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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2019

 

Gênero, Intersubjetividade e Saúde

 

Gender, Intersubjectivity and Health

 

Género, Intersubjetividad y Salud

 

 

Karina Rodrigues Matavelli RosaI; Carlos Roberto Castro e SilvaII; Rosilda MendesIII; Danilo de Miranda AnhasIV

IPrograma de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde Nível Doutorado
IIProfessor Adjunto no Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva- Unifesp-Baixada Santista
IIIProfessora Adjunta do Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva- Unifesp-Baixada Santista
IVPrograma de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde Nível Doutorado

 

 


RESUMO

Este estudo versa sobre a prática de Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) em território de vulnerabilidade social a partir de dois conceitos importantes dentro do referencial teórico-metodológico da psicologia sócio-histórica: padecimento e potência de ação. Demos visibilidade à questão de gênero que transversaliza a constituição desta categoria profissional à luz da dialética exclusão/inclusão que resgata a afetividade na reflexão dos processos psicossociais. Trata-se de um estudo de caráter qualitativo que teve a pesquisa participante como balizador dos procedimentos empregados. Os resultados apontam a vivência de afetos distintos experimentados por estas mulheres que experimentam cotidianamente a violência, a miséria e exclusão. Se por um lado ocupar o lugar de subalternidade, tanto na esfera pública quanto na privada implica na vivência do sofrimento ético-político e da humilhação, por outro a oportunidade de ser ACS tem ampliado o repertório de vida destas mulheres na luta pela felicidade e o reconhecimento social.

Palavras-chave: agentes comunitárias de saúde; gênero; afetividade; vulnerabilidade social; subjetividade.


ABSTRACT

This study deals with the practice of Community Health Agents (ACS) in socially vulnerable territory based on two important concepts within the theoretical-methodological framework of socio-historical psychology: suffering and power of action. We have given visibility to the question of gender that transversalizes the constitution of this professional category in the light of the dialectic exclusion / inclusion that rescues the affectivity in the reflection of the psychosocial processes. It is a qualitative study that had the participant research as a guide to the procedures used. The results point to the experience of different affections experienced by these women who experience violence, misery and exclusion on a daily basis. If, on the one hand, occupying the place of subalternity, both in the public and private spheres implies experiencing ethical-political suffering and humiliation, on the other the opportunity to be ACS has expanded the repertoire of life of these women in the struggle for happiness and Recognition.

Key words: community health workers; gender; afectivity; social vulnerability; subjectivity.


RESUMEN

Este estudio versa sobre la práctica de Agentes Comunitarios de Salud (ACS) en territorio de vulnerabilidad social a partir de dos conceptos importantes dentro del referencial teórico-metodológico de la psicología socio-histórica: padecimiento y potencia de acción. Demos visibilidad a la cuestión de género que transversaliza la constitución de esta categoría profesional a la luz de la dialéctica exclusión / inclusión que rescata la afectividad en la reflexión de los procesos psicosociales. Se trata de un estudio de carácter cualitativo que tuvo la investigación participante como indicador de los procedimientos empleados. Los resultados apuntan a la vivencia de afectos distintos experimentados por estas mujeres que experimentan cotidianamente la violencia, la miseria y la exclusión. Si por un lado ocupan el lugar de subalternidad, tanto en la esfera pública y en la privada implica la vivencia del sufrimiento ético-político y de la humillación, por otro la oportunidad de ser ACS ha ampliado el repertorio de vida de estas mujeres en la lucha por la felicidad y el Reconocimiento social.

Palabras clave: agentes comunitarios de salud; De género; Afectividad; Vulnerabilidad social; Subjetividad.


 

 

Introdução

Reconhecemos o trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) a partir de dois polos de ação revestidos de grande complexidade. Um deles acontece no âmbito do território, materializado, sobretudo, no ato das visitas domiciliares o qual a ACS tem a tarefa de acolher as necessidades e demandas de saúde dos moradores para dar encaminhamento na resolução e cuidado e outro que diz respeito ao processo de trabalho nas Unidades de Saúde com as equipes e em campo.

Nesse sentido, a ACS desenvolve seu processo de trabalho a partir das duas lógicas existentes na Estratégia Saúde da Família (ESF): uma balizada pelo núcleo dominante da saúde coletiva que diz respeito ao conjunto de normas, técnicas, procedimentos sustentados por uma racionalidade normativa/instrumental e, outra que opera a partir de estratégias relacionais como a escuta, atenção, cuidado, afetividade balizadas pelo modelo de promoção/prevenção em saúde coletiva (Mehry, 2002; Rocha, Barletto & Bevilacqua, 2013).

Tomamos a saúde como um processo social e histórico, configurada por múltiplas determinações (Laurell, 1982). Desta forma, a opção pela psicologia sócio-histórica contribui para uma compreensão da complexidade da relação dialética do homem com seu meio social, histórico e cultural, rompendo com a visão reducionista e fragmentada do modelo biomédico dominante no campo da saúde(Sawaia, 2007; Albuquerque & Silva, 2014; Castro-Silva, Kahhale, Dias, Martin, 2015).

A partir do referencial teórico-metodológico da psicologia sócio-histórica, baseado no materialismo histórico e dialético, consideramos que a noção de afetividade reforça as principais características marxistas sobre a visão de mundo e sujeito expressa pelos pilares: a atividade, a consciência e a linguagem. Especificamente o conceito de padecimento e o de potência de ação, ambos utilizados por Sawaia(2009; 2010) a partir de Espinosa, Vygotsky e Agnes Heller nos ajudará a compreender as práticas das ACS a partir dos afetos e vínculos construídos cotidianamente. .

A maior questão da filosofia espinosana é a servidão humana em todas as suas formas e a resposta para esta sua questão será desenhada a partir do sistema afetivo. Sendo um dos maiores pensadores do século XVII, Espinosa defendeu que a vida ética começa no interior dos afetos, dos encontros que podem ser caracterizados como bons ou maus a depender das afecções neles produzidas (Sawaia, 2010; Espinosa, 1957; Chauí, 2011; Bove, 2010).

Os afetos são caracterizados como ação e paixão em Espinosa em razão de sua causa adequada e inadequada (Strappazzon & Maheirie, 2016). Espinosa compreende afeto como as afecções do corpo que podem aumentam ou diminuir sua potência de ação. Corpo e mente são compreendidos em unidade e é nos encontros dos corpos que os sujeitos se afetam mutuamente fazendo expandir ou padecer o que Espinosa chama de conatus, o que nada mais é senão sua potência para ser, pensar e agir no mundo,ou seja, seu esforço para perseverar na existência(Espinosa, 1957; Chauí, 2011).

Desta forma, a potência de ação é caracterizada pela capacidade de afetar e ser afetado positivamente no encontro entre os sujeitos. Se neste encontro afetos como alegria e todos os demais que derivam deste como a generosidade, o amor, a amizade, a compaixão, a gratidão dentre outros se fazem presentes, então a capacidade de pensar e agir se expandem transformando-se em potência de ação, aumentando nossa potência para pensar, existir e agir. Se, ao contrário, nestes encontros afetos como a tristeza e seus derivados como a melancolia, o medo, a humilhação, o ódio estiverem presentes então mente e corpo padecem diminuindo a potência deste sujeito para pensar, estar e agir no mundo (Espinosa, 1957). É pela ótica dos afetos que Espinosa traz para o centro da discussão/reflexão ética da vida a intersubjetividade(Sawaia, 2009; 2010).

A partir destes referenciais teórico-conceituais pretendemos dar visibilidade aos sentimentos e às emoções vivenciadas por mulheres pobres que vivem e trabalham em território de alta vulnerabilidade social. Especificamente no que tange à esfera privada (doméstica) e pública (trabalho) na luta pela manutenção de sua dignidade e na busca por reconhecimento e felicidade em meio a miséria, a violência e exclusão social.

Neste artigo tomamos gênero enquanto categoria de análise que constitui-se como relação fundamental entre duas proposições. Segundo Scott (1988, p. 141): "...: gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos quanto uma maneira primária de significar relações de poder".

Giddens (2001) aponta que o conceito de gênero está associado às noções construídas cultural e socialmente sobre a masculinidade e a feminilidade. Nesse sentido, o gênero é um conceito que atribui aos homens e as mulheres papéis sociais e identidades distintas. Desta forma conclui:

As diferenças de gênero raramente são neutras - em quase todas as sociedades, o gênero é uma forma significativa de estratificação social. O gênero é um fator crítico na estruturação dos tipos de oportunidade e das hipóteses de vida que os indivíduos e os grupos enfrentam influenciando fortemente os papéis que desempenham nas instituições sociais, da família ao Estado. (Giddens, 2001, p.114)

Nessa acepção, os papéis sociais estão configurados sócio-historicamente pelo modelo patriarcal de sociedade que divide sexual e socialmente o trabalho entre homens e mulheres, destinando aos primeiros a esfera produtiva e trabalhos socialmente valorizados e às mulheres a esfera reprodutiva e doméstica (Hirata, 2007). No caso específico das Agentes Comunitárias de Saúde, constata-se, a partir de alguns estudos, que este panorama se agrava em condições de alta vulnerabilidade social e precarização dos serviços de saúde(Rocha et al, 2013; Barbosa, 2012)

Assim, nosso intuito neste artigo é o de refletir sobre a prática das ACS em território de alta vulnerabilidade social a partir de uma perspectiva de gênero que tenha em seu núcleo central a intersubjetividade, os afetos e a produção de saúde.

 

Metodologia

Este estudo de caráter qualitativo teve a pesquisa participante (Brandão, 2006) como balizador dos procedimentos empregados. Isto implicou um forte envolvimento entre a equipe da Universidade (professores e estudantes) e profissionais de saúde de Cubatão. A criação de um grupo gestor da pesquisa (GG) se mostrou a principal estratégia de aproximação do campo (instituições, território e sujeitos) contribuindo principalmente para o aprofundamento da problemática estudada e redimensionamento de estratégias teórico-metodológicas (Moraes et al, 2017).

O desenvolvimento da investigação implicou uma participação ativa dos atores envolvidos. Desta forma, foi criado um grupo interinstitucional envolvendo a totalidade dos pesquisadores e representantes do serviço público de saúde, denominado de Grupo Gestor (GG), formado por gestores em nível central, gestores em nível local e profissionais de saúde que atuavam na unidade de saúde (psicólogos, assistentes sociais e agentes comunitários de saúde)

O local de desenvolvimento da pesquisa foi a Unidade de Saúde da Família da Vila dos Pescadores (USF/VP), bairro de alta vulnerabilidade do município de Cubatão, Estado de São Paulo. Nesta unidade estão alocadas, hoje, duas equipes completas de USF. De acordo com o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social - IPVS (Seade, 2012), Cubatão tem 21,2% da população no grupo Vulnerabilidade Alta e 21,0% no grupo Vulnerabilidade Altíssima, ou seja, 42,2% de sua população exibem baixa condição socioeconômica, sendo que os chefes de família apresentam em média, baixa renda e baixa escolaridade. Destaca-se que a diferença entre os dois grupos sugere que o primeiro reúne famílias mais velhas, com um número reduzido de crianças pequenas. Já o segundo, reúne chefes de famílias jovens e uma presença significativa de crianças pequenas(Seade, 2012).

Quanto aos dados epidemiológicos, destacamos que dados recentes sobre a mortalidade infantil registram, para o Estado de São Paulo, 11,5 óbitos por mil nascidos vivos em 2011, com significativa redução nas últimas décadas (31% em relação a 2000 e 63% desde 1990). Entretanto, ao analisar a distribuição dos dados nos municípios paulistas, constatam-se diferenças importantes, sendo a Baixada Santista, a região do Estado com maior taxa de mortalidade infantil (16,87). Entre os municípios desta região, maior taxa de mortalidade infantil é observada no Guarujá (23,0) e menor em Santos (13,0), sendo que Cubatão apresenta valor igual a 15,3(Seade, 2012).

Cabe aqui dar destaque a outras pesquisas de perfil qualitativo e caráter sócio-histórico na interface entre saúde coletiva e ciências humanas desenvolvida nos últimos anos neste território. São estudos que abordam questões como a gestão do cuidado, as racionalidades, a potência de ação, a participação social e a politização das práticas das ACS em territórios de vulnerabilidade social(Castro-Silva et al, 2014; 2015).

As principais etapas da pesquisa foram: a) - reconhecimento do território, visando compreender a organização do sistema de saúde, especificamente da atenção básica em saúde de Cubatão, a organização social e comunitária da Vila dos Pescadores (VP), a organização da unidade de saúde deste bairro, com destaque ao funcionamento das equipes de saúde da família da ESF; b) - obtenção de informações sobre as práticas dos ACS por meio de observações participantes, sempre com a colaboração dos ACS em visitas ao território, as quais foram registradas em diários de campo no período de março de 2012 a agosto de 2012 e c) realização de entrevistas semiestruturadas buscando compreender aspectos da trajetória de vida/profissional e vivencias no serviço de saúde e no território. Foram entrevistados oito (8) Agentes Comunitárias de Saúde (ACS).

Quanto à análise dos dados optou-se pela Hermenêutica de Profundidade (HP), proposta por Thompson (1995), o qual pretende a análise de fenômenos culturais, contextualizados sócio-historicamente, e propõe uma metodologia que privilegia os fenômenos culturais e suas formas simbólicas, dentro de contextos estruturados. O autor propõe uma análise em três patamares de profundidade - a análise sócio-histórica, a análise formal ou discursiva e a interpretação/reinterpretação. Esta última fase se constrói a partir dos resultados da análise sócio-histórica e da análise formal ou discursiva.

A pesquisa foi aprovada através do Edital MCT/CNPq 14/2011 e todos os procedimentos éticos foram cumpridos conforme a resolução que rege sobre a ética em pesquisa com humanos, a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde22. Destacando que os termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) foram obtidos junto aos participantes.

 

Resultados

Os resultados foram organizados inicialmente a partir da reflexão crítico-dialética sobre a categoria gênero, e a divisão sexual do trabalho na sociedade patriarcal e capitalista. Em seguida, balizaremos esta discussão a partir das falas das ACS referente aos aspectos que potencializam ou fazem padecer as vivências, experiências e práticas profissionais dessas mulheres.

Filgueiras (1997) aponta três fenômenos que interlaçados constituem-se elementos determinantes do desemprego e da precarização do trabalho em escala planetária, sendo estes: o neoliberalismo, a reestruturação produtiva e a globalização. Embora distintos cada um desses elementos reflete as profundas transformações que vem ocorrendo no modo de produção capitalista, desde o início dos anos de 1970.

Partindo desta perspectiva macroestrutural de transformação do capital temos acompanhado nas últimas décadas um processo contínuo de transformações também no âmbito da saúde pública no Brasil que reflete na verdade um processo global de transformações econômicas e no modo de produção e consumo de bens, produtos e serviços.

Nesta linha, Kuenzer(2004) reflete como o modelo tecnológico da saúde pública se alinha aos interesses do capital e a seu padrão de acumulação, como descrito abaixo:

Os serviços de saúde, como os demais, sofreram os impactos da crise do capitalismo no final do século e início deste; forçados a se organizar para serem competitivos e assegurarem acumulação, adotaram as estratégias próprias da reestruturação produtiva, neste sentido não se diferenciando das demais empresas, a não ser pela especificidade de seu processo de trabalho. Assim, combinaram complexificação tecnológica com redução de força de trabalho, hierarquizada segundo novas formas de articulação entre qualificação-desqualificação e quantidade de trabalhadores, além de incorporarem mecanismos de descentralização, em particular, a terceirização. (2004, p.243)

Estudos recentes sobre as condições de saúde de trabalhadoras em ocupações tipicamente femininas (Aquino, Menezes & Marinho, 1995) apontam que sob a égide do neoliberalismo as profissões ou ocupações que trazem em seu bojo características do trabalho doméstico (construído socialmente como feminino) apontado por Aquino et al(1995, p.286) como "(....) docilidade, paciência, resistência para o trabalho monótono e repetitivo (....)." não só permanecem como se intensificam em condições de maior precariedade. Nesse sentido, Barbosa et al (2012) sugerem que a precarização tem rosto de mulher.

As Agentes Comunitárias de Saúde que atuam na Vila dos Pescadores, embora tenham tido experiências distintas de trabalho anterior à função que exercem apresentam em comum algumas características que perpassam suas trajetórias profissionais e de vida que merecem visibilidade. São mulheres, mães, pobres, com uma trajetória de inserção no mercado de trabalho marcada pela precariedade e exploração de sua força laboral.

Eu só estudei até o... me formei no básico, não fiz faculdade () cheguei a trabalhar no Hospital Modelo de recepcionista, eu já trabalhei como pajem em creche, fui agente da dengue, já trabalhei, e eu sempre trabalhei com o público, porque antes de trabalhar aqui eu fiquei 8 anos sem trabalhar com a carteira puxada, eu trabalhava em salão de beleza, eu fazia unha, a sobrancelha. (ACS 6)

Nesse sentido, é recorrente na fala das ACS a descrição de uma trajetória profissional marcada pela passagem por vários tipos de ocupações, a maioria não formal, e que exigem baixa escolaridade e consequentemente menores salários, ou seja, a baixa qualificação acaba por aumentar a exploração da força de trabalho destas mulheres e alimentar um ciclo marginal que não é fácil de ser rompido.

Contudo, é preciso ressaltar que antes de vencer este obstáculo da inserção no mercado de trabalho (esfera pública), ainda que de forma precarizada como acabamos de discutir, estas mulheres ainda precisam vencer no âmbito doméstico (esfera privada) a força da opressão de gênero, ou seja, a dominação masculina frente ao seu papel de cuidadora do lar e dos filhos, frutos históricos e culturais da divisão sexual do trabalho e do patriarcalismo(Strey, 2007).

Eu vivi, morei com o pai dos meus filhos. Eu tive 3 filhos com ele.Eu era muito novinha, na realidade, com 17 anos eu já me juntei com ele, já fiquei grávida... Fui morar junto , ai depois...só era briga, briga, briga... ()'Mulher minha não trabalha. Só era para cuidar, criar... cuidar das casas e dos filho'. Ai até ai então eu tive até a oitava série, primeiro colegial. Ai faltava o segundo e o terceiro. Depois quando eu separei dele, ai eu fui estudar... Fiz o supletivo para ser mais rápido, eu já tava com idade. (ACS 1)

Há, ainda em meio á desigualdade de gênero, a questão da violência contra a mulher que nem sempre aparece de maneira explícita nas falas, mas que estão ali presentes no cotidiano familiar. Segundo Araújo(2008), o papel exercido pelos homens na sociedade patriarcal acaba por naturalizar-se e conferir-lhes uma "licença" para violentar a mulher como uma maneira de reiterar sua dominação. Por sua vez, estas mulheres, vítimas da violência masculina, acabam por se sujeitar a estas situações devido a diversos fatores como, por exemplo, dependência emocional, financeira, preocupação com os filhos, idealização do amor e casamento, desamparo e medo de enfrentar a vida sem um companheiro.

Não deu certo ele não mudava o jeito dele.... Ai eu... pedi separação. Ai ele: 'não, não, não'. Ai ele resolveu trabalhar fora, pra ver se, a gente tentava ainda mais uma vez... Nesse meio tempo engravidei da menina Ai, quando ele vinha de viagem... bebia, bebia muito, me maltratava muito. (ACS 1)

Além disso, o lugar da mulher de mantenedora do cuidado familiar na divisão sexual do trabalho se perpetua, vai passando de geração em geração. Na fala a seguir é possível perceber que para esta mulher o projeto da entrada formal no mercado de trabalho precisou ser adiado em função do cuidado a um dos membros doentes da família. E denuncia ainda a perpetuação do papel feminino no âmbito doméstico ao apontar o ritual cultural/familiar da passagem do "bastão" do cuidado à sobrinha quando esta completa a maioridade libertando, consequentemente, a geração feminina anterior desta tarefa(Rodrigues, 2005):

...comecei a trabalhar com 21 anos, meu primeiro serviço foi de agente comunitária porque meu pai teve derrame e todo mundo trabalhava então eu não pude trabalha cedo... (sinais de inconformada)... aí com 21 anos minha sobrinha tava maior e aí ela já podia ajudar cuidar do meu pai e aí eu comecei a trabalhar de agente de saúde era PACS não era PSF ainda... (ACS 7)

Da precarização da entrada no mercado de trabalho à dominação e violência masculina no âmbito doméstico, estas mulheres têm histórias marcadas por situações capazes de produzir afetações negativas no corpo e na subjetividade das mesmas.

Ocupar este lugar de subalternidade, tanto no âmbito privado quanto na esfera pública, teve repercussões importantes na potência de ação destas mulheres fazendo com que permanecessem diminuídas, secundadas ou reprimidas, durante determinado período de suas vidas e trazendo marcas indeléveis, balizadas por afetos como o sofrimento ético-político e a humilhação.

Nesse sentido, o sofrimento ético-político compreendido por Sawaia(2010, p. 106) como "a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade" e a humilhação social(Gonçalves-Filho, 1998) são afetos que acompanham a trajetória de vida destas mulheres. Sob a vivência desse sentimento a concepção espinosana nos aponta que nossa potência (conatus) só pode reagir e não agir. Triste, nossa potência de agir torna-se potência de padecimento transformando e reduzindo nossa existência ao mero "sobreviver" diante das questões da vida.

Ainda sobre o lugar periférico ocupado por estas mulheres na dinâmica cotidiana apostamos na maneira como a condição de vulnerabilidade social, econômica, cultural afetam de forma contundente as oportunidades e escolhas das mulheres e acabam por determinar a posição/lugar que estas vão ocupar dentro da engrenagem econômica e social(Rodrigues, 2005).

Embora paradoxalmente o trabalho como ACS corrobore para a divisão sexual do trabalho em função das demandas do capital incorporando o trabalho feminino de forma precária e desigual, é também responsável por dar significado e sentido ao cotidiano de violência e opressão vivenciado por estas mulheres das camadas mais pobres da população.

Dentre estes sentidos e significados, no discurso da maioria delas, sobretudo, as que têm filhos em idade escolar aparece o trabalho de ACS como grande facilitador na organização da logística doméstica/familiar. Trabalhar no território onde residem permite com que as mesmas deem conta da rotina de horários e cuidados que gira em torno do acompanhamento das crianças, principalmente porque a maioria desempenha esta tarefa sozinha, sem a ajuda do companheiro.

Então eu gosto de trabalhar aqui, (...) facilita também, às vezes, morar perto de casa, o fato de (breve hesitação) filhos.Que também dá pra gente trabalhar. Se eu trabalhasse em Santos eu não conseguiria "consolidar" o horário de deixar o filho na escola e vir ao trabalho. Então já é um ponto positivo trabalhar perto de casa. (ACS 2)

Estes resultados corroboram para a reflexão da naturalização injusta da divisão sexual e social do trabalho na medida em que as ACS enxergam como uma vantagem trabalhar perto de casa e dos filhos, tomando para si exclusivamente a tarefa do cuidado. Além disso, estas mulheres parecem se ver impelidas a se submeter a tais condições por necessidades objetivas de sobrevivência (Barbosa, 2012).

A construção que fizemos até o momento nos permite depreender que a jornada dupla enfrentada por estas mulheres na manutenção do cotidiano de vida tem seu lado de padecimento, mas também de potência de ação.

Esta experiência de se tornar ACS em território de alta vulnerabilidade social tem ampliado o repertório com outras experiências e vivências que podem viabilizar a potência de ação destas mulheres. Nesse sentido, o exercício dessa prática profissional tem oportunizado o encontro entre mulheres no território, promovendo além dos bons encontros (Strappazzon & Maheirie, 2016) o exercício de politização dos sujeitos, a partir da troca, do fortalecimento de vínculos afetivos e da possibilidade de rompimento com um ciclo de violências de toda ordem- de gênero; doméstica; do Estado.

Assim, ser ACS em um território marcado pela presença concreta dos processos psicossociais da exclusão e, sobretudo, da violência de gênero, faz destas mulheres, referência, modelo de superação para tantas outras mulheres que sofrem cotidianamente no silêncio dos barracos.

() ela apareceu aqui (na Unidade de Saúde) na terça feira e ela veio me pedir ajuda. Ela tava chorando e ela conversou comigo () Falei pra ela também que eu também tomava medicação, que não era só ela. Outras pessoas também tomam e que a gente consegue melhorar um pouco se a gente arrumar alguma coisa pra ocupar a mente e tal, então eu expliquei várias coisas pra ela. Quando ela saiu daqui ela me deu um beijo e falou eu gostei muito de conversar contigo () porque um dia eu posso estar passando o que você passou pra mim e eu posso ta passando pra outras pessoas. E eu achei isso muito gratificante! (ACS 3)

É na satisfação e na alegria estabelecidas nos bons encontros (Sawaia, 2010; Strappazzon & Maheirie, 2016)com as famílias e os sujeitos sob seus cuidados que as ACS conseguem passar do padecimento à potência de ação, da heteronomia à autonomia e transformarem-se em referência e exemplo de força e superação para outras mulheres na comunidade. É desta maneira que apostamos na sua potência de ação ao ocuparem o lugar de profissionais da saúde neste território.

Falar a partir deste núcleo profissional o de ser ACS no território específico da Vila dos Pescadores é falar de mulheres que vem conseguindo romper com o ciclo de sofrimentos, humilhações e padecimentos sob as quais são submetidas em seu cotidiano e dar novos sentidos e significados ao lugar social ocupado por elas na comunidade e, por conseguinte, na vida pessoal e profissional.

 

Considerações Finais

Destacar a categoria de Agente Comunitário de Saúde no processo atual de reestruturação produtiva do sistema capitalista, a partir de uma perspectiva crítica de gênero, tendo como cenário, o território de vulnerabilidade social, nos remeteu a reflexões importantes na compreensão do lugar social ocupado por mulheres pobres em sociedades de economia periférica, como é o caso do Brasil.

Da esfera privada à esfera pública percebemos o lugar periférico ocupado por estas mulheres na divisão sexual e social do trabalho. Nesse sentido, dar visibilidade a esta perspectiva de gênero trouxe à tona novamente a problemática das relações sociais em nossa sociedade e a maneira como essas vem se organizando sócio-historicamente diante das transformações do capital, para manter a situação de subordinação da mulher enquanto força de trabalho produtiva em ambas as esferas.

Sob um cotidiano marcado pela contradição entre a naturalização de alguns papéis impostos social e culturalmente e a luta pela reconstrução e ressignificação de seu lugar social na engrenagem política/econômica de seu tempo, estas mulheres trazem consigo a marca da vivência concreta dos processos psicossociais de exclusão reiterada diariamente por diversos tipos de violência.

Em vista da discussão feita até aqui, apostamos que a produção da saúde em território de vulnerabilidade social encontrará sentido e significado a partir do fortalecimento dos vínculos afetivos estabelecidos entre essas mulheres, possibilitando encontros ético-políticos capazes de politizar e fortalecer as identidades femininas.

 

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Recebido em 06/06/2017
Aprovado em 05/06/2019

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