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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.3 São João del-Rei jul./set. 2019

 

Estágio básico em contextos comunitários: momento práxico na formação em Psicologia Social Comunitária

 

Basic Internship in community environments: Real practice to building knowledge in Social Community Psychology studies

 

Práctica básica en contextos comunitarios: oportunidad de ejercicio real en la formación de estudiantes en Psicología Social Comunitaria

 

 

Amailson Sandro BarrosI; Marion Barros Ferreira AlmeidaII

IDocente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Mato Grosso
IIDiscente do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Mato Grosso

 

 


RESUMO

Este artigo tem como o objetivo central discorrer sobre o estágio básico de Psicologia em contextos comunitários, tendo o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Cras) como espaço e via de acesso às comunidades. As discussões e reflexões apresentadas foram desenvolvidas a partir da perspectiva da Psicologia Social Comunitária latino-americana. Trata-se de uma pesquisa documental, cujas informações obtidas advêm de 47 relatórios finais de estágios elaborados pelos estudantes estagiários de uma universidade federal que foram entregues aos professores supervisores no fim de cada semestre letivo. Os dados coletados, após sistematizados e submetidos à análise de conteúdo, geraram as seguintes categorias: dimensão educativo-pedagógica do estágio; práticas de intervenção realizadas durante o estágio; e tensão na relação teoria e prática. Observou-se que as práticas de estágio, embora coloquem os estagiários em situações concretas de intervenção, ainda não são suficientes para a formação em Psicologia Comunitária, apresentando-se como desafio a ser superado pelo curso de graduação.

Palavras-chave: Estágio básico. Formação. Contexto comunitário. Cras. Psicologia Social Comunitária.


ABSTRACT

This text intends to discuss the basic internship in psychology studies within community environments, taking Specialized Reference Center for Social Assistance (Cras) as the ideal space and the pathway to accessing communities. The discussions and considerations addressed here came from the perspective of Latin American Community Social Psychology. This is a documental research, whose information comes from the forty seven final reports of internships developed by student-trainees of a Federal University and delivered to supervisors at the end of each semester. After collecting and systematizing data, performing content analysis, there were two categories as the result: educational-pedagogical outreach of the internship; practices during the internship; and tension in the relationship theory and practice. Although the trainees´ practices revealed insert them in concrete situations of intervention, but this is not enough for training in Community Psychology. Therefore, this is a challenge the graduation courses are supposed to overcome.

Keywords: Basic training. Graduation. Community contexts. Cras. Community Social Psychology.


RESUMEN

El objetivo central de este articulo es discurrir sobre la práctica básica de estudiantes de psicología en contextos comunitarios, teniendo Centro de Referencia Especializado para Asistencia Social (Cras) como el espacio y vía de acceso a las comunidades. Las discusiones y reflexiones presentadas fueron desarrolladas por la perspectiva de la Psicología Social Comunitaria latinoamericana. Se trata de una investigación documental, cuyas informaciones obtenidas provienen del cuarenta y siete informes finales de prácticas elaborados por los estudiantes-pasantes de una Universidad Federal y entregados a los profesores supervisores al final de cada semestre lectivo. Los datos recolectados fueron sistematizados y sometidos al análisis de contenido, generando las siguientes categorías: dimensión educativa y pedagógica de la etapa; prácticas de intervención realizadas durante la etapa; y tensión en la relación teoría y práctica. Se observó que los participantes de la práctica obtuvieron situaciones concretas de intervención, pero eso todavía no es suficiente a la formación en Psicología Comunitaria, siendo, por lo tanto, un desafío a ser superado por los programas de graduación.

Palabras clave: Etapa básica. Formación. Contexto comunitario. Cras. Psicología Social Comunitaria.


 

 

Introdução

Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla que tem como objetivo compreender o processo de formação profissional e as práticas de Psicologia Social Comunitária realizadas por professores e estudantes de um curso de graduação em Psicologia de uma universidade federal localizada na região centro-oeste do Brasil. Apresentamos reflexões que resultam de dados obtidos nos relatórios finais de estágio básico curricular de Psicologia em contextos sociais e comunitários, com o intuito de refletirmos a dimensão desse estágio no processo formativo e na materialização de práticas em Psicologia Social Comunitária.

A escolha pelo estágio básico ocorreu por este representar, em certa medida, o contato inicial dos estudantes com situações mais próximas e concretas de atuação em Psicologia e por considerarmos que ele ocupa estrategicamente um lugar para o fortalecimento, consolidação e ampliação de projetos ético-políticos e pedagógicos de formação profissional para além de uma prática imediata. Nessa perspectiva, todo estágio apresenta fundamentos epistemológicos, ementas, objetivos e planos de ensino direcionados para um determinado saber-fazer que contribuirá para a construção da identidade profissional do estudante, ao proporcionar "o contacto com métodos e técnicas de investigação e programas de intervenção coerentes e alinhados com os pressupostos veiculados teoricamente" (Ornelas & Vargas-Moniz, 2014, p. 41).

Subjacente aos princípios da Psicologia Social Comunitária latino-americana (Freitas, 2015a; Martin-Baró, 1996; Montero, 2015), o estágio, considerado um momento práxico na formação acadêmico-profissional, possibilita processos de politização e de conscientização sobre o saber-fazer da Psicologia em seus diversos contextos, servindo também para que os estagiários possam exercitar e assumir "um papel de autores na construção dos conhecimentos e estratégias de ação/intervenção" (Freitas, 2014b, p. 159). Essa proposta, que se fundamenta na ideia de práxis, atividade teórico-prática indissociada que recorre à reflexão-ação como componente estrutural do processo ensino-aprendizagem (Freire, 2008; Freitas, 2015a; Montero, 2006), objetiva a superação da mera aplicação de técnicas de intervenção e imposição de conteúdos de modo rotineiro e mecanizado. Como momento práxico, o estágio envolve uma atitude investigativa, pautada no movimento de reflexão-ação-reflexão sobre o mundo, com o propósito de modificar a realidade. Trata-se de um processo que se assume transformador e libertador do ser humano e do mundo (Freire, 2008), o qual imprime um movimento dialético entre a mudança das circunstâncias sociais concretas e a mudança do próprio ser social, a fim de conhecer e transformar a realidade e a si mesmo (Montero, 2015, 2016; Vázquez, 2007).

Nesse sentido, contrapondo-se à educação bancária (Freire, 2013), o estágio é uma práxis revolucionária capaz de romper com processos fatalistas, deterministas e opressores (Martín-Baró, 2017, 1996). Consideramos, assim, que o estágio poder ser um espaço potencializador de formação de profissionais de Psicologia reflexivos e pesquisadores, capazes de superar visões ingênuas e idealistas sobre a vida cotidiana e seus aspectos psicossociais (Baima & Guzzo, 2015; Freitas, 2015a; Santos & Nóbrega, 2017), convertendo-se em cidadãos críticos, conscientes e participativos.

Com base no que sugerem as produções científicas que se debruçam sobre a formação em Psicologia Social Comunitária, a realização do estágio deve priorizar as seguintes dimensões (Freitas, 2015a, 2015b; Martín-Baró, 2017; Montero, 2004, 2006, 2010):

a) dimensão ontológica: envolve o compromisso com a transformação social e pessoal, reconhecendo o caráter não natural da sociedade e dos comportamentos do ser humano, considerado um ser ativo, social e histórico;

b) dimensão teórico-epistemológica: refere-se aos aportes de uma Psicologia que considera as premissas histórico-sociais da realidade concreta e da vida cotidiana para além da imediaticidade. Por meio dessa dimensão, a não neutralidade das práticas psicossociais e a indissociabilidade teoria-prática são reconhecidas em suas múltiplas determinações;

c) dimensão ético-política: envolve o respeito e a valorização ao saber e à vida do outro; inclusão das pessoas da comunidade na produção do conhecimento; identificação das possibilidades e dos limites do exercício profissional, mantendo compromisso com os "segmentos populares explorados e oprimidos" (Freitas, 2015a, p. 529);

d) dimensão técnico-metodológica: vincula-se ao uso de técnicas e metodologias participativas, colaborativas e coletivas, de relações democráticas, como pesquisa-ação, observação participante, grupos de reflexão, rodas de conversa e as oficinas psicossociais (Afonso, 2001).

A inter-relação dessas dimensões se torna essencial para a atividade educativa e para a realização do estágio, ao proporcionar o exercício de pensar a prática, refletir a realidade a partir de uma concepção crítica da sociedade e das práticas sociais. Assim, entendemos que essa inter-relação pode contribuir para o exercício consciente da Psicologia e para a proposição de intervenções que abarquem compreensão sociopolítica e histórica dos fenômenos psicossociais, como forma de auxiliar na superação de práticas psicologizantes, de naturalização da questão social e das desigualdades (Freitas, 2010, 2014a, 2015a; Guzzo, 2014; Martín-Baró, 1996; Montero, 2010, 2016; Yamamoto, 2003).

Sobre o estágio curricular em contextos comunitários e a inserção dos estagiários no Centro de Referência de Assistência Social (Cras)

O curso de Psicologia no qual esta pesquisa se desenvolveu foi implantado no ano de 2008, como resultado do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). O referido curso adota a forma de regime seriado semestral, em período integral (tarde-noite). Para o cumprimento da integralização da graduação, o Projeto Pedagógico do Curso estabelece o tempo mínimo de dez e o máximo de quinze semestres.

A carga horária total do Curso é de 4.125 horas. Destas, 2.760 referem-se às aulas teóricas, 1.165 às atividades que garantem o contato do aluno com situações simuladas e/ou concretas da vida profissional, e 200 às atividades complementares, que garantem a flexibilidade do currículo e dão ao aluno a oportunidade de atender a anseios particulares no campo da Psicologia. (Projeto Pedagógico do Curso, 2009, p. 20)

Dessas 1.165 horas de atividades, que buscam garantir o contato do estudante com situações da vida profissional, 240 horas são cumpridas via estágios básicos supervisionados que fazem parte do núcleo comum do curso. De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil, 2011), o núcleo comum é constituído por um conjunto de disciplinas que possibilitam ao estudante a capacitação básica e os conteúdos da Psicologia como campo diverso de conhecimento e de atuação.

A carga horária de 240 horas previstas para as atividades de estágios básicos no curso em tela está distribuída ao longo de quatro semestres da seguinte forma: a) Estágio Básico I: Contextos Socioeducativos (3º semestre do curso), b) Estágio Básico II: Contextos Sociais Comunitários (4º semestre do curso), c) Estágio Básico III: Contextos Organizacionais e do Trabalho (5º semestre do curso), d) Estágio Básico IV: Contextos Clínicos e de Saúde (6º semestre do curso). Cada estágio básico tem carga horária de 60 horas assim divididas: 30 horas para supervisão acadêmica e 30 horas para atividade prática.

Para a realização do Estágio Básico II, os estudantes são inseridos em diversos contextos de atuação da Psicologia no campo social e comunitário, destacando-se o Cras como uma opção entre outras possibilidades, por exemplo: Associação de Moradores, Casa do Migrante, Pastoral da Família, Pessoas em Situação de Rua, Organizações da Sociedade Civil, Centros de Convivência para Idosos e programas sociais específicos do município voltados para o atendimento infantojuvenil. O Cras, como espaço de estágio e de formação em Psicologia Social Comunitária, foi escolhido pelo potencial desse equipamento no desenvolvimento de projetos voltados para a comunidade e realização de atividades, envolvendo diversos públicos (crianças, adolescentes, idosos e a própria equipe técnica dos serviços) e profissionais de áreas distintas (assistentes sociais, pedagogos e educadores sociais).

Para a inserção dos estagiários nesse campo de estágio, o curso realizou, por meio da Universidade e a Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento Humano, convênio de estágio curricular obrigatório. Trata-se, portanto, de uma inserção na comunidade pelo acesso institucional, com objetivo pedagógico de promover a formação guiada por uma "práxis educativo-comunitária" (Freitas, 2014b), expressa pelas premissas da observação e pesquisa participante (Montero, 2004) e embasada no planejamento e execução de intervenções psicossociais definidas a posteriori (Freitas, 2015c; Martín-Baró, 1996).

No início de cada semestre letivo, de acordo com o número de estudantes interessados em realizar o estágio básico no Cras, a Secretaria Municipal de Assistência Social disponibiliza número suficiente de vagas para atender ao quantitativo de estagiários para cada semestre. Os estagiários são então distribuídos em duplas entre os 14 Cras existentes no município. A escolha dos Cras que receberão estagiários é concentrada na decisão da Secretaria, que se pauta na disponibilidade das equipes em ofertar vagas de estágio para o semestre e, principalmente, nas condições físicas e estruturais dos equipamentos. Os casos de impossibilidade de receber estagiários são justificados pela falta de espaço ou pela realização recorrente de reformas prediais. Isso faz com que ocorra uma rotatividade na oferta de vagas entre os Cras, gera descontinuidade no processo de estágio, rompe vínculos e fragiliza as parcerias.

Todos os Cras do município funcionam em prédios alocados e adaptados pela prefeitura para atender minimamente às exigências formais de habilitação do equipamento no Sistema Único de Assistência Social (Suas). Os dias e horários para o cumprimento da carga horária de estágio são estabelecidos entre os estagiários e a equipe técnica de cada Cras.

 

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa documental (Severino, 2007) de abordagem qualitativa, que, em sua essência, utilizou estritamente os relatórios de conclusão de estágio básico em contextos comunitários elaborados pelos estagiários que atuaram no Cras. A escolha pela pesquisa documental se deve à sua característica de proporcionar um tratamento analítico a materiais ainda não investigados e analisados, com o objetivo de obter informações que possibilitem a compreensão de um fenômeno a partir das perspectivas contidas nesses documentos (Gil, 2008; Helder, 2006).

Nesta pesquisa, foram selecionados apenas os relatórios produzidos no período de 2015 a 2017, pois, quando da realização da coleta de dados, o calendário universitário da instituição estava suspenso, por decisão do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Consepe) devido a uma greve local dos universitários, deflagrada no início do mês de maio de 2018 e encerrada em meados de junho do mesmo ano. Esse momento vivido na universidade fez com que o semestre 2018/1 fosse encerrado no mês de outubro de 2018. Vale destacar também que o calendário acadêmico da instituição já estava em descompasso com o calendário civil em razão da última greve docente realizada no ano de 2014.

A escolha dos relatórios de estágios a partir do semestre de 2015/1 levou em consideração o fato de que foi nesse ano que ocorreu a assinatura do primeiro convênio de estágio celebrado entre o curso de Psicologia e a Secretaria Municipal de Assistência Social. Nesse ano, o curso em tela completava sete anos de existência e formava sua sexta turma de psicólogas e psicólogos. Anterior ao período de 2015/1, não foram encontrados relatórios de estágios realizados pelos estudantes no Cras.

Para identificação, cada relatório selecionado para este estudo recebeu a letra "R", seguida do número entre um e 47 (R.01, R.02, R.03, ..., R.47), como forma de garantir o anonimato da autoria. Para controle e exploração do material, elaboramos uma planilha com as seguintes informações: 1. Ano e Semestre do Relatório. 2. Atividades desenvolvidas no estágio/intervenção. 3. Duração da intervenção. 4. Metodologia(s) utilizada(s). 5. Público participante. 6. Tema(s) abordado(s). 7. Resultados encontrados. 8. Implicações do estágio para a formação.

Seguindo o método de análise de conteúdo (Bardin, 2010), primeiramente, organizamos o material a ser explorado e tratado. A seguir, realizamos leitura inicial e levantamento dos primeiros indicadores que explicitavam o conteúdo dos relatórios, os quais foram transpostos para a planilha.

Na sequência, nova leitura dos documentos e da planilha foi realizada em profundidade, a fim de codificar, classificar e categorizar as informações produzidas (Chizzotti, 2011). Os dados obtidos foram classificados a posteriori em três categorias: (i) dimensão educativo-pedagógica do estágio para a formação profissional; (ii) práticas de intervenção realizadas durante o estágio; e (iii) tensão na relação teoria e prática.

Destacamos que, devido ao recorte proposto para este artigo, o material produzido não esgota as problematizações sobre o tema, tampouco excluí o desenvolvimento de novas perspectivas no levantamento de informações complementares sobre o processo de realização desse estágio, como a utilização de entrevistas com estudantes e profissionais das equipes técnicas dos Cras. Ponderamos que, nos documentos, emergem aspectos e temas que resultaram da produção humana e social (Kripka, Scheller & Bonotto, 2015), os quais podem sinalizar para a forma como os estágios têm sido desenvolvidos, possibilitando, portanto, parte da compreensão desse fenômeno.

Reconhecemos que a pesquisa documental traz limitações quanto à representatividade do fenômeno estudado, porém isso não exclui as possíveis contribuições que o estudo poderá trazer para o campo da Psicologia Social Comunitária e para a formação profissional.

 

Apresentação e discussão dos resultados

A amostra da pesquisa foi composta por 47 relatórios de estágio, conforme indicamos na Tabela 1.

Identificamos em todos os relatórios que a dimensão teórico-metodológica e técnico-operativa que serve de suporte para a escrita desses documentos advém da Psicologia Social Comunitária latino-americana e das premissas da pesquisa e observação participante (Brandão, 2010; Freitas, 2014a), com contribuições da saúde comunitária e da educação popular apoiada em Paulo Freire (Freire, 2013). Ao observarmos os planos de ensino correspondentes aos semestres dos relatórios pesquisados, constatamos correlação direta entre as bibliografias básicas e complementares indicadas nesses planos com as referências bibliográficas utilizadas pelos estudantes em seus relatórios de estágio. Desse modo, desenhou-se o início da materialização do caminho teórico percorrido pelos estagiários para o cumprimento do estágio.

Dimensão educativo-pedagógica do estágio para a formação profissional

Esta categoria evidencia o estágio básico como uma atividade educativo-pedagógica e estratégica para a formação profissional em Psicologia. O estágio básico é entendido pelos estagiários como um exercício que instiga o protagonismo dos estudantes, fomentando o trabalho coletivo e colaborativo, a partir de diversos arranjos de relação (estagiário-estagiário, supervisor-estagiário, superior-estagiário-profissionais do Cras, estagiários-profissionais do Cras, estagiários-público-alvo da intervenção). Mesmo que de modo embrionário, há destaque para o exercício de uma metodologia participativa na construção dos planos de ação e das atividades desenvolvidas nos estágios. Em alguns casos, foi possível observar a participação dos profissionais e do público-alvo na elaboração das práticas de intervenção, principalmente nos trabalhos envolvendo crianças e adolescentes. "Elaboramos o nosso projeto 'Ser família não é morar na mesma casa, é morar no mesmo coração'. Cabe ressaltar que ele foi elaborado por meio da demanda identificada nas observações, no diálogo com as crianças e em parceria com a orientadora e a coordenadora do Cras" (R.06).

O cuidado com o planejamento e o desenvolvimento conjunto das atividades de estágio foi apontado como essencial para o fortalecimento da proposta de trabalho. Nesse âmbito, uma participação ativa e consciente dos envolvidos com as atividades de intervenção desmitifica a ideia de que o estágio básico é um momento de mera observação das "coisas certas e erradas" sem intervenção dos estagiários, como destaca o fragmento retirado do relatório 01: "O estágio proporcionou a oportunidade de vivenciarmos o cotidiano da rotina no Cras e estabelecermos relações com os profissionais nas ações do psicólogo social, de modo interdisciplinar e do trabalho em rede" (R.01).

O estágio básico II possibilitou maior aproximação com a Psicologia Social Comunitária, o que foi essencial para pensar nos caminhos possíveis de ser seguido na Psicologia. Ademais, ofereceu um ambiente para a junção de teoria e prática. Desta forma, para além da observação da atuação profissional da Psicologia em contexto comunitário, pudemos vivenciar um pouco o processo de construção dialógica de projetos, mas isso não foi fácil. (R.03)

A proposta de intervenção, de acordo com a metodologia pensada para o projeto, foi desenvolvida sobretudo a partir da escuta e do diálogo entre a dupla de estagiários, a equipe de funcionários do Cras e nas supervisões de estágio, com o professor. (R. 35)

Nas informações contidas nos documentos, destacou-se que a realização do estágio é considerada como uma função educativa e pedagógica importante para sua formação profissional, ao possibilitar um constante movimento de criação e busca por novas possibilidades de intervenção da Psicologia a partir da realidade concreta vivida pelas comunidades. Ao interagir com essa realidade, os estagiários compartilham conhecimentos e saberes, questionam técnicas, instrumentais e metodologias, criam formas de ser e agir como futuros psicólogos para essas e outras situações e contextos.

Atentos a essa realidade que nos contemplava com tantas informações que não haviam sido repassadas com a mesma intensidade no que tange à teoria, o campo conseguiu, pouco a pouco, nos distanciar do lugar de meros observadores e permitiu nossa participação. Interagimos, dialogamos e buscamos compreender como lidar e agir em situações de fragilidades, não só ali no Cras, mas, também, em outras áreas. (R. 44)

Em relação ao percurso técnico-metodológico adotado para o desenvolvimento do estágio, verificamos que este se apoiou nas seguintes proposições: a) familiarização com o local de estágio (Freitas, 2014b; Montero 2004); b) observação participante (Fals Borda, 1986); c) diagnóstico da realidade (Freitas, 2014b); d) elaboração do plano de ação e das estratégias de intervenção (Freitas, 2014a, Silva 2006); e) realização e avaliação das ações planejadas; f) devolutiva ao campo de estágio. Como uma estratégia didático-pedagógica, foi utilizado durante todo o estágio o diário de campo. De acordo com os relatos contidos nos relatórios, "para registro de cada observação, utilizamos um diário de campo no qual anotamos os dados de maior relevância para posterior estudo nas supervisões e para a projeção das intervenções" (R.21). Ou ainda, "as intervenções foram baseadas nas observações e no diário de campo utilizado durante a permanência no estágio. Durante esta estada no Cras, foi possível conhecer a equipe e o seu funcionamento" (R. 17).

Durante a realização do estágio básico II, utilizou-se, principalmente, como metodologia fundamental a observação participativa. Além do mais, foi utilizado como instrumento o diário de campo. [...] Dessa forma, a atuação se consolidou por meio de observações das atividades diárias realizadas no equipamento e participando, de modo a favorecer a realização das mesmas. (R.26)

Durante todos os outros dias, estivemos presentes no grupo, muitas vezes com a função de monitores, o que nos ajudou a conhecer melhor cada criança ali. Com o tempo, foram aparecendo questões familiares, gênero e violência, o que norteou nossos pensamentos para os temas das intervenções que poderíamos realizar. (R.14)

Todas as etapas do estágio foram acompanhadas de supervisão acadêmica, realizadas semanalmente. Nesse momento, processual e dialógico (Freire, 20133), várias atividades foram desenvolvidas com os estagiários, tais como: planejamento das atividades; discussões sobre formas de inserção do psicólogo nas comunidades; reflexões sobre o processo de participação, formação do processo grupal e oficinas psicossociais; leituras e reflexões sobre a construção histórico-social da infância, da adolescência e da velhice; discussões sobre o fenômeno da violência no contexto familiar e comunitário na interface com o Sistema de Garantia de Direitos e Políticas Públicas (Freitas,2010, 2014a; Martín-Baró, 1996; Montero, 2010). Como espaço de ensino-aprendizagem, o momento de supervisão acadêmica é compreendido como lócus do questionamento, da reflexão sobre as diversas vivências dos estagiários no campo de estágio.

Outra questão refere-se à ideia de que a supervisão de estágio contribuiu para o enfrentamento das tensões e das dúvidas relativas ao processo de elaboração das atividades e execução do plano de intervenção, em termos de aporte metodológico e de estímulo à atividade criativa. Vale destacar que o processo de supervisão abrangeu a ideia de espaço para problematizar os saberes e fazeres da Psicologia pelos estagiários e pelos supervisores acadêmicos, a fim de romper com visões imediatistas.

Práticas de intervenção realizadas durante o estágio

Considerando os registros das práticas de intervenção realizadas pelos estagiários, destacam-se as oficinas psicossociais (Afonso, 2001; Afonso & Fadul, 2015) e as rodas de conversa. Ressaltamos que as oficinas psicossociais foram desenvolvidas com crianças, adolescentes e idosos; e as rodas de conversa, com profissionais dos Cras, das escolas e das Unidades Básicas de Saúde existentes no território desses Cras.

Em relação aos temas trabalhados nas oficinas psicossociais, destacam-se: qualidade das relações familiares e comunitárias, afetividade, envelhecimento e saúde, direitos humanos, política e cidadania, violência entre as crianças e violência sexual contra crianças e adolescentes. De modo geral, as oficinas, em consonância com os aportes da Psicologia Social Comunitária, objetivaram promover a reflexão crítica sobre as condições concretas de vida das pessoas e da comunidade, o fortalecimento do exercício da cidadania, a defesa dos direitos humanos e a construção de redes sociais mais afetivas, solidárias, participativas e horizontais (Barros & Freitas, 2016; Freitas, 2015a; Montero, 2016; Ornelas & Vargas-Moniz, 2014). A realização das oficinas psicossociais foi justificada pelo potencial dessa metodologia em oportunizar aos estagiários uma experiência de trabalho com grupos a partir de um planejamento básico, flexível e com número limitado de encontros, adequando-se inclusive com a carga horária prática do estágio básico (30h).

No caso particular das rodas de conversa, estas foram realizadas com o intuito de apresentar as atividades e a função do Cras para as escolas e as Unidades Básicas de Saúde (UBS) existentes nos bairros atendidos pelos Cras. Anterior às rodas de conversa, os estagiários reuniram informações específicas sobre os vários serviços públicos de educação, saúde e socioassistenciais existentes nos bairros, com o objetivo de mapear a rede intersetorial local. Essa atividade foi realizada com base em informações disponíveis nos Cras, no site da prefeitura e obtidas nas conversações informais com pessoas da comunidade.

Os conteúdos trabalhados nas rodas de conversa enfatizaram aspectos do cotidiano das equipes técnicas do Cras no desenvolvimento de ações do Programa de Atenção Integral às Famílias (Paif), acolhimento familiar, visitas domiciliares, busca ativa, acompanhamento das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, cadastramento de pessoas no Cadastro Único para Programa Sociais (CadÚnico), festas temáticas e comunitárias, palestras, encaminhamento de famílias ou indivíduos para a rede socioassistencial, acompanhamento de adolescentes no cumprimento de medida socioeducativa em liberdade assistida, grupo de idosos, grupo de mães, grupo de adolescentes, oficinas de música e atividades esportivas.

Concomitante às oficinas psicossociais e às rodas de conversa, alguns estagiários puderam acompanhar as equipes técnicas dos Cras na realização de visitas domiciliares, componente metodológico e procedimento técnico que possibilitou a verificação in loco pelos estagiários das situações de vulnerabilidade social a que estão expostas as pessoas que vivem na comunidade. Em termos práticos, a visita domiciliar revela-se uma das atividades do psicólogo comunitário ainda pouco explorada pela própria literatura científica (Amaro, 2014; Rocha, Moreira & Boeckel, 2010).

Tensão na relação teoria e prática

As informações obtidas nos relatórios de estágio revelam alguns aspectos teórico-metodológicos e algumas condições técnico-operativas do trabalho da Psicologia no Cras que indicam também a presença de uma tensão na relação entre a teoria e a prática durante a realização do estágio. No que se refere às questões teórico-metodológicas, verificamos que o estágio propicia aos estudantes uma aproximação com conhecimentos teóricos e metodológicos do campo da Psicologia Social Comunitária (Freitas, 2014a; Lane, 2006), o contato com metodologias participativas (Montero, 2004; 2015; 2016; Freitas, 2010), estratégias grupais (Lane, 2006), políticas públicas e com o trabalho interdisciplinar (Freitas, 2015b). Emerge nos documentos uma preocupação dos estudantes com o exercício de práticas psicossociais libertárias e emancipatórias (Freire, 2013), os quais apontam a importância de uma atuação ativa e reflexiva.

O estágio básico II não foi desenvolvido de forma fácil. Questionei-me muito sobre a capacidade de concretizá-lo. Receei com o que me depararia em campo e, apesar da fundamentação teórica anteriormente realizada em sala de aula, senti falta de um olhar mais "aguçado" da Psicologia Comunitária no momento de elaborar o plano de intervenção. (R.13)

Podemos concluir que o pouco tempo no local de estágio limita a nossa aproximação tanto com a comunidade quanto com a equipe. A possibilidade de um tempo maior para acompanhar a equipe, facilitaria nesse diálogo entre a teoria que é apresentada em sala e as limitações desta prática. (R.4)

A unidade não apresenta projetos e nem programas de autoria própria ou atividades específicas pensadas com a comunidade local. Quando questionados do porquê dessa inexistência de projetos, afirmaram que são realizadas somente atividades determinadas pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento Humano. Essa situação dificultou a elaboração de projetos coletivos e com a participação da comunidade. Várias vezes nos questionamos sobre a efetividade dessa forma de trabalho com a equipe. (R.23)

O estágio básico é dividido em 30h teóricas e 30h práticas. Dessa forma, o pouco tempo que temos de interação com a comunidade dificulta o desenvolvimento de intervenções mais elaboradas e participativas. O tempo não nos permite avaliar o quanto nossas intervenções atingiram cada uma daquelas crianças. (R.14)

Se, de um lado, as informações contidas nos relatórios indicam uma possível compreensão da teoria estudada em sala de aula, de outro, revelam que os estagiários consideram o estágio básico como a parte prática do curso, momento em que empregarão, de forma adequada ou não, os conhecimentos teóricos aprendidos. "Após o período dentro da unidade, a dupla entendeu processos e relações sociais na prática, e não teorizando" (R.22). De acordo com esse raciocínio, o estágio é um momento prático para o desenvolvimento e aplicação/replicação de técnicas necessárias para o desempenho da Psicologia em contextos comunitários, gerando inquietações relativas a: a) incertezas sobre o uso metodológico da observação participante e se esta foi efetivada de acordo com os princípios da Psicologia Social Comunitária; b) como elaborar o plano de ação do estágio primando pela construção coletiva, participativa e democrática, eixos comuns das intervenções comunitárias; c) como definir os conteúdos temáticos das atividades de intervenção, voltados para o compromisso com as necessidades da população; d) como efetivar o trabalho interdisciplinar e psicossocial previsto pela Psicologia Social Comunitária e pela política pública de assistência social, evitando práticas de intervenção bancária, nas quais os participantes sejam colocados como agentes passivos.

No dia em que fizemos a visita domiciliar, estávamos preocupados em como seria e o que faríamos. Pudemos ter essa experiência de como é esse primeiro contato no domicílio de um grupo familiar e também de como fazer essa entrevista, pois a assistente social nos mostrava isso na prática, como profissional. Ela nos ajudou no levantamento das demandas daquela família. Depois a preocupação de como elaboramos o plano de atividades considerando as necessidades da família. (R.18)

Essas inquietações sinalizam a tensão dos estagiários em elaborar e desenvolver uma proposta de intervenção significativa e condizente com os pressupostos da Psicologia Social Comunitária. Nesse sentido, se trabalhadas e instrumentalizadas teoricamente, podem contribuir para superar o praticismo e para uma perspectiva transformadora (Freire, 2013).

Em condições reais de estágio, os estudantes se deparam com contradições do exercício profissional, com práticas imediatistas, instrumentalistas e fragmentadas, que contribuem também para a ideia de que "na prática, a teoria é outra" (R.46). No cerne dessa afirmação, reside a carência ora da teoria ora da prática. Teoria e prática, por esse prisma, estão desvinculadas, quando deveriam explicitar unidade.

No contato com o campo de estágio, a observação inicial dos estagiários indica também a contradição entre o discurso oficial das funções e serviços do Cras e o vivido. "Experienciamos a dificuldade de depender do aparato do governo, experimentamos a frustração de ter intervenções interrompidas por imprevistos no local e por ter que depender de terceiros da instituição para que elas fossem realizadas" (R.09). Isso expressa questões éticas e políticas que perpassam a realização das atividades de estágio. A esse respeito, outros estagiários assim se expressam:

Os adolescentes do socioeducativo fazem trabalhos que deveriam ser executados por profissionais que trabalham no Cras, como lavar os corredores, arrastar móveis, ajudar na manutenção, etc. Não têm um plano concreto de atividades para cumprir no período que ficam lá. (R.21)

Questões de ordem material também foram pontuadas como aspecto fundamental para o desenvolvido do trabalho e de sua qualidade.

Ao chegarmos no campo de estágio, encontramos o orientador do Cras, que realiza um trabalho pedagógico com as crianças. Ele é formado em Educação Física. Ele se ofereceu para nos mostrar a estrutura do Cras e já começou a falar das suas condições de trabalho. Falou como é difícil o exercício profissional ali, pois o Cras necessita de verba para fazer melhorias na estrutura. Eles têm uma pequena quadra, sem traves, sem marcações no chão e, inclusive, faltam bolas. A única disponível foi comprada pelo próprio orientador e já não está em boa condição. (R.15)

No tocante às condições técnico-operativas que influenciam na relação teoria e prática, destaca-se ausência de supervisores de campo, principalmente de profissionais psicólogos, e alta expectativa das equipes para que os estagiários assumissem as atividades inerentes a esses profissionais psicólogos. Em vários relatórios, os estagiários registraram que a equipe mínima, no momento do estágio, não contava com profissional de Psicologia.

No quadro da unidade não consta psicóloga(o). Em contato com os profissionais mais antigos, a unidade contou com esse profissional no ano de 2010, quando havia uma psicóloga contratada. Contudo, após o encerramento do contrato nenhum(a) psicólogo(a) foi lotado(a) no Cras até o momento. (R.18)

Foi notória a atenção com que fomos recebidos em virtude do reconhecimento, da importância e da necessidade de um profissional de Psicologia no Cras, como em virtude do baixo contingente de profissionais e da grande demanda. Nesse contexto, foi possível auxiliar de alguma forma a equipe do Cras, já que se encontrava extremamente sobrecarregada. (R.38)

Os dados também indicam alta rotatividade dos profissionais de Psicologia nas equipes, tanto pelo vencimento de contratos de trabalho quanto pela iniciativa dos profissionais em antecipar o encerramento de seus contratos devido a novas propostas de trabalho recebidas ou pela busca de novas oportunidades. Essas observações corroboram os estudos desenvolvidos por Macedo et al. (2011) e Couto, Yasbek e Raichelis (2010). Essas condições objetivas de trabalho inferem na maneira como os estágios se materializam e na possibilidade de trabalhar na política pública de assistência social e com comunidades por parte desses estagiários.

Para Macedo et al. (2011), a questão dos recursos humanos é um dos maiores desafios para a efetivação do Sistema Único de Assistência Social (Suas), do qual o Cras é porta de entrada, pois há uma carência significativa de psicólogos na composição das equipes, além de outros profissionais como advogados e pedagogos. A ausência de concursos públicos suprimidos por vínculos empregatícios temporários, via contratações aviltantes, cuja remuneração se torna incompatível com a função desempenhada e a complexidade dos serviços, contribui para a pouca presença de psicólogos no Suas, segundo Couto et al., 2010).

 

Considerações finais

Neste estudo, baseado nos relatórios finais de estágio básico produzidos por estudantes do quarto semestre de um Curso de Graduação em Psicologia, discorremos sobre a formação em Psicologia Social Comunitária, tendo o Cras como espaço focal dessa formação. Assim como Pimenta e Lima (2017, p. 28), consideramos que o "exercício de qualquer profissão é prático, no sentido de que se trata de aprender a fazer algo ou ação" e que essa prática exige técnicas e conhecimentos para sua materialização. No caso específico deste estudo, exigiu-se o reconhecimento da articulação teórico-prática para se promover uma sólida formação técnico-operativa, visando à intervenção numa perspectiva de totalidade.

Considerar esses aspectos, quando da inserção e intervenção psicossocial, contribui para que seja possível responder a congruências-incongruências entre o agir e o refletir. Ou seja, ao fato de se a investigação pode conduzir a ações, que estejam implicadas na mesma direção do compromisso social; e se a intervenção pode contribuir para a produção de conhecimentos, que estes sejam socialmente comprometidos e relevantes àquele cotidiano concreto e de preferência coletivo e digno. (Freitas, 2015c, p. 259)

Por se configurar um momento em que os estudantes se aproximam de áreas específicas de atuação da Psicologia, acreditamos que o estágio básico pode se configurar em um espaço potencial para uma formação crítico-reflexiva, comprometida com a mudança e a transformação social, considerado um desafio para todos que nele se envolvem (estudantes, estagiários e profissionais de campo). Concordamos com Freitas (2015a) que a formação de profissionais de Psicologia para atuar em contextos comunitários ainda precisa superar o praticismo e o tecnicismo, como forma de aprimorar o processo de profissionalização e as práticas de intervenção social-comunitária.

Destacamos que os resultados apresentados neste estudo estão distantes de esgotar as discussões sobre a formação e o exercício profissional da Psicologia em contextos comunitários. Permanece, não só pelas limitações de uma pesquisa documental, a necessidade de ampliar as reflexões que os estudantes têm sobre esse estágio e de suas atividades realizadas com a comunidade via Cras, utilizando-se, por exemplo, de entrevistas individuais e coletivas ou grupo focal. Aprofundar as análises apresentadas pode contribuir para a melhoria da formação profissional em Psicologia Social Comunitária e, com isso, cooperar também com mudanças sociais.

Concluímos que a articulação teoria-prática, pautada em uma atitude investigativa-reflexiva, visando à efetivação de um projeto de formação profissional que supere o pragmatismo é ato político. Isso implica um trabalho pedagógico engajado envolvendo estagiários, supervisores acadêmicos e profissionais do campo de estágio, pois a transmissão e a produção de conhecimentos e saberes não ocorre de maneira descontextualizada.

Finalmente, a partir dos dados obtidos, identificamos que embora tenham sido realizadas práticas exitosas durante o estágio, a carga horária destinada para integralização do EB II (60h) é insuficiente para experiências mais salutares de inserção e de trabalho com as comunidades. Diante disso, uma revisão no Projeto Pedagógico Curricular do curso pesquisado se faz necessária, visando ao fortalecimento da práxis da Psicologia em contextos comunitários e de sua interface com as políticas públicas.

 

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Recebido em: 30/04/2019
Aprovado em: 12/08/2019

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