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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.4 São João del-Rei out./dez. 2019

 

Carl Gustav Jung e a pós-modernidade: da ultrapassagem hegeliana (aufhebung) à integração junguiana1

 

Carl Gustav Jung and postmodernity: from hegelian overdrive (aufhebung) to jungian integration

 

Carl Gustav Jung y la posmodernidad: de la superación hegeliana (aufhebung) a la integración junguiana

 

 

Michel Maffesoli

Professor Emérito da Sorbonne. E-mail: michel@maffesoli.org

 

 


RESUMO

Este artigo aborda a relação da Psicologia Analítica com a pós-modernidade a partir de três pressupostos e consequências: superação do individualismo epistemológico, a progressividade a partir da tradição e colocar em xeque a fé na razão soberana. Para tanto, algumas noções de Jung são fundamentais nesse processo: compensação, sombra e intersignos. Essa passagem do conhecimento pautado no corte para concepções holísticas caracteriza o imanentismo epistemológico, que aponta para a superação da Educação pela iniciação, do domínio da natureza para a ecosofia e da lógica da não contradição para a lógica do contraditorial, de pessoas plurais.

Palavras-chave: Psicologia Analítica. Pós-Modernidade. Tradição.


ABSTRACT

This article addresses the relationship of Analytical Psychology to postmodernity, from three assumptions and consequences: overcoming epistemological individualism, progressivity from tradition and putting faith in sovereign reason in check. Therefore, some notions of Jung are required in this process: compensation, shadow and intersign. This passage from court-based knowledge to holistic conceptions characterizes epistemological immanentism, which points to the overcoming of education through initiation, from the domain of nature to ecosophy and from the logic of non-crontadiction to the logic of the contradictory, of plural people.

Keywords: Analytical Psychology. Postmodernity. Tradition.


RESUMEN

Este artículo aborda la relación de la Psicología Analítica con la posmodernidad, a partir de tres supuestos y consecuencias: superar el individualismo epistemológico, la progresividad de la tradición y poner a prueba la fe en la razón soberana. Con este fin, algunas nociones de Jung son fundamentales en este proceso: compensación, sombra e intersign. Este pasaje del conocimiento basado en la corte a las concepciones holísticas caracteriza el inmanentismo epistemológico, que apunta a superar la educación a través de la iniciación, del dominio de la naturaleza a la ecosofía y de la lógica de la no contradicción a la lógica de lo contradictorio, de las personas plurales.

Palabras clave: Psicología Analítica. Posmodernidad. Tradición.


 

 

Agradeço a todos vocês pelo convite. Para mim, é uma experiência vir a esta cidade. São João del-Rei é longe, mas tenho muito prazer em estar aqui e espero que possamos discutir todos juntos a partir de agora. Vim aqui para participar do Seminário Caminhos Junguianos. A palavra seminário é interessante. Um seminário é lançar sementes. Um seminário não é dar soluções, mas colocar certo número de questões. É o que está, aliás, na verdadeira origem da tradição universitária. No século XIII, quando se começou a fundação de universidades (como a Sorbonne, na França, ou a de Bolonha, na Itália) se estabelecia algo que era contrário à escola catedrática, ou seja, contra a formação de funcionários. A ideia de universidade vem de universitas, é aquela ideia de colocar questões, de fazer perguntas... O segundo aspecto que muito me interessou é a ideia de caminho. Evidencio que, quando há mutações e mudanças societais, é preciso voltar a se colocar a caminho. É o método, methaodos. É algo que não se basta, que não contém respostas, mas que coloca perguntas. Nessa perspectiva, retomo a ideia original de Aristóteles quando começa a pensar a Filosofia. Em grego, ele diz que é preciso colocar questões e problemas de uma maneira bela; a palavra aporia (que existe também em língua portuguesa) designa problemas para os quais não se tem verdadeiramente respostas. Para mim, é isto: o colocar-se a caminho. Regularmente, a cada três ou quatro séculos, quando uma época se acaba, é preciso recolocar as questões. A palavra época também vem do grego e quer dizer parênteses. Um parêntese se abre e um parêntese se fecha. Para mim, o parêntese da modernidade está se fechando. Então, talvez seja por isso que eu vim aqui.

De certa maneira, Jung nos permite pensar aquilo que hoje está sendo elaborado: a pós-modernidade. O inconsciente coletivo é certamente uma alavanca metodológica para isso. Compreenderemos o que está acontecendo hoje somente a partir de um colocar-se a caminho tal como proposto pelo pensamento junguiano. Antes de entrar no cerne do tema, cada um tem suas obsessões (obsessões honestas, com certeza, não é?). Minha obsessão teórica é a temática do imaginário, ou seja, o lembrar-se de algo por meio de um esforço simples. Desde seu nascimento, nossa espécie animal só existe porque ela fala de si. É preciso dizer aquilo que se é. É isso o imaginário. Com certeza, há termos científicos que expressam o que acabo de falar: destaco o termo episteme proposto por Michel Foucault (2007), que é simplesmente o conhecimento que se tem sobre si mesmo. Em grego, há duas palavras para definir conhecimento: teoria, o conhecimento puro; e episteme, o conhecimento que se aplica. Quando Foucault insiste na ideia de episteme é porque, simultaneamente: (i) somos o que somos; (ii) dizemos o que somos; (iii) aplicamos aquilo o que somos.

Há sempre uma episteme dominante e Michel Foucault dá uma série de exemplos disso: no início da nossa tradição cultural, a tradição greco-latina, a episteme dominante é a mitologia. Frequentemente, a interpretação que se tem da mitologia é a de uma organização da cidade correlativa à explicação mitológica. Por exemplo, Atenas tinha uma interpretação da mitologia que é a vida ateniense; Esparta tinha outra interpretação da mitologia que é a vida espartana. Não é preciso ser um grande historiador para saber que há uma grande diferença entre a vida ateniense e a vida espartana. A partir da mesma mitologia se dão coisas diferentes: é isso a episteme (ou é simplesmente isso o imaginário). Somos determinados por certa maneira de pensar. Eu falei de episteme, mas outro exemplo é o de paradigma proposto por Thomas Kuhn (2007). A metáfora dada por Thomas Kuhn para explicitar o que é o paradigma é a de uma matriz. A matriz pode ser fecunda, mas também pode se tornar infecunda. Esse é um ponto sobre o qual devemos insistir, porque somos tributários da vida do espírito. Em outros termos, do inconsciente coletivo. Para dizer tudo isso de uma maneira muito simples, trata-se de um problema de clima. Seja clima no sentido estrito ou clima no sentido espiritual. Vocês sabem bem que o clima muda a cada três ou quatro séculos; há uma mudança climática e é este o momento histórico que vivemos hoje.

Na realidade, é preciso saber falar sobre isso. Com certeza, na minha tradição que é a francesa, me lembro de Albert Camus (2006, p. 908): "Nomear mal as coisas contribui com a miséria deste mundo."2 Encontrei uma frase semelhante e muito bonita em Guimarães Rosa (1994, p. 245): "toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo." A palavra guardada, conservada, é uma palavra que vem de longe, de nossa tradição, e que vai abrindo seu caminho ao longo do tempo. É a partir da palavra conservar que se tem a ideia de tradição. Em latim, tradição vem de tradare, transportar algo comigo, e é a partir disso que se faz o caminho. A agricultura é isso; a ideia de tradição tem a ver com o fazer o caminho no chão, com o arar a terra. Vejam, então, do que se trata, de onde vem a noção de seminário: jogar no campo algumas sementes e, somente a partir disso, é possível acontecer um verdadeiro florescimento das coisas. Com isso, não estou falando da grande ideologia moderna do desenvolvimento, mas sobre a ideia de um enveloppement,3 como se estivéssemos tomados por alguma coisa. Para mim, essa é a grande mudança epistemológica que ocorre hoje. Eu me pergunto se as instituições (inclusive as universidades) são capazes de pensar esse enveloppement, de pensar a ideia de tradição, porque estamos bestamente enrolados nessa noção de desenvolvimentismo e de progressismo.

Essa é a reflexão que gostaria de trazer sobre o imaginário: minha definição bastante simples é a de que se compreende o real pelo irreal. Ou seja, compreende-se o real a partir do espírito (talvez mesmo a partir da alma). É essa a ideia hegeliana de Zeitgeist, de espírito do tempo ou de atmosfera mental que pode mudar - mais ou menos (Hegel, 1999). Estamos em um desses momentos de saturação.

Pessoalmente, gosto bastante dessa palavra: saturação. É como acontece numa saturação química: as diversas moléculas que compõem um dado corpo não podem mais ficar juntas e há uma desestruturação, um divórcio, uma desconstrução. Ao mesmo tempo, as mesmas moléculas se juntam e vão compor outro corpo. É essa a ideia de saturação. Para falar de um modo simples: o fim de um mundo não é o fim do mundo. Há, pois, um processo de recomposição que está em vias de acontecer e a grande ideia ou o grande conceito junguiano para compreender isso é o de compensação (Jung, 2011a). Quando algo não está funcionando muito bem, há uma nova composição que se constrói e é isso o que é vivido desde o passado. Já fiz referência a isso quando há pouco disse do grande progressismo que existe e, nesse momento, há um desnível entre o oficial e o oficioso, entre o dogmatismo (que é das nossas instituições) e o oficioso (da vida cotidiana, daquilo que é vivido de forma simples e banal). Então, esse vivido deve ser pensado - é essa a ambição da universidade e de qualquer pensamento. Para tanto, é preciso abandonar algumas certezas para compreender bem esse borbulhamento. É também por isso que sou fascinado pelo romance de Guimarães Rosa, porque ele nos traz isso. Para mim, é isso o método. É isso o colocar-se a caminho.

Agora vamos ao quadro semântico - para usar uma palavra mais chique. Se eu tivesse um quadro aqui, eu escreveria para vocês que nos é possível compreender o neótipo somente pelo arquétipo. O real, a partir do inconsciente. Eu friso: o real, não a realidade. O princípio de realidade é sempre de realidade econômica, de realidade política, de realidade social ou qualquer outra. O real é prenhe do irreal, de fantasmas, de fantasias, de fantasmagorias; o mito é isso. É esta a definição que proponho para vocês: o real é rico de irreal. Somos o que é, fundamentalmente porque sonhamos e o sonho não é individual; trabalhamos no sonho coletivo. É essa a relação ou, dizendo em termos científicos, a dialogia existente entre o neótipo e o arquétipo. O mundo dos arquétipos é o mundo dos mitos, das lendas e dos contos; é o politeísmo de valores; é o paganismo. O paganismo é do catolicismo também, meu caro amigo. Para mim, os católicos, aliás, os verdadeiros católicos, são pagãos. Eles têm um culto da diversidade que é bastante interessante, como evidencia o culto da Virgem Maria, por exemplo. É isso o que tenho chamado de paganismo difuso. Eu chamei isso de transcendência imanente (Maffesoli, 2010). Não se trata mais de um deus distante, mas um sacral (sacramental). É isto: uma transcendência imanente, a encarnação do divino. Dizendo isso de maneira mais sofisticada, quando o ser infinitivo permanece como ser infinitivo e não se torna o ser nominal. O ser infinitivo é o verbo ser ou estar; o ser nominal é quando se nomeia o ser. Um exemplo de nominalização é quando a deidade se torna Deus. A nominalização que fizemos do ser é tardia; a isso chamo de imanentismo epistemológico. Acredito que devemos permanecer no infinitivo, no termo ser. De minha parte, penso que devemos ficar no ser infinitivo, no verbo ser-estar. Essa é a perspectiva junguiana, essa é minha perspectiva.

Então, retomando essa discussão com uma palavra mais comum, eu falaria em holismo. Holismo vem do grego holos e quer dizer o todo. Isso quer dizer uma interação que se estabelece entre as diversas realidades da vida. É bastante difícil pensar sobre isso porque nosso cérebro é reptiliano, é de separação. Gilbert Durand (1997) fala do princípio de corte e existe, na longa duração, ilustrações desse princípio: para começar, o primeiro capítulo do Gênesis e o versículo segundo, o qual Deus separa a luz das trevas, divisit lucem a tenebris. Eu diria que esse versículo é a inauguração do princípio de corte. A partir disso, vai se estabelecer o grande conceito freudiano de Spaltung (Freud, 1996), o corte entre a natureza e a cultura, entre o corpo e o espírito, entre o material e o espiritual etc. É esse o princípio de corte. Por isso fiz questão de frisar a questão do cérebro reptiliano. Podemos pensar apenas a partir da separação.

Com isso, me parece que voltar à vida cotidiana (que é também o método junguiano, que é o colocar-se a caminho de Jung) possibilitará a ultrapassagem desse princípio de corte em direção a um princípio de reversibilidade. Encontremos uma palavra para falar sobre isso, eu diria: interação. Veremos como, de diversas maneiras, existe esse ser infinitivo, esse algo que permite que não se pense mais a partir dessa noção de corte. E se compreendermos bem essa ultrapassagem do princípio de corte, estaremos, ao mesmo tempo, no holismo tradicional, no colocar-se a caminho junguiano, e no vivido pós-moderno. Notem que eu digo vivido, algo que está longe do pensado. Dentre vários exemplos possíveis, apresento três pressupostos e três consequências.

O primeiro pressuposto é a superação do individualismo epistemológico. Na grande tradição moderna (por moderno, compreendo a grande tradição semítica e ocidental), vê-se elaborar o que denomino de individualismo epistemológico, o cartesianismo, o cogito ergo sum. Todas as formas latinas são bastante interessantes e essa expressão aponta que eu sou o governador da minha fortaleza, do meu espírito, do meu cérebro. É essa fortaleza do espírito que vai estabelecer uma espécie de contrato social que existe entre as diversas fortalezas. O vínculo social é uma ligação de fortaleza a fortaleza. Individualismo epistemológico e Reforma Protestante. O que é a Reforma Protestante? O texto sagrado é traduzido em língua profana, ou seja, não há mais necessidade de um clérigo que interprete o texto e cada um tem sua própria relação com seu deus. Isso é o individualismo religioso. Em um terceiro momento, o individualismo político. A Filosofia das Luzes: nessa perspectiva, dois livros de Jean-Jacques Rousseau são interessantes: o Emílio (que é o romance da Educação) (Rousseau, 2004). Nele, a criancinha é educada, isso quer dizer que ela é retirada de sua condição e se torna um indivíduo autônomo. A palavra autônomo (em grego authonomos) quer dizer que eu sou minha própria lei, quando sou capaz de produzir minha própria lei. Vem daí O Contrato Social (Rousseau, 1996), o segundo livro. Posso fazer a história do mundo, a história da sociedade. É isso, então, o individualismo epistemológico - é o fundamento do contrato social, da Psicologia, da Sociologia, do vínculo social em geral.

Michel Foucault nos mostrou que esse é o fundamento de todas as instituições que surgiram ao longo do século XIX. Então, é contra isso que estamos em via de elaborar um processo de dessubjetivação, o inconsciente coletivo. Para isso, eu retomo mais uma vez uma citação de Guimarães Rosa (1994, p. 52): "jagunço é um homem já meio desistido por si." Isso quer mostrar a importância do nós, do grupo, da comunidade. Eis a metáfora que propus da tribo (Maffesoli, 1987).

A consequência desse primeiro elemento, para mim, é o esgotamento do caminho educativo ou pedagógico. É sempre o eterno problema de toda espécie animal: como vamos socializar a energia juvenil? Como vamos integrá-la? Como vamos castrá-la? Como vamos integrar a energia sem castrá-la demais? A Educação é uma dessas socializações e, sob o meu ponto de vista, há uma saturação da Educação. A crise de todas as instituições educativas demonstra isso. Não sei como essa questão está no Brasil, mas na França a crise da Educação é algo bem forte. Lá, a Educação não funciona mais.

Em certo sentido, a pedagogia vem de pedofilia. Vem de uma forma perversa. Quando uma fórmula não está em congruência com o espírito do tempo, ela se torna perversa. Mas existe uma segunda fórmula de socialização: a iniciação. A Educação pressupõe a ideia de que eu, como educador, vou impor algo vindo de fora. A iniciação é o contrário, ela vai fazer sair aquilo que já está lá. A iniciação vai se fazer a partir daquilo que é inicial, a tradição. E nisso para mim está a mudança, a transformação: não é mais a partir da imposição educativa de algo vindo do exterior, mas, ao contrário, o retirar o tesouro que já está lá. Nisso está a verdadeira mudança que está acontecendo: o mestre não vem antes, ele vem depois, quando o discípulo, com certeza, já está pronto.

O segundo pressuposto, ao qual voltarei mais adiante, é o seguinte: não estamos no simples sentido acumulativo do progresso. Gostaria de fazer uma distinção entre progressismo e progressividade das coisas, porque esses termos mostram concepções distintas de tempo. No progressismo, a humanidade parte de um ponto A de barbárie e chega a um ponto B de civilização: ordem e progresso. Isso é tipicamente o século XIX, mas não deixa de ser simpático e não podemos desprezar isso, pois é esse mito progressista que ocasionou toda a devastação do mundo; a tragédia ecológica nos mostra isso muito claramente. A progressividade é outra coisa: é aquilo que vai se elaborar a partir de raízes. Não é mais a flecha do tempo progressista, mas a espiral. Mais uma vez, isso remonta à tradição e a certo tipo de ecosofia, um tipo de sabedoria da casa comum (Maffesoli, 2017). Isso quer dizer que se cria um novo tipo de relação com a natureza. Não mais uma relação de dominação, de exploração, não mais uma relação de desenvolvimento, mas de envolvimento, de enveloppement. Eis aí o segundo pressuposto: o elemento da tradição.

O terceiro pressuposto e a terceira consequência: o colocar em xeque a fé na razão soberana. Vemos esse trabalho de Schelling a Jung, e que encontramos também em Michel Foucault, Gilles Deleuze e Gilbert Durand: um diferencialismo, não mais uma lógica de identidade, não mais um universalismo. Ou seja, não mais a lógica da não contradição. Quando renunciamos de várias maneiras à lógica de que A não pode ser não A. É essa a lógica da não contradição. Então, pode existir outra lógica, chamada lógica do contraditorial (e e..): eu sou isso E aquilo. O poeta Rimbaud diz isso de uma forma muito bonita quando afirma que eu posso ser isso E aquilo. É isso o contraditorial e é isso que está em vias de se modificar hoje em dia. Não mais um indivíduo uno (indivíduo quer dizer indivisível), mas uma pessoa plural. Que pode ser isso, aquilo e aquilo outro. É isso que chamo de colocar em questão a razão soberana.

O fundamento desses três pressupostos é nossa relação com a temporalidade. Digo frequentemente a meus alunos que só podemos compreender uma sociedade se a entendermos em sua própria temporalidade. E nossa grande temporalidade é Cronos, um tempo evolutivo, o progressismo. Enquanto, em Jung, existe a noção de Aion, o tempo imóvel, da noção de duração proposta por Bergson, são os arquétipos. Ou seja, para finalmente dizer que a relação é invariável: enquanto o tempo passa, há algo que não muda. Para Heidegger (1988), o tempo ele mesmo inteiro em seu desdobramento não se move, ele é imóvel. É isso o enveloppamentalisme. Em francês, essa palavra é um neologismo que é difícil para traduzir em português. Para fazer referência mais uma vez a Guimarães Rosa, com uma imagem muito bonita: o jagunço é o filho do instante. Estamos no coração do pensamento fenomenológico husserliano e heidegeriano, o dasein, ser-aí e ser-o-aí. E ser ao mesmo tempo o ser desperto. Eis, para mim, aquilo que é o presentismo - essa é outra maneira de compreender o tempo que não aquela futurista, longínqua, progressista. Em outras palavras, pensar a partir das raízes psicológicas, fundamentalmente. É isso que fez regularmente o pensamento da Renascença e que eu diria que é a ideia de compensação junguiana, principalmente.

Bom, não estamos mais em uma sociedade perfeita, mas em uma ideia de completude. Fundamentalmente, na ideia de inteireza do ser e, nisso, encontramos a noção junguiana de sombra. Não mais o "ou....ou...", mas "e....e...": o claro e o obscuro da existência, fundamentalmente. A mais bela expressão de Carl Gustav Jung: Nicht'raus sondern durch; não mais para além, mas através. E isso é a sombra. É nisso que está, para mim, o teorema fundamental da pós-modernidade. Em termos retóricos, é o oxímoro. Um exemplo de oxímoro é a "obscura claridade" ou "o negro sol do desejo".

Penso que essa mutação que acontece na atualidade e que está no coração da crise contemporânea. A crise não é econômica, a crise é societal, ela é a negação da falta espiritual causada pela abundância de consumo. No fundo, essa abundância de consumo cria uma falta espiritual. As atitudes paroxísticas e paradoxais. Nesse período de crise societal, o desenvolvimento do lúdico, do festivo em suas diversas modulações, é sintoma dessa recusa da falta espiritual. Quando não há nada de necessário, o supérfluo torna-se é importante. Notamos isso no livro Psicologia e Alquimia, de Jung (2011b), a partir da expressão intersigno. No esoterismo medieval, intersigno é a relação que se estabelece entre dois fatos totalmente contraditórios. É isso o intersigno. E, para mim, existe um intersigno entre o desenvolvimento lúdico e a crise econômica. E, a partir disso, é preciso voltar às raízes, aos arquétipos, aos encontros musicais e festivos, algo que remonte à cultura do instinto, àquilo que nos lembre que o animal humano também é um animal. É essa a ideia que está em Psicologia e Alquimia, o lúdico, o festivo, a criança eterna. Para mim, isso é Dioniso, receber como uma criança o Reino de Deus.

Poderíamos continuar por horas essa conversa, mas vamos parar por aqui, nessa intemporalidade presente, o instante eterno daquele quadro semântico: arquétipo-neótipo; intemporal-presente; invariante-instante eterno. É isso que está para mim no coração da tradição junguiana: aquilo que vem no início, isso quer dizer aquilo que vem da mitologia, dos contos e das lendas, a busca do Graal. É essa busca do Graal que é o fundamento da iniciação e nisso, mais uma vez em Guimarães Rosa (1994, p. 45), "o irremediável extenso da vida". De minha parte, eu chamei isso de reencantamento do mundo (Maffesoli, 2009).

 

Referências

Camus, A. (2006). Œuvres Complètes (Vol. II, pp. (1671-1682). Paris: Pléiade        [ Links ]

Durand, G. (1997). Estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (2007). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

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Maffesoli, M. (1987). O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

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Rosa, J. G. (1994). Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

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Rousseau, J. J. (2004). Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 20/7/2019
Aprovado em: 22/11/2019

 

 

1 Artigo oriundo da conferência de abertura do II Seminário Caminhos Junguianos: a travessia do Sussuarão, realizada em 11 de setembro de 2015, no anfiteatro do campus Dom Bosco da Universidade Federal de São João del-Rei. Tradução de Rodolfo Luís Leite Batista
2 Mal nommer un objet, c'est ajouter au malheur de ce monde.
3 Optou-se pela manutenção do termo francês enveloppement. Dele, Maffesoli criará o neologismo enveloppamentalisme que pode ser compreendido como envolvimento e envelopamento (Nota do tradutor).

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