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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2019

 

O atendimento à crise e urgência no Centro de Atenção Psicossocial para crianças e adolescentes de Betim

 

Crisis care and urgency at Betim's Center for Children and Adolescents Psychosocial Care

 

La atención de emergencias y de crisis en el Centro de Atención Psicosocial para niños y adolescentes de Betim

 

 

Rosângela Rodrigues-MoraisI; Maria Cristina Ventura CoutoII; Dirley Lellis dos Santos FariaIII; Celina Maria ModenaIV

ITerapeuta Ocupacional. Especialista em Saúde Mental pela ESP/MG. Mestre em Saúde Coletiva pela Fiocruz Minas. Trabalhadora da Saúde Mental Infantojuvenil do SUS/Betim/MG
IIPsicanalista. Doutora em Saúde Mental pelo IPUB/UFRJ. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental (NUPPSAM/IPUB/UFRJ). Professora do Mestrado Profissional em Atenção Psicossocial e da Especialização em Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência, ambos do IPUB/UFRJ
IIIPsicóloga. Mestre em Psicologia Social pela UFMG. Doutoranda em Saúde Coletiva pela Fiocruz Minas. Trabalhadora da Saúde Mental Infantojuvenil do SUS/Betim/MG
IVProfessora do curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Fiocruz-Minas. Graduada em Psicologia. Mestra em Epidemiologia. Doutora em Ciências. Pós-Doutora em Saúde Coletiva. Pesquisadora do grupo de Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento do Instituto de Pesquisa René Rachou

 

 


RESUMO

A política pública brasileira para saúde mental de crianças e adolescentes é recente e está se consolidando. O estudo analisa os cuidados prestados às situações de urgência e crise em um Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi). Trata-se de estudo exploratório, de abordagem qualitativa. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo, tendo como temas o mandato gestor e o mandato terapêutico do CAPSi. Os resultados apontam prioridade no cuidado às situações de crise ou urgência. As dificuldades relatadas na organização do trabalho em equipe são inerentes a um processo complexo, como o do cuidado em liberdade, exigindo permanente reflexão crítica e investimento de todos os atores envolvidos no campo do cuidado. O estudo indica, ainda, que o modelo de ordenação intrassetorial proposto pelo município não foi totalmente implementado, pois o CAPSi e a Atenção Básica não desenvolvem ações conjuntas, acarretando prejuízos para a construção da Rede de Atenção Psicossocial.

Palavras-chaves: Saúde mental. CAPSi. Crise. Urgência. Criança. Adolescente. Atenção psicossocial.


ABSTRACT

The Brazilian public policy for children and adolescents' mental health is recent and is still under consolidation. The study analyzes the care provided to emergency situations and crisis in a Center for Children and Adolescents Psychosocial Care (CAPSi). This is an exploratory study of qualitative approach. The data were submitted to content analysis, having as subjects the managerial mandate and the therapeutic mandate of CAPSi. The results indicate priority in the care to situations of crisis or urgency. The difficulties reported in the organization of teamwork are inherent in a complex process, such as care in freedom, requiring permanent critical reflection and investment of all the actors involved in the field of care. The study also indicates that the intersectoral ordering model proposed by the municipality was not fully implemented, CAPSi and Primary Care do not develop joint actions, causing damages to the construction of the Psychosocial Care Network.

Keywords: Mental health. CAPSi. Crisis. Urgency. Children. Adolescents. Psychosocial care.


RESUMEN

La política pública brasileña para salud mental de niños y adolescentes es reciente y se está consolidando. El estudio analiza los cuidados prestados en situaciones de emergencia y crisis en un Centro de Atención Psicosocial Infantojuvenil (CAPSi). Se trata de un estudio exploratorio, con un enfoque cualitativo. Los datos fueron sometidos a un análisis de contenido, teniendo como objeto de estudio el mandato de gestión y el mandato terapéutico del CAPSi. Los resultados resaltan la prioridad en el cuidado de las situaciones de emergencia o crisis. Las dificultades relatadas en la organización del trabajo en equipo son inherentes a la complejidad del proceso, como lo es, por ejemplo el cuidado en libertad, que exige una permanente reflexión crítica y un compromiso de todos los actores envueltos en el área del cuidado. También el estudio indica, que el modelo de organización intrasectorial propuesto por la municipalidad no fue totalmente implementado, el CAPSi y la Atención Primaria no desarrollan acciones conjuntas, acarreando perjuicios para la construcción de la Red de Atención psicosocial.

Palabras clave: Salud mental. CAPSi. Crisis. Emergencia. Niño. Adolescente. Atención psicosocial.


 

 

Introdução

A Reforma Psiquiátrica é um processo social complexo que transcende e supera as reformulações na organização dos serviços de saúde e as propostas de implementação de caráter exclusivamente técnico, pois supõe a renúncia da vocação terapêutica instituída pelo paradigma psiquiátrico (Amarante, 1997; Yasui, 2006).

[...] A Reforma Psiquiátrica é um processo civilizador. Um processo que no encontro cotidiano com o sofrimento, por vezes intenso, inventa dispositivos diferentes de cuidado; diversifica ações tecendo uma rede com o território; cria formas de sociabilidade; produz valor social; constrói uma ética; insiste em sonhar com outro mundo possível. (Yasui, 2006, p. 18)

As ações iniciais da Reforma Psiquiátrica brasileira foram planejadas para operar mudanças nas práticas de cuidado dirigidas aos adultos internados nos manicômios, mesmo existindo no Brasil a institucionalização de crianças e adolescentes (Lykouopoulos & Péchy, 2016). Para estes, as práticas asilares e reparadoras aconteciam prioritariamente em instituições ditas educacionais, como reformatórios, internatos, orfanatos, representados pelas ações filantrópicas e, principalmente, pela Fundação do Bem-Estar dos Menores - FEBEM (Rizzini & Rizzini, 2004; Dias & Passos, 2017; Silva, 2018).

No Brasil, as primeiras iniciativas de serviços que consideraram as crianças e adolescentes como sujeitos e cidadãos portadores de sofrimento mental se deram de forma isolada no início da década de 1990. Esses serviços apenas no início do século XXI foram cadastrados como CAPSi pelo Ministério da Saúde (MS), por meio da Portaria nº 336/02 (Brasil, 2002). Podemos citá-los: Cersami1 Betim/MG, criado em 1993 (Silva, 2003), CAPSi Pequeno Hans, criado em dezembro de 1998 e CAPSi Elisa Santa-Roza, fundado em agosto de 2001, ambos no Rio de Janeiro/RJ (Pereira, 2003).

As questões de saúde mental de crianças e adolescentes, no entanto, só ganharam o estatuto de política pública com a criação do Fórum Nacional de Saúde Mental Infantojuvenil (Brasil, 2014), em 2004, e com a divulgação do documento ministerial intitulado "Caminhos para uma política pública de Saúde Mental infantojuvenil", de 2005 (Brasil, 2005), que instituíram o tema na agenda pública brasileira.

O CAPSi tem um duplo mandato: uma função clínica/assistencial para casos de maior gravidade e outro relativo à função gestora de ordenação da demanda em saúde mental e consequente construção de redes de cuidado na saúde e nos equipamentos intersetoriais. É considerado um dispositivo para cuidado específico para crianças e adolescentes, e estratégico na construção da rede intersetorial e intrassetorial (Couto & Delgado, 2015, 2016).

Em 2004, o MS lançou o documento "Saúde Mental no SUS: O Centro de Atenção Psicossocial", deixando claro que faz parte da função do CAPS (e também do CAPSi) acolher e cuidar de pessoas em situação de crise e que o "sucesso do acolhimento da crise é essencial para o cumprimento dos objetivos de um CAPS, que é o de atender aos transtornos psíquicos graves e evitar as internações" (Brasil, 2004, p. 17).

Contudo, há poucos estudos sobre o cuidado às situações de urgência e crise nos CAPSi. Taño e Matsukura (2015) registram a insuficiente produção teórica para a complexidade envolvida no cuidado operado pelos CAPSi, em particular nas situações de crise e urgência, sendo necessário que o tema seja priorizado na construção do conhecimento, pois "as práticas realizadas no campo da saúde mental infanto-juvenil para aqueles que se encontram em situação de intenso sofrimento parecem ainda bastante prejudicadas" (Taño e Matsukura, 2015, p. 445), sugerindo que esse é um campo ainda negligenciado nos debates da literatura científica.

Bontempo (2007), por outro lado, apresenta o CAPSi como o lugar do acompanhamento da crise e aponta o dispositivo como uma possibilidade de cuidado mais próximo ao território. Coracini e Martini (2016) também descrevem a importância do CAPSi em um cuidado em rede, tendo como principais características uma prática "territorial, afirmando as singularidades e potencializando as diferenças, garantido os direitos adquiridos e um tratamento em liberdade" (p. 876).

Pimentel e Moura (2016) ressaltam o CAPSi como um dispositivo terapêutico de intervenção à crise que favorece relações de cuidado, confiança, vínculo e de protagonismo, no qual crianças e adolescentes podem vivenciar seu sofrimento, serem acolhidos em suas angústias e compreendidos na sua singularidade.

Pereira e Miranda (2014), entretanto, ao descreverem o trabalho de um CAPSi, apontam várias dificuldades encontradas no cuidado à crise: precária infraestrutura, rigidez institucional marcada pela burocratização e pela fragmentação do cuidado; o não compartilhamento de atuações; a inexistência de acolhimento imediato dos usuários que chegam ao CAPSi em crise, sendo que, em algumas situações, eles são encaminhados para a emergência psiquiátrica do Hospital Geral; a desconsideração do vínculo no desligamento do paciente do CAPSi e da possibilidade de uma passagem gradativa para outros serviços.

Estudos de Blikstein (2012) e Braga e Oliveira (2015) pontuam que as internações em caráter asilar ainda acontecem para crianças e adolescentes. O que, também, indica as dificuldades dos serviços substitutivos na área infantojuvenil de atender as crises e urgências.

O presente artigo traz os resultados de uma pesquisa realizada no CAPSi Betim/MG. O município de Betim foi um dos pioneiros na implantação de serviços substitutivos ao manicômio. Desde a criação dos serviços, em 1993, definiu-se que fosse função dos CAPS,2 e das equipes mínimas de saúde mental na Atenção Básica (AB), a responsabilidade pelo cuidado dos casos de sofrimento psíquico. Betim nunca teve hospital psiquiátrico e a partir da implementação dos CAPS o atendimento e acompanhamento às urgências e crises passaram a ser assumidas pelo município, inclusive de crianças e adolescentes. Como afirmado por Cortês et al. (1993, p. 5), foi assumido como responsabilidade do município: "Atender uma clientela que sempre esteve excluída dos serviços públicos de saúde [...] crianças e adolescentes com quadros psicóticos, com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, neuroses graves, distúrbios de comportamento e vítimas de violências".

O estudo que será apresentado tem como objetivo compreender o cuidado prestado às crianças e aos adolescentes em situações de urgência e de crise, no CAPSi de Betim, a partir da percepção de trabalhadores e familiares, buscando contribuir para a construção de conhecimentos nessa área e para a qualificação da atenção psicossocial para crianças e adolescentes.

 

Aspectos metodológicos

A pesquisa qualitativa foi a referência para o desenvolvimento deste trabalho. Segundo Minayo (2014), essa metodologia trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.

A entrevista semiestruturada foi a estratégia metodológica escolhida para o percurso no campo, na medida em que combina perguntas abertas e fechadas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender à indagação formulada (Minayo, 2014).

Para a eleição do número de participantes, usou-se o critério de conveniência e saturação teórica de informações. A técnica consiste na escolha de entrevistados mais acessíveis, que sabidamente podem contribuir para o tema pesquisado, podendo o pesquisador interromper a coleta quando não há acréscimo significativo de novas informações a cada nova entrevista (Minayo, 2014).

O critério para inclusão dos trabalhadores considerou o tempo de serviço no CAPSi e as diferentes categorias profissionais. Em relação aos familiares, foram entrevistados maiores de 18 anos, que se envolveram diretamente no acompanhamento dos usuários por um período superior a um ano. Dessa forma, em um universo de 20 trabalhadores do CAPSi, que se enquadravam nos critérios de inclusão, 10 foram entrevistados. Também foram entrevistados outros três trabalhadores, que já estavam afastados do CAPSi, devido à importante participação deles na construção do serviço, assim como quatro familiares. Os entrevistados da pesquisa foram identificados da seguinte forma: trabalhadores (ET), ex-trabalhadores (EXT), e familiares (EF), seguidos por um número.

As entrevistas foram gravadas, conforme autorização no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foi usada a Análise de Conteúdo Temática, descrita por Bardin (1970/2009), para análise do material. Foram estabelecidas duas categorias de análise: mandato terapêutico e mandato gestor.

A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto René Rachou - Fiocruz/MG, conforme parecer nº 2.090.411/2017 e pelo CEP do Fundo Municipal de Saúde de Betim, conforme parecer nº 2.134.673/2017.

 

Resultados e discussão

O mandato terapêutico: cuidado prestado às situações de urgência e crise

A dificuldade na concepção de crise foi apontada pelos trabalhadores: "O que é crise para o CAPSi? O que crise para AB? Então essa questão do que é crise, meio que cada um vai ter um entendimento diferente" (ET13). Essa fala confirma que a pactuação na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) sobre o que é crise e urgência é fundamental, e sua ausência pode gerar ideias equivocadas, tal como a de que para os encaminhadores tudo é crise, ou a de que não há crise ou urgência. Essa última ideia adquire expressão pela necessidade de selecionar tão 'rigorosamente o caso' que quase nenhum caso é considerado uma urgência ou crise. É imprescindível a explicitação desses conceitos pela política de saúde mental e a ampliação dos espaços de discussões, como as reuniões de matriciamento e de discussão de casos na rede (Passos, Reinaldo, Barbosa, Braga & Ladeira, 2017).

Para alguns entrevistados, "urgência é uma coisa que tem que ser naquela hora, imediatamente, é urgente, não pode esperar" (EXT4); "é uma urgência, você tem que intervir" (ET12). Essa noção está de acordo com Jardim e Dimenstein (2007), que apontam a urgência como uma situação de transtorno de afeto, pensamento e comportamento de tal forma disruptiva que o sujeito, familiares ou sociedade, consideram a necessidade de cuidado imediato, exigindo uma urgência de ação.

Alguns trabalhadores diferenciam urgência e crise: "as urgências são pontuais e podem fazer parte de uma crise que se prolonga [...] a gente pode diferenciar que no momento agudo é uma urgência, depois você vai conduzindo por uns dias como uma crise" (EXT4).

Para os familiares, não há diferença entre a situação de urgência e de crise, elas são equivalentes, são situações em que eles se sentem impossibilitados de resolver com seus próprios recursos e precisam de ajuda:

São crises que não dá pra controlar em casa, aí tem que levar. (EF9)

A gente não encontra uma solução para aquele problema, nem conversando e nem medicando e tem que procurar um profissional, porque [...] conversar e também medicar, não está resolvendo. Temos que buscar o profissional, pois eles estão mais capacitados. (EF16)

Costa (2007), Bonfada e Guimarães, (2012), Willrich, Kantorski, Chiavagatti, Cortes e Antonacci (2013), de forma similar, apontam a crise como uma situação em que se estabelece uma urgência de realizações que no curso habitual da vida são proteladas, é uma demanda urgente que começou a afetar a rotina social e precisa de um atendimento imediato para prevenir agravos que causem mais sofrimento para o sujeito.

O atendimento à crise no CAPSi de Betim segue as diretrizes da Atenção Psicossocial, ou seja, cada "caso é um caso". Entender cada caso como único e abordá-lo verbalmente é parte do princípio fundamental da política Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (SMCA):3 cuidar de uma criança e do adolescente é cuidar de um sujeito, o que implica "a noção de singularidade, que impede que esse cuidado se exerça de forma homogênea, massiva e indiferenciada" (Brasil, 2005, p. 11), impedindo que aquilo que se diz desses sujeitos seja tomado como substituto de sua própria palavra. A situação de urgência deve ser entendida como uma situação singular, complexa, que exige uma ação imediata da equipe e condutas diferenciadas de acordo com o caso, a família e o contexto.

As situações de crise e urgência exigem da equipe do CAPSi invenção de saídas inesperadas para o que se apresenta no aqui e agora. São situações diversas vividas pelas crianças e adolescentes que exigem um cálculo e uma ação imediata, situações que podem mobilizar apenas um profissional do serviço, mas que também podem mobilizar toda a equipe; mobilizar outros serviços da rede de saúde mental, como CAPS III, Unidades de Pronto Atendimento (UPA), Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), Hospital Geral, e também a rede intersetorial - Conselhos Tutelares, Promotoria da Infância, Centro de Referência em Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas).

Os trabalhadores falam da complexidade do acolhimento a uma situação de crise:

[...] as situações que chegam que eu acho mais delicadas de intervir são as tentativas de suicídio, a agressividade em relação às outras pessoas, e aquelas em que o usuário está muito desorganizado, [...] está delirando e alucinando e quando está há muitos dias sem dormir. Essas situações são mais difíceis porque você tem que estar acolhendo, estar escutando, e ao mesmo tempo buscando uma parceria com a psiquiatria ou com outros trabalhadores. (ET7)

Se não consegue ser atendido no consultório, é levado para a PD,4 lá nós temos dois leitos. Algumas vezes precisa conter, outras não, fica só em observação constante da enfermagem e com a presença de um familiar, se necessário e indicado. A gente conversa e fica observando o efeito da medicação, junto com o médico psiquiatra e com o outro profissional que está de plantão para ver a reação do paciente. (ET6)

[...] Acho que o Cersami tem muito essa função de dar conta de suportar isso: esse tempo do sujeito nessa crise e cuidar dele é um momento de cuidado intensivo do sujeito... ter espaço para expressar seu sofrimento de outra forma, ofertar a ele recursos do serviço para que ele possa dar conta de sair daquele momento que ele está vivendo. (ET13)

Essas situações de crise e de urgência expressam o entendimento da Atenção Psicossocial, sendo assim, a crise deve ser compreendida como um momento de extrema fragilidade, mas, também, de oportunidade de reconstruções, que exigem criatividade nas intervenções a partir da escuta e que se contrapõem ao conceito de crise no modelo da psiquiatria tradicional, ligada à emergência de sintomas a serem contidos (Campos et al., 2009).

Os participantes relatam que as indicações a partir de um primeiro atendimento dependem de uma avaliação ampla da situação, o que nem sempre é simples. A abordagem da criança e do adolescente deve ser sempre mediada pela palavra, com ou sem a presença do familiar; no consultório ou na permanência dia (PD). As indicações podem ser a solicitação da avaliação pelo médico, a indicação imediata para a PD e nos dias subsequentes, a permanência noite (PN) no CAPSIII e/ou a indicação de retorno diário. O carro do serviço também pode ser utilizado para buscar e levar o paciente de acordo com a situação clínica e familiar, conforme aponta um entrevistado: "Dependendo do caso a gente vai atender e oferecer os dispositivos que aquele caso tiver precisando naquele momento: a PD, PN, consultas ambulatoriais com mais frequência, o atendimento da psiquiatria, a medicação e os outros dispositivos que o serviço oferece" (ET3).

A abordagem medicamentosa é usada nas situações de crises e urgência, mas não constitui o centro absoluto da intervenção: "Acho que a medicação aqui não vem em primeiro lugar. A medicação não é substituto de nada aqui. Ninguém supermedica ninguém, a medicação é usada num contexto com uma abordagem, um convencimento" (ET12). "[...] uma contenção medicamentosa é um pouco mais velada. É uma forma de garantir a proteção, que os meninos não se machuquem, porque, muitas vezes, estão sem crítica e se ferem muito, se cortavam" (ETX15).

As medidas de exceção, como a contenção física, também são citadas, embora como último recurso e apenas em situações em que a criança ou o adolescente representa risco para si ou para terceiros. "[...] Isso é raro de acontecer, porque a abordagem verbal funciona muito, por isso é preciso ter essa sensibilidade de saber abordar esse sujeito, considerar o que ele tá dizendo e escutá-lo" (ET3).

Segundo os trabalhadores, as contenções físicas são decididas com a participação do plantonista e do médico do CAPSi, e sempre são mediadas por um profissional que acompanha o usuário durante toda a contenção. Porém, ressaltam que a equipe não pode perder a disponibilidade de se perguntar sempre se fez tudo o que é possível, antes de indicar uma medida de exceção. A conversa, a negociação é sempre prioritária nas diversas situações.

Um dos familiares relatou utilizar em casa a contenção física em situações que considera urgências ou crise e que não consegue controlar. Esse participante relata que utiliza a contenção "até que o SAMU ou a polícia cheguem" (EF16). Os participantes familiares relatam saber da utilização das contenções físicas realizadas no CAPSi e não expressaram críticas em relação a elas. Não foi possível, no âmbito deste estudo, analisar a razão da ausência de críticas em relação a esse procedimento, mas uma hipótese é o fato de a entrevistadora ser também membro da equipe.

 

Trabalho em equipe

No processo de trabalho do CAPSi foi dada ênfase ao papel do plantonista no atendimento. Esse profissional é apontado como importante organizador da dinâmica do trabalho diário e principalmente durante o acolhimento de uma urgência. "O plantonista é o maestro desse momento, ele é que vai conduzir" (ET10), "o plantão é o diretor desse momento" (ET3).

Os técnicos de nível superior assumem a função plantonista, independentemente de sua formação acadêmica: "esse papel do plantonista, de ser multiprofissional, de não ser uma categoria específica, enriquece muito o processo" (ET10). Cada profissional se responsabiliza diariamente por um horário de plantão (das 8 às 13h ou das 13 às 18h), dividindo responsabilidades e poder. Portanto, na equipe, os profissionais se colocam numa posição de "trabalhador de saúde mental".5

Há, no entanto, aspectos que dificultam o trabalho do plantonista. A sobrecarga de atividades é um deles: "[...] fica muito sobrecarregado, é responsável por receber a urgência que chega, via polícia, via SAMU, via família, via unidade básica, é responsável por organizar a permanência-dia, por atender aos telefonemas com demandas de discussão de caso, por exemplo, a escola, o conselho tutelar" (ET13).

A fala a seguir relata as dificuldades enfrentadas pelo plantonista e aponta que a sobrecarga advém da falta de outros pontos da rede para acolher as situações que não são urgências: "Acho que o plantão absorve tantas outras coisas que são burocráticas que, não são da ordem da urgência, que às vezes isso atropela as urgências em si [...] de repente se ele tivesse esse outro aporte de uma rede maior, de uma rede segura ele poderia cuidar muito melhor das questões da urgência" (ET12).

A presença de um segundo plantonista na PD também foi apontado como uma forma de melhorar o processo de trabalho, possibilitando um cuidado mais adequado às situações de urgência e crise, como ter um tempo maior para escutar a história de quem chega, entender o que está acontecendo e propor intervenções mais adequadas: "Seria um segundo plantonista pra ficar com essas questões da PD, de atender um telefonema com outro e talvez de acolher essa urgência que chega com outro profissional" (ET13).

O papel de toda a equipe, em conjunto com o plantonista, diante de uma situação de urgência é citado como importante: "A urgência pode mobilizar o serviço como um todo, se precisar, se for necessário, todos aqueles que estiverem no serviço precisam participar e ajudar, no momento da abordagem da crise, mesmo que o profissional esteja atendendo no ambulatório. É um trabalho em equipe" (ET13).

Porém, muitas vezes, há uma centralização na figura do plantonista e os profissionais não estão tão disponíveis para ajudá-lo:

O plantonista é uma pessoa que é a referência do serviço, em alguns momentos acho o trabalho muito centralizado nele, acho que a equipe poderia estar mais envolvida. Eu sinto que o plantão poderia fluir melhor se as pessoas estivessem mais envolvidas. [...] tem pessoas que estão mais atentas ao plantão e tem pessoas que parecem pensar: não tem nada a ver comigo. (ET10)

A colaboração de outros trabalhadores, durante o ou depois do acolhimento de uma urgência, é apontada por um dos entrevistados como uma forma de superar as dificuldades de tomar decisões sobre situações tão complexas:

Você precisa muito contar com esse apoio, num momento de urgência. Por exemplo, você pode dividir a opinião com um profissional, porque como a gente é o único plantonista, muitas vezes, eu acho que te escapa a condução, ou você está muito imbuído ali daquela situação, escutou muito aquela família, ou paciente. Então, ter uma opinião diferente é importante. (EXT14)

Outro aspecto apontado em relação ao trabalho de equipe no CAPSi foi o papel do médico: "Acho que todo médico do CAPSi deveria ser um apoiador do plantão [...], ele fica muito longe do plantão mesmo estando na unidade" (ET10). A fala da entrevistada demonstra um sentimento de solidão ao exercer a função de plantonista e também aponta que, em função da organização do serviço, o médico dá pouco suporte ao plantão. Aqui, também, cabe perguntar: qual a função do médico em um CAPSi, sendo este referência para atendimentos de urgência? Como esse profissional vai dar um suporte adequado às situações de urgência e aos casos da PD? Como o CAPSi está organizado para o atendimento da psiquiatria? Essa organização está de acordo com a descrição proposta por Elia (2016, p. 62)?

Sob a alegação de que são poucos médicos e de que todos os pacientes dos CAPS precisam de psiquiatras, o que congestiona suas agendas, eles se restringem, na maioria das vezes, aos atendimentos específicos de sua profissão, sejam atendimentos individuais ou em grupo. Esta característica leva a algumas consequências principais: a ambulatorização do atendimento médico; os médicos não participam dos ambientes coletivos, como a convivência; os pacientes passam a ter um médico e um técnico de referência; o cuidado médico se encontra fragmentado dos demais, pois suas decisões são as únicas que passam por pouca ou nenhuma decisão de equipe.

As reuniões semanais de equipe, outro dispositivo do trabalho, são apontadas como espaços importantes de interlocução, de construção de Projeto Terapêutico Singular (PTS) por alguns entrevistados: "a gente leva o caso para a reunião de equipe, isso dá um norte pra quem acolhe e referencia o caso" (ET10). Outros, porém, relatam que a efetividade das reuniões flutua de acordo, por exemplo, com o momento político do município, que muitas vezes afeta diretamente o trabalho, causando desmotivação. Entendem que é necessário formalizar um horário na reunião semanal para a discussão dos casos de urgência e crise atendidos no plantão durante a semana ou que estão frequentando a PD. Também é apontada a necessidade de formalização do PTS no prontuário; muitas vezes, este é idealizado pela referência do caso, mas não é registrado, causando dificuldades nas condutas quando o técnico não está no serviço.

Os trabalhadores trazem questões que apontam para novos papéis e funções, e também para uma nova relação entre eles, nas quais há compartilhamento de saberes. Segundo Ferigato, Campos, e Ballarin (2007), as reuniões devem ser espaços de interlocução e são essenciais entre os membros das equipes que lidam com sofrimento psíquico de alta complexidade. Nesses espaços, os profissionais podem se comunicar, trocar experiências e saberes, discutir casos, serem cuidados e cuidar uns dos outros (passagens de plantão, as reuniões de equipe e miniequipe, as supervisões clínico-institucionais e os espaços de convivência), proporcionando a constituição de parceria efetiva entre os membros da equipe; possibilitando que os profissionais consigam lidar com o sentimento de mal-estar com o qual, muitas vezes, a clínica da crise os faz deparar.

Trabalhar no CAPSi atendendo situações de urgências e crise em equipe multiprofissional não é um processo simples: se, por um lado, pode haver a desmitificação de uma cultura que situou o lugar central do médico na articulação do tratamento do usuário, inaugurando um modo de operação no qual as demandas deixam de ser endereçadas de forma específica ao psiquiatra e passam a ser trabalhada por toda equipe interdisciplinar; por outro, há a necessidade de criar e experimentar lugares e funções diferentes que exigem a superação de modos tradicionais de ação, em que o trabalho em equipe remete à legitimação do saber compartilhado, e, ao mesmo tempo, à dissolução de um lugar de saber especialista (Silva, 2003; Ferigato, Campos & Ballarin, 2007).

 

O mandato gestor: a ordenação da demanda intrassetorial

O CAPSi é referência para o cuidado de crianças e adolescentes em sofrimento mental, incluindo as situações de crise e urgência; e mantém contato tanto com a AB como com a rede intersetorial, principalmente a partir de discussão dos casos que estão sendo acompanhados pelo serviço.

Há dificuldades no processo de trabalho entre o CAPSi e AB. Os trabalhadores apontam a falta do profissional específico da saúde mental para atender crianças e adolescentes na AB, e não consideram a Estratégia da Saúde da Família (ESF) e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) como parceiros para o manejo desses casos: "a gente não tem para onde encaminhar para o território, acaba ficando aqui" (ET1). "Eu acho que com relação à atenção básica, ainda há uma distância, acho que o trabalho ainda é pequeno, principalmente do Cersami com o NASF [...]. As pessoas do NASF não se sentem legitimadas a discutir o caso com o Cersami" (EXT14).

A falta de articulação entre AB e CAPSi é percebida nos encaminhamentos equivocados: "uma dificuldade escolar, eles encaminham para o Cersami, mas eles reconhecem que o Cersami é o lugar da crise e da urgência, mas encaminham uma dificuldade de aprendizagem" (E13).

Estudos têm indicado a importância da qualificação da AB para a detecção de necessidades em Saúde Mental das Crianças e dos Adolescentes (SMCA), assim como a relevância da função estratégica do CAPSi na AB, contribuindo para qualificar ações, potencializar fluxos de atenção e minimizar perdas de casos, inscrevendo a SMCA como componente indispensável das redes de atenção em saúde (Teixeira, Couto & Delgado, 2017). No entanto, como foi possível analisar, Betim tem tido dificuldades em realizar tal intento.

Há a percepção do risco que o serviço corre em "ficar aprisionado na 'fazeção' de casos complexos", de ficar em um lugar de especialista: "o Cersami é o lugar onde se centraliza, é uma equipe de especialistas, é o lugar da especialidade e da crise" (ET3).

Há nessa fala uma questão fundamental abordada pelos teóricos da Saúde Mental de Crianças e Adolescentes: qual é o lugar do CAPSi na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)?6 O CAPSi é um serviço especializado7 em atender a crise e devolver para o território, para reinserção social, repetindo a lógica verticalizada do hospital psiquiátrico? Ou o CAPSi vai oferecer uma dimensão específica de cuidado em saúde mental, trabalhando de forma integrada com a AB e rede intersetorial ampliada, numa lógica horizontalizada, dialógica, de construção coletiva do PTS? (Delfini & Reis, 2012; Couto & Delgado, 2016).

Constatou-se nesta pesquisa uma dificuldade de integração do CAPSi de Betim com o território. No entanto, há o reconhecimento de um atendimento comprometido com o cuidado, com a necessidade de um acompanhamento mais prolongado. "Não é só atender a urgência naquele momento, é acompanhar depois a evolução. [...] Tem um prosseguimento [...]. Não é atendeu aqui e acabou" (ET2).

Diante da dificuldade de integração, os trabalhadores apontam a importância do papel de um coordenador específico, para a área da infância e adolescência, atuando com a Referência Técnica da Saúde Mental,8 como uma possibilidade de viabilizar as questões referentes à SMCA no município. Trata-se de uma função gestora, que já existiu em outros momentos, que discute e articula nas diferentes instâncias (da rede intrassetorial e da rede intersetorial) as questões inerentes a esses usuários. A fala de um entrevistado revela essa expectativa em relação ao coordenador:

Acho que o coordenador é uma figura fundamental, essa função não dá para ser desenvolvida pelo gerente do Cersami. Tem que ter um coordenador da SMCA, porque o coordenador-geral também não dá conta, porque tem muitas ações específicas da criança e adolescente. (ET13)

[...] quando a gente teve coordenação do infantil trabalhando junto com a coordenação do adulto, a gente teve um trabalho mais articulado no município como um todo: na saúde mental, na saúde, e na rede intersetorial. (ET8)

A equipe do CAPSi está em busca de saídas para resolver os impasses enfrentados em relação à ordenação da demanda. Aponta algumas: compor as equipes de saúde mental na AB, retornar com a função de coordenação específica de SMCA na gestão municipal; organizar profissionais de referência no CAPSi para atuarem em cada região do município.

Conforme diz Delfini e Reis (2012), bem como Teixeira, Couto e Delgado (2017), a aproximação entre a AB e o CAPSi é um desafio cotidiano, sendo o caminho de construção efetiva dessa aproximação longo e permeado por diversos obstáculos. No entanto, essa aproximação é imprescindível para a integralidade do cuidado.

A relação intrassetorial do CAPSi com o CAPS III está estabelecida. Esse ponto da RAPS é responsável pelo cuidado à urgência e à crise de crianças e adolescentes, quando indicado pelo CAPSi, no pernoite e nos fins de semana. Como o CAPSi funciona apenas de segunda a sexta-feira, das 8 às 18h, é necessário a retaguarda do CAPS III para situações nas quais o acolhimento noturno se faz determinante no cuidado. Nessas situações, é necessário que o usuário esteja acompanhado por um responsável. A fala de um familiar sobre esse atendimento mostra como tem sido possível:

Todos já a conhecem no Cersam adulto, tanto as enfermeiras como os funcionários, como os pacientes; ela chega lá e é "Linda, Linda". Ela chega lá muito agitada, nervosa, ela chama a atenção de todo mundo. Ela é muito bem acolhida. Eu falo que só tenho que agradecer a Deus, minha filha, é muito bem atendida. (EF9)

 

Considerações finais

O cuidado às situações de crise e de urgência é fundamental na atenção à SMCA, que pretende prescindir de instituições manicomiais. O mandato gestor do CAPSi de organização da demanda no território é inter-relacionado ao mandato terapêutico.

Os trabalhadores do CAPSi de Betim entendem as situações de urgência e de crise, numa lógica da atenção psicossocial, descrevendo-as como aquelas que precisam de acolhimento e cuidado imediato. São situações que não podem esperar devido ao sofrimento apresentado pelas crianças ou adolescentes e/ou pela angústia demonstrada pela família. Esses casos podem chegar trazidos pela polícia, SAMU, pela própria família, escola ou pelo conselho tutelar. Podem vir pela primeira vez ao serviço ou podem estar em acompanhamento. Muitas vezes, o atendimento a uma situação de urgência revela um usuário em crise que necessita de um acompanhamento mais próximo. A concepção de crise e urgência dos trabalhadores está em consonância com o que aponta Jardim e Dimenstein (2007, p. 169, grifo do autor): No modelo da atenção psicossocial busca-se "desconstruir a ideia de urgência em psiquiatria e [...] pensar uma ética-cuidado que se aproxima mais de um tipo de atenção urgente à pessoa em crise".

Os trabalhadores no CAPSi desenvolvem funções e atividades diversificadas, independentemente da sua formação. A função do plantonista destaca-se nessa dinâmica, desenvolvendo ações diretas no cuidado às situações de urgência e de crise, e na de organização da dinâmica da PD. O trabalho em equipe é valorizado, mesmo ainda encontrando impasses para sua melhor potência e efetividade. A reunião semanal e as mini-reuniões diárias são espaços de construção coletiva, nas quais o saber-fazer é compartilhado.

Os familiares apresentam uma compreensão de que a urgência e a crise são situações que se equivalem, às quais eles não conseguem cuidar em casa, necessitando de ajuda do CAPSi ou do CAPS III, quando aquele não está disponível, o que aponta a clareza do fluxo para esse ponto da RAPS.

No aspecto da organização da demanda intrassetorial, chama a atenção o fluxo estabelecido na RAPS, que reafirma a AB como porta de entrada para os casos de SMCA, de modo geral, e o CAPSi para situações de urgência e de crise. Há também as equipes de saúde mental na AB que são responsáveis, dentre outras funções, pelo matriciamento. Esse desenho de fluxo não se estabeleceu a contento, devido a dificuldades de contratação e fixação de profissionais, dentre outros fatores. Atualmente, o CAPSi ocupa uma posição central na rede de SMCA, mas essa centralidade está mais voltada para sua representação como serviço especializado do que para sua função central como agenciador da demanda, o que colabora para um isolamento desse serviço em relação à rede intrassetorial e intersetorial. De modo geral, os profissionais atribuem a sobrecarga de trabalho do CAPSi ao não funcionamento do fluxo ampliado e em rede, e à ausência de profissionais de saúde mental na AB. A ESF e o NASF não são citados como possíveis parceiros.

É urgente que a gestão e os profissionais da RAPS reorganizem os fluxos e papéis entre a AB e CAPSi, a partir da realidade do município, buscando garantir que a equipe do CAPSi desenvolva as ações na AB, mantendo o cuidado às situações de urgência e de crise, a partir da capacidade operacional das equipes, sem sobrecarregar nenhum dos pontos da RAPS.

As dificuldades apontadas pelos trabalhadores tanto em relação ao mandato terapêutico como em relação à função gestora estão diretamente ligados à complexidade da construção do campo da Atenção Psicossocial, que inclui novas formas de entender a loucura e sua relação com o social e a cultura, novos serviços, novas formas de cuidar, novos saberes, novas relações profissionais. Essas dificuldades devem ser trabalhadas em ações colegiadas como: reuniões de equipe, em ações de Educação Permanente, e nas discussões do projeto com a Gestão.

Por fim, acreditamos que as pesquisas sobre a saúde mental de crianças e adolescentes apresentam, ainda, muitas questões a serem exploradas e que podem contribuir para um cuidado mais eficiente na RAPS. Podemos citar como exemplo as demandas da AB para a SMCA, a relação do CAPS III com o CAPSi e a fragmentação do cuidado, o trabalho em equipe.

Mesmo considerando as limitações deste estudo - restrito a um território específico e tendo como entrevistados apenas profissionais ligados ao CAPSi - não abrangendo trabalhadores da AB e do CAPSIII -, espera-se que os resultados encontrados e as discussões apresentadas possam contribuir para o debate e o avanço da SMCA.

 

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Recebido em: 5/7/2018
Aprovado em: 21/2/2019

 

 

1 Os serviços de saúde mental de Betim criados em 1993 foram chamados de Centro de Referência em Saúde Mental (Cersam) e Centro de Referência em Saúde Mental Infantojuvenil (Cersami), e são assim conhecidos ainda hoje, apesar de serem cadastrados e receberem financiamentos do Ministério da Saúde como CAPS e CAPSi.
2 Os serviços de saúde mental de Betim criados serão nomeados CAPSi e CAPS III, mas os entrevistados se referem a eles como Cersami e Cersam de adultos, respectivamente.
3 A expressão Saúde Mental de Crianças e Adolescentes (SMCA) vem sendo utilizada por diferentes autores (Couto & Delgado, 2015) para destacar diferenças e especificidades entre essas etapas do desenvolvimento, em contraposição à expressão Saúde Mental Infantojuvenil (SMIJ), que tende a unificá-las (Santos et al., 2011).
4 A permanência-dia (PD) é um dispositivo clínico complementar ao atendimento individual, que tem o objetivo de possibilitar assistência mais intensiva durante as urgências e crises, o ajuste do medicamento, a observação mais próxima e esclarecimento diagnóstico, bem como contribuir para a construção de cada caso. Também pode ser indicada para casos já estabilizados, mas com sofrimento mental grave e persistente, facilitando que o usuário participe de atividades e oficinas oferecidas. Os usuários podem ser buscados em seus domicílios pelo transporte do CAPSi ou serem conduzidos pelos seus familiares. O número de dias durante a semana que o usuário vai frequentar a PD depende da indicação feita pela referência do caso (Bontempo, 2012).
5 Trabalhador de saúde mental: trabalhador que não prioriza o seu núcleo específico de saber ou seu conhecimento técnico, no cotidiano do CAPS. Desenvolve atividades diferentes, como a de plantonista, técnico de referência, condutor de uma oficina, faz visitas, entre outras atividades. Trabalhador que tem a capacidade de participar coletivamente da construção de um projeto comum de trabalho, num processo de comunicação que propicie troca de saberes e de experiências. Ser trabalhador de saúde mental é um exercício de democratização da relação entre os trabalhadores, conferindo a todos eles, seja qual for sua formação profissional, direito de voz e de voto e responsabilidades (Lobosque, 2014).
6 A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foi instituída no SUS pela Portaria nº 3.088, publicada em dezembro de 2011. Estabelece diferentes pontos de atenção para as pessoas com problemas mentais. A Rede é composta por serviços e equipamentos variados, tais como: os Centros de Atenção Psicossocial(CAPS); os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento (UAs), e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos CAPS III).
7 Serviços especializados remetem à lógica hierarquizada de níveis divididos em atenção primária, secundária e terciaria em saúde: "O caráter inovador da atenção psicossocial é o de exercer no território (nível básico) ações complexas como as requeridas no cuidado de pessoas com transtornos mentais (considerado especializado no sistema hierarquizado)" (Couto & Delgado, 2016, p. 187). Na RAPS, um caso complexo pode ser atendido tanto na AB como no CAPSi; o que vai determinar o lugar do cuidado é o tipo de ação necessária àquele usuário, naquele momento e quem pode prestá-lo. Dessa forma, um usuário pode precisar dos cuidados do CAPSi por um longo período ou apenas em alguns momentos, mas nunca deixará de ser um usuário da AB.
8 A Referência Técnica de Saúde Mental de Betim, está diretamente ligada à Secretaria Municipal de Saúde (SMS). No momento das entrevistas (abril/2018), era composta por um coordenador-geral e um coordenador da AB. Em momentos diferentes, foi possível contar com um Coordenador da SMCA e em outros essa função não foi priorizada.

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