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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.1 São João del-Rei Jan./Mar. 2019

 

A Educação Popular em Saúde como dispositivo transformador das práticas da Rede de Atenção Psicossocial no município de Itajaí-SC

 

Popular Education in Health as a transforming device of the practices of the Psychosocial Attention Network in the city of Itajaí-SC

 

La Educación Popular en Salud como dispositivo transformador de las prácticas de la Red de Atención Psicosocial en la ciudad de Itajaí-SC

 

 

Jonatan HoffmannI; Carlos Eduardo MaximoII

IEspecialista em Atenção Básica/Saúde da Família pela Universidade do Vale do Itajaí
IIDoutor em Psicologia, Residência Multiprofissional em Atenção Básica/Saúde da Família. Mestre em Saúde e Gestão do Trabalho

 

 


RESUMO

A pesquisa retrata experiências oportunizadas por uma Residência Multiprofissional em Saúde da Família, com objetivo compreender e intervir com usuários da Rede de Atenção Psicossocial no município de Itajaí por meio da Educação Popular em Saúde (EPS). Trata-se de um estudo qualitativo, tendo como perspectiva metodológica a pesquisa intervenção. Envolveu sujeitos participantes usuários de um Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas. No trabalho, são relatados alguns caminhos e experiências em EPS e seus desdobramentos refletidos com base em uma perspectiva histórico-crítica por meio dos conceitos de Alteridade e Humildade. Conclui-se que as intervenções em EPS possibilitaram a construção de relações sociais pautadas por valores orientados para uma ética do diálogo, alteridade e solidariedade, e por construir em coletivo uma concepção de mundo capaz de tensionar com as forças de alienação e produção de sofrimento.

Palavras-chaves: Sistema Único de Saúde. Educação em saúde. Rede de Atenção Psicossocial. Paulo Freire. Educação Popular em Saúde,


ABSTRACT

The research portrays experiences offered by a Multiprofessional Residency in Family Health, aiming to understand and intervene with users of the Psychosocial Care Network in the city of Itajaí through Popular Education in Health (EPS). It is a qualitative research, having as a methodological perspective the intervention research. It involved as subject users of a Psychosocial Care Center - Alcohol and other Drugs. In the work are described some paths and experiences in EPS and its unfolding reflected on a historical-critical perspective through the concepts of Alterity and Humility. It is concluded that the interventions in EPS allowed the construction of social relations based on values oriented to an ethics of dialogue, alterity and solidarity, and to build in a collaborative way a conception of the world able to strain with the forces of alienation and production of suffering.

Keywords: Unified Health System. Health education. Psychosocial Care Network. Paulo Freire. Popular Education in Health.


RESUMEN

La investigación retrata experiencias oportunizadas por una Residencia Multiprofesional en Salud de la Familia, con objetivo de comprender e intervenir junto a usuarios de la Red de Atención Psicosocial en el municipio de Itajaí por medio de la Educación Popular en Salud (EPS). Se trata de investigación cualitativa y tiene como perspectiva metodológica la investigación intervención. Envolvió a sujetos usuarios de un Centro de Atención Psicosocial - Alcohol y otras Drogas. En el trabajo se relatan caminos y experiencias en EPS y sus desdobles reflejados en base a una perspectiva histórico-crítica con conceptos de Alteridad y Humildad. Se concluye que las intervenciones en EPS posibilitar la construcción de relaciones sociales basadas en valores orientados hacia una ética del diálogo, alteridad y solidaridad, y por construir en colectivo una concepción de mundo capaz de crear tensiones con las fuerzas de alienación y producción de sufrimiento.

Palabras clave: Sistema Único de Salud. Educación en salud. Red de Atención Psicosocial. Paulo Freire. Educación Popular en Salud.


 

 

Introdução

Percursos primários

A Educação Popular (EP) pode ser considerada como uma concepção ético-crítico-política do ato de educar, pautada nos pensamentos de Paulo Freire, considerado o precursor e organizador dos estudos desse campo de saber (Freire, 2014).

Tendo sua origem no início da década de 1950, em resistência ao modelo educativo do período pós II Guerra Mundial que visava a adaptação dos desfavorecidos ao mundo moderno, a EP surge reforçando o princípio de uma práxis educativa cujo ponto de partida é a realidade social, com o objetivo de voltar-se a essa realidade e transformá-la, buscando a construção de um outro mundo possível (Pereira & Pereira, 2010; Freire, 2014). A EP continuou se estruturando nas décadas seguintes, sempre se opondo a uma concepção de mundo liberal, de reprodução dos modelos hegemônicos de educação e organização social, tendo um papel fundamental na resistência e organização dos brasileiros no período da Ditadura Militar de 1964 a 1985.

EP se faz com base no diálogo com o povo, no respeito à autonomia e criatividade do outro, no respeito ao saber de vida que as pessoas têm, na construção de uma reflexão crítica ao ver a realidade, com o objetivo de coproduzir conhecimento buscando a transformação das relações sociais por meio da participação popular (Freire, 2014). Pensadores da Saúde Coletiva Brasileira como Da Ros (2000), Vasconcelos (2004), Gomes e Merhy (2011), se apropriaram dos pressupostos da EP para estruturar as propostas de Educação em Saúde.

No entendimento de Da Ros (2000), existem duas formas distintas de se produzir educação na área da saúde: por meio da Educação Sanitária; ou por meio da Educação em Saúde. A incongruência desses dois estilos de pensamento dá-se em função da diferença de concepções de mundo e de saúde neles arraigados. A Educação Sanitária tem como concepção de mundo o positivismo-funcionalismo, entendendo que a realidade social é a que está posta em nossa frente, e tudo o que está aí tem a função de manutenção da ordem social (Guareschi, 2004). É fortemente atrelada ao modelo biomédico, que tem como características a fragmentação/especialização, o mecanicismo, o biologicismo, a tecnificação, o individualismo, o curativismo, e a relação íntima com o complexo médico industrial (Verdi, Da Ros, & Cutolo, 2010). Nesse jeito de pensar, o autoritarismo/verticalismo é presente como metodologia, na medida que se entende que existem algumas pessoas que sabem e outras que não sabem, e assim pode-se repassar o saber para o outro que não sabe. Logo, é interessante termos "sujeitos subalternos educados, limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja, utilizando fossas sépticas" (Brandão, 1982 citado por Vasconcelos, 2004, p. 71) para que não fiquem doentes e possam assim ter mais capacidade de produção para a sociedade capitalista que está posta. Busca-se, portanto, com esse método, a adaptação dos sujeitos a essa sociedade capitalista (Freire, 2014).

Ainda na construção de Da Ros (2000), o outro jeito de se produzir educação é chamado de Educação em Saúde, que é alicerçada em uma concepção de mundo histórico-crítica, compreendendo que tudo o que existe é histórico, está em construção, não é absoluto, que o futuro é realidade presente e está sendo gestado, e que a mudança é possível (Guareschi, 2004). "O mundo não é. O mundo está sendo" (Freire, 2014, p. 74). Como metodologia, está presente um modelo dialogal/libertador, no qual as pessoas, que são absolutamente únicas e repletas de experiências e saberes singulares, entram em um movimento de reflexão pelo diálogo, coproduzem conhecimento e então transformam/agem sobre determinada questão (Guareschi, 2009; Freire, 2014). O conhecimento é construído, portanto, com o povo, e não para o povo (Ceccim, 2007; Freire, 2014). A Educação em Saúde tem como entendimento de saúde a teoria da determinação social do processo saúde-doença, que está representada no conceito de saúde descrito no Relatório Final da 8ª Conferência Nacional de Saúde de 1986, que considera a saúde como resultante das condições de alimentação, habitação, renda, educação, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra, e acesso a serviço de saúde, sendo, "antes de tudo, os resultados das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida" (Ministério da Saúde, 1986, p. 4).

Neste trabalho, chamaremos a Educação em Saúde de Educação Popular em Saúde (EPS), exatamente por essa aproximação conceitual, visão de mundo, e nascimentos em um contexto histórico semelhante no Brasil, visto que a EPS surge na década de 1970 em oposição ao modelo de sociedade e educação sanitária hegemônica que acontecia na Ditadura Militar (Gomes & Merhy, 2011).

Na EPS, existem dois conceitos fundamentais que dizem respeito à postura humana na vida cotidiana, que se não são bem compreendidos e vivenciados, o fazer e pesquisar EPS não se torna possível: estes são Alteridade e Humildade, que para discorrer sobre, estabeleço um diálogo com Pedrinho Guareschi (1998, 2004, 2009) e Paulo Freire (1987, 2014) tentando fazer uma costura desses e de outros conceitos que são fundamentais para o leitor compreender de onde parto para refletir o processo de trabalho em campo na perspectiva de uma coprodução de saberes, tendo como objetivo buscar compreender e intervir com usuários da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) no município de Itajaí por meio da EPS.

Ao discorrer sobre o ser humano, que é algo misterioso por não poder ser compreendido em sua totalidade, Pedrinho Guareschi (1998, p. 153) traz uma bonita metáfora, da qual me aproprio para iniciar as discussões. "Nós somos como que um ancoradouro para onde chegam milhões de naus. Algumas apenas se aproximam de nós. Outras chegam até nós, deixam conosco alguns de seus bens. Outras penetram nosso ser, passam a morar conosco, quase se identificam com o nosso ser".

Essas distintas formas de aproximação das naus ao ancoradouro dizem respeito às diversas relações que estabelecemos com as pessoas ao longo de nossa existência. É entendido por relação "uma realidade que para poder ser necessita de outra, senão não é" (Guareschi, 1998, p. 153). Utiliza-se por isso o termo pessoa para designar o ser humano, pois pessoa é relação. "Pessoa é alguém que é um, mas ao mesmo tempo não pode 'ser' em completude sem 'os outros'; para 'ser' ela necessita intrinsecamente dos outros" (Guareschi, 1998, p. 153).

É possível chegar ao entendimento da alteridade quando pensamos o ser humano a partir das relações. Nos construímos como seres humanos como resultado das relações que estabelecemos ao longo de nossa existência. Relações que estabelecemos com outros, sendo que "este outro não se caracteriza apenas como outra pessoa, mas também como todo o trânsito de enunciados, obras de arte, saberes que circulam dado contexto" (Maximo, 2013, p. 106). Portanto "o outro é alguém essencial em nossa existência [...] tornando-se imprescindível para a própria compreensão de mim mesmo" (Guareschi, 1998, p. 166).

Ter a compreensão de que estamos em construção com os outros a todo o momento, nos leva à constatação de que somos incompletos, pois falar de relação é falar de incompletudes (Guareschi, 1998, 2009). Freire (2014) diz que o ponto de partida para o processo educativo, para o fazer certo, é ter a consciência de que somos seres incompletos. A partir dessa consciência, o ser humano se coloca em um movimento de busca, que não se faz no isolamento, e sim com o mundo e com os outros, em um movimento de busca social pautado na alteridade e na humildade.

Para Freire (2014, p. 49), a humildade é a "condição sine qua do pensar certo, que nos faz proclamar o nosso próprio equívoco, que nos faz reconhecer e anunciar a superação que sofremos". O anúncio de nossa superação é exatamente a consciência do inacabamento que falávamos a pouco. A humildade também exprime a certeza de que ninguém é superior a ninguém, pois com "arrogância e na falsa superioridade de uma pessoa sobre a outra, de uma raça sobre a outra, de um gênero sobre o outro, de uma classe ou de uma cultura sobre a outra" (Freire, 2014, p. 115) estaremos nos aproximando dos outros não condizentes com a concepção ético-crítica-política que falávamos anteriormente, pois é exatamente o que a própria EPS se propõe a desconstruir no seu pensar e agir.

Não estando demasiados certos de nossas certezas, anunciando nossa incompletude com palavras, gestos e posturas, e respeitando o direito do outro de dizer a sua palavra (Ceccim, 2007), precisamos antes de falar, escutar. Saber escutar é uma condição fundamental para o estabelecimento do diálogo, pois quando escuto humildemente e depois falo, eu falo "com" as pessoas, e não "para" as pessoas, pois parto da realidade e compreensão de mundo que o outro tem (Freire, 2014).

É nesse falar "com" as pessoas que estabelecemos o diálogo sincero e verdadeiro. "O diálogo exige respeito total ao mundo do outro, exige verdadeira democracia... O verdadeiro diálogo leva ao crescimento mútuo" (Guareschi, 2004, p. 108). Freire (1987, p. 45) nos aponta que "O diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro".

Nas reflexões produzidas pelo diálogo com a outra pessoa, vamos tecendo a nossa existência, interpondo concepções de mundo, e construindo a transformação de nós mesmos e das relações sociais existentes.

Por meio da EPS, em coerência com os conceitos de Alteridade e Humildade, é que se concretiza de fato a essência etimológica da palavra "educação". "Educar vem do latim educere: e, quer dizer 'de dentro para fora', e ducere significa 'conduzir, trazer'. Educar é, portanto, trazer algo que já está dentro das pessoas, para fora, fazer emergir o que lá se encontra" (Guareschi, 2009, p. 24). Dentro não quer dizer sob a pele, mas, nas condições concretas de sua vida. Dentro de seu mundo material e simbólico, constituído de alteridades que hegemonicamente oprimem, mas coexistem com relações de saber/fazer que potencialmente libertam. Esse desvelamento corresponde a um movimento de reflexão e apropriação sobre ser e estar no mundo; sobre a construção sócio-histórica-cultural do ser humano, que se faz nas relações e experiências na vida cotidiana (Guareschi, 2009; Gruda, 2016).

Minha própria trajetória constituiu-se como um processo de desvelamento das possibilidades como trabalhador da saúde, na medida em que os encontros com práticas e saberes do processo de educação no qual estava envolvido provocaram novas sensibilidades e reflexões. Vindo de um campo biológico e duro do ponto de vista técnico instrumental, a Odontologia, fui me envolvendo com um currículo transversal da universidade marcado pelo movimento estudantil, extensão e debates com sujeitos da saúde coletiva que geraram alteridades ao que estava posto.

Nessa intensidade de alteridades, o salto para a Residência Multiprofissional em Saúde da Família; considerada por Da Ros, Pierantoni, Haddad, Ribeiro, Severo e Souza (2006) uma conquista do Movimento da Reforma Sanitária com objetivo de formar trabalhadores em saúde com um estilo de pensamento entendendo saúde como direito à cidadania, e todos os desdobramentos que acompanham essa constatação; possibilitou-me o encontro com trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS) e usuários dos serviços da rede local, em especial, e especificamente neste texto, o Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas (Caps-AD), espaço que teve origem no movimento de Reforma Psiquiátrica, consolidada como política do Estado brasileiro por meio da Política Nacional de Saúde Mental, e que busca construir um paradigma de atenção em saúde mental aberto de base comunitária (Cardoso, Trino, Pedra & Medeiros, 2014). Nesse salto, o aprendizado latente é que a humildade no diálogo com o outro possibilita um caminho facilitado para relações de cuidar e educar libertadoras.

 

Metodologia

Estruturando no caminhar

A melhor forma de se caracterizar uma pesquisa pautada nas características e valores da EPS é a perspectiva qualitativa. Nessa abordagem, o pesquisador e o sujeito participante da pesquisa são produtores de pensamento e das estruturas teóricas que vão além da confirmação de um plano empírico (González Rey, 2004).

Na perspectiva qualitativa, existe uma maneira de operacionalizá-la em pesquisa chamada pesquisa-intervenção, que é oriunda da pesquisa participante, em que "a relação entre pesquisador e sujeito participante é dinâmica, e determinará os próprios caminhos da pesquisa" (Aguiar & Rocha, 1997, p. 97). Durante a inserção, as intervenções foram ocorrendo à medida que ia vivenciando os espaços que o próprio campo me direcionava, sendo essa uma característica tanto da metodologia qualitativa quanto da EPS como pesquisa: a de se construir os procedimentos de pesquisa no processo, buscando a "intensificação da troca de saberes entre os atores envolvidos numa perspectiva de compromisso com os subalternos" (Vasconcelos, 2000, p. 84). Fazendo pesquisa desse modo, tanto pesquisador quanto sujeitos ditos participantes são "educados no processo de trocas no encontro de mundos distintos" (Freire, 1999, p. 36).

A inserção no Caps-AD, caracterizado como campo de pesquisa, teve início em fevereiro de 2016 e seguiu até fim de novembro do mesmo ano, sempre em todas as quartas-feiras úteis pela manhã. A pesquisa seguiu os rigores éticos de pesquisa com seres humanos, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) com parecer CAAE 57110616.4.0000.0120.

A "interferência da subjetividade" (Freire, 1999, p. 37) do pesquisador no registro e interpretação dos ocorridos durante o dia também é uma característica do método de pesquisa qualitativo pautado na EPS, e confirma o paradigma de que não existe neutralidade na ciência e no pesquisar. Sempre há uma razão ideológica sustentando propostas e caminhos (Freire, 2014; Gruda, 2016). O observador utiliza de seus referenciais teóricos e experiências para atribuir um sentido a determinada situação, logo uma mesma situação pode ter tantas interpretações quanto o número de pessoas que podem observá-la. Para demarcar essa compreensão, ser justo com o leitor não obscurecendo o texto, e mostrar que as reflexões e achados do trabalho são algumas possibilidades no universo delas, esta pesquisa está escrita desde o princípio na primeira pessoa do singular [quando o pesquisador se coloca], e do plural [quando pesquisador se coloca com orientador/coautor e/ou com suas referências bibliográficas] (Veiga-Neto, 2014).

No fim de cada dia de vivências, cada movimento, gestos, diálogos, e situações de campo no cotidiano que produziam afeto [no sentido de afetar] em mim, eram registradas em Diário de Campo, com minhas reflexões e percepções. Durante o processo conjunto de revisão de literatura e vivências no campo, deparei-me com os conceitos de Alteridade e Humildade, e reconhecendo-os como fundamentais para o fazer EPS, estes foram escolhidos como perspectiva norteadora para a análise do Diário de Campo.

Nos nove meses de experiências registradas no Diário de Campo, escolhi três experiências a serem relatadas e refletidas com mais profundidade, sendo elas organizadas do seguinte modo: Experiência 1 - "Quem sou eu e o que vim fazer aqui?"; Experiência 2 - "Refletindo a prática por meio da música"; e Experiência 3 - "A rua é um lugar de encontros".

 

Resultados e Discussão

Experiência 1: quem sou eu e o que vim fazer aqui?

O início da caminhada no Caps-AD foi repleto de descobertas e estranhamentos para todos os envolvidos nessa experiência, pois, de um lado, jamais havia entrado em algum serviço que fosse oriundo da luta pela construção de um modelo de atenção psicossocial pela lógica antimanicomial (Cardoso et al., 2014). De outro, as pessoas que frequentam diariamente esse serviço não estavam familiarizados com um residente, e principalmente com um profissional da Odontologia. Era preciso começar pelo começo. Era preciso conhecer as pessoas que frequentavam diariamente aquele lugar.

Depois de ser apresentado em um momento chamado "grupo de recepção", em que se pactuavam as atividades da manhã, fui até o local onde as pessoas que utilizam o serviço estavam tomando café da manhã e me sentei com eles. Ofereceram-me pão e café e logo iniciaram os estranhamentos. Robson perguntou o que eu como dentista faria ali no Caps-AD com eles. Os outros presentes dirigiram o olhar para mim, como se tivessem o mesmo questionamento de Robson, e esperassem a resposta. Expliquei sobre o entendimento pedagógico da residência em relação à vivência no setor especializado, que era a de observar fluxos do serviço com a atenção básica, e para isso precisaria conhecer o serviço e as pessoas que o frequentavam. Disse também que estava aberto a sugestões, que poderíamos ir pensando juntos no que faríamos. Eles ficaram empolgados, pois haviam compreendido que eu iria então realizar os atendimentos clínicos em alguma Unidade de Saúde do município, já que no Caps-AD não tinha cadeira odontológica. Alguns também sugeriram palestras sobre higiene bucal. Com a chegada de outras pessoas, o assunto terminou dessa forma e achei melhor não insistir nas explicações, pois entenderíamos melhor o objetivo da minha presença ali com o passar dos dias. Continuaram a conversar sobre outras coisas e me pus logo a ouvir.

Muitas vezes não nos damos conta das diversas denominações que carregamos, e relações que estabelecemos com os outros, pelo simples fato de estarmos em determinado espaço. Se não tivesse sido apresentado como um "dentista residente" para as pessoas, acredito que a conversa no café da manhã não se direcionaria para as necessidades odontológicas. Isso, de um certo modo, dificulta a aproximação pautada na concepção da EPS, pois já foi estabelecida a relação de hierarquia: eu o "doutor" que sabe das coisas e resolverei tais demandas; eles os que não sabem, meros receptáculos de discursos inculcadores e informações adaptantes. Mas, ao mesmo tempo, é curioso perceber no relato a latência, presente na palavra, da problemática da desigualdade da distribuição dos problemas bucais na sociedade brasileira. De fato, com a efetivação do SUS na década de 1990, e as políticas públicas de saúde bucal instituídas no país a partir de 2003, houve avanços significativos em relação à redução de problemas bucais nas pessoas, porém não de uma maneira universal e equânime, devido ao não reconhecimento e atuação nas desigualdades de vida entre as populações (Costa et al., 2013).

Acredito que tal diálogo, por mais que tenha evidenciado a lógica linear do entendimento biomédico da saúde, só foi possível por conta da ação de sentar com eles para tomar café da manhã. A insistência de sentar com para tomar café ou simplesmente conversar, no local deles, teve potência na construção de vínculo, evidenciada em outros momentos. Certa vez, também em um café da manhã, Robson havia retornado ao serviço depois de algum tempo. No meio das conversas, ele se dirigiu a mim e disse em voz alta, em meio a algumas mastigadas em seu pão com margarina: "sabe... vou esperar você ter um consultório para fazer minhas próteses contigo... gostei de você... te achei um bom ser humano". É de uma implicação com a vida do outro ser escolhido por alguém para conduzir determinado tratamento pelo critério de "ser um bom ser humano", enquanto o que predomina na formação universitária, e o que se ensina, é o critério da excelência técnica.

Existia no Caps-AD uma oficina de horta, que era conduzida pela profissional Rita, que tinha certa afinidade com a terra e o plantar, e que compartilhávamos algumas facetas da mesma visão de mundo. Decidi então começar a frequentar essas oficinas e iniciou-se um movimento muito interessante, pois quando pequeno não tive criação íntima com a terra, ou com a agricultura. Apesar da curiosidade de vivenciar esse trabalho, eu era um estranho naquele lugar. Passei então a aprender com aqueles homens que foram criados "na roça", mas que por conta das condições de vida impostas socialmente não mexiam com a terra há muitos anos - 10, 15, 30 anos sem fazer o que amavam e aprenderam a fazer. A horta foi se desenhando como um reencontro com a história de vida daquelas pessoas, um resgate da identidade em cada gota de suor. As conversas durante a lida com a terra eram sobre as memórias, histórias de vida, piadas, situações do cotidiano, saberes sobre o manejo de cada planta específica, decisão sobre como seria a conformação da terra, e o que seria plantado em determinado lugar.

A horta tem um potencial de fazer educação de um jeito diferente. Escolher, discutir com os outros, e decidir coletivamente o que será plantado é um exercício simples e gigante de (re)construção da autonomia, e de uma outra forma de se relacionar socialmente. Contudo, para a ocorrência desse processo libertador, em detrimento da alienação, é necessária uma concepção de mundo condizente com a esperança pela transformação, e implicação de quem a propõe como oficina e dos que participam dos momentos, o que podia-se notar na condução de Rita e na dedicação das pessoas participantes (Freire, 2014).

Em determinado dia da oficina de horta, foi preciso trazer mais terra para o canteiro para deixá-lo com uma altura condizente com o restante do plantio. Peguei a pá e o balde e me dirigi ao monte de terra que estava do outro lado do terreno e iniciei o processo de encher o balde, com dificuldade. Quando percebi, Marcão estava ao meu lado rindo e chamando a atenção dos demais.

Marcão: Você já trabalhou na construção civil ou na roça? [com ironia]

Pesquisador: Não... Por quê?

Marcão: [em meio a risadas] Sua habilidade com a pá é de dar inveja! Olha só, [pega a pá de minha mão] coloca a mão virada para cima, e usa o peso do teu corpo. Assim, ó! [faz o movimento pegando terra do monte].

Pesquisador: Ah! [tento repetir o movimento] Assim?

Marcão: É... quase. Agora é praticar! [e mais risadas]

Esse fato, por si só, talvez dê conta de expressar os conceitos que me conduziram durante a caminhada. Com o estabelecimento de uma relação de alteridade para com os outros homens da oficina (Guareschi, 1998), foi possível que todos pudessem rir sem pudores do meu jeito atrapalhado e Marcão estabelecer comigo um diálogo sincero e com humildade para que eu pudesse me apropriar daquele trabalho que a mim era estranho até então. Meu papel foi de escutar humildemente o saber que aquele homem incompleto estava a ensinar, escancarando a minha incompletude (Freire, 2014). Certamente, o movimento de busca social que se inicia pela consciência da incompletude humana não tem como objetivo fazer com que as pessoas aprendam a usar pás. A questão em destaque dessa experiência é a construção de outras formas de relações sociais entre as pessoas, superando as existentes da sociedade pautada pelo pensamento individualista (Guareschi, 2004). Se a aproximação a outros ancoradouros fosse experienciada de outra forma, certamente alcançaríamos a transformação das relações sociais e construiríamos uma outra sociedade, "menos feia, menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos" (Freire, 2014, p. 43).

Experiência 2: refletindo a prática por meio da música

Um outro espaço que passei a frequentar em que via possibilidade de troca com as pessoas foi um grupo terapêutico chamado "grupo de sentimentos", que era conduzido pela profissional Ronize. E que sorte poder dizer que Ronize também compartilhava de facetas da mesma visão de mundo, perceptível em diversos momentos dos grupos em que os sentimentos que pulsavam nas pessoas naqueles dias eram referentes à exclusão e desigualdade social, a cultura hegemônica, ou a pobreza, e Ronize buscava trabalhá-los no coletivo.

Essa forma de condução, com a apropriação das leituras que realizava, foi deixando claro que não existia um papel fixo no grupo. Alguns, inclusive eu, passaram a transitar em relação aos papéis: ora como observadores mudos, ora como participantes, ora como terapeutas. Então, era comum observar movimentos de qualquer pessoa tentando mediar as angústias e sentimentos do outro, ou do grupo, em uma relação de alteridade. Muitas vezes, quando em determinado dia o papel de terapeuta e observador mudo ficavam fixos, geralmente encarnados em Ronize e eu, respectivamente, éramos questionados sobre as nossas percepções e sentimentos naquele dia. Achava isso de uma beleza incrível, pois só era possível graças às relações de diálogo sincero e humilde que eram estabelecidas (Freire, 2014). Com essa flexibilização dos papéis, passei a compartilhar minha história, momentos de vida, alegrias, tristezas, e dificuldades de realizar determinadas escolhas. E a alteridade tomava forma quando ia me sentindo mais completo, e mais organizado no sentir, pela acolhida e palavras daquelas pessoas que falavam "comigo", e não "a" mim (Ceccim, 2007; Freire, 2014), e que aos olhos de algumas instituições não estavam ali para isso, mas para receberem orientações terapêuticas para se "organizarem mentalmente" e absterem-se do uso, ou numa perspectiva bem mais palatável, reduzirem os danos relacionados a tal substância (Queiroz, Jardim & Alves, 2016).

Existiu um determinado grupo em que a temática das escolhas apareceu com frequência na reflexão do coletivo, porém com certa perspectiva culpabilizadora e fundada pela racionalidade da moral evidenciada no pensamento de que existem escolhas certas e erradas. Na minha percepção, pensar dessa forma é desconsiderar por completo o contexto social que a pessoa vive para realizar determinada escolha. Conversei com Ronize ao fim do grupo e expliquei meus pensamentos cantando o seguinte trecho da música "Paciência", do artista pernambucano Lenine: "Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma, a vida não para". Depois de conversarmos, combinamos trabalhar a temática das escolhas no grupo refletindo essa música. Que oportunidade!

No dia da intervenção, ficou combinado que iniciaríamos o grupo no quintal para propormos uma intervenção de caminhar lentamente em direção à sala, conforme orientação de meu orientador, para que todos pudessem experienciar no corpo a desaceleração a que não estamos acostumados devido, exatamente, ao contexto social em que vivemos. Reunidos todos no quintal, eu e Ronize propusemos a caminhada lenta e iniciamos a marcha em direção ao segundo andar. Algumas pessoas nos acompanharam na lentidão, outras foram em marcha habitual na nossa frente, pegaram um copo de café, riram e nos chamaram de loucos.

Depois de todos se sentarem, foi explicado que iríamos ouvir a música e depois pensar na sua relação com a caminhada lenta e com nossas vidas. Ao fim da música, fiz uma pergunta ao grupo: "que vida é essa que não para?", e Imaê compartilhou que "não precisamos largar a família e o trabalho para refletir sobre a vida", evidenciando que a reflexão sobre a vida social se faz no cotidiano com os outros. Continuou falando sobre o imediatismo, dizendo que ele acelera o tempo, e Ronize fez uma conexão dizendo que é "muito fácil nos acelerarmos nesse mundo". Rômulo concordou prontamente e deu o exemplo de como cumprimentamos as outras pessoas na rua:

Oi, tudo bem?, e cada um continua na direção que tava sem nem responder de verdade ou ouvir a resposta da outra pessoa. Sabe, pensando aqui... eu moro na rua e vejo todo dia na porta de uma escola os pais chegando de carro pra pegar seus filhos, apontando para o relógio e gritando que nem doido pra criança se apressar pra não se atrasar pro curso de inglês, judô, ou outros compromissos. A pressa faz a gente se esquecer da gente mesma.

Ronize então buscou refletir com o grupo qual o significado da palavra "alma", expressada na frase que havia cantado para ela no dia que pensamos a intervenção. O grupo chegou nas palavras serenidade, sossego, sentimentos e "a gente mesmo".

Jaqueline, que estava quieta até então, disse que "as pessoas fazem as coisas no automático", e mais uma vez Rômulo concordou, exemplificando com as brincadeiras das crianças.

"As crianças antigamente brincavam e não era automático, e hoje é! Esses aparelhos eletrônicos, que eu não sei o nome, não sei dessas coisas, deixam elas no automático e elas não tem nenhum sentimento brincando. Quantos sentimentos a gente tinha brincando de adoleta? A gente sentia raiva, a gente sentia amor... uns 50 sentimentos em uma brincadeira! E hoje naqueles eletrônicos nada. É automático!" - e depois seguiu dizendo - "essa aceleração do mundo tá destruindo ele: as árvores sendo cortadas, cada vez mais carros na rua precisando de borracha pros pneus, poluição, a tecnologia".

Entre pensamentos, risadas, e exemplos vivos das discussões, o grupo foi encerrado já passando do horário estabelecido. As pessoas que ficaram até o fim agradeceram o jeito diferente [com música] do grupo e esboçaram ter gostado das reflexões da manhã. O momento daquele grupo repercutiu por algumas semanas nos diálogos, retomando essa aceleração, imediatismo e modo automático presentes na sociedade capitalista. As pessoas se apropriaram das reflexões daquele dia passando a explicar certas posturas individuais e do coletivo como reflexo da asfixia que o modelo de organização social capitalista nos sujeita. O automático não tem alma, não tem sentimento. O mundo capitalista é acelerado e essa aceleração nos leva a termos ações, reações, posturas automáticas. Sem alma, sem sentimento, esquecidos de nós mesmos. Porque por mais que "o corpo peça um pouco mais de alma", a vida, mediatizada por essa sociedade, não para. O processo de refletir os contextos, de refletir a prática, foi disparado pela música em direção a um movimento de "promoção da curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica" (Freire, 2014, p. 86), conforme observamos nas vivências que Rômulo trazia para o grupo. Compartilhar situações de vida e refletir no coletivo é uma possibilidade para o refinamento da curiosidade e construção de uma concepção de mundo verdadeiramente ética.

Experiência 3: a rua é um lugar de encontros

A alta rotatividade de pessoas em busca de tratamento no serviço era comum. Com algumas pessoas, não tive grandes conversas, e estas passaram pelo serviço acreditando que eu era outro buscando tratamento. Para com os mais curiosos de saber quem eram as pessoas ali, acabava me apresentando e buscando conhecer a história de vida delas. Certa vez, sentado na sala do grupo de recepção, percebi que um homem, chamado Bernardo, estava portando uma bolsa com a estampa de uma empresa que produz materiais odontológicos. Achei a situação engraçada e fui em sua direção, nos apresentamos e perguntei ingenuamente como ele havia conseguido aquela bolsa. Bernardo respondeu que tinha conseguido a bolsa "por aí", e então expliquei da marca da empresa dizendo que sabia, pois era dentista. Ele ficou surpreso, começou a mostrar um dente seu que estava quebrado e perguntou se eu poderia concertar ali no Caps-AD. Depois de explicar o que estava a fazer no serviço, começamos a conversar sobre outras coisas até irmos para o grupo de sentimentos. O grupo foi um daqueles em que os sentimentos do dia iam além dos processos de intimidade de cada um, sendo possibilitada uma reflexão política dos contextos sociais, e Bernardo compartilhou suas percepções com uma clareza nítida de quem reflete o que vive. No fim da manhã, conversamos mais sobre o dente quebrado e então pedi para ele ir naquela sexta-feira à Unidade Básica de Saúde (UBS) em que eu estava no restante da semana. Essa situação foi uma exceção, pois esse não era o fluxo do atendimento no município e nem o acordado com a residência. Lembro de uma frase de um professor que admiro muito, e que caracteriza bem essa situação: "às vezes temos que romper com a burocracia em prol da humanização".

No dia combinado, achei que Bernardo não apareceria. Ele estava na cidade há pouco tempo, dormindo na casa de apoio do município, local que fica praticamente do outro lado da cidade em relação à UBS na qual eu trabalhava. Porém, chegou dizendo que foi fácil encontrar o lugar e que tinha pedido uma bicicleta emprestada de um companheiro da casa de apoio, e ainda voltaria ao Caps-AD no fim daquela manhã para tomar as medicações e almoçar. Depois de conversa e preenchimento da ficha de anamnese, iniciamos o atendimento clínico. Apesar das diversas necessidades de extrações e tratamentos de canal e gengiva, fizemos a restauração de dois dentes anteriores que estavam quebrados, pois a prioridade dele para com esses dentes era maior do que os protocolos clínicos de adequação bucal existentes.

Na outra semana, nos encontramos no Caps-AD e conversamos mais. Bernardo estava feliz com as restaurações e combinamos que ele voltaria todas as sextas-feiras na UBS para que pudéssemos continuar seu cuidado. Na sexta feira, ele não apareceu e nem nas semanas seguintes no Caps-AD. Não mais o vi e fiquei preocupado.

Certo dia, estava na prefeitura em um evento da secretaria de saúde do município. A noite fria acompanhada de uma chuva com relâmpagos já se aprontava para tomar conta de Itajaí. Saindo com minha companheira de lá, viramos uma esquina e quase nos esbarramos com Bernardo. Nos abraçamos, apresentei minha companheira e, com os olhos cinzas e um sorriso no rosto, ele apontou para a restauração.

Bernardo: Olha! Tá aqui ainda!

Pesquisador: Cara, que coisa boa! E parece que ela ficou certinha! E vem cá... como você está? Não apareceu mais. Tá sumido!

Bernardo: Estou bem! Daquele jeito, né... na rua.

Pesquisador: E... você tem algum lugar para ficar hoje?

Bernardo: Fica tranquilo, eu dou o meu jeito.

E depois de outro abraço seguimos nossos caminhos, nós em direção ao carro e ele indo dar o seu jeito.

Naquela noite, foi difícil pegar no sono. Não tinha me encontrado ainda com ninguém do serviço fora dele, apesar de saber que grande parte das pessoas tinham a rua como seu endereço provisório ou definitivo. É na rua que a vida acontece, e isso evidencia certa limitação da atenção em saúde que concentra a maior parte de suas intervenções dentro dos muros da instituição. Mas o maior ensinamento de Bernardo naquele dia foi o apontar para a restauração que fiz como ação primária ao me ver. Aquela restauração de resina transcende seu papel técnico, estético e funcional, fazendo com que Bernardo carregue não somente meu trabalho, mas me carregue em seu incisivo central. A partir de então, em minha prática, o trabalho clínico da Odontologia passou a assumir uma dimensão de "alteridade materializada", superando a lógica de bens e mercadorias que aprendi.

 

Educação Popular em Saúde nas experiências

Desde a década de 1970, os ensinamentos de Paulo Freire inspiram um outro fazer em educação na área da saúde, e utilizá-los para discutir essa temática tem uma importância na demarcação e construção de uma epistemologia crítica que desconstrói paradigmas arraigados no imaginário social e na produção de saúde, apesar das inúmeras experiências registradas na literatura atual (Ribeiro & Vasconcelos, 2014; Ministério da Saúde, 2014; Andrade & Velôso, 2015; Queiroz et al., 2016).

Antes de finalizar minha inserção no campo de pesquisa, a equipe do Caps-AD pediu para que eu fizesse uma devolutiva com eles sobre a pesquisa, como uma forma de encerramento dos trabalhos. Como naquele momento não havia realizado uma análise e reflexão consistente do Diário de Campo, decidi relembrar com eles as trajetórias mais marcantes de todo o período em que ficamos juntos. No fim daquela conversa, Ronize compartilhou que minha presença no serviço "fez diferença nos processos de vida de muitas pessoas". Essa fala evidencia que caminhar pautado na concepção ético-crítico-política da EPS é uma possibilidade de estar e ser profissional de saúde comprometido com as pessoas, e que essa postura tem convergência com a (clínica) da atenção psicossocial (Amarante, 2003) - na qual, entre diversas considerações e reflexões, a doença é entendida como experiência da vida de sujeitos, e esta [a doença] é colocada entre parênteses para nos ocuparmos com a pessoa em si -, e com a consideração de Freire (2014, p. 141) de que a simples condição de ser gente, tendo uma abertura humana, já nos imprime "uma certa dimensão terápica".

As experiências escolhidas para serem narradas na pesquisa refletem a potência da EPS. Se houvesse feito a escolha de caminhar à luz da educação sanitária tradicional, teria muito provavelmente falado àquelas pessoas sobre saúde bucal, técnicas de escovação dentária, orientações de dieta, e alterações bucais associadas ao uso de drogas, tudo isso dentro de uma sala com horário marcado, utilizando de uma apresentação de slides com fotos horrendas de fissuras palatinas, problemas periodontais gravíssimos e resquícios de dentes destruídos por cárie. Esse jeito de pensar e fazer educação não gera implicação entre os seres humanos; não há relação, há somente interação naquele momento; não há construção de conhecimento muito menos reflexão, há depósito de informações nos outros; não há ruptura de relações de poder, e sim sua manutenção; não há transformação da realidade, há adaptação a ela (Freire, 1987, 2014; Da Ros, 2000).

Ir em direção à construção de diálogos é mais trabalhoso, pois exige antes de tudo a humildade como forma de abertura ao outro, sendo necessário deixar os outros dizerem a sua palavra, para partirmos do saber prévio e necessidades dessas pessoas, para assim trabalharmos juntos e, nesse processo, nos educarmos em comunhão (Freire, 1987, 2014; Vasconcelos, 2001, 2004; Ceccim 2007).

 

Considerações finais

Neste texto, nos propomos a trazer experiências de intervenções em EPS no cenário da Raps, e as reflexões sobre o processo de trabalho em campo, que tinha como objetivo compreender e intervir com usuários da Raps no município de Itajaí por meio da EPS. As intervenções ocorreram durante todo o processo de vivência do campo, e tanto elas quanto as reflexões foram pautadas pelos conceitos de Alteridade e Humildade, fundamentais para o caminhar na EPS.

O processo foi relatado em três experiências, indicando uma potência da EPS indicadas pelo movimento de sentar com as pessoas e se colocar de uma maneira não hierárquica na primeira experiência; no reconhecimento humilde da incompletude humana, abrindo espaço para a troca de conhecimentos e reflexões profundas sobre temas como o sofrimento social e o modo de produção social com qualquer pessoa na segunda experiência; na dimensão de alteridade com pessoas e espaços na terceira experiência; e outras indicadas no corpo do texto. Atuar tendo a EPS como alicerce possibilitou a construção de relações sociais pautadas por valores orientados para uma ética do diálogo, alteridade e solidariedade, e construiu em coletivo uma concepção de mundo capaz de tensionar com as forças de alienação e produção de sofrimento.

Existem diversas maneiras de se fazer EPS, e consideramos que a maneira realizada no trabalho é um caminho potente e possível para trabalhadores e pesquisadores da Raps de trilharem em um sentido de afirmação e resistência das conquistas da Reforma Psiquiátrica, e de reinvenção das práticas de produção da saúde nos serviços e da própria rede, no atual contexto histórico-político.

Realizar uma pesquisa-intervenção, tendo como alicerces a essência conceitual da EPS, é compreender que a todo momento estamos realizando intervenções. Há uma transcendência da dimensão de tempo e espaço quando se trabalha com vidas: o campo de pesquisa é difuso, além daquele estabelecido protocolarmente em projeto e, de fato, a pesquisa nunca acaba, pois estamos sujeitos a encontros com os outros a todo o momento. Dessa forma, a EPS tem uma potência de transformação de toda uma mudança de compreensão pessoal e dos contextos no qual estamos inseridos, de ser e estar no mundo conosco e com os outros, e de postura ética. É no fruto dessa construção e estabelecimento de trocas e relações sociais pautadas pelos valores da EPS que surgem possibilidades de transformações profundas em todo o corpo social.

Fazer/pesquisar imerso na EPS necessita fundamentalmente de construção de vínculo e de implicação entre as pessoas, o que só acontece com certo tempo de trocas. Portanto, o tempo disponível para inserção em campo de pesquisa pode ser considerado uma limitação, que pode ser superada pela intensidade dos encontros com as pessoas. Uma limitação importante de ser sinalizada é em relação ao momento de assinatura do TCLE ser desafiador como manutenção da postura de pesquisador pautado na EPS, pois traz à tona relações hierárquicas de divisão social do trabalho, gênero, raça e poder existentes. Como limitação maior, podemos pontuar o neoliberalismo que atualmente corrói a sociedade global, produzindo existências pautadas em valores sociais contrários aos que a EPS busca desconstruir, e desigualdades sociais que limitam seres humanos do "Ser mais" (Freire, 2014).

Persiste a necessidade do comprometimento de realizar pesquisas com as pessoas, sendo a EPS um caminho para reestruturação de objetivos e metodologias e, principalmente, de resgatar a capacidade das pessoas e coletivos de sonharem com outras possibilidades de viver socialmente.

 

Referências

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Recebido em 11/4/2018
Aprovado em 6/12/2018

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