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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2019

 

Relações entre a Estima de Lugar e a construção dos Projetos de Vida de jovens adolescentes de escolas públicas de Fortaleza/CE - um estudo avaliativo

 

Relationship between Place Steem and construction of Life Projects of young adolescents from public schools in Fortaleza/CE - an evaluative study

 

Relaciones entre la Estima de Lugar y la construcción de los Proyectos de Vida de jóvenes adolescentes de escuelas públicas de Fortaleza/CE- un estudio evaluativo

 

 

Debora Linhares da SilvaI; Zulmira Áurea Cruz BomfimII

ILaboratório de Pesquisas em Psicologia Ambiental (Locus)
IIUniversidade Federal do Ceará. Professora Associada III do Programa de Pós-Graduação de Psicologia

 

 


RESUMO

Este trabalho, parte da dissertação de Debora Linhares da Silva, busca relações entre Projetos de Vida de jovens adolescentes e a Estima de Lugar destes em relação às escolas em que estudam, corroborados na análise de indicadores afetivos como autoestima, autoeficácia e perspectiva de futuro - pesquisa de caráter qualitativo, caracterizando-se como um estudo avaliativo. As atividades ocorreram em cinco escolas públicas de Fortaleza, com estudantes de 15 a 17 anos do 1º ao 3º ano do ensino médio. As categorias com maior incidência foram: sucesso profissional, sentimentos potencializadores, bens materiais/financeiros, profissão/formação específica e família. Esses aspectos apontam que as/os jovens mantêm sua autoestima quando pensam seus projetos de vida, que suas perspectivas de futuro estão associadas à realização profissional e que conseguem visualizar a necessidade de investir em si mesmos, evidenciando a autoeficácia. A escola mostra-se o lugar onde poderão construir caminhos diferenciados dos hoje vividos.

Palavras-chave: Projetos de Vida. Estima de Lugar. Jovens adolescentes.


ABSTRACT

This work, part of Debora Linhares da Silva dissertation, searches for relationships between Life Projects of young adolescents and their Place Steem in relation to the schools in which they study, corroborated in the analysis of affective indicators such as self - esteem, self - efficacy and future perspectives. It is a qualitative research, characterizing itself as an evaluative study. The activities took place in five public schools in Fortaleza, with students from 15 to 17 years of age from the 1st to the 3rd year of high school. The categories with the highest incidence were: professional success, empowering feelings, material/financial assets, profession/specific formation and family. These aspects point out that young people maintain their self-esteem when they think about their life projects, that their future perspective is associated with professional achievement and that they can see the need to invest in themselves, evidencing self-efficacy. The school shows itself the place where they can build differentiated paths of the lived today.

Keywords: Life Projects. Place Steem. Young teenagers.


RESUMEN

Este trabajo, parte de la disertación de Debora Linhares da Silva, busca relaciones entre Proyectos de Vida de jóvenes adolescentes y la Estima de Lugar de estos en relación a las escuelas en que estudian, corroborados en el análisis de indicadores afectivos como autoestima, autoeficacia y perspectiva de futuro. Investigación de carácter cualitativo, caracterizándose como un estudio de evaluación. Las actividades ocurrieron en cinco escuelas públicas de Fortaleza, con estudiantes de 15 a 17 años del 1º al 3º año de la enseñanza media. Las categorías con mayor incidencia fueron: éxito profesional, sentimientos potencializadores, bienes materiales/financieros, profesión/formación específica y familia. Estos aspectos apuntan que los jóvenes mantienen su autoestima cuando piensan sus proyectos de vida, que su perspectiva de futuro está asociada a la realización profesional y que logran visualizar la necesidad de invertir en sí mismos, evidenciando la autoeficacia. La escuela se muestra el lugar donde podrán construir caminos diferenciados de los hoy vividos.

Palabras clave: Proyectos de Vida. Estima de Lugar. Jóvenes adolescentes.


 

 

Introdução

A partir do ano de 2011, o Laboratório de Pesquisa em Psicologia Ambiental (LOCUS/UFC) iniciou pesquisas com jovens adolescentes de escolas públicas espalhadas nas seis regionais da cidade de Fortaleza/CE. A pesquisa intitulada Estima de Lugar e indicadores de proteção afetiva de jovens estudantes de escolas públicas de Fortaleza: aportes da Psicologia Ambiental para a compreensão da vulnerabilidade socioambiental é um recorte mais amplo de uma pesquisa anterior intitulada Adolescência e Juventude: estudo sobre situações de risco e redes de proteção em Fortaleza, realizada pelo Departamento de Psicologia da UFC em parceria com o Programa de Pós-Graduação do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Desde sua primeira versão (2011), o objetivo do projeto foi

relacionar a Estima de Lugar com os indicadores afetivos de proteção social de jovens de escolas públicas de Fortaleza, além de examinar possíveis relações entre essa variável e fatores estressores (risco), buscando analisar em que medida a Estima de Lugar (identificação positiva ou negativa) pode atuar como fator de proteção. (Silva, 2012, p. 1)

Essa relação com o lugar, estimar o lugar, pode ser uma potência de ação (Sawaia, 2011; Silva, 2013) para a transformação das realidades vivenciadas por esses jovens. Afinal, não há como se pensar em mudanças no que diz respeito às vulnerabilidades sem pensar o território, logo, estimar o lugar é também proteger quem nele vive (Bomfim, Martins & Linhares, 2015). Nesse sentido, a referida pesquisa, no período de 2011 a 2013, fez essa análise no que diz respeito à relação dos jovens com o bairro onde vivem e, mesmo que os participantes sejam de bairros distintos, pois as escolas congregam essa diversidade, os resultados vêm corroborando a ideia de que potencializar a Estima de Lugar dos jovens pode ser um aporte no enfrentamento às situações de vulnerabilidade.

Os resultados da primeira fase da pesquisa (2011), cuja amostra foi de jovens estudantes de ensino médio de escolas públicas do bairro Jacarecanga, demonstraram de que forma eles percebem o lugar onde vivem e como isso se relaciona com aspectos afetivos individuais: "Os estudantes expressaram sentimentos de vergonha, tristeza, indignação diante dos problemas do bairro, qualificando-o como descuidado, desorganizado, poluído, violento. Grande parte dos respondentes considera o bairro sujo, marcado pela violência e pelo abandono" (Silva, 2013. p. 3).

É interessante notar que os aspectos negativos evidenciados nos primeiros resultados da pesquisa podem ser trabalhados de forma a se tornarem potencialidades para uma implicação ético-política desses jovens, visto que eles não estão alheios ao que acontece onde vivem. E, levando-se em consideração que os resultados da pesquisa em sua 1ª fase, no ano de 2011, apontaram uma correlação positiva entre Estima de Lugar e os indicadores afetivos de autoestima, autoeficácia e perspectiva de futuro (Universidade Federal do Ceará, 2011), pudemos questionar: como essa relação pessoa-lugar envolve a autopercepção e, também, uma potência de ação geradora de novos campos de possibilidades diante de situações de vulnerabilidades?

Os resultados da 3ª fase da pesquisa (2013), na qual se realizaram Grupos Focais com jovens adolescentes de cinco escolas públicas estaduais de Fortaleza, trazem justamente as impressões deles quanto às vulnerabilidades às quais estão sujeitos em seus bairros e escolas. No relatório referente à pesquisa em 2013, as categorias com maior incidência nos grupos focais foram: bairro inseguro (46), educadores despotencializadores (39), precariedade da saúde (34) e precariedade da estrutura do bairro (30) (Silva, 2014).

O presente trabalho, que é parte integrante da dissertação de mestrado de Debora Linhares da Silva, surge a partir dos resultados coletados nas três fases da pesquisa (2011, 2012, 2013). Desses resultados traçamos nossos objetivos, quais sejam: avaliar as relações estabelecidas com o lugar e seus aspectos de proteção subjetiva presentes na pesquisa supracitada do Locus/UFC. A aproximação metodológica com a pesquisa realizada pelo Locus/UFC nos permitiu uma análise de caráter processual e longitudinal, já que utilizamos os resultados como dados secundários, o que nos possibilitou um caminhar desde o ano de 2011 até 2013. A esses dados se juntarão os da presente pesquisa, realizada no ano de 2014 em cinco escolas públicas de ensino médio, de diferentes regionais da cidade de Fortaleza, com jovens adolescentes na faixa etária de 15 a 17 anos. Por ser uma pesquisa vinculada ao Locus, foi cadastrada na Pró-Reitoria de Pesquisa da UFC e contava com bolsistas Pibic.

Trazemos, então, dois conceitos centrais no decorrer do trabalho: Estima de Lugar e Projetos de Vida. Para Bomfim (2010), autora que referendamos para o uso do conceito dessa categoria, criada por ela, a Estima de Lugar é

uma categoria socialmente construída sob uma base dialética onde se articulam a representação social do lugar (composta também da reputação e a imagem do lugar), o nível de apropriação do espaço e, portanto, de identificação que o sujeito tem com este, o estabelecimento de vínculos afetivos (enraizamento, pertença e apego ao lugar), dentre outros. A construção da Estima de Lugar apoia-se na avaliação da qualidade de habitação e uso do ambiente, isto é, segurança, limpeza, organização, sofisticação, estética, preservação ambiental, legibilidade, sinalização, acessibilidade, etc., na qualidade dos vínculos sociais de amizade e boa convivência, na imagem social do lugar perante a sociedade e, principalmente, no nível de apropriação do espaço pelo indivíduo que o estima. (Silva, 2013, p. 2)

Ao tratar do conceito de Projeto de Vida, Nascimento (2013, p. 87) elucida que este se constrói nas relações do sujeito com o mundo. Nesse caso, o Projeto de Vida abrangeria "o sentido de aspirações, desejos de realizações, [...] por um conjunto de aspectos que estruturam o campo psicossocial" e, portanto, é amplamente perpassado por questões culturais, econômicas, políticas e afetivas, e diz respeito, ainda, às percepções de identidade de cada sujeito. Segundo Furlani (2007, p. 18) os Projetos de Vida são "eixos orientadores que significam uma visão de futuro, a partir do aqui-agora, de perspectivas, planos, anseios a respeito de trabalho, profissão, vida familiar e desejos relevantes que conferem sentido de vida para uma pessoa".

Objetivamos, então, a partir de tais contextos, analisar os possíveis desdobramentos advindos dos resultados da pesquisa do Locus/UFC, quando investiga as relações entre os Projetos de Vida (Nascimento, 2013; Furlani, 2007) e a Estima de Lugar (Bomfim, 2010) de jovens adolescentes de escolas públicas de Fortaleza e, mais especificamente, compreender de que forma os projetos de vida, em diálogo com a estima de lugar, podem ser utilizados como ferramentas potencializadoras de ação e resistência por esses jovens adolescentes (Sawaia, 2011). Assim, poderíamos averiguar como a escola colabora para estimar o bairro e a comunidade e de que forma o pertencimento e apropriação (Bomfim, 2010) em relação à escola podem ser potencializadores à autonomia e/ou a processos de transformação no cotidiano desses jovens estudantes.

 

Procedimentos metodológicos

Tipo de pesquisa

Utilizamos como aporte metodológico a Pesquisa Qualitativa, por sua aproximação fundamental e de intimidade entre sujeito e objeto. Uma vez que ambos são da mesma natureza, ela se volve com empatia aos motivos, às intenções, aos projetos dos atores, a partir dos quais as ações, as estruturas e as relações tornam-se significativas. A proposta de pesquisa se caracteriza como uma pesquisa-ação-participativa, que segundo Reis (2005, p. 271) "articula a produção de conhecimentos, a ação educativa e a participação dos envolvidos, isto é, produz conhecimento sobre a realidade a ser estudada e, ao mesmo tempo, realiza um processo educativo, participativo, para o enfrentamento dessa mesma realidade".

Essa metodologia favorece uma produção científica que coloca "a ciência a serviço da emancipação social, trazendo alguns desafios: o de pesquisar e o de participar, o de investigar e educar, realizando também a articulação entre teoria e prática (Demo, 1992, citado por Reis, 2005, p. 272). Concordamos que esse método de pesquisa nos seria em muito útil para construir propostas de ação e proporcionar que os grupos envolvidos saíssem do silêncio e pudessem participar de um processo dialógico que os levasse a refletir e propagar aos outros o conhecimento adquirido (Viezzer, 2005, p. 283).

 

Locais da pesquisa

Nossa pesquisa manteve como locais de coleta de dados as cinco escolas públicas estaduais de ensino médio envolvidas no projeto do Locus/UFC, a saber: Heráclito de Castro e Silva (SER III - bairro Jóquei Clube) = IDH 0,411; Prof. Hermenegildo Firmeza (SER IV - bairro Vila Peri) = IDH 0,313; Lions Jangada (SER I - bairro Cristo Redentor) = IDH 0,232; Gov. Luiz Gonzaga Fonseca Mota (SER VI - bairro Carlito Pamplona) = IDH 0,279 e Santa Luzia (SER II - bairro Meireles) = IDH 0,437. A partir de agora, faremos a opção pelo uso de siglas para identificação dessas instituições de ensino, a saber: Heráclito de Castro e Silva - HC; Prof. Hermenegildo Firmeza - HF; Lions Jangada - LJ; Gov. Luiz Gonzaga Fonseca Mota - GM e Santa Luzia - SL.

 

Público da pesquisa

Os participantes de nossa pesquisa foram jovens adolescentes estudantes das escolas públicas especificadas, todas localizadas na cidade de Fortaleza/CE, bem como integrantes das equipes gestoras (diretoras/es), coordenadoras/es pedagógicas/os e professoras/es. O critério de inserção na pesquisa, concernente aos jovens adolescentes, era de que estivessem na faixa etária de 15 anos a 18 anos incompletos, de ambos os sexos, e que fossem regularmente matriculados e frequentando o ensino médio. Os demais participaram da pesquisa conforme a disponibilidade em cada escola, não havendo faixa etária nem gênero delimitados.

A distribuição de participantes se deu da seguinte forma: Etapa 1 - Rodas dos Fanzines: HF= 20; HC = 29; LJ = 20; GM = 15; SL = 16. Na HF participaram 12 mulheres e 8 homens; HC 14 mulheres e 15 homens; LJ 13 mulheres e 7 homens; SL 11 mulheres e 5 homens. Na escola GM os dados de gênero não foram identificados. Totalizando, exceto os participantes do GM, 50 mulheres e 35 homens. Etapa 2 - Grupos Focais: HF = 3; HC = 3; LJ = 2; GM = 3; SL = 5. Etapa 3 - Oficina Intervenção: GM = 30; LJ = 20.

Faremos neste artigo a explanação apenas da Etapa 1 e, por isso, não detalharemos o percurso metodológico das demais etapas.

 

Coleta de dados

Propusemos como ferramenta de pesquisa as Rodas de Conversa (Freire, 2011), por serem uma metodologia bastante utilizada nos processos de leitura e intervenção comunitária, consistindo em um método de participação coletiva de debates acerca de uma temática, com a criação de espaços de diálogo, nos quais os sujeitos podem se expressar e, sobretudo, escutar os outros e a si mesmos. Nossa inserção nessas escolas é anterior a essas atividades e todo processo de autorizações dos Comitês de Ética da Secretaria de Educação do Estado do Ceará e da Universidade Federal do Ceará foi realizado desde a primeira fase da pesquisa do Locus/UFC.

Inicialmente, quando chegávamos ao espaço da atividade, apresentávamos o grupo do Locus/UFC e a pesquisa, mostrando alguns resultados das etapas anteriores. Em seguida, iniciávamos uma atividade de sensibilização e integração com os jovens adolescentes com uma dinâmica de grupo, cujo objetivo era deixá-los mais à vontade e possibilitar o mínimo de interação entre as/os presentes. Em algumas escolas, o processo se deu com mais facilidade, pois dependia de como eram escolhidos os estudantes que participariam, o que era feito pela direção e coordenação pedagógica da escola. Por exemplo, se eram do mesmo ano, se eram da mesma sala de aula, se já tinham participado de atividades juntos (como era o caso de representantes discentes), a integração, o diálogo, fluía com mais facilidade, uma vez que se sentiam em grupo e pareciam não ter medo de se expor. Mas, quando não tinham nenhum contato anterior, quando eram de anos diferentes, necessitávamos de um trabalho inicial mais dedicado à aproximação de quem ali estava, para que não estivessem em nossa atividade apenas para não ter que assistir aula. Assim, em cada escola, dependendo de cada contexto que se apresentava, o momento inicial era pensado de uma forma pela equipe.

Após a dinâmica inicial, reuníamos os materiais e convidávamos as/os presentes para confeccionarem fanzines nos quais ilustrariam seus Projetos de Vida. Para facilitar a construção dos fanzines, foram utilizadas quatro questões geradoras previamente estabelecidas: O que eu quero ser? Como eu quero viver? Com quem eu quero viver? Onde eu quero viver? Estipulávamos 40min para confecção dos fanzines e, posterior a isso, quem quisesse poderia apresentar seu fanzine a todos. Nessa apresentação, eles explicitavam suas dúvidas, anseios, o que pensavam para suas vidas e, muitas vezes, falavam de suas relações com a escola. Os fanzines, assim, eram os disparadores dos diálogos, aproximavam os jovens em suas questões e nos davam um amplo aparato de informações verbais e visuais.

Com as questões geradoras, intentava-se refletir sobre a instrumentação subjetiva (Ribeiro, 2010) para construção dos projetos de vida desses adolescentes, na medida em que por meio delas poder-se-ia evidenciar o campo identitário (o que eu quero ser?), as expectativas de vida (como eu quero viver?), as relações interpessoais (com quem eu quero viver?) e as relações pessoa-lugar (onde eu quero viver?). A junção dessas questões, o diálogo reflexivo gerado por elas, traz em si as perspectivas de futuro (Nascimento, 2013; Mandeli, Soares & Lisboa, 2011; Ribeiro, 2010) de cada um dos participantes.

Já os fanzines foram o recurso metodológico pelo qual vimos uma possibilidade de aproximação com o universo desses jovens adolescentes, pois nos possibilitou o desenvolvimento de diferentes linguagens que não apenas a fala ou a escrita, "os fanzines atuam como elos de laços sociais e veiculam afetos e estéticas particulares" (Muniz, 2010, p. 16). Santos Neto e Andraus (2010, p. 29) tratam de um tipo de fanzine específico, os biograficzine. "O Biograficzine é um fanzine que tem por objetivo as histórias de vida: contar experiências de vida e formação tendo como objetivos principais o autoconhecimento, a partilha de narrativas pessoais com outros, o trabalho com as imagens e o desenvolvimento da autoralidade".

No que diz respeito às perguntas geradoras utilizadas, na escola GM houve dificuldade de compreensão da pergunta de abertura "o que eu quero ser?". Alguns jovens chegaram a brincar respondendo de imediato "Eu quero é ter!". Mas o convite a refletir sobre o que queriam ser foi aceito e, para pensar nisso, dialogaram entre si sobre suas histórias de vida. Já que a proposta era a aproximação com os jovens adolescentes e fazê-los pensar seus projetos de vida, utilizar a própria história de vida desses sujeitos nos pareceu um caminho frutífero, já que assim estariam num processo de ação-reflexão de si. "a escrita de fanzines atua como uma prática de invenção de si, com a qual os indivíduos se constituem e se reconhecem como sujeitos ao experienciarem a função de autoria (Muniz, 2010, p. 19)".

Assim, por meio daquelas questões geradoras, pôde-se retomar "a trajetória formativa pessoal, [...] E partilhar, utilizando imagens e a linguagem das histórias em quadrinhos, a reflexão sobre a própria trajetória com outras pessoas envolvidas no mesmo tipo de processo formativo (Santos Neto & Andraus, 2010, p. 39).

Na escola HF, a dúvida surgiu nas questões "o que eu quero ser?" e "como eu quero viver?". Houve, nesse caso, dificuldade em diferenciar as duas, pois, para alguns dos participantes, falar do que querem ser é falar de como querem viver. Por exemplo, se eu quero ser feliz é porque eu quero viver feliz. Porém, ao trazer a reflexão para um processo objetivo-subjetivo, eles conseguiam fazer algumas diferenciações e aproximações, como conseguir mostrar que querem ser algo específico (ser atleta) e viver de uma maneira outra (em paz).

Apesar das variações em cada escola, foi um processo extremamente produtivo, com duração média de 2h30min e participação de mais de 100 estudantes, que culminou na construção de 100 fanzines, pelos quais pudemos elaborar categorias de análise que traziam em seus discursos aspectos objetivos, subjetivos e intersubjetivos desses jovens adolescentes.

 

Análise dos dados

Após sistematização, transcrição e manejo do material coletado, a análise dos dados coletados foi feita pela análise de conteúdo (Bardin, 1977). Referendados em Bardin, Nascimento e Menandro (2006, p. 79) explicitam que

Buscando identificar a pluralidade temática presente num conjunto de textos, ao mesmo tempo em que pondera a frequência desses temas dentro do mesmo conjunto, a Análise de Conteúdo pode proporcionar, numa comparação entre os elementos do corpus (palavras ou sentenças), a constituição de agrupamentos de elementos de significados mais próximos, possibilitando a formação de categorias mais gerais de conteúdo.

No caso dos Fanzines, foi feita a categorização de palavras e imagens existentes neles, seguido do agrupamento por afinidades a partir das perguntas geradoras: O que quero ser? Como quero viver? Com quem quero viver? Onde quero viver?. Por exemplo:

- Sentimentos potencializadores = Quando as falas/imagens trazem sentimentos como: ser feliz, felicidade, paz, viver bem, bem-estar. O mais incidente foi "feliz".

- Imagens aleatórias = Em qualquer uma das perguntas geradoras, são imagens que parecem fora do contexto da pergunta.

- Não sei = Em qualquer uma das perguntas, a resposta literal "não sei".

- Imagem corporal = Imagens de corpo ou frases que remetem à imagem corporal.

- Indefinido = uso apenas do ponto de interrogação.

- Outros = são imagens que não conseguimos inserir nas demais categorias.

 

Apresentação dos resultados e discussão

A partir daqui, apresentaremos os aspectos que integram o que tomamos nos Projetos de Vida como sendo a instrumentação subjetiva (construção da identidade e expectativas de vida) e a instrumentação objetiva (campos de possibilidades e restrições/dificuldades) (Ribeiro, 2010) e de que maneira tais instrumentações aparecem nos discursos dos jovens adolescentes. Além disso, a análise das categorias advindas das Rodas dos Fanzines nos possibilitou pensar sobre a relevância da construção dos Projetos de Vida desses jovens e os diálogos com os indicadores afetivos (autoestima, autoeficácia e perspectiva de futuro) relacionados à Estima de Lugar (Bomfim, 2010; Silva, 2012; 2013; 2014).

 

"O que eu quero ser?"

A partir da perspectiva dos Projetos de Vida (Nascimento, 2013), vimos como sendo de extrema relevância compreender aspectos relacionados à construção da identidade dos jovens adolescentes, inclusive para pensar os indicadores afetivos de autoestima, autoeficácia e perspectiva de futuro (Bomfim, 2010). Evidenciar o campo identitário é evidenciar como esses jovens se veem e de que modo isso os potencializa para a ação ou para a passividade.

Seguem as categorias referentes à questão "o que eu quero ser?", que nos possibilitou o diálogo com os aspectos identitários que perpassam a vida desses jovens adolescentes:

 

Quadro 1

 

Na sistematização dos fanzines, pudemos notar que as jovens mulheres são mais precisas em suas respostas. A grande maioria respondeu na categoria profissão/formação específica delimitando bem que carreira pretendem seguir e, inclusive, falando da necessidade dos estudos para atingir tal objetivo. Essa foi também a categoria com maior incidência, evidenciando que esses jovens sabem o que pretendem ser e têm uma perspectiva de futuro voltada para os aspectos profissionais. Esse é um dado que reforça o que já vem sendo estudado na literatura pertinente (Bomfim, Martins & Linhares, 2015; Nascimento, 2013; Mandeli, Soares & Lisboa, 2011; Ribeiro, 2010), segundo a qual a escola perpassa a preparação para o futuro, em especial o relacionado à formação/trabalho. Os jovens homens, por sua vez, responderam mais nos aspectos relacionados a bens materiais, fama e imagens associadas a poder. Há aqui uma clara distinção de gênero na maneira de se ver/se pensar em relação à perspectiva de futuro, sobre o que se quer ser e quanto às possibilidades disso se concretizar objetivamente.

 

Gráfico 1

 

"Como eu quero viver?"

A ideia era, a partir dessa pergunta, pensando na compreensão de uma instrumentação subjetiva de um Projeto de Vida, perceber quais as expectativas de vida desses jovens. Seguem as categorias:

 

Quadro 2

 

Apesar de alguns jovens terem apresentado certa dificuldade de compreensão e/ou diferenciação entre a primeira e a segunda pergunta geradora, os resultados dos fanzines demonstram coerência entre o que querem ser e como querem ser, uma vez que, além de terem como prerrogativa um planejamento profissional formação específica, almejam ser profissionais de sucesso. Entendemos que, aqui, estamos ainda tratando do campo das expectativas, contudo, manter essa coerência nos pareceu relevante.

Seguindo a expectativa de sucesso profissional, vem sentimentos potencializadores, principalmente expressos na frase "ser feliz". Ser feliz apareceu também muitas vezes acompanhado de família, maternidade e profissão. Em alguns fanzines, apareceram respostas mais pessoais, de características como "ser solidária", "ser determinada", "ser independente", "estudiosa", "inteligente", "compreensiva", dentre outras, sendo todas adjetivações trazidas por mulheres. Seria, então, parte do sucesso ser alguém com um atributo que consideram positivo, dado que relacionamos à autoestima.

Noutros, a perspectiva de sucesso está relacionada à formação profissional ou aos bens de consumo como carros e casas luxuosas. Houve ainda aqueles que ilustraram uma expectativa que daria acesso a esses bens, mas não por meio da formação profissional formal, abrindo espaço para pensarmos sobre como ter acesso ou não a determinados bens pode se dar de diferentes formas, inclusive aquelas que evidenciam processos de exclusão, como em fanzines com imagens de homens armados.

 

Gráfico 2

 

"Com quem eu quero viver?"

Essa questão suscitava não apenas as relações interpessoais, mas intentava perpassar aspectos relacionados ainda às identidades desses jovens adolescentes, nesse olhar que teriam de si em relação com o outro e do outro sobre eles. Os grupos, de modo geral, trazem esse caráter identitário e/ou de identificação, e quando tratamos de Projetos de Vida estamos lidando com as formas de pensar a construção também de relações ou a manutenção de relações já existentes em uma perspectiva de futuro.

Aqui, chamou-nos atenção que os laços familiares aparecerem como mais citados, na medida em que, com referência ao que dialogamos quanto à proteção social (apesar dos dados negativos de vulnerabilidades associados às famílias serem relevantes), as pesquisas indicam que quanto mais vinculados à família, mais protegidos esses jovens estão (Germano & Colaço, 2012; Amparo, 2008; Castro & Abramovay, 2005). A família é também, segundo a literatura referente, parte da construção dos projetos de vida nessa preparação para o futuro. Família e Escola seriam os dois eixos orientadores no que diz respeito à elaboração dos projetos e na tomada de decisão profissional. Logo em seguida à família aparecem os relacionamentos (esposa/marido/namorada-o), que também dialogam com o construto familiar

 

Quadro 3

 

Apareceram ainda filhos e amigos, ambas categorias que também expressam vínculos amorosos e que trazem amor e cuidado consigo. De modo geral, é como se pensassem um futuro em que possam se sentir parte de relações nas quais são cuidados e cuidam, expressando como uma de suas expectativas a amorosidade. Mas, devemos ressaltar que houve um número significativo de respostas "Não sei".

 

Gráfico 3

 

"Onde eu quero viver?"

Nessa pergunta havia a intenção de fazê-los refletir sobre o lugar onde vivem, ou locais do cotidiano, e analisar se esses locais estão inseridos em seus projetos de vida, de modo a analisar o pertencimento e as relações pessoa-lugar. A grande maioria não trouxe para suas construções a perspectiva de viver onde estão atualmente. Na realidade, é recorrente nos discursos de jovens adolescentes o desejo de mudança de vida a partir da mudança de lugar; viver bem estaria atrelado a não viver mais onde vivem.

Assim, a categoria "Outros países" foi a de maior incidência, o que também reflete uma geração de jovens que traz no construto de suas relações o mundo virtual onde, não raro, estar dialogando com pessoas de diferentes países traz a sensação de facilidade em deslocar-se para e/ou viver nesses outros lugares.

 

Quadro 4

 

Já as categorias "Em qualquer lugar" e "Não sabe" vieram logo em seguida, podendo, assim, contrapor-se à ideia de uma necessidade de mudar de lugar, ou ainda abrir reflexões sobre como esses jovens adolescentes se percebem ou não fazendo parte de determinado lugar e que lugar seria esse. A necessidade de viver em locais menos violentos e/ou mais seguros também foi expressa e de maneira bem clara.

 

Gráfico 4

 

Das construções imagéticas aos Projetos de Vida

Após a sistematização e categorização de todos os fanzines elaborados nas cinco escolas, conseguimos identificar quais as categorias com maior incidência, bem como pudemos analisar algumas relações com dados obtidos em fases anteriores da pesquisa Locus (Silva, 2012, 2013, 2014). Observando-se as quatro perguntas geradoras, destacaram-se as seguintes categorias: sucesso profissional; sentimentos potencializadores; profissão/formação específica; família; bens materiais/financeiros.

De modo geral, esses aspectos refletem sentimentos potencializadores de pertencimento, agradabilidade e atratividade (Bomfim, 2010), que podem ser identificados em diálogo com a Estima de Lugar (Silva, 2014; Bomfim, 2010). Isso não significa que não tenham aparecido imagens/falas que apontassem categorias de análise em que se evidenciam sentimentos de contraste e sentimentos despotencializadores, principalmente de insegurança. As categorias sentimentos potencializadores - pertencimento, agradabilidade, atratividade; sentimentos de contraste - aspectos bons e ruins numa mesma imagem; sentimentos despotencializadores - destruição, insegurança, como recurso para análise das imagens dos fanzines é o mesmo utilizado na pesquisa Locus (Silva, 2012, 2013, 2014). No entanto, cabe informar que nos relatórios da pesquisa e nas discussões iniciais realizadas nos grupos de estudos do laboratório utilizavam-se os termos "sentimentos positivos" e "sentimentos negativos", que foram substituídos por "potencializadores" e "despotencializadores" quando do aprofundamento dos estudos de Spinoza e, também, pelos resultados da pesquisa ao longo dos anos.

Analisando o que diz respeito às categorias "sucesso profissional" e "profissão/formação específica", apenas reiteramos o que a literatura sobre Projetos de Vida vem apresentando: para projetar expectativas e desejos de um futuro que envolvam sua formação profissional, os jovens transitam pela educação formal e pelas impressões e influências advindos da escola em seus diferentes convívios, seja com os colegas de turma, seja com os professores e equipe pedagógica, seja pelo simples ato de estar na escola e fazer parte de um grupo que, de algum modo, mobiliza sua identidade (Nascimento, 2013; Mandeli, Soares & Lisboa, 2011; Ribeiro, 2010).

Esses aspectos apontam que, apesar das adversidades, as/os jovens mantêm sua autoestima quando pensam seus projetos de vida. Isso colabora para uma perspectiva de futuro associada à realização profissional que, em muitos casos, estaria relacionada à categoria "sucesso profissional" e também à categoria "sentimentos potencializadores", as quais, nos fanzines, apresentaram-se quase que em sua totalidade como "ser feliz".

No que diz respeito à autoeficácia, percebemos também que conseguem visualizar, em sua maioria, a necessidade de investir em si mesmos e, por estarmos no espaço da escola, a formação profissional acaba sendo o processo pelo qual poderão construir caminhos diferenciados dos hoje vividos. Sobre isso, Germano e Colaço (2012, p. 384) explicitam que "São histórias pregressas de vulnerabilidade que atingiram pais e avós e que mobilizam o jovem a estudar mais para obter melhores ganhos no futuro e ajudar seus pais e parentes".

Nesse mesmo estudo, Germano e Colaço (2012) trazem resultados semelhantes aos nossos, no que se refere a planos de futuro interagindo com formação profissional, escola e família:

Não é surpreendente, portanto, que em termos de planos de futuro, 17 dos 21 entrevistados pretendam cursar o ensino superior e obter um emprego mais qualificado e quase todos vejam como imperativo finalizar o ensino médio. Os valores da educação e da formação profissional dominam os relatos revelando como os jovens, suas famílias e escolas partilham crenças e valores comuns sobre o empoderamento pessoal e coletivo por meio das instituições acadêmicas. Respondendo à pergunta sobre as "situações que mais trazem benefício ao seu desenvolvimento", o jovem refere os estudos e o ambiente escolar como importante recurso, juntamente com o apoio parental e as "boas amizades". (p. 384)

Família foi a única categoria existente na sistematização das quatro perguntas geradoras. Porém, não podemos romantizar as famílias. A família é uma categoria de sentimentos de contraste, ou seja, aspectos bons e ruins ali se apresentam. Dados da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), bem como estudos de diversas áreas revelam esses contrastes quando tratamos de jovens em situações de risco e/ou vulnerabilidades. Apesar disso, a família se mantém como principal referência subjetiva e como uma forma de enfrentamento dessas situações.

Essas expectativas não se dão sem contradições evidentes, especialmente quando se revela que as famílias são elas mesmas fonte de violência, com episódios de humilhações, espancamentos do jovem, irmãos e mãe (especialmente pelo pai), abuso sexual no passado e até homicídio ou tentativa de homicídio na família. (Germano & Colaço, 2012, p. 385)

Assim sendo, avaliamos que outro aspecto relevante é a manutenção de vínculos afetivos, expressos principalmente pelos laços familiares, juntamente com a escola. Ambos são importantes agregadores na concretização dos projetos de vida desses jovens. Além destes, amigos e outras relações também fazem parte desses construtos, em alguns casos, evidenciando questões outras, como a sexualidade, que precisam de espaço e aceitação para serem vividas.

A religiosidade só não esteve presente na questão "Onde quero viver?" e, mesmo que tenha aparecido em pequena quantidade, é um dado interessante, manifestando-se como perspectiva de futuro (ser pastor, ser babalorixá, viver com Deus) e também como uma forma de afirmação de identidade e necessidade de respeito às diferenças.

Identificamos ainda sentimentos despotencializadores de insegurança, estes apenas na questão "Onde eu quero viver?". Para alguns, não importava onde viveriam, mas sim a necessidade de viver em segurança, em paz, em lugar que trouxesse calma.

Não obstante, o conteúdo dos fanzines apresentou sentido tanto no contexto objetivo quanto no subjetivo e intersubjetivo. Há a proposição objetiva ou plano de ação (Ribeiro, 2010) quando esses jovens identificam o caminho da formação/estudos para se tornarem algo que ainda não são e que, mesmo que por hora não seja um aspecto palpável, concreto ou factível, possivelmente modificará suas vidas, levando-se em consideração que a maioria desses jovens tem pais que não terminaram nem o ensino médio.

No plano subjetivo, há uma série de sentimentos expostos, positivos em sua maioria, e que sinalizam amplamente uma potência de ação. Falar de si, de suas identidades, seus sonhos e expectativas é tratar de bons afetos e de uma perspectiva de futuro também positiva. A consciência de si no mundo e do que se pretende (por mais que não se saiba se de fato acontecerá) mobiliza processos transformadores, mesmo que isso ainda seja vislumbrado numa proposição capitalística, com evidente relevância a bens de consumo (carro, riqueza) ou ao mundo do espetáculo (fama, sucesso, poder) e em padrões nem sempre alcançáveis (corpos perfeitos).

Isso se refletirá no campo intersubjetivo, nas relações que já mantêm e nas que pretendem estabelecer. A família, amigos e amores são importantes, mas demonstram ainda uma construção mais intimista, mais privada do que se quer compartilhar. Por mais que sejam jovens de baixa renda, que vivam processos exclusores cotidianamente, que inclusive exponham alguns dos preconceitos que desejam não mais sofrer, seus projetos de vida são os de uma sociedade hierárquica, machista, racista, etc.

Nesse sentido, assim como a literatura aponta a importância da escola, vimos que a escola poderia ser potencializadora a um processo de autonomia desses jovens adolescentes. No entanto, retomando o resultado da pesquisa Locus (Silva, 2012, 2013, 2014), a categoria com maior incidência foi "Educadores despotencializadores". Desse resultado anterior, em diálogo com os fanzines, foi que questionamos: como pensar esses projetos de vida de maneira coerente sem entrar em contato com a escola? Se há uma relação de estima com a escola, não seria esse o caminho para estimar o bairro e a comunidade onde vivem e, então, conseguirem construir projetos mais libertadores?

Fazemos esse apontamento para o bairro e a comunidade por termos nos fanzines resultados tão distantes da realidade quando da pergunta "Onde você quer viver?". De 100 fanzines, a maioria (18) está na categoria "outros países", ao mesmo tempo que 15 estão na categoria "em qualquer lugar" e 13 na categoria "não sabe". Não havia muita definição quanto ao local onde pretendem viver.

Estimar o lugar permitiria a esses jovens refletir: o que há de positivo no lugar onde vivo que eu posso utilizar a meu favor de forma a potencializar minhas possibilidades de mudança e, inclusive, facilitar a concretização do meu desejo de morar em outro local? Indo além, é importante que ressaltemos: viver em outro local não é sinônimo de mudança socioeconômica. Não visualizar as possibilidades onde vivo gera mais padecimento que ação, mesmo que haja insegurança, violência, pouca estrutura de equipamentos públicos, há que se descobrir as brechas e nelas entrar.

 

Considerações finais

Como a Estima de Lugar dialogaria com os Projetos de Vida? Seriam os Projetos de Vida uma forma de potencializar a Estima de Lugar? Se pensarmos que em nossas vidas sempre estaremos em algum lugar que tem significado e significância para nós, precisamos aprender a pensar nossos projetos incluindo aquilo que estimamos. Mas, como estimar algo que está ainda numa perspectiva futura? Na realidade, a Estima de Lugar nos traz indicadores afetivos que perpassam nossos projetos: autoestima, autoeficácia e perspectiva de futuro, todos estão em nossos projetos de vida, em maiores ou menores intensidades, com afetações positivas ou negativas.

Aqui compreendemos e concordamos com os resultados da pesquisa do Locus Estima de Lugar e indicadores de proteção afetiva de jovens estudantes de escolas públicas de Fortaleza: aportes da Psicologia Ambiental para a compreensão da vulnerabilidade socioambiental (Silva, 2012, 2013, 2014), que indicou que, quando a Estima de Lugar é positiva, pode sim atuar como fator de proteção para esses jovens, do mesmo modo que, se a estima é negativa, há uma tendência ao padecimento. Vimos uma Estima de Lugar muitas vezes positiva no que diz respeito à escola, bem como viemos acompanhando sempre uma Estima de Lugar negativa quando se trata do bairro onde vivem e/ou estudam.

Então, de que modo a Estima de Lugar se apresentou nos Projetos de Vida dos estudantes com os quais dialogamos? Na relação com o lugar onde vivem, com o bairro, mais uma vez confirmamos o que a pesquisa Locus já vinha apresentando: há uma relação negativa e de padecimento, elucidada por sentimentos como vergonha, tristeza, indignação, cercados pela premente sensação de abandono do bairro, um abandono que, apesar de ser atribuído aos gestores públicos, torna-se também um abandono dos moradores do bairro. Sentir e dizer que o bairro é descuidado traz também uma referência de não pertencimento, uma vez que estimar o lugar é estimar quem nele vive. Nos fanzines isso se apresenta de uma forma simples: não há referências ao lugar onde vivem. Há até a incerteza, o "não sei onde quero viver", "em qualquer lugar", mas não há o lugar do agora para a grande maioria.

Já o lugar-escola é estimado e presente nos Projetos de Vida da grande maioria, que traduz isso trazendo a relevância da formação no ensino formal (mesmo que isso seja tendo em vista o trabalho), apresentando, nesse caso, sentimentos potencializadores que dialogam com os indicadores afetivos de autoeficácia e perspectiva de futuro e também em sentimentos despotencializadores quando das queixas da forma como são tratados no lidar cotidiano.

Nesse sentido, acreditamos que a Estima de Lugar em relação às escolas pesquisadas pode ser tanto potencializadora na construção dos Projetos de Vida quanto como rede de proteção e apoio aos jovens adolescentes. Infelizmente a não continuidade de nossas atividades nas escolas deixou-nos uma lacuna no que diz respeito a verificar até onde estimar a escola pode colaborar para estimar o bairro e a comunidade, todavia, os próprios partícipes da pesquisa, em alguns momentos, apontaram a necessidade de integração escola-comunidade bem como escola-família.

Pensar a escola como um lugar de resistência e transformação para jovens adolescentes que usualmente vivem em situações de riscos e/ou vulnerabilidades é pensar outros campos possíveis para esses jovens, pensar que ser pobre não é sinônimo de não mudança. Temos clareza que nem sempre a escola desempenha esse papel, às vezes a instituição-escola é já um lugar adoecido. O padecimento instalado apenas fortalece a imobilidade e conformismo que se traduz em falas vitimizadas: "é o aluno que não quer nada", "é o professor que é autoritário", "o professor não consegue ouvir uma crítica", "o pessoal da pedagógica não sabe como é estar em sala de aula", dentre tantas outras falas em que o padecimento de cada um se traduz na responsabilização do outro.

Muitas questões ficaram em aberto e talvez fosse necessária uma imersão mais intensa nesse lugar-escola para melhor compreender todas as ranhuras e brechas que a Estima de Lugar provoca, sejam estas por afetações positivas ou afetações negativas. Mas esse breve mergulho nos sonhos, desejos e expectativas desses jovens nos fez ver o quanto as intensidades, apesar das adversidades, são bem mais positivas que negativas. A disposição em querer um mundo melhor, em ter fé e felicidade, em querer ajudar as pessoas, em se dispor a cuidar de outras pessoas e de animais, em desejar um mundo com paz, a necessidade do amor, porventura sejam indícios de que poderíamos estar cuidando mais e melhor desses jovens, que, a despeito de todas as estatísticas negativas que envolvem criminalidade e violências várias, há outros caminhos que precisam ser oportunizados.

Eles, jovens adolescentes, nos apresentaram diferentes projetos pautados em uma instrumentação subjetiva. Há que se traçar possibilidades para que esses projetos cheguem ao plano de ação, sejam objetivados e isso, infelizmente, não depende apenas deles. E seja, quem sabe, nesse ponto, que a escola desempenhe toda diferença: entre o ir além e o permanecer nas estatísticas dos mapas da violência.

 

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Recebido em: 26/2/2018
Aprovado em: 14/12/2018

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