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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2019

 

O mal-estar do coletivo: uma análise sobre as liberdades individuais dentro de uma ecovila

 

Civilization and its discontents of the collective: an analysis of individual freedoms in an ecovillage

 

El malestar del colectivo: un análisis sobre las libertades individuales dentro de una ecovilla

 

 

Andrea Douat Loyola Cavalcanti

Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ/IP. Jornalista formada pela PUC-Rio, com ênfase em jornalismo corporativo

 

 


RESUMO

Este trabalho visa analisar como as liberdades individuais são expressas em uma proposta de convivência voltada para o coletivo, como são as ecovilas. O presente estudo contribui para uma reflexão sobre a vida em comunidade, assim como para criar um debate sobre trocas e concessões possíveis entre indivíduo e sociedade. A partir de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa (com observação participante e entrevistas), foi possível perceber que os conflitos fazem parte do cotidiano local, mas que a convivência se torna viável com construções de estratégias e propósitos - que podem ser importantes para a elaboração de alternativas para a sociedade atual. Percebemos que os desafios para se construir uma vida com senso de comunidade em uma ecovila são diários, e são observados por seus moradores de diferentes formas - ao mesmo tempo em que eles ainda estão buscando conjugar as liberdades individuais com as necessidades coletivas, em um processo contínuo.

Palavras-chave: Ecovilas. Comunidades sustentáveis. Indivíduo. Liberdades individuais.


ABSTRACT

This article aims to analyze how individual freedoms are expressed in a proposal of coexistence geared towards the collective, as are ecovillages. The present study contributes to a reflection on life in a community, as well as to create a debate about possible exchanges and concessions between individual and society. From a field research, with a qualitative approach (with participant observation and interviews), it was possible to perceive that conflicts are part of local daily life, but that coexistence becomes viable through constructions of strategies and purposes - which may be important for the elaboration of alternatives to the current society. We realize that the challenges to building a community-based life in an ecovillage are daily, and are observed by its residents in different ways - at the same time as they are still seeking to combine individual freedoms with collective needs, in a continuous process.

Keywords: Ecovillages. Sustainable communities. Individual. Individual freedoms.


RESUMEN

Este trabajo busca analizar cómo las libertades individuales se expresan en una propuesta de convivencia orientada hacia el colectivo, como son las ecoaldeas. El presente estudio contribuye a una reflexión sobre la vida en comunidad, así como para crear un debate sobre intercambios y concesiones posibles entre individuo y sociedad. A partir de una investigación de campo, de abordaje cualitativo (con observación participante y entrevistas), fue posible percibir que los conflictos forman parte del cotidiano local, pero que la convivencia se torna viable a través de construcciones de estrategias y propósitos - que pueden ser importantes para la elaboración de alternativas a la sociedad actual. Se percibe que los desafíos para construir una vida con sentido de comunidad en una comunidad son diarios, y son observados por sus habitantes de diferentes formas - al mismo tiempo que éstos todavía están buscando conjugar las libertades individuales con las necesidades colectivas, en un proceso en curso.

Palabras clave: Ecoaldeas. Comunidades sostenibles. Individuo. Libertad individual.


 

 

Introdução

Nas últimas décadas, o mundo presenciou inúmeros avanços tecnológicos e materiais. Mas, ao contrário do esperado, esse avanço não trouxe, necessariamente, uma melhoria no grau de satisfação dos indivíduos (Bauman, 1998). Níveis altos de estresse, expectativas frustradas e consumismo desregulado, entre outros fatores, acabaram por gerar um mundo onde há um grau crescente de insatisfação e ansiedade (Bauman, 1998). A satisfação pessoal foi trocada pela falsa sensação de segurança dada pelo coletivo, num movimento analisado por Sigmund Freud (1929) no seu texto "O Mal-Estar na Civilização".

Freud afirmava que sempre ganhamos algo em troca de alguma perda. E explicava ainda que a civilização moderna renunciou ao instinto natural humano, assim como trocou a "liberdade de agir por seus próprios impulsos" por beleza, pureza e ordem, mantidas com grandes sacrifícios em nossa sociedade. A civilização, por sua vez, dá em troca uma sensação de proteção e segurança, mas traz consigo a insatisfação do indivíduo, que precisa abrir mão de sua busca por prazeres de ordem pessoal (Freud, 1976). O mal-estar se configura na oposição entre liberdade/prazer e segurança, em que o indivíduo troca parte de sua liberdade pela segurança do coletivo.

Quase 70 anos depois, Zygmunt Bauman (1998) trouxe à tona essa reflexão, contextualizando-a para a atualidade, em que os ideais de beleza, pureza e ordem continuam presentes, mas agora realizados por meio do desejo e do esforço individuais. A princípio, temos a impressão de que o problema foi solucionado: unimos as necessidades sociais com a liberdade e expressão individuais. No entanto, Bauman ressalta que a antiga regra de perdas e ganhos, analisada por Freud, continua valendo: sempre se ganha alguma coisa em troca de outra. Só que, no presente, a ordem foi invertida e homens e mulheres "trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança, por um quinhão de felicidade" (Bauman, 1998, p. 10). Para o autor, a necessidade de proteção e ordem construída pelas cidades acabou gerando seu inverso: conflitos contínuos e uma profunda sensação de insegurança.

Norbert Elias (1994), por sua vez, afirma que essa oposição se faz por uma visão que diferencia o indivíduo da sociedade, como se ele estivesse "solto" e a sociedade fosse uma entidade à parte. Assim, o homem transfere suas frustrações para esse algo externo, enxergando-o como um limitador para a realização de seus desejos e necessidades.

Apesar dos "mal-estares" (ou talvez por conta deles), vemos despontando, ao longo das últimas décadas, projetos que apontam para um estilo de vida mais natural e sustentável (Gilman, 2013). Existe cada vez mais a necessidade de se pensar em novas alternativas de convivência, de modos de produção e de organizações sociais que também se relacionem com os ecossistemas (Loureiro, 2012). Dentre as alternativas viáveis, as chamadas ecovilas despontam como uma realidade em diversos países, e também no Brasil.

As ecovilas podem ser definidas como comunidades intencionais sustentáveis (Kasper, 2008) por serem construídas com uma visão ecológica de sustentabilidade. A ideia de ecovilas foi incorporada pelas Nações Unidas no Programa de Desenvolvimento de Comunidades Sustentáveis (SCDP/UNDP) e, em 1998, elas foram incluídas na lista da ONU das 100 melhores práticas para o desenvolvimento sustentável.

Dessa forma, as ecovilas surgem como uma proposta de vida comunitária, em que o homem está inserido na natureza, e não fora dela. As estruturas de trabalho, moradia e convivência social são pensadas com o intuito de respeitar os ciclos naturais e causar o menor impacto possível. O objetivo deste artigo é estudar como as comunidades intencionais lidam com a questão da liberdade individual e como são expressos e realizados os desejos individuais em uma perspectiva voltada para a coletividade; além de observar as possibilidades de discussão sobre ambiente e sociedade, a partir da experiência em uma ecovila. Para isso, partimos da seguinte questão central: como conjugar as necessidades e liberdades individuais com as necessidades comunitárias ou coletivas?

A análise sobre essas questões têm como objetivo mais amplo contribuir com reflexões sobre a convivência em comunidade, assim como criar um debate amplo sobre as trocas e concessões possíveis entre indivíduo, sociedade e ambiente. Dentre as opções de pesquisa social, escolhemos a pesquisa qualitativa, exploratória, de estudo de campo, realizada em uma ecovila, conforme os parâmetros necessários. A coleta de dados foi feita a partir de observação participante, com diário de campo e entrevistas semiestruturadas.

Nas próximas seções, serão apresentados os conceitos e autores que permeiam a discussão teórica nesse estudo (ii); a ecovila pesquisada (iii); a metodologia utilizada na pesquisa (iv); os resultados obtidos com a pesquisa e a análise destes (v); e as considerações finais (vi).

 

O conceito de ecovilas: a relação entre indivíduo, comunidade e ambiente

Ecovilas são comunidades intencionais. Ou seja, um dos principais fatores que diferenciam uma ecovila de outro tipo de comunidade é o fato de que ela foi projetada e construída (seja a partir do ponto "zero" ou de uma comunidade inicial) com um ou mais propósitos intencionais (Degenhardt, 2011). Sustentabilidade e interações sociais e ambientais estão entre os seus grandes pilares. Podemos definir, ainda, que as ecovilas utilizam "processos de participação local para integrar holisticamente as dimensões ecológica, econômica, social e cultural, da sustentabilidade" (Gen, 2010).

É preciso deixar claro, no entanto, que nenhuma ecovila é 100% sustentável, nem em termos ambientais nem em termos econômicos (Degenhardt, 2011). Entende-se que todos os sistemas estão interconectados e que o equilíbrio está na troca e na interdependência. Assim, e buscando um equilíbrio, as ecovilas procuram manter sistemas justos de trocas (monetárias, de produtos/serviços, e também sociais/culturais) com as comunidades do entorno e com a sociedade onde estão inseridas.1

As ecovilas se organizam segundo conceitos de liderança e governança próprios, discutidos e acordados pelo grupo. Esses acordos geralmente se dão por assembleias, conselhos e reuniões regulares. Cada ecovila tem sua própria regulação interna, geralmente explicitada em um estatuto. Muitas se baseiam nas diretrizes geradas pela Global Ecovillage Network (GEN) - Rede Global de Ecovilas - e por grupos locais que servem como pontos de discussão para a organização de ecovilas e de troca de informações, como o Conselho de Assentamentos Sustentáveis das Américas (Casa) -"braço" da GEN na América Latina.2

Degenhardt(2011) delimita cinco dimensões para o desenvolvimento e autocompreensão das ecovilas: comunidade, autonomia, meio ambiente, intencionalidade e indivíduo. Assim, as ecovilas se diferenciam das comunidades tradicionais essencialmente por sua intencionalidade, mas também por sua aspiração ao desenvolvimento humano e ao preenchimento das necessidades individuais e de realização pessoal; pela interação harmônica vivida em comunidade e pelas tomadas de decisões coletivas; pela possibilidade de autonomia (ainda que parcial, já que a maioria das ecovilas depende da produção externa e da comunicação com outras formas de comunidade); e por um conceito de ética integrada ao ambiente. Outra característica marcante que diferencia as ecovilas de outras comunidades tradicionais e/ou intencionais, como quilombolas e kibbutzim, é a diversidade de seus integrantes. De forma geral, não há necessariamente uma coesão étnica, cultural ou social entre os moradores da ecovila - que podem ter histórias de vida bastante distintas.

Podemos dizer, ainda, que as ecovilas criam um campo fértil para um ambiente social colaborativo, no qual as pessoas buscam uma "vida em harmonia consigo mesmas, com os outros seres e com o planeta" (Svenson, 2002, p. 10).

 

Comunidade e sociedade: o que une e separa os indivíduos

Não há um consenso sobre o conceito de comunidade, já que muitos autores tratam dessa temática com diferentes focos, dando mais importância a um ou outro elemento. No entanto, sabemos que, desde sempre, o homem busca agrupar-se em comunidades (Tönnies, 1947). Tönnies entende as relações comunitárias como aquelas que precedem as societárias, ou seja, aquelas que são formadas por laços sanguíneos, de localização e de amizade, ou espírito. O autor cunhou o termo Gemeinshaft (comunidade) em oposição ao termo Gesellschaft (sociedade). Para ele, enquanto as comunidades de sangue e de local em comum constituíam vínculos próprios da natureza animal, as de espírito constituem vínculos pela afinidade intelectual ou mental (Brancaleone, 2008). E é nesse contexto que podemos enquadrar as ecovilas como agrupamentos em que os indivíduos se unem por afinidades mentais, valores e ideais em comum.

Nas vilas e aldeias, a sensação de comunidade é vivida de forma intensa nas relações de amizade e parentesco. Essas relações e sentimentos comunitários vão se perdendo à medida que o homem constitui as cidades (Brancaleone, 2008). Assim, as ecovilas partem de uma busca também por um retorno do sentimento comunitário.

Nesse estudo, utilizaremos o termo "comunidade" não como uma categoria do escopo das Ciências Sociais, mas sim como um valor ou estilo de vida, relativo ao estilo de "vida comunitária" - indicando, assim, uma dinâmica de convivência de pessoas em um espaço delimitado, onde há objetivos e atividades em comum.

Para Bauman, esse conceito de comunidade está relacionado a uma ideia de "paraíso perdido" para onde queremos retornar (Bauman, 2001). Dessa forma, partimos do princípio (que, mais tarde, pôde ser observado ao longo do trabalho de campo e das entrevistas) de que uma comunidade intencionalmente projetada - caso das ecovilas - irá muitas vezes conviver com esse imaginário de "comunidade ideal", diante das possibilidades reais.

Bauman aponta ainda que há uma certa "romantização" da ideia de comunidade, como algo que ainda não está ali, mas que está para chegar. Nesse sentido, o conceito de comunidade algumas vezes se aproxima do conceito de Utopia criado por Thomas Morus (2002/1516): um lugar onde as pessoas vivem em harmonia num sistema igualitário e trabalham em prol do bem comum. A comunidade seria, de forma similar, um lugar seguro e bom, "o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, ao nosso alcance - mas do qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir" (Bauman, 2001, p. 9).

Para o autor, a palavra "comunidade" evoca aquilo do qual sentimos falta e que poderia nos trazer felicidade e segurança. Assim, percebemos que a ideia de "comunidade" se aproxima de um ideário abstrato, de um desejo ou, ainda, de um objetivo almejado.

A questão da obediência às normas é, aliás, quase imperativa para o "bom funcionamento" de uma comunidade (Bauman, 2001). Assim, para que a comunidade aconteça, as liberdades individuais precisarão ser limitadas. Independentemente dos valores atribuídos a essas limitações, a questão principal será sempre a eterna tensão entre a liberdade individual e as necessidades do coletivo. Até que ponto vale a pena sacrificar um ou outro lado, e qual deles podemos ou devemos sacrificar? A questão não é tanto saber se a libertação do indivíduo das opiniões herdadas e da garantia coletiva contra as inconveniências da responsabilidade individual acontece ou não - mas se isso é bom ou ruim (Bauman, 2000, p. 194).

Esse é o paradoxo do comunitarismo. Para realizar um projeto comunitário, é preciso "apelar às mesmíssimas (e desimpedidas) escolhas individuais cuja possibilidade havia sido negada" (Bauman, 2000, p. 195).

Bauman aponta, ainda, que a segurança proporcionada pela comunidade e a liberdade3 individual são inversamente proporcionais: quanto mais se tem uma, menos se tem outra. Dessa forma, o autor vê o comunitarismo como uma reação à acelerada "liquefação da vida moderna" e ao desequilíbrio entre liberdade e as garantias individuais (2000, p. 195). Voltamos, assim, à questão central, quando nos questionamos como fica a liberdade individual em uma proposta comunitária.

 

O indivíduo e a liberdade: da modernidade à pós-modernidade

Bauman (2000) faz uma distinção entre a liberdade subjetiva e objetiva. Para o autor, a tal liberdade pregada de forma geral pelas pessoas no ocidente é de tal forma subjetiva que haveria ainda a possibilidade de que "o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade" (Bauman, 2000, p. 24). Assim, a liberdade não estaria ligada a fatos concretos, mas sim a um sentimento, a uma necessidade de liberdade sutil, sentida de forma única pelos indivíduos, e não necessariamente relacionada a uma liberdade mais sólida, objetiva (Bauman, 2000, p. 25).

Bauman apresenta duas questões colocadas pelos filósofos modernos quanto à liberdade: a primeira sugere que talvez os homens prefiram não pensar sobre ela, já que essa liberdade traria incômodos que as pessoas prefeririam não saber. Como num Mito da Caverna (Platão, 381 a.C.) às avessas, o homem, diante da possibilidade de ser livre, escolheria continuar na ilusão. Já a segunda assume que talvez esse questionamento sobre os benefícios que a liberdade traria tenha sua razão de existir. Nesse caso, o questionamento seria se a liberdade de fato implicaria em trazer mais felicidade.

O autor segue exemplificando o pensamento da época até chegar ao questionamento central dessa questão: a submissão às normas de sociedade, em vez de limitar, traria mais liberdade? Para alguns filósofos da era moderna, como Durkheim (1972), o homem seria, até certo ponto, dependente da sociedade - mas nisso não haveria contradição, e sim uma dependência libertadora (Durkheim, 1972, p. 115). A regularidade de modos e ações traria uma tranquilidade ao indivíduo, que não teria que lidar com as incertezas constantes que viriam, caso tivesse de decidir tudo sozinho.

Já para Bauman, a liberdade na "era pós-moderna", concebível e possível de alcançar, já foi atingida (2000, p. 30). No entanto, essa liberdade - que é uma liberdade sobretudo de reflexão e de críticas - não se aprofunda o suficiente para enxergar os mecanismos complexos da sociedade. Assim, apesar de toda a liberdade para questionar e criticar, não ganhamos, junto com isso, uma maior capacidade de ação e de mudança, pelo contrário. Nos tempos "de nossas avós", o trabalho era solidificado - aquilo que causava desconforto pela falta de flexibilidade, por outro lado, trazia segurança pela estabilidade (Bauman, 2000). Nos tempos atuais, a estabilidade não é mais um valor universal; valoriza-se mais a variedade de opções e possibilidades, em especial em relação ao trabalho. Cria-se a ilusão de que as chances infinitas trazem mais liberdade. E que liberdade seria essa? A liberdade de poder tornar-se qualquer um, qualquer coisa que se queira ser (Bauman, 2000).

No entanto, essa liberdade não trouxe consigo mais satisfação (Bauman, 1998). O consumismo incentivado pela sociedade atual surge como uma forma de assegurar essa liberdade que, muitas vezes, se mistura com o conceito de identidade do indivíduo, de sua afirmação como sujeito individual e único. Na contramão disso, as ecovilas buscam ações de consumo responsável (Borelli, 2014), relacionadas a uma ideia de ecologia profunda,4 que considera que as ações individuais estão todas interconectadas, como numa trama.

 

A ecovila pesquisada

Para a presente pesquisa, escolhemos como objeto de estudo uma ecovila de 48 hectares, localizada na Área de Proteção Ambiental (APA) da Serra da Mantiqueira (MG).

A escolha do local se deu, em grande parte, por a ecovila já ter um histórico de sete anos de existência e diversidade de membros, além de ter uma estrutura de tomada de decisões e de gerenciamento de conflitos que facilitava observarmos a questão central do nosso estudo: a relação entre as necessidades individuais e as necessidades coletivas (o processo de tomada de decisões será detalhado na seção Tomadas de decisões e conflitos do presente artigo).

A ecovila atua como um centro educacional transdisciplinar rural-urbano, onde são praticadas técnicas de permacultura, bioconstrução e agroecologia. Até o momento, não há um projeto de renda comum entre os membros da ecovila. Sendo assim, cada um é responsável pelo próprio sustento financeiro, com diferentes atividades e fontes de renda.

O local central da ecovila fica na casa onde está a cozinha - o mais movimentado da comunidade e que serve de ponto de encontro para todos. Ali são feitos os almoços comunitários, que, por enquanto, são as principais atividades comuns a todos os moradores.

Na época do levantamento de dados, a comunidade tinha quase sete anos de existência, e um total de 22 membros, divididos da seguinte forma: oito membros efetivos (aqueles que, por terem pago a "joia", valor relativo ao preço do terreno dividido pelos moradores, podem construir casas); 14 membros colaboradores (que não podem construir casas, mas podem morar na ecovila); e três aspirantes (que estão passando pelo processo para se tornarem membros).

Os membros, tanto efetivos quanto colaboradores, não necessariamente moram na ecovila (na época, eram 13 moradores), mas precisam estar engajados em grupos de trabalho da ecovila, participar das atividades, das reuniões e das tomadas de decisões na comunidade.

Uma das principais atividades que a ecovila desenvolve é o curso Educação Gaia - Design em Sustentabilidade, programa associado à GEN - Rede Global de Ecovilas, com o endosso da Unitar (ONU).

Em sua organização estrutural, a comunidade pratica uma ferramenta de tomada de decisões definida como "governança circular", na qual todos os participantes têm voz ativa e as decisões são tomadas por consenso. No processo de consenso, as questões são apresentadas e debatidas pelos presentes até que se encontre uma proposição que satisfaça a todos, ou a todos menos um membro, chamado de "consenso menos um". Para facilitar as decisões em grupo, são realizadas uma reunião semanal com os membros presentes na ecovila e uma reunião mensal com todos os membros.

O trabalho da ecovila é organizado e dividido por meio grupos de trabalho (GTs). O grupo incentiva que os GTs tenham lideranças circulares, ou seja, se revezem nos grupos, embora isso nem sempre aconteça, porque alguns líderes desenvolvem aptidões específicas para determinadas tarefas.

 

Metodologia

Este estudo se baseia em uma abordagem qualitativa e utilizou observação participante e entrevistas semiestruturadas. A observação em campo foi realizada ao longo de oito dias consecutivos na ecovila escolhida, com autorização prévia dos responsáveis, e com chegada no local no dia 20 de março de 2014 e saída no dia 28 de março de 2014. Utilizamos em todo o processo o diário de campo como instrumento de registro da observação e posterior material de análise. As entrevistas foram realizadas com seis indivíduos, após entrevista-piloto, realizada para a elaboração do roteiro definitivo, de perguntas semiestruturadas.

As entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente, para posterior sistematização dos dados e análise. As respostas foram separadas em temáticas principais (já indicadas pelas entrevistas) e as categorias foram organizadas por meio de falas que surgiram espontaneamente nas respostas, e que depois foram agrupadas por conceitos e palavras similares que emergiam de forma repetida e significativa.

Neste estudo, a participação da pesquisadora esteve incluída diretamente em atividades cotidianas da ecovila, tais como: limpeza de quartos e banheiros, alocação de resíduos para compostagem e atividades na cozinha (preparação de alimentos, limpeza e organização do ambiente etc.). É importante ressaltar que, durante o trabalho de campo, estiveram presentes também alguns voluntários e as atividades da pesquisadora foram inseridas nas atividades do grupo. As atividades foram indicadas pela pessoa responsável pelo grupo naquela semana: no caso, um membro efetivo da ecovila.

Assim, foi interessante notar que, na maior parte do tempo em que a pesquisadora esteve em campo, as pessoas agiam como se ela fosse apenas mais uma voluntária (embora a observação tenha sido informada previamente a todos os presentes). Essa indistinção trouxe, de certa forma, o benefício de facilitar a observação do cotidiano de forma mais natural, com seus conteúdos ficando em maior evidência. O mesmo não pode ser dito das entrevistas, momento em que ficou claro que a figura da pesquisadora estava bastante evidente para os entrevistados.

Após a realização da entrevista-piloto, o roteiro de entrevistas foi elaborado com questões semiestruturadas, dando assim espaço para a inserção de novas questões surgirem. A história de vida também foi um método utilizado na forma de história de vida tópica (Minayo, 1993, p. 59), focalizando a etapa de vida dos entrevistados, que abrangia desde os últimos trabalhos antes da entrada na ecovila, passando pelo início de seu interesse e envolvimento com a comunidade em questão até a entrada na comunidade.

Assim, a história de vida não foi realizada como um item em separado, mas sim como uma abordagem da entrevista, o que é totalmente compatível com a metodologia adotada. Segundo Plummer (2001), as pessoas contam em suas histórias o que lhes é importante, sob seu ponto de vista.

 

Limitações da pesquisa

Consideramos importante relatar que, durante a pesquisa, a ida a campo foi adiada algumas vezes, ao longo de quase quatro meses, por falta de "quórum", já que foi delimitado como fator essencial para o trabalho de campo um mínimo de seis membros (efetivos ou colaboradores - classificação no perfil dos entrevistados) que estivessem presentes, de forma concomitante, durante o trabalho de campo na ecovila. Oito dias foi o período de tempo que conseguimos com essa delimitação, pois, nos períodos anteriores ou posteriores a este, havia um número de membros menor a no local (entre idas e vindas de membros).

 

Perfil dos entrevistados

Foram entrevistadas seis pessoas, sendo três homens e três mulheres. Escolhemos fazer o recorte pelas pessoas presentes na ecovila durante as atividades de observação participante e que fossem membros efetivos (2) ou colaboradores (4), ou seja, ficariam de fora da pesquisa os aspirantes, as crianças, os funcionários contratados, os voluntários e os visitantes. Para facilitar a visualização dos perfis, traçamos o Quadro 1.

 

 

Dos entrevistados, apenas dois possuem casas próprias na ecovila. Entre os demais: um possui casa na cidade (apesar de também utilizar uma das casas da ecovila como "casa temporária") e os demais membros vivem em casas temporárias na ecovila. Dos seis entrevistados, cinco mantêm trabalhos e atividades fora da ecovila, além de também executarem tarefas e trabalhos na comunidade. A maioria (4) tem alguma fonte de renda externa aos seus trabalhos atuais - tais como aluguel de imóveis e economias anteriores, entre outras - não dependendo portanto somente de sua renda atual para seu sustento. Duas pessoas entrevistadas têm filhos pequenos, de cinco e três anos, que moram com elas na comunidade.

 

As expectativas e os desafios da vida comunitária

A convivência e a importância do "estar junto"

Percebemos, ao longo deste estudo, que buscar um senso de comunidade, onde as relações humanas são mais estreitas, é um dos principais motivos que levam as pessoas a buscarem uma vida em comunidade (Bauman, 2001; Sawaia, 1996; Tönnies, 1955), portanto, não surpreende que essa temática tenha aparecido bastante nas falas dos membros.

Quando perguntados sobre o que os motivou a buscarem viver em uma ecovila, o motivo mais citado (5, de 6) foi "estarem juntos", "fazer juntos", ou seja, estarem em comunidade, junto a pessoas com quem compartilham ideais e com quem gostam de estar.

União, cooperação e estar em um local onde há um "sentimento de família" também foram motivos bastante citados durante as entrevistas, assim como a vontade de morar em uma região rural e a preocupação com questões ambientais.

Eu já realmente tinha essa coisa de querer estar perto da natureza, mas, ao mesmo tempo, eu tenho muito uma coisa muito social, eu gosto de gente, gosto de estar junto com amigos [...]. Então, essa proposta de viver em uma ecovila junta esses dois lados meus, de estar imersa e junta na natureza, mas ao mesmo tempo não perder as relações sociais, as trocas, porque você ganha muito quando você está em contato com outras pessoas, com o convívio. Então acho que foi por aí... (Entrevistado 4)

Entre todos os entrevistados, a sensação de pertencimento ao grupo apareceu em algum momento da fala como algo relevante e que impulsionava a pessoa a seguir naquele estilo de vida. Bauman (2001) traz uma reflexão sobre os sentimentos relacionados à palavra "comunidade". Para ele, fazer parte de uma comunidade ou estar em comunidade remete a uma sensação de bem-estar (Bauman, 2001). A comunidade acolhe, traz segurança, dá uma sensação de pertencimento. Na comunidade, ninguém está sozinho - há ajuda e apoio. Ou, pelo menos, é isso que a palavra evoca.

Os entrevistados consideraram como os principais motivos para a escolha de uma ecovila (em percentual de respostas, por ordem das mais comuns para as menos comuns):

 

 

Podemos perceber que a principal motivação para essas pessoas deixarem suas vidas na cidade e buscarem uma vida em uma ecovila aparece muito mais relacionada ao estilo de vida em comunidade do que somente à sustentabilidade. Ou melhor, podemos dizer que as preocupações com sustentabilidade e com questões ambientais - redução de impactos ambientais, escolhas e consumo conscientes etc. - fazem parte integrante desse estilo de vida em comunidade, que engloba ainda questões mais subjetivas, como a sensação de pertencer a um grupo que lhe dá suporte.

No entanto, apesar da convivência em grupo ter aparecido nas falas como um fator importante para a escolha da vida comunitária em uma ecovila, foram percebidos alguns conflitos entre as falas e as práticas durante a observação participante. Um exemplo disso foi visto durante a hora do almoço - momento citado por todos os entrevistados como o principal período do dia em que o grupo se reunia para fazer uma atividade em comum e "estar junto". Apesar disso, durante os oito dias de observação, somente em um dia o grupo (membros que estavam na ecovila naquele dia) se reuniu na casa principal, onde havia a cozinha coletiva, para fazer essa refeição juntos. Nos outros dias, uma parte dos membros moradores escolheu comer em suas próprias residências (alegando praticidade ou falta de tempo para se deslocar até a casa central) - e, em boa parte dos dias (cerca de 50%), um número muito pequeno (apenas dois ou três membros) se deslocou até a casa principal para compartilhar da convivência durante o almoço.

Foi observado também que, mesmo com a baixa adesão, a hora do almoço ainda era o momento em que os membros mais se encontravam na ecovila - sendo que (com exceção da reunião semanal) era raro, em outros momentos, ver o grupo se reunindo para atividades em comum (não estamos incluindo aqui os voluntários e visitantes que estavam presentes na ecovila). Essa contradição pôde ainda ser sentida nas respostas a outra pergunta feita durante as entrevistas, relativa às desvantagens de se morar em uma ecovila, quando a segunda resposta mais comentada (três respostas, em seis) foi "isolamento e distância da ecovila", e a terceira (duas respostas, em seis) foi "solidão".6

As observações citadas nos remetem novamente à ideia já apresentada de que a comunidade, muitas vezes, está nesse limiar entre a realidade e um conceito romântico de idealização, uma utopia a ser alcançada. Assim, a ideia de convivência em comunidade como um fator forte de motivação para a escolha da vida em ecovila se mostrou enraizada no ideal dos entrevistados, mas muitas vezes não se refletia no que era observado na prática (ou mesmo em outras falas).

Tomadas de decisões e conflitos

A ecovila pesquisada tem um sistema de decisão chamado de consenso. No consenso, as decisões passam por várias etapas de diálogo, até que se chegue a uma decisão satisfatória a todos, ou à grande maioria ("consenso menos um"). O consenso foi citado por todos, em algum momento, como sendo de grande valia para o entendimento em comunidade e uma ferramenta positiva para o respeito e escuta de todos.

É importante frisar que o conflito não é visto, necessariamente, como um problema, mas sim como parte de um processo natural e contínuo de aprendizagem, um exercício de convivência e de entendimento mútuo (Christian, 2003). É, sobretudo, um exercício de escutar e de ser escutado. E essa visão foi compartilhada amplamente pelo grupo entrevistado, aparecendo em muitas das falas. A palavra "escuta" também foi amplamente citada por todos os entrevistados, explicitando a valorização que o grupo dá a essa ação.

Durante a observação participante (e, em especial, durante a reunião semanal do grupo), pudemos observar que, mesmo com uma disposição visível dos membros para a escuta, o limite entre a tomada de decisão que deve ser de âmbito individual ou coletivo às vezes é tênue. Isso se evidenciou, por exemplo, em um momento de conversa informal após o almoço com um dos membros, que estava comentando sobre uma questão de Wi-Fi (algumas casas têm Wi-Fi, e outras não), e ele desabafou: "cada um resolveu o seu, mas não há uma solução em conjunto" (entrevistado 6). Nesse caso, um dos membros (que, na época, dava aulas on-line) instalou uma antena para captação de sinal de internet na sua casa, mas que tinha um perímetro curto de sinal, ou seja, outros membros que moravam em casas mais distantes precisavam andar até a casa desse morador (ou perto dela) para poder captar o sinal. Dessa forma, o problema de um (que tinha urgência em ter sinal de internet) foi resolvido, mas, para outros membros, a situação ainda continuava insatisfatória. Até o momento da pesquisa, a questão do Wi-Fi estava em discussão, mas ainda não havia sido completamente solucionada. O que nos remete novamente ao questionamento central deste estudo: até onde as ações podem atender ao mesmo tempo às necessidades individuais e coletivas - é possível conciliar as demandas?

Necessidades individuais × necessidades coletivas

Como já foi falado ao longo deste estudo, a tensão entre a liberdade das escolhas individuais e a segurança coletiva sempre existirá (Bauman, 2001). No entanto, percebemos na observação participante e nas entrevistas que há uma busca pelos membros em conjugar as necessidades de seus integrantes - ainda que, muitas vezes, isso fique mais em um lugar de "meta a ser alcançada" do que de algo que se consegue realizar na prática. A busca por ferramentas de diálogo e de acordos nos indica que essa é uma questão importante para o grupo.

Os conflitos advindos de uma oposição entre as liberdades ou necessidades individuais e as necessidades do coletivo, muitas vezes, eram vistos em acontecimentos comuns do dia a dia. Muitos desses pequenos conflitos apareciam na hora do preparo das refeições e escolha de ingredientes, por exemplo. Uma questão que estava sendo debatida naquele momento era o uso - ou não - de açúcar na ecovila e nas compras coletivas. Essas questões eram debatidas repetidamente durante as reuniões e em conversas informais. Mas era possível enxergar uma preocupação dos membros em olhar para os conflitos e buscar novas ferramentas de diálogo para que a comunicação fosse mais transparente e as decisões mais justas e satisfatórias.

Então, agora a gente vai começar a se capacitar para usar algum sistema restaurativo próprio, aquilo que foi dito na reunião, a gente tá num movimento. E eu acho que a base é essa. A gente não nega, às vezes negligência no sentido de postergar mais que o normal, a gente às vezes aceita soluções parciais, às vezes a gente aceita decisões por cansaço, mas isso tudo é fruto de estar existindo, estar praticando, ousar novas formas de decisão, por mais que a gente às vezes entra em atos autoritários sim, entra nos hábitos que a gente herdou. É uma questão de focar nos objetivos que façam a gente chegar aonde a gente quer chegar. (Entrevistado 2)

Dessa forma, apesar dos pequenos conflitos cotidianos serem constantes, estes não eram percebidos como fatores negativos na fala dos entrevistados - que são conscientes sim dessa tensão, mas que a enxergam como um processo natural e parecem lidar de forma atenta em relação à questão, não a negando e agindo com transparência, valor tido como essencial à ecovila.

Elas contam [as necessidades individuais]! Estamos todos atentos em falar de necessidades individuais. [...] Eu acho que eu sou o único da ecovila que curte rock'n'roll, por exemplo. E eu não posso ouvir rock'n'roll aqui, daí a minha vontade de ter o mais rápido a minha casa, meu som, e poder ouvir no volume que eu acho que mereço. A única necessidade que eu sinto hoje é essa. (Entrevistado 5)

Observamos também falas que sugerem que os conflitos são acolhidos como algo natural, que não deve gerar tensão ou uma sensação de limitação pessoal - embora possam trazer limitações práticas (que são entendidas como necessárias).

É uma fronteira eterna da vida em comunidade [a questão das necessidades individuais em oposição às coletivas]. O que eu acho fundamental é que isso não vire uma fonte de medo, de medo de poder fazer as suas escolhas livres, porque o grupo virou seu pai, seu patrão. Não pode. A tranquilidade de você ser livre, de poder ser quem você é, é fundamental de cultivar e se ter. (Entrevistado 2)

A gente é tranquilo em não concordar sobre tudo. A gente não fica insistindo em ter regras aonde a gente não chegou lá, aonde a gente não chegou a acordos fixos satisfatórios a todos. Então tá nessa área, a gente vai continuar divergindo, cada um vai continuar o que sempre foi, o trabalho vai ser pessoal de cada um. (Entrevistado 2)

As reuniões periódicas do grupo e as ferramentas de tomadas de decisões tentam progressivamente diminuir essas distâncias entre as necessidades individuais e coletivas. E, ainda, entender como essas necessidades "se permeiam", quais são seus pontos em comum. Dessa forma, a liberdade individual não está desconectada do coletivo. O "bem coletivo" não é visto como um limitador para o bem pessoal, mas sim fazendo parte do mesmo conjunto.

Para Norbert Elias (1994), por exemplo, a oposição entre sociedade e indivíduo acontece porque o indivíduo sente que sua alma, seu verdadeiro "eu", está sujeito a algo externo, que seria a sociedade. Esse indivíduo vê a sociedade como a imagem de uma pessoa que lhe rouba a liberdade. Assim, a liberdade individual do sujeito e as exigências feitas pela sociedade na qual ele está inserido, que estão em lados opostos, não poderiam, a princípio, coexistir. No entanto, o que vimos na ecovila estudada é que os indivíduos veem a comunidade como algo da qual ele faz parte. Eles são a comunidade. Assim, esse embate entre sociedade/comunidade e indivíduo não é sentido da mesma forma. Apesar de os conflitos entre interesses diversos acontecerem o tempo todo, há uma disposição maior do grupo em olhar para essas questões como suas, e em buscar ferramentas para acordos possíveis, que estarão sempre sendo revistos e rediscutidos, buscando um ambiente onde todos sejam vistos em suas necessidades (mesmo que haja desequilíbrios pontuais).

Essa integração entre ambas as partes só pode ser pensada em um conceito de não separação, em que o homem/indivíduo é parte integrante da sociedade, e não seu oposto, e em que os interesses coletivos são construídos incluindo os individuais (Elias, 1994). Essa ideia, não por acaso, é exatamente o cerne do conceito de ecovila: a integração entre indivíduo e ambiente como parte do mesmo sistema.

 

Considerações finais

Percebemos que o "estar junto" aparece muitas vezes na fala de seus membros, expressando algumas vezes um desejo ou necessidade, em outras um motivo de satisfação e de persistência ou, ainda, um desafio a ser superado.

Essa aparente contradição entre o desejo do convívio e suas limitações práticas aponta para o que Bauman descreve como um imaginário de "comunidade ideal" - expressa também nos valores utópicos apontados por outros autores -, em que a ideia de comunidade harmoniosa se apresenta como algo que ainda está por chegar (Bauman, 2001; Sawaia, 1996; Morus, 2002/1516). No entanto, podemos dizer, pelas falas apresentadas, que os membros da comunidade pesquisada estão - ao menos parcialmente - cientes dessas contradições (que são vistas ora como obstáculos, ora como desafios) e que, muitas vezes, esse ideário serviu como inspiração para manter as pessoas unidas em torno de um objetivo comum, que está sendo construído aos poucos, no seu próprio ritmo, conforme pudemos observar nas entrevistas.

Dessa forma, percebemos que há ainda uma dissonância entre o desejo de estar junto, convivendo e levando uma "vida em comunidade" (na esfera social, comunitária e sustentável de uma ecovila) e a realidade que, muitas vezes, mostra dificuldades práticas de convívio parecidas com as que conhecemos nas cidades. No entanto, é importante ressaltar que vimos também uma diferença marcante em termos de qualidade de convívio, quando a escuta é um valor incentivado, assim como a confiança mútua, o respeito à diversidade de ideias e a tentativa contínua de buscar acordos que, na medida do possível, satisfaçam os anseios de todos - individualmente e coletivamente.

Quanto à questão central a que essa pesquisa se propôs, e analisando com os autores pesquisados, notamos que a relação entre as necessidades individuais versus as necessidades coletivas se configura em um conflito que pode ser percebido pelos membros da ecovila, mas que, ao mesmo tempo, não é classificado como algo negativo, algo que deva ser negado ou eliminado. É visto - e isso foi falado, espontaneamente, diversas vezes durante as entrevistas - como uma construção contínua, algo que se busca aperfeiçoar, mesmo que, muitas vezes, não seja possível encontrar uma solução que atenda a todos (ao menos naquele momento).

Notamos que, assim como descrito por alguns autores, os entrevistados também percebem que suas necessidades individuais podem estar em harmonia com as necessidades coletivas, conforme valores maiores que unem o grupo. Dessa forma, esses interesses não são opostos ou contraditórios, como parecem num primeiro momento. Podem caminhar juntos, apoiando-se mutuamente. Mas, para isso, é necessário que a satisfação individual esteja no escopo das necessidades da comunidade.

As ecovilas reconstroem a vida em comunidade, trabalhando formas inovadoras de se relacionar, equilibrando cooperação com individualidade e unidade com diversidade (Kunze, 2012). Não que essa seja uma solução simples - e, a julgar pelo ponto de vista tanto dos autores pesquisados quanto das pessoas entrevistadas durante pesquisa, não é -, mas ainda assim pode indicar um caminho possível, que vale a pena ser perseguido.

Alguma tensão entre liberdade e segurança (e, portanto, entre individualidade e comunidade) sempre existirá; no entanto, abandonar a busca de um equilíbrio entre elas também não é uma opção (Bauman, 2001). Observamos, durante a pesquisa, uma busca para se conjugar os interesses individuais com os interesses coletivos. Mesmo que muitas vezes esse objetivo não consiga ser alcançado, essa preocupação existe.

Dessa forma, não temos aqui a intenção de encontrar a "solução mágica" para essa questão, nem sequer esgotar suas possibilidades. Mas esperamos com este estudo termos levantado questionamentos que possam ser ampliados e que levem a reflexões sobre as relações entre comunidade, ambiente e indivíduos, refletindo ainda sobre o papel de cada um e suas correlações, em uma perspectiva de sustentabilidade e harmonia entre os seres vivos e seu entorno.

 

Referências

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Recebido em: 2/8/2018
Aprovado em: 13/6/2019

 

 

1 A questão da sustentabilidade financeira e ambiental das ecovilas foi apresentada em diálogo com um dos membros - que faz parte do Conselho de Assentamentos Sustentáveis das Américas (Casa) - durante a fase de trabalho de campo, e faz parte, portanto, das anotações de campo.
2 Na época da pesquisa de campo, o Casa estava em seu início, ainda se estruturando, e a ENA ainda era chamada com esse nome, como a parte da GEN que englobava as Américas. Depois, a ENA foi dividida em Casa (para a parte da América Latina) e Genna (para a parte da América do Norte). Hoje, a GEN tem cinco "braços" de atuação: África, Europa e Oceania+Ásia, além das citadas América do Norte (Genna) e América Latina (Casa). Para evitar confusões, retiramos o nome da ENA, atualizando o texto para a configuração atual dessas organizações, sem que isso implique em perda de informação relevante. Recuperado de https://ecovillage.org/regions/
3 Bauman (2001, p. 10) utiliza ainda as palavras "autonomia", "direito à autoafirmação" e "individualidade" quando se refere a esse conceito de liberdade do indivíduo.
4 Ideia proposta em 1972 pelo filósofo norueguês Arne Naess, em oposição ao que ele chama de "ecologia rasa ou antropocêntrica", ou seja, a visão de que o meio ambiente deve ser preservado para o benefício do ser humano. Sem adentrarmos no conceito, podemos dizer que a ecologia profunda acredita no valor intrínseco da natureza e de todos os seres, e enxerga o mundo como uma grande teia de conexões.
5 As pessoas que citaram "convívio com os vizinhos" se referiam ao convívio com os moradores dos arredores da ecovila e das cidades próximas, enquanto o principal motivo da lista, "estar com as pessoas", se referia a estar com outros membros e visitantes da ecovila, ou seja, era relativo ao convívio diário e mais constante.
6 A primeira resposta mais citada, em relação às desvantagens, foi "pouca diversidade cultural e social".

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