar e incrementar o governo das populações. Como sintetiza Castro (2009, pp. 59-60), "há que entender por 'biopolítica' a maneira pela qual, a partir do século XVIII, se buscou racionalizar os problemas colocados para a prática governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raça". No âmbito da biopolítica, essas e outras dimensões da vida passam a ter agendas políticas específicas e de preocupação do Estado. Assim, engendrou-se, a partir do século XVIII, o que Foucault (2008b, p. 143) chama de governamentalidade, que ele caracteriza como o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança.

O incremento dessa economia geral do poder levou o autor a indagar-se sobre a existência de uma sociedade de segurança. Deleuze (2010), por sua vez, partindo das análises foucaultianas, considera peculiaridades que foram se tornando cada vez mais importante no curso do século XX para afirmar o estabelecimento das sociedades de controle.

Conforme Hur (2013), Lazzarato (2006) recupera e intensifica o que Deleuze enuncia sobre as sociedades de controle ao realçar uma transformação basilar nos modos de gestão: transcende-se a condução do corpo vivo, biológico, em direção ao controle do pensamento, do cérebro e da memória; a produção imaterial, o pensamento, a subjetividade passaram a importar cada vez mais. Este autor propõe que estaria ocorrendo uma transição de uma biopolítica para uma noopolítica, que seria a política sobre o pensamento; sendo noos expressão aristotélica para alma (superior), ter-se-ia a política de condução das almas. No âmbito da noopolítica, a população não tem lugar principal, pois ascende e importa outra figura coletiva: os públicos, agrupamentos sociais que podem se encontrar fisicamente separados, mas que têm um espaço de coesão mental (Lazzarato, 2006). Para alcançar tal finalidade, para Hur (2013, p. 211), "a publicidade e as pesquisas de opinião se tornaram campos de saber e prática essenciais para a noopolítica", que está a serviço da expansão da subjetividade capitalística.

A máxima da reprodução do capital, compromissada com o aumento da produção, do acúmulo, da competitividade e do consumo, faz com que os processos de subjetivação sejam norteados e referenciados por esses princípios, afastando-se assim dos tradicionais códigos sociais instituídos. A gestão noopolítica incita a concorrência, a desigualdade social e individual, a lógica de empresa e a despolitização do potencial insurgente, pois isola e opõe os indivíduos numa lógica competitiva, despotencializando a composição política coletiva. Esta configuração política e social porta um problema político, de diminuição da potência de ação e do esvaziamento do potencial desejante e de crítica dos sujeitos, tornando assim mais eficaz o governo das condutas. Portanto, mediante a modulação das técnicas noopolíticas há a constituição de um pensamento e uma subjetividade capitalista. (Hur, 2013, p. 213)

Se, para o desenvolvimento da noopolítica, a publicidade configura-se como prática essencial de controle e condução de condutas, pois produz e veicula mundos que nos são ofertados a habitar, é pertinente pensar que as redes sociais digitais também podem cumprir papel semelhante. Formas de ser e posicionar-se, dicas do que ter e como usar, como amar e/ou desapegar, hábitos para o bem viver, enfim, uma miríade de questões brota nas redes sociais, engendrando uma política do pensamento, arregimentando os mais variados públicos.

Poder e resistência: não se pode perder de vista que as redes sociais digitais também são condição de possibilidade para a criação de fissuras e brechas, de resistências que podem se configurar como movimentos de contraconduta. Como já explicitado, diferentes autores (Antoun, 2004, 2008; Levy, 1999; Santaella, 2010) apontam que o lócus digital potencializa embates de diferentes forças no tecido social, agregando os mais variados segmentos sociais, assim contribuindo para modificar a forma de propagação da participação social, o fazer político na atualidade.

 

Práticas discursivas e a questão do consumo na infância

Na perspectiva foucaultiana, os discursos são "práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam" (Foucault, 2000, p. 56). Assim, uma vez que os processos acionados em torno do consumo instituem uma gramática e uma estilística próprias, podemos apreender que nós, como sujeitos, estamos sendo perpassados e produzidos por uma complexa rede discursiva - e não discursiva - nessa esfera da vida. Assinale-se que boa parte dessa estilística é agenciada pela publicidade. Na nossa sociedade, vivemos uma presença maciça, constante, cotidiana e crescente de mensagens publicitárias que nos alcança em (praticamente) todos os momentos de nossas vidas (Burrowes, 2005).

A problematização do consumo torna-se especial quando o consumo infantil passa a ser o objeto de análise. Temas como obesidade infantil, adultização e erotização precoce mostram-se questões urgentes em um universo perpassado pelo incitamento ao consumo de produtos e serviços destinados aos pequenos consumidores. Incitamentos, mormente publicitários, que, no entender de vários analistas (Andrade & Costa, 2010; Giacomini & Orlando, 2013), desrespeitam o que seria apropriado para crianças.

Hoje, desde a mais tenra idade, as crianças estão sendo confrontadas com plurais possibilidades de consumo, inserindo-se no que Bauman (2008) denomina de sociedade de consumidores, da qual todas as pessoas, independentemente de idade, gênero, grupo social etc., são convocadas a fazer parte - sendo avaliadas conforme sua capacidade de consumir e se fazer também mercadoria. Como pontua o autor, nessa sociedade tem-se um leque imenso de opções, menos a opção de deixar de consumir. No que tange às crianças, tal oferta de opções pode implicar estratégias para levar à compra (ou ao desejo de ter) que beirem à exploração "brutal" de seu universo e/ou a associação deste a registros que lhes seriam alheios.

Para Giacomini e Orlandi (2013) a indústria patrocina anúncios que apresentam a criança de formas variadas, muitas vezes adultizando-as. Uma face dessa adultização pode ser exemplificada pela comercialização da bebida Spunch, um suco gaseificado engarrafado em recipiente que lembra uma garrafa de champanhe, ornada com desenhos coloridos que portam referência do imaginário infantil de meninas e de meninos. Tal produto - por seu formato, por ser muito disponibilizado em épocas como Natal e Ano Novo - introduz a criança em um jogo de simulação do comportamento adulto de ingerir bebidas alcoólicas em comemorações.

Outra face do processo de adultização da infância que vem sendo problematizada com vigor é a erotização infantil. Recentemente, o fato de existirem sutiãs com bojo para meninas de 5 anos ganhou visibilidade na internet gerando indignação (Sá, 2014). Andrade e Costa (2010), ao analisarem uma série de anúncios direcionados ao público infantojuvenil da marca Melissa, encontraram o uso de bonecas de plástico com formas arredondadas, como as de mulheres jovens, em posições sensuais. De acordo com as autoras, tais anúncios estariam estabelecendo um vínculo entre a ingenuidade e a sedução, propiciando apelos pedófilos.

A obesidade é mais um fator de preocupação importante quanto ao consumo infantil. Oliveira e Fisberg (2003) observam que a publicidade dirigida ao público infantil, no que tange à comercialização de alimentos, participa do incremento de seu consumo excessivo; assim, em conjunto com as formulações pouco saudáveis dos alimentos, pode ser considerada responsável pelo aumento da obesidade entre crianças.

Independentemente da questão específica e do volume de pesquisas já realizadas, o consumo e seus efeitos na produção de certos modos de ser criança e vivenciar a infância, que são apontados como problemáticos, vem mobilizando a academia e, de forma que começa a se mostrar expressiva, certos setores sociais. E é justamente nesse ponto que a temática infância e consumo se cruza, neste escrito, aos movimentos políticos na internet.

 

Questão de pesquisa e abordagem metodológica

Este artigo deriva de uma pesquisa de mestrado que acompanhou o processo de surgimento e desdobramentos do Movimento Infância Livre de Consumismo - milc (sigla adotada em certo momento, como veremos adiante), iniciativa de um grupo de mães (e, depois, pais e outras pessoas interessadas) que, via redes sociais, difunde posições políticas acerca do consumo infantil, lutando contra o que considera prejudicial, a saber, o consumismo infantil e, pontualmente, a publicidade dirigida às crianças. Tomando como materialidade o que era veiculado virtualmente, o objetivo da pesquisa foi analisar criticamente alguma das discursividades, tensionamentos e estratégias produzidas quanto a essas temáticas.

Adotamos um olhar cartográfico como metodologia norteadora da pesquisa, pois o principal pressuposto desta diz que cartografar é acompanhar processos e não representar um objeto (Passos, Kastrup & 2010) - e o que visávamos era justamente acompanhar o processo do milc no que diz respeito à produção discursiva quanto à relação criança e consumo.

A cartografia é uma abordagem metodológica, forjada em conexão com o trabalho de Gilles Deleuze e Felix Guattari, que vem sendo utilizada em pesquisas que se ocupam, a partir de variados olhares e questões, do estudo da subjetividade. A cartografia propõe uma inversão metodológica significativa: transformar o metá-hódos em hódos-meta, isto é, não se vai a campo com objetivos específicos e regras preestabelecidas, o que se faz é estar no campo em estado de alerta. Essa reversão consiste em uma aposta; calcada na experimentação do pensamento, a cartografia não é um método, como emprego de exatidão, e sim está mais próxima do movimento da vida (Kastrup, 2007). Por isso, preferimos utilizar a expressão "olhar cartográfico", uma vez que a afetação e implicação do pesquisador, a guiar escolhas de caminhos no curso da pesquisa, é ponto importante dessa abordagem.

Dessa forma, a noção de atenção cartográfica é fundamental; ela é definida como concentrada e aberta, caracterizando-se por quatro variedades: o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento. O rastreio é a varredura do campo, que faz reconhecimento de pistas, possibilitando acompanhar mudanças de posição. Tal como se fosse uma antena parabólica, com movimentos aleatórios, sem preocupação com possíveis redundâncias. Tudo caminha até que a atenção, numa atitude de ativa receptividade, é tocada por algo. O toque é um momento de pequeno vislumbre, em um grande processo de seleção que, ao tocar um mundo, exclui outros. O pouso consiste em uma parada; é quando a atenção do cartógrafo muda de escala, se amplia. E o reconhecimento atento que nos implica é a condição de acompanhar um processo, no sentido de: "vamos ver o que está acontecendo" (Kastrup, 2007, p. 20).

Portanto, a cartografia tem um espaço para a experimentação do pesquisador que permite abrir mão de regras rígidas para abusar das referências, sem deixar o rigor de lado. Desse modo, tanto a pesquisa quanto o pesquisador vão se forjando no caminho. A cartografia, referida como método, cria seus próprios movimentos, seus próprios desvios, permitindo assim apreender o movimento da própria realidade, enquanto ela está acontecendo.

Compõem nosso corpus de pesquisa postagens de integrantes do milc, capturadas, de forma assistemática, desde o surgimento do coletivo em 2012, em resposta à campanha "Somos Todos Responsáveis", da Associação Brasileira de Agências de Publicidade - Abap (tensionamento que analisamos na próxima seção); contrapondo-se a esta, um grupo de mães passou a escrever sobre os temas consumo infantil, consumismo e publicidade em blogs pessoais e depois no blog do coletivo "Infância Livre de Consumismo", de onde deriva parte de nosso material. De modo mais sistematizado, capturamos postagens divulgadas entre dezembro de 2014 e setembro de 2015 na página no Facebook e no seu site (que substituiu o blog, já com a sigla milc); a escolha das postagens se deu pela sua diversidade e direcionamento temático. Para dar corporeidade e sustentação a essa deriva cartográfica, produzimos cadernos de anotações, que chamamos de notas de pesquisa. Neles foram feitas "costuras à mão", alinhavos entre postagens, nossa leitura destas, a busca e incorporação de materiais referidos nas postagens (leis, projetos de ONGs parceiras, etc.), discussões teóricas e uma escuta atenta e implicada sobre o campo. No presente artigo, cujo foco recai sobre o que entendemos ser o "movimento do Movimento", lançaremos mão de parte desse material, incluindo comunicações "institucionais" do milc nos seus sítios digitais.

Analisamos esses materiais e tecemos discussões à luz das contribuições de Michel Foucault. Na obra A ordem do discurso, Foucault (2012) põe em foco procedimentos de controle e delimitação dos discursos, a relação entre as práticas discursivas e certas formas de poder que estão implicadas em seu processo de produção, como as condições de seu funcionamento, entre outros aspectos. Para o autor, o discurso é uma força produtiva, criadora; discursos são práticas organizadoras da realidade, produtoras de verdades. Ainda que feitos de signos, "o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os tornar irredutíveis à língua e ao ato da fala" (Foucault, 2000, p. 56). Os discursos estabelecem hierarquias, distinções, articulam o visível e o dizível. O foco, portanto, não deve recair sobre o significado das palavras, mas no seu papel produtor das posições e relações entre indivíduos, instituições e organizações sociais mais amplas.

 

Resultados e discussões

A internet é um espaço virtual customizável para atender a variados interesses. Lemos (2004) ressalta que isso revoluciona o ato de comunicar-se, pois nele é possível produzir conteúdo e informação, não só consumir, como acontecia com as mídias tradicionais. Essa característica possibilitou que coletivos de cidadãos pudessem expressar suas ideias, fazendo do ciberespaço o seu território. E o que, há algumas décadas, poderia parecer impossível, tornou-se realidade: agrupamentos sociais organizados em torno de um tema puderam trazer para o ambiente virtual as suas lutas, que passaram a ser travadas também em bytes.

 

De um coletivo a um movimento: surgimento e desdobramentos do MILC

No contexto de expansão da comunicação interativa na internet surgiu o Movimento Infância Livre de Consumismo, iniciativa de um grupo que tinha pensamentos em comum e que se apresenta, conforme postagem em sua página no Facebook, como sendo "um coletivo de mães, pais e cidadãos inconformados com a publicidade dirigida às nossas crianças" (Infância Livre de Consumismo, 2015). Atualmente, tem site próprio, página no Facebook, multiplicando sua presença na rede por meio do Youtube, Twitter, Pinterest, Instagram e Google +. Iniciou suas atividades utilizando a rede por intermédio, basicamente, de um blog, que se tornou aglutinador de conteúdo por cerca de dois anos.

No início, o coletivo lançou o projeto nomeado Infância Livre de Consumismo; após um tempo, identificando que sua "atuação estava mais afinada com a atuação de um 'Movimento'", como diz postagem no site (Movimento Infância Livre de Consumismo, 2015a), essa expressão foi incorporada ao nome, que passou a ser designado como Movimento Infância Livre de Consumismo, cuja sigla - milc - de sonoridade semelhante a leite em inglês, foi aclamada, pois ajudava a reforçar a ideia de tratar-se de "um movimento materno - pais e não pais são bem-vindos, porém sabemos que as mães têm sido as protagonistas", conforme postagem no site (Movimento Infância Livre de Consumismo, 2015a). A partir de um elaborado processo de definição de marca, surgiu uma logomarca - milc, em caixa baixa, que "atende aos nossos sonhos de ser um grupo de mães debatendo sem gritos e de maneira acolhedora os impactos da comunicação nas vidas dos nossos filhos", como consta em postagem no site (Movimento Infância Livre de Consumismo, 2015a)1.

 

Figura

 

Na esteira do que Foucault (2012) propõe, pode-se assinalar que, a partir de toda uma valorização que a expressão passou a ter nos últimos tempos, dizer-se um Movimento configura-se como estratégico para alçar o coletivo a um novo status, além de, talvez nada incidentalmente, possibilitar o uso de uma sigla entendida como prenhe de significação; por outro lado, pode-se conjecturar que a adesão de mais pessoas à proposta, o aumento de seguidores, as alianças desenvolvidas, etc., conferiram corpo ao coletivo, empoderam-no a ponto de ele se reconhecer um Movimento.

 

O grande alvo do MILC: a publicidade dirigida às crianças

Um dos materiais mais antigos que fazem referência ao projeto Infância Livre de Consumismo é a postagem "Mamãe, eu quero! Combata o Consumismo", de setembro de 2012, que se encontra no blog "A gente escolhe ser feliz", de uma integrante do milc (Reali, 2012). A autora é uma mulher jovem, pós-graduada em marketing, ex-empresária, que diz hoje aplicar seus conhecimentos em casa, com viagens e com os filhos. Na postagem em questão, ela conta que o projeto teve início com um grupo de mães e pais que, há tempos, trocavam ideias em um grupo de discussão no Facebook. Diz que, indignados com uma campanha projetada por publicitários, que responsabilizava os pais quanto aos possíveis problemas causados às crianças pela publicidade, surgiu o projeto e a comunidade Infância Livre de Consumismo no Facebook, que em 2012 já tinha cerca de 8.000 apoiadores, o blog de mesmo nome e o @infancialivre no Twitter. Expõe a causa defendida e os efeitos da publicidade para as crianças. Esta integrante do milc ressalta que, se são os pais que compram, então, é para eles que se deve anunciar, e não para as crianças, e pede a atenção do Estado para essa questão, pois, "Quando a publicidade fala à criança que aquele brinquedo fará dela uma pessoa mais feliz, [] está transmitindo valores em que o ter é mais importante que o ser. O brinquedo seria mais importante que o brincar. E isso angustia as crianças e é abusivo" (Reali, 2012).

Analisando o nome do projeto e seu alvo, entende-se que, para esse coletivo, livrar a infância de consumismo quer dizer, em primeira instância, lutar contra os incitamentos publicitários dirigidos às crianças. O hoje milc, desde então, atuava chamando a atenção da sociedade para essa questão, buscando formar opinião de outras mães, pais e instituições para poder problematizar os efeitos da publicidade direcionada a crianças. Uma das posições mais veementes desse coletivo era - e segue sendo - acerca da necessidade de se aderir, em terras brasileiras, à regulação não realizada somente pelo mercado. Conforme consta no site,

Para garantirmos a proteção das crianças brasileiras contra o consumismo e a publicidade predatória:

a) queremos mais espaços de diálogo direto entre os pais/familiares e os governos e as agências reguladoras da publicidade infantil no que diz respeito à elaboração dos marcos regulatórios;

b) queremos regras mais claras que evitem a entrada da publicidade em espaços que são das crianças por excelência, como escolas e consultórios de pediatria;

c) queremos que os governos brasileiros participem ativamente dos debates internacionais acerca do tema e tragam para nossa experiência o que for relevante; e

d) queremos o fomento a mais pesquisas na área da educação e mídias que incluam também os pais como atores fundamentais nessa relação. (Movimento Infância Livre de Consumismo, 2015b)

O coletivo arrola e convoca a dimensão da cidadania para legitimar sua atuação ativista. Advoga que não se pode responsabilizar somente as mães e os pais por um problema que afetaria e competiria a toda sociedade. Ainda, coloca-se em um lugar de representação de outras mães e pais, definindo seu objeto político de luta, em postagem na página do Facebook: "Através do projeto Infância Livre de Consumismo, queremos contribuir para o debate sobre a regulamentação da publicidade infantil para que possamos chegar a uma solução que, de fato, defenda as crianças" (Infância Livre de Consumismo, 2015).

Em outra postagem divulgada no Facebook, fica-se sabendo que o projeto constituiu-se em março de 2012, quando integrantes do grupo de discussão Consumismo e Publicidade Infantil participaram de uma ação de mobilização no âmbito do projeto Criança e Consumo, promovida pelo Instituto Alana.2 Tal evento visava debater a Campanha "Somos Todos Responsáveis", da Abap (2015), que veiculava a ideia de que a mídia estava passando por transformações e convocava, especialmente, os pais e os responsáveis pelas crianças para serem cuidadores quanto à publicidade dirigida aos seus filhos.

Assim, o milc nasceu, como projeto coletivo, em resposta ao posicionamento do mercado que, com essa campanha, parecia apostar, por um lado, na sua continuidade como único responsável pela regulação da publicidade (ou autorregulamentação, por meio do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e, por outro, na designação de pais e mães como responsáveis por algo que se poderia chamar de "regulação doméstica", isto é, a ação de mediar o acesso e a interação das crianças com a publicidade veiculada.

Silva (2010) traça uma história da publicidade dirigida às crianças no Brasil e mostra que a estratégia de empresas de produtos infantis, já a partir dos anos 1960, foi investir em programas infantis de televisão para divulgar suas marcas. Nos anos 1980, com a profusão e sofisticação destes, patrocinadores passaram a oferecer "produtos que iam do caráter alimentício ao vestuário, fortalecendo a relação da criança com a indústria do consumo. Em muitos casos, os programas serviam ainda como palco para a publicidade, através de merchandisings" (p. 25). Em meados dessa década pode ser "identificada a 'síndrome infantil' nas publicações especializadas na área publicitária" (p. 25), quando a criança adquire status de consumidora a quem se dirigir. Desde então, quer inseridos nos próprios programas ou nos intervalos comerciais, forjam-se formatos específicos de peças e campanhas publicitárias voltadas às crianças, que fazem uso, por exemplo, "de personagens, sejam eles super-heróis dos quadrinhos, dos desenhos animados, animais ou elementos da natureza, [que] mexem com a fantasia e imaginação da criança" (p. 31), incitando-a a consumir - o que passou a ser, cada vez mais, problematizado. Para verificar a adequação da publicidade infantil às regulamentações existentes (Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente e do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), a autora analisou peças de diferentes décadas e constatou que grande parte estava em desacordo com o que era preconizado, sendo relevante atentar para o que ela concluiu:

Levando em consideração a ordem cronológica dos comerciais analisados, os resultados obtidos nos fizeram concluir que a criação de mecanismos de coibição da prática publicitária que foge à ética não implica na inibição desse tipo de produção. Pelo contrário, constatamos que nas últimas décadas, quando os suportes já existiam, o descumprimento passou a ser maior. Isso não quer dizer que as infrações surgiram como forma de afronta às normas, mas sim que acompanham o contexto socioeconômico da época. Em uma sociedade que busca a expansão do mercado de bens de consumo, é natural que a publicidade siga essa lógica. A problemática é que o respeito à criança nem sempre acompanha essa evolução. (Silva, 2010, p. 83)

Os debates e embates entre autorregulamentação e regulação estatal da publicidade no Brasil não são recentes; cigarros, medicamentos, bebidas alcoólicas são produtos que, a partir de um intenso jogo de forças, passaram da primeira à segunda condição. Como apontam Cabral, Bragaglia e Seabra (2012), nos últimos anos, tem crescido a problematização no que tange à publicidade infantil. Isso pode ser dimensionado, de certo modo, pelo número de Projetos de Lei já apresentados ou que tramitam atualmente nas comissões do Congresso Nacional: dentre outros, PL nº 5.921/01, que proíbe toda publicidade de produtos infantis; PL nº 1.637/07, que estabelece restrições para a publicidade de alimentos com baixo teor nutricional; PL nº 7.480/10, que proíbe toda forma de publicidade de produtos e serviços em escolas de educação básica; e nº PL 244/11, que altera o CDC ao caracterizar como abusiva a publicidade que possa induzir a criança a desrespeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família. Então, tanto a campanha da Abap quanto as posições e ações contrárias, como as do milc, buscam ser lances estratégicos em um contínuo jogo de saber-poder, no qual certos elementos recebem mais luz e outros são ofuscados.

Na visão do milc, a campanha da Abap responsabilizava unicamente os pais quanto à proteção das crianças diante dos estímulos ao consumo na forma de publicidades, assumia a defesa do mercado e mostrava-se parcial, na medida em que defendia a autorregulamentação. Em contraponto, o coletivo sustentava que, para bem educar as crianças para a cidadania e a sustentabilidade, era preciso o apoio efetivo do Estado e a responsabilização das empresas privadas, dos veículos de comunicação e das agências de publicidade. Fazendo uso "reverso" do próprio título da campanha, defendiam que só assim todos seriam responsáveis.

O que tal grupo fez, de modo cada vez mais marcado, foi se colocar como porta-voz da opinião de mães e pais que se diziam conscientes da sua função como educadores e responsáveis por seus filhos, e abrir um canal de diálogo com toda a sociedade - via redes sociais e ou promoção/participação em eventos - na tentativa de encontrar um novo formato, diferente do modelo vigente de autorregulamentação. Sua principal bandeira de luta, defendida no blog em 2012 e 2013, era o entendimento de que a publicidade infantil seria danosa às crianças, pois as pressionava a desejar mais e mais os produtos de consumo, associando-os a um discurso enganoso, de alegria, felicidade e status social. Além disso, também era referido o sofrimento de crianças que não podiam obter esses produtos devido à falta de recursos financeiros. Enfim, o grupo queria chamar a atenção à pressão, de diferentes ordens, exercida sobre as crianças e que não poderia ser devidamente elaborada pelos pequenos, cujo senso crítico estava em desenvolvimento.

 

Saberes e poderes em luta: quem sabe, quem pode falar?

Nessa ordem do discurso, o coletivo de mães do milc chamou para si o poder da fala, do saber sobre as crianças, a infância e a publicidade. Como apresentado anteriormente, os pais e não pais são ditos bem-vindos, mas não ocupam posição de atores diretos; quando aparecem, na maioria das vezes, é comentando alguma postagem. Quem pode falar, quem tem/recebe habilitação para dizer a verdade? Para Foucault (2012), não é qualquer um, mas sim quem está em certa posição. Quem são, nesse âmbito, especialistas? O que podem falar?

Nesse caso, as especialistas estariam duplamente capacitadas. Por um lado, têm a condição e a responsabilidade de serem mães. No atual link Quem somos do site (Movimento Infância Livre de Consumismo, 2015c), encontram-se as fotos e uma descrição de 13 mulheres, que, quase invariavelmente, traz, logo após o nome, a caracterização "mãe de três", "mãe de dois", "mãe do". Muitas delas divulgam o link para seus blogs, no qual escrevem sobre maternidade e criação de filhos, universo doméstico, e temáticas associadas, mas também há aquelas que debatem o consumo - e, inclusive, propõe certo consumo, como no blog Futuro do presente, cuja página inicial oferece roupas e acessórios educativos, ecológicos e reciclados. Por outro lado, as integrantes do milc ostentam sua condição de profissional: grande parte, mormente na época do blog, exibia formação na área de comunicação - portanto, pessoas que seriam capazes de argumentar, de igual para igual, com publicitários (na ampliação do movimento, as mães passaram a ser também de outras áreas).

Foucault (2012) argumenta que existem diversos procedimentos que ditam aquilo que se pode ou não dizer e quem tem direito de dizê-lo, ressaltando que "o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar" (p. 10). O fato de as integrantes do milc serem mães parece lhes colocar em um papel privilegiado, que lhe dá a credencial e o direito de produzir discursos, enunciar verdades e, assim, buscar conduzir comportamentos e clamar por leis. Portanto, trava-se todo um jogo de saber/poder entre esse coletivo e outras instâncias sociais, como a Abap, pela condição de quem poderá falar e o que poderá ser dito, que pautas devem ou não entrar em discussão, o que pode ou não ser visibilizado.

Suas postagens produzem efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos (Foucault, 2012); um fato parece ser seu alto poder de adesão: atualmente a página do Movimento Infância Livre de Consumismo no Facebook tem 109.414 curtidas e 40.562 pessoas falando sobre,3 o que demonstra a sua capacidade de mobilizar virtualmente seguidores para a sua causa e produzir efeitos de verdade a partir de seus posicionamentos. Tais números mostram-se ainda mais relevantes quando comparados aos da página da campanha Todos Somos Responsáveis, da Abap, que alcançou até agora 17.887 curtidas e teve somente 23 pessoas falando sobre.4

Em março de 2014, o blog do movimento saiu do ar, retornando dois meses depois repaginado no formato de site com o nome de Movimento Infância Livre de Consumismo e exibindo características e proposições já discutidas anteriormente (causa defendida e foco de lutas, logomarca, fotos e descrições das integrantes e links para seus respectivos blogs), além de algumas novidades, como exploração de outras temáticas e abertura a patrocínios, que discutimos adiante. Tal reformulação coincidiu com um acontecimento importante para a luta contra a publicidade dirigida às crianças: a publicação da Resolução número 163, em 4 de abril de 2014, do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (Conanda), que versou sobre a abusividade no que concerne à publicidade infantil (Brasil, 2014). Essa Resolução, que tem efeito educacional, mostra-se importante, uma vez que coloca a questão da publicidade direcionada às crianças para ser pensada a partir da noção de abusividade, que figura no Código de Defesa do Consumidor (Brasil, 2010), mas somente de forma indicativa, precisando de especificações complementares.

Na passagem de blog a site, algumas mudanças importantes. Apesar de o foco principal ainda recair sobre a publicidade, temáticas concernentes aos modos de viver (de brincar, como fazer comemorações, o que ler, etc.) ficam mais visíveis e linkadas. Por outro lado, como blog, o público-alvo prioritário eram mães, pais e cidadãos; isso permaneceu, contudo, há uma extensão relevante: "O MILC também irá se comunicar com potenciais financiadores, mas por meio de produção de projetos e reuniões, e não diretamente em seus canais de comunicação" (Movimento Infância Livre de Consumismo, 2015b). O milc abre, assim, seu escopo de atuação no que poderia ser compreendido como certa "profissionalização". Cabe pontuar que, desde o início, suas integrantes colocam-se como ativistas de uma maternidade mais consciente, portanto, "especialistas" no ato de cuidar, que combatem certo tipo de publicidade, a dirigida ao público infantil. Para atingir suas finalidades, utilizam, de modo bem pronunciado, estratégias "nativas" ao campo da própria publicidade, marketing e relações públicas. Com a referência a financiadores, pode-se depreender que o milc reposiciona-se na direção de constituir-se como uma espécie de assessoria de comunicação que atua na lógica da resistência utilizando o mesmo poder midiático.

A partir do que Lazzarato (2006) e Hur (2013) discutem sobre noopolítica, que abordamos na introdução deste artigo, é possível identificar o milc como um ator social no jogo contemporâneo que visa, a partir de uma produção de pensamento, conduzir comportamentos. A formação da opinião pública, por meio da publicização de formas de ser, entender, agir, que ganham corpo nas postagens para os seguidores do Movimento, requer nossa atenção, tendo em vista uma vontade de incidir sobre as "almas" de outras mães, pais e, consequentemente, seus filhos e filhas. Tal apontamento não constitui uma crítica no sentido de desvalorizar ou diminuir a legitimidade desse coletivo ou a pertinência das bandeiras levantadas - várias delas perpassam nosso próprio trabalho -, mas assinalar a importância de uma constante reflexão sobre as formas como atuamos política e estrategicamente.

Uma característica do milc que o aproxima dos movimentos sociais contemporâneos descritos por Castells (2013) é o fato de não apresentar líderes nem ter vínculo (explícito) com partidos políticos. Apesar de algumas integrantes se descreverem como cofundadoras (Movimento Infância Livre de Consumismo, 2015c), o poder parece estar distribuído de forma horizontal, em rede; assim, o discurso sobre almejar transformar as pessoas em sujeitos de suas próprias vidas, isto é, em cidadãos mais ativos, encontra eco no seu modo de atuação como coletivo.

Por fim, apesar de não haver referências a filiações partidárias, a vontade de ocupar lugar relevante no cenário de discussões sobre a publicidade infantil em canais institucionais torna-se visível quando o Movimento apresenta suas articulações com o campo político organizado. São inúmeras referências a participações presenciais em eventos, debates, palestras, encontros, reuniões, audiências públicas em Assembleias Estaduais, Ministérios Públicos Federal e Estaduais, Universidades, Centros Médicos e Escolas. Inclusive, o milc foi recebido, na condição de representante de mães e pais, em reunião na Câmara Federal, na Comissão de Constituição e Justiça, que avalia o Projeto de Lei nº 5.921/01. Tal projeto tramita desde 2001 e propõe acréscimos no art. 37 do CDC, que trata da publicidade enganosa e abusiva, proibindo a veiculação de publicidade dirigida a crianças. Articulações com o campo político organizado como essa têm suscitado - e sido possíveis a partir de - outras parcerias com o intuito de expandir a rede, sendo uma delas a Rede Brasileira de Infância e Consumo (Rebrinc), que reúne instituições e movimentos em defesa dos direitos de crianças e adolescentes no que tange às relações com o consumo.

 

Considerações finais

Vivemos em um tempo no qual, para a sustentação da subjetivação capitalística, já não basta o controle do que seria da ordem do orgânico e do comportamental. É preciso, para seguir conduzindo condutas nessa direção, ter acesso e controle aos pensamentos, à alma dos sujeitos. Neste artigo foi possível trazer alguns elementos à discussão dos usos que os dispositivos tecnológicos que agem a distância vêm propiciando em um tempo de noopolítica (Lazzarato, 2006). Como vias de capturas e/ou de resistências, a internet é um desses dispositivos que consegue amplificar discursos e engajar sujeitos dispersos - pois uma importante marca do contemporâneo é a produção de públicos.

O milc é um movimento desse contemporâneo, arregimentando ativistas e engajando pessoas sensibilizadas pela questão da publicidade e do consumo na infância nos mais diversos pontos do país. Faz uso da internet para amplificar sua mensagem, atraindo por meio do sentimento de pertencimento a um grupo maior: o de mães e pais - seu público prioritário - que se importam e são conscientes das tensões em torno do consumo. "Os públicos são a expressão de novas subjetividades e de formas de socialização ignoradas pela sociedade disciplinares" (Lazzarato, 2006, p. 77).

No percurso de análise dos materiais postados, experimentamos certo desconforto: ao mesmo tempo em que vislumbramos que o milc exerce resistência a estratégias e práticas que naturalizamos (e, por isso, não atentamos ao fato que implicam modos de consumir problemáticos), acaba também atualizando certa vontade de verdade e controle. Enquanto concernente ao mercado, o milc posiciona-se como um interlocutor potente que faz um contraponto aos publicitários que elegem a autorregulação como a melhor prática; também, mostra-se problematizador de formas cristalizadas típicas do discurso publicitário, como instigar a competição e utilizar de figuras lúdicas no afã de fazer adquirir. Mas, quando se trata de "vender-se" como coletivo/Movimento, recorre a estratégias de sedução típicas da publicidade. Será que acredita que o problemático na lógica ou cultura do consumo - e de sua publicidade - é só não deixar as crianças "de fora", evitando o que refere como consumismo (a rigor, uma noção que não encontra maior discussão ou problematização)?

Por outro lado, a ênfase na sua condição de movimento materno - "sedimentada" na sigla milc a partir da associação com uma das peculiaridades do ser mãe - não deixa de reforçar um modo do feminino, uma composição familiar e relacional: mulheres-mães são, e devem se esforçar para serem mais e mais, autoridades no que diz respeito ao cuidado de suas, nossas crianças. As integrantes do Movimento, que não tem um único homem-pai cuja foto e descrição figura no link Quem somos, não mostram incômodo com isso, não convocam, em suas postagens (ao menos as que acessamos), seu engajamento, a contribuição diferencial (porque potencialmente diferente) que eles poderiam agregar; o que fazem é dizê-los bem-vindos, caso queiram apoiar o Movimento. Ao mesmo tempo, também a partir dos materiais que analisamos, um fato é notável: as crianças estão ausentes. Não das imagens, que são fartas, mas em espaços de fala. Será que não teriam o que dizer? Proteger e acolher é também escutar, não só falar para ou por. Até porque esse é um atributo da publicidade cercado de críticas: com ela não há diálogo, apenas indicação do que seria bom se ser/ter.

Um último ponto, também de certo modo ambíguo, a levantar é quanto à busca de um modelo de democracia participativa diferente do modelo representativo tradicional, sonho de uma ciberdemocracia (Levy, 1999). Se o milc possibilita uma ampla discussão com a sociedade em geral quanto ao tema da publicidade infantil - haja vista o número de pessoas que, a partir da página no Facebook, se colocam a refletir sobre o tema -, não ignora as formas tradicionais: assume o status representante de mães - e pais e cidadãos (as crianças parecem subsumir-se aqui) - e, nessa condição, procura as esferas políticas estatais para fazer valer seus pleitos. Haveria algo outro a fazer?

 

Referências

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Recebido em: 8/9/2016
Aprovado em: 28/7/2018

 

 

1 Em função de tal posição do Movimento, usamos no artigo a grafia da sigla em caixa baixa, mas mantemos a forma (eventualmente diversa) como foi escrita nas postagens que aqui reproduzimos.
2 O Instituto Alana, criado em 1994, é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que reúne os projetos próprios e com parceiros para a vivência plena da infância (Alana, 2015).
3 Retirado em 13 setembro, 2015, de https://www.facebook.com/InfanciaLivredeConsumismo/likes
4 Retirado em 13 setembro, 2015, de https://www.facebook.com/SomosTodosResponsaveis/likes.

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