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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.4 São João del-Rei out./dez. 2019

 

Da empiria à metafísica do arquétipo: contribuições da Psicologia Analítica ao conceito de Physis

 

From empiria to the metaphysics of the archetype: contributions of Analytical Psychology to the concept of Physis

 

De la empiría a la metafísica del arquetipo: contribuciones de la Psicología Analítica al concepto de Physis

 

 

Cesar Rey Xavier

Professor Adjunto na Unicentro, Departamento de Psicologia. Professor do Mestrado em Desenvolvimento Comunitário (Unicentro). Doutor em Filosofia. (UFSCar). Mestre em História da Ciência (PUC-SP). Pós-graduado em Filosofia (PUCPR). Graduado em Psicologia

 

 


RESUMO

Sob a égide de um clima intelectual firmado a partir do séc. XVII com o advento do mecanicismo e do empirismo, o conceito de "natureza" acompanhou o alvorecer de uma ciência moderna que se norteava pelos princípios de causalidade e materialidade. Breves percursos pela História da Ciência e da Filosofia, contudo, revelam conceituações díspares, algumas das quais pressupunham certa harmonia de fatores físicos com assertivas vitalistas e metafísicas, mediante ideias que se dispunham na forma de "pares de opostos". O objetivo deste ensaio é demonstrar a contribuição da teoria junguiana à noção de Physis, no sentido de integrar aspectos antagônicos no conjunto do conhecimento acerca da natureza. Como resultado desta reflexão, verifica-se que a epistemologia do pensamento junguiano, em muito sintonizada com a revolução quântica da física de partículas, resgata a antiga noção da Physis grega, na medida em que sua conceituação abarca o conjunto mais completo das diversas fenomenologias.

Palavras-chave: Physis. Empirismo. Metafísica. Fenômeno. Arquétipo.


ABSTRACT

Under the aegis of an intellectual climate established from the 17th century, with the advent of mechanicism and empiricism, the concept of "nature" accompanied the dawn of a modern science that was guided by the principles of causality and materiality. Brief journeys through the History of Science and Philosophy, however, reveal disparate conceptions, some of which presupposed a certain harmony of physical factors with vitalist and metaphysical assertions, through ideas that were available in the form of "pairs of opposites". The purpose of this essay is to demonstrate the contribution of Jungian theory to the notion of Physis, in the sense of integrating antagonistic aspects into the set of knowledge about nature. As a result of this reflection, it is verified that the epistemology of Jungian thought, very attuned with the quantum revolution of the physics of particles, rescues the old notion of Greek Physis, insofar as its conceptualization encompasses the most complete set of diverse phenomenologies.

Keywords: Physis. Empiricism. Metaphysics. Phenomenon. Archetype.


RESUMEN

Bajo la égida de un clima intelectual firmado a partir del s. XVII con el advenimiento del mecanicismo y del empirismo, el concepto de "naturaleza" acompañó el amanecer de una ciencia moderna que se orientaba por los principios de causalidad y materialidad. Breves recorridos por la Historia de la Ciencia y la Filosofía, sin embargo, revelan conceptualizaciones dispares, algunas de las cuales presuponen cierta armonía de factores físicos con asertivas vitalistas y metafísicas, mediante ideas que se disponían en la forma de "pares de opuestos". El objetivo de este ensayo es demostrar la contribución de la teoría junguiana a la noción de Physis, en el sentido de integrar aspectos antagónicos en el conjunto del conocimiento acerca de la naturaleza. Como resultado de esta reflexión, se verifica que la epistemología del pensamiento junguiano, en muy sintonizada con la revolución cuántica de la física de partículas, rescata la antigua noción de la Physis griega, en la medida en que su concepción abarca el conjunto más completo de las diversas fenomenologías.

Palabras clave: Physis. Empirismo. Metafísica. Fenómeno. Arquetipo.


 

 

Introdução

À semelhança da epistemologia quântica consagrada com o Grupo de Copenhague nos anos 1920, a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961) demanda por uma abordagem bipartida, dual, e complementar. Por um lado, todos os conceitos e princípios confeccionados por Jung assumem um postulado imaterial e, nesse sentido, metafísico. As estruturas de personalidade na óptica junguiana, por exemplo, não podem ser entendidas por uma epistemologia localizacionista no âmbito da neurociência, mas talvez o pudessem por abordagens que concebem modelos holográficos. Nessa mesma linha de raciocínio, conceitos como arquétipo, inconsciente coletivo, sincronicidade, anima e animus, tipos psicológicos, dentre outros, não podem ser explicados nas bases epistêmicas do materialismo e da causalidade. Por outro lado, é sabido que Jung nutria forte apreço e segurança no caráter empírico das observações, atendo-se ao máximo no que pudesse extrair dos fatos os quais, por sua vez, eram a matéria-prima dos "fenômenos", termo que seria cada vez mais recorrente para outras escolas de Psicologia que corriam em paralelo naquele mesmo século.

Sendo um arguto empirista, as observações de Jung procuravam acatar o fenômeno em sua plenitude, esforçando-se por deixar de lado todos os preconceitos que por ventura quisessem invadir sua consciência de pesquisador no momento da observação. Impulsionado por esse estilo livre e desimpedido de pensamento, Jung esmerou-se em investigar não apenas os objetos do conhecimento "academicamente correto", indo ao encontro também de saberes que beiravam a marginalidade científica, como ritos, mitos, simbologias alquímicas, parapsicologia e religiões. Já no início de sua carreira, quando apresentou em 1902 a Dissertação médica Zur Psychologie und Pathologie sogenannter okkulter phänomene - Sobre a psicologia e patologia dos fenômenos chamados ocultos (Jung, 1994), temos um bom exemplo que ilustra o seu estilo epistêmico, ao investigar o caso de uma médium espírita, cujo nome foi revelado posteriormente.

Essa sua preocupação com a empiria dos diversos eventos psíquicos, aliada ao inevitável caráter metafísico intrínseco a eles, suscita um problema no mínimo curioso: afinal, como conciliar empiria e metafísica num modelo teórico epistemicamente coerente? Essa é a façanha alcançada pelo pensamento junguiano. Podemos nomeá-la como "epistemologia dos pares de opostos".

A raiz dessa aparente contradição remonta a um número considerável de pensadores modernos, antigos e medievais lidos por Jung. Convém destacar a figura de Immanuel Kant (1724-1804), que sob a égide do período iluminista esmerou-se em solucionar a contenda desenhada no par de opostos racionalismo-empirismo, cuja polêmica foi acirrada singularmente pelo empirismo cético de um seu contemporâneo, David Hume (1711-1776). Esse filósofo setecentista colocou forte acento na desconfiança para com a noção de causalidade, princípio dos mais caros à ortodoxia científica. Em lugar de se confiar na causalidade, deveríamos nos conformar com o hábito, posto que não poderíamos ter qualquer garantia que uma causa apontada para determinado evento se repetiria para outros eventos (Hume, 1973). O texto do empirista escocês, que emplacou essa enorme interrogação à época do Iluminismo, veio sob o título An Enquiry concerning Human Understanding (Investigação sobre o entendimento humano), publicado pela primeira vez em 1748. Tratava-se, de certo modo, de substituir um princípio lógico-científico por um postulado puramente psicológico. Desse modo, todas as relações que percebemos na sucessão entre eventos seria meramente uma questão do nosso "hábito" de percebê-las empiricamente. Um exemplo recorrente era o de que se assistimos ao Sol nascer todos os dias, nada nos garante que nascerá novamente amanhã (Hume, 1973).

Diante das impossibilidades de se conhecer pelas "causas" argumentos que pareciam implacáveis nos escritos de Hume, Kant acrescenta o postulado racionalista do "sujeito transcendental" (Marcondes, 2005), afirmando que nem tudo na composição do conhecimento precisa necessariamente advir de bases empíricas, haja vista que algumas ordens e reconhecimentos diante dos fatos do mundo que percebemos só nos são possíveis graças a capacidades outras em nós imanentes, mas cujas fontes nos são transcendentes. O a priori kantiano, na forma de categorias universais, dotaria a razão humana de certos atributos capazes de impor ordem no caos dos eventos que a circunscrevem. Foi por meio dessa saída racionalista que Kant "dribla", por assim dizer, a sinuca epistemológica colocada por Hume, ao mesmo tempo em que observa os limites para nossa razão, na obra Critik der reinen Vernunft (Crítica da Razão Pura), de 1787 (Kant, 1974). Desta feita, o que parecia ser um par de opostos irreconciliáveis, ilustrado por razão-empiria, passa a ser encarado como um todo mais amplo, pois Kant conseguiu, à sua época, integrar em sua Filosofia o conhecimento oriundo dos dados da empiria com aquele oriundo dos dados da razão.

 

Pares de opostos: algumas ilustrações conceituais

O tipo de enfoque que enxerga a natureza permeada por pares de opostos foi adotado por não poucos pensadores ao longo da História. Nessa óptica, foi-lhes possível desde a Antiguidade pensar sobre temas cuja complexidade se adequava melhor na forma de pares conceituais, na medida em que atendia à necessidade de modelos epistêmicos mais versáteis,

capazes de abarcar a complexidade dos diversos fenômenos por eles contemplados. Bem e mal, masculino e feminino, matéria e espírito, mente e corpo, ácido e alcalino, graves e agudos, e toda sorte de antagonismos que a natureza oferece não passaram despercebidos por filósofos, médicos e sábios antigos. Alguns desses pares de opostos podiam aparecer na forma de quaternários, como no caso da Medicina de Hipócrates a respeito da teoria humoral, na qual entendia-se a doença pelo desequilíbrio de um ou mais dos quatro humores, a saber, sanguíneo, fleumático, colérico - bile amarela - e melancólico - bile negra (Reale & Antiseri, 1990). No pensamento de pré-socráticos como Empédocles, o "fator primordial" (arché) seria composto pelos quatro elementos: água, terra, fogo e ar, arranjo no qual a água faria oposição ao ar, e o fogo à terra. Outros ainda, como Heráclito e Parmênides, passaram para a História como um par de opostos "eponímicos", na medida em que seus próprios nomes passaram a falar pelos acentos de seus pensamentos. Assim, na contenda Heráclito versus Parmênides, temos um par de opostos que encerra a noção parmenidiana de que o "ser" das coisas é fixo e perene, em contraposição à assertiva heraclitiana de que a única fixação de todas as coisas é justamente sua eterna mutabilidade (Marcondes, 2005).

Também são fartas as alusões a pares de opostos na contemporaneidade. Apenas a título de exemplos, no campo da bioquímica em meados do século passado, a descoberta realizada pelo químico dinamarquês Jens Christian Skou (1918-2018) acerca do metabolismo envolvido na chamada bomba sódio-potássio revelou a marca das "oposições" até em níveis extremamente basilares de nossa biologia corporal, explicando como funcionavam os processos subjacentes às contrações musculares e impulsos nervosos.1 Interessante também é observar a oposição conceitual na sintomatologia psiquiátrica e psicológica das psicopatologias que envolvem "depressão" e "ansiedade", como no chamado "transtorno bipolar", psicopatologia em que os dois polos de euforia e depressão ficam bem evidentes.

Na Física de partículas do século passado, a humanidade assistiu à consagração de conceitos que acentuavam a marca dos pares de opostos e seus paradoxos intrínsecos, no seio da matéria, tais como dualismo onda-partícula, determinismo-indeterminismo, matéria-antimatéria. Foi a partir de aparentes contradições exibidas pelas partículas subatômicas, que os físicos do grupo de Copenhague, liderados por Niels Bohr (1885-1962), descortinaram uma cosmovisão radicalmente diferente da que a razão humana podia conceber até então (Bohr, 1995; Heisenberg, 1999). Segundo Bohr (1995), a fenomenologia onda-partícula, em vez de ser encarada como um paradoxo estático, podia ser contemplada como um par irredutível de manifestações da micromatéria, sob uma nova óptica que passou a chamar de "complementaridade".

No século XX, Jung foi um pensador que soube sintetizar magistralmente o conjunto de tradições que a Antiguidade, o Medievo e o Renascimento nos legou, com a influência que sofreu dos fatos científicos contemporâneos, em especial da mecânica quântica. Na tônica de sua Psicologia Analítica, os pares de opostos não precisavam ser entendidos apenas ao modo de antagonismos estáticos e insolúveis. Ele os encarava como conceitos dispostos em eixos dinâmicos. As dualidades, assim, estariam presentes na natureza, tanto quanto na própria psique, sendo a noção de Self (si-mesmo) afeita a tais paradoxos.

O psiquiatra suíço estaria a nos dizer, então, que a "natureza humana" é paradoxal par excellence e que deveríamos encarar esse fato como fundamental. Em outras palavras, qualquer intuito de compreender a natureza da psique de um modo mais profundo pressupõe uma ciência prévia de tal conformidade, junto da atenção de que seu enfoque seja tão amplo quanto necessário para englobar suas aparentes contradições. Jung (1988, p. 4) propôs que "a personalidade global que existe realmente, mas que não pode ser captada em sua totalidade, fosse denominada si-mesmo". Essa definição, citada de uma monografia redigida nos anos 1950, publicada atualmente pelo título de Aion, traz diversos tópicos nos quais Jung trabalha o conceito de Self permeado por toda sorte de dualidades. Mais adiante, ele diria que "Até onde nos leva a experiência, a luz e a sombra parecem estar divididas, por igual, na natureza humana, de modo que a totalidade psicológica aparece mais ou menos sob uma luz amortecida. [...] A luz e a sombra formam uma unidade paradoxal no si-mesmo empírico" (Jung, 1988, p. 39).

Em alguns momentos de suas reflexões acerca das antinomias, verificadas na natureza e na psique humana, Jung emprega o termo "enantiodromia" a fim de ressaltar o caráter dinâmico desses processos. A partir dele, ocorre uma aproximação conceitual entre os processos psíquicos e as transformações da matéria, esboçadas nos inúmeros tratados alquímicos resgatados e interpretados por Jung a partir dos anos 1930. Ainda nos textos de Aion, Jung (1988, p. 215) diria que

Como todos os arquétipos, o si-mesmo também tem um caráter paradoxal e antinômico. É ao mesmo tempo masculino e feminino, velho e criança, poderoso e indefeso, grande e pequeno. O si-mesmo é uma verdadeira "complexio oppositorum" [convivência dos opostos], com o que, porém, não queremos dizer que ele seja em si e por si, talvez, de natureza tão antitética. É igualmente possível, com efeito, que o seu aparente caráter paradoxal nada mais seja do que um reflexo das mudanças enantiodrômicas ocorridas na disposição da consciência, que ora é favorável ora desfavorável à totalidade.

Em texto anterior, que data de 1914, proferido em um encontro da Associação Médica Britânica, o entendimento de que os pares de opostos são condição sine qua non para a boa saúde mental já se fazia presente nos escritos e palestras de Jung. Em sintonia com o fato de ser uma teoria "analítica", o destaque era dado à parelha consciente-inconsciente.

A pessoa mentalmente desequilibrada tenta se defender contra seu próprio inconsciente, lutando contra suas influências compensatórias. [...] O resultado dessa luta é um estado de excitação que provoca, por sua vez, uma grande desarmonia entre as tendências conscientes e as inconscientes. Os pares de oposição se separam e a conseqüente cisão conduz à doença, pois o inconsciente começa a se sobrepor violentamente à consciência. Surgem então pensamentos e humores estranhos e incompreensíveis, alucinações que trazem nitidamente a marca do conflito interno. (Jung, 1986, p. 191)

A cisão aludida por Jung no trecho supracitado vem numa época e num contexto no qual boa parte de suas pesquisas estava voltada para a esquizofrenia, termo introduzido por Eugen Bleuler (1857-1939), mas ainda chamada de dementia praecox (demência precoce) até meados do início daquele século. Os vários casos de esquizofrenia analisados demonstravam o que a etimologia da palavra indica, ou seja, que havia uma "divisão" entre componentes da psique, uma cisão dos estados psíquicos que, por serem insuportáveis ao doente, tinha sua alma - frenia, transliterado do grego como phrenós - dividida - esquizo, transliterado do grego como skhízo (Houaiss & Villar, 2001, pp. 1242/1390). Ora, se a própria psique, à semelhança da natureza, admitia e mesmo dependia de uma estruturação paradoxal com base em oposições, então o conjunto dessas constatações poderia estar apontando para uma cosmovisão mais abrangente, para um conceito de Physis (natureza) amplo o bastante para admitir em seu bojo alusões e inferências de fatores metafísicos, simbólicos e universais, convivendo lado a lado com fatores materiais.

 

Númeno, fenômeno e arquétipo

É plausível afirmar que aquela contradição entre metafísica e empiria, aludida no início deste ensaio, também pode ser contemplada num todo mais amplo e coerente. Mas para esse entendimento é preciso recorrer novamente a Kant, no que se refere a outro par de opostos conceituais considerados por ele, conhecido pelas terminologias de númeno e fenômeno. Transliterado do grego como noumenon (Houaiss & Villar, 2001, p. 2035), Kant (1974) deriva a noção de que todas as coisas têm uma essência para além da capacidade ordinária de nossos sentidos, o que normalmente é dito como sendo "a coisa em si". Mas, oriundo de todas essas coisas, uma parcela considerável nos chega aos sentidos e à razão, alcançando nossa empiria e consequentemente nossa consciência, perfazendo a esfera dos fenômenos, do grego phainómenon (Houaiss & Villar, 2001, p. 1327). Por fenômeno, portanto, entenda-se tudo aquilo que brilha, evidencia-se, ou se apresenta, para nossa consciência. Significa dizer que, muito embora haja um quê de inacessibilidade em qualquer objeto do conhecimento, seu mistério mais íntimo, seu númeno, ainda assim podemos acessar o espectro de suas manifestações que nos são possíveis conhecer, os fenômenos. De certo modo, é possível conceber que a ciência e nosso conhecimento em geral sejam como faróis cuja luminosidade rasga a escuridão de todos os mistérios que nos rodeiam. Tudo aquilo que pudermos "iluminar", fazemo-lo com o concurso de nossa consciência. O restante que permanece na obscuridade fica a cargo do que filósofos e religiosos chamam de metafísica. Pense em um objeto do conhecimento qualquer e você pode conceber a um só tempo que ali reside um númeno metafísico e, portanto, obscuro, exibindo, porém, uma série de fenômenos que, por isso mesmo, nos são acessíveis à consciência, sendo iluminados por ela.

De todos os conceitos junguianos, talvez o que melhor ilustre a parelha conceitual de empiria e metafísica seja o de "arquétipo". Ao longo de sua extensa vida acadêmica e intelectual, Jung (2000) observou a presença indelével de fatores abstratos e universais, pertencentes ao que nomeou por "inconsciente coletivo", os quais davam ordem aos enredos humanos e naturais. Em seus textos e palestras, as alusões de Jung a tais fatores eram circunscritas pelas terminologias de "imago", "imagem primordial", de "caráter arcaico", até sua conceituação evoluir para a nomenclatura atual, "arquétipos" (Xavier, 2003), cuja etimologia remonta aos neoplatônicos, dentre outros pensadores antigos. Jung nos elucida a respeito de algumas dessas origens do termo no trabalho Von den Wurzeln des Bewusstseins. Studien über den Archetypus (Das raízes da consciência. Estudos sobre o arquétipo), que apresentou nas reuniões do Eranos em 1933, publicado em 1934, hoje figurando em língua portuguesa sob o título de Os arquétipos e o inconsciente coletivo.

O termo archetypus já se encontra em FILO JUDEU como referência à imago dei no homem. Em IRINEU também, onde se lê: "Mundi fabricator non a semetipso fecit haec, sed de alienis archetypis transtulit" (O criador do mundo não fez essas coisas diretamente a partir de si mesmo, mas copiou-as de outros arquétipos). [...] Em DIONÍSIO AREOPAGITA encontramos esse termo diversas vezes como [...] arquétipos imateriais. [...] O termo arquétipo não é usado por AGOSTINHO, mas sua idéia no entanto está presente. (Jung, 2000, p. 16)

O pensador suíço notou que em todas as experiências humanas era possível identificar fatores ordenadores abstratos, suscitando imagens que atuavam como padrões constantes em suas fenomenologias (Jung, 2000; Jung In: Meier, 1996). No mesmo texto afirmou:

Tomemos, por exemplo, a palavra idéia. Ela remonta ao conceito do [Eidos] de PLATÃO, e as idéias eternas são imagens primordiais [...] (em lugar supracelestial) guardadas como formas eternamente transcendentes. [...] Ou tomemos o conceito da energia, que designa um acontecimento físico. Antigamente, era o fogo misterioso dos alquimistas (...) ou (o fogo eternamente vivo) de Heráclito. [...] Não existe uma só idéia ou concepção essencial que não possua antecedentes históricos. Em última análise, estes se fundamentam em formas arquetípicas primordiais. (Jung, 2000, p. 42)

Termos como "amor", "poder", "bem", "mal", "virtude", "coragem", "masculino", "feminino", "pai", "mãe", e inúmeros outros substantivos das diversas línguas, suscitam infinitas possibilidades de vivências, a depender da época, da cultura, da comunidade, da família, da sociedade e de cada indivíduo que as experiencie. Para mil pessoas indagadas sobre o que seja o "amor", obteremos mil interpretações diferentes, cada qual baseada numa vivência, num "filtro" de consciência particular. O montante de todas as vivências possíveis e narráveis são os fenômenos (representações da consciência) oriundos daqueles fatores abstratos universais. É precisamente aí que o conceito de arquétipo se revela fundamental na obra junguiana, no sentido de integrar empiria e metafísica na construção do conhecimento, como veremos de modo mais apropriado no tópico adiante.

 

Os anos 1940: diferenciação entre imagem do arquétipo e o "arquétipo em si"

Esta é a década em que o ponto de maior maturação deste conceito alcançou seu desfecho, com o estabelecimento por Jung da diferença entre as imagens suscitadas por um arquétipo e sua fonte numênico-metafísica (Xavier, 2003). O texto que marcou esse divisor de águas conceitual veio na época sob o título Der Geist der Psychologie (O espírito da Psicologia), no ano de 1946. Hoje figura como Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico, na tradução para a língua portuguesa que integra o volume VIII de suas Obras Completas. Nele, Jung (1998) esclarece que o "arquétipo em si", em sua essência original e fundamental, é sempre um dado irrepresentável, cuja essência metafísica nunca se reduz à mundanidade de suas possibilidades de manifestação. Essa noção conduz àquela das "ideias perfeitas" na concepção de Platão, em que, por exemplo, um "triângulo", enquanto ideia universal, só poderia ser concebido na esfera metafísica do assim chamado "mundo das ideias". No diálogo A República, o filósofo grego assevera

Que há muitas coisas belas, e muitas coisas boas e outras da mesma espécie, que dizemos que existem e que distinguimos pela linguagem. [...] E que existe o belo em si, e o bom em si, e, do mesmo modo, relativamente a todas as coisas que então postulamos como múltiplas, e, inversamente, postulamos que a cada uma corresponde uma ideia, que é única, e chamamos-lhe a sua essência. [...] e diremos ainda que aquelas são visíveis, mas não inteligíveis, ao passo que as ideias são inteligíveis, mas não visíveis. (Platão, 1996, p. 308)

Dessa perfeição inatingível derivariam, contudo, todas as imagens ou cópias aproximadas aqui na esfera telúrica, a partir daquela sua fonte original. Em suma, só podemos ter acesso às imagens suscitadas pelos arquétipos, e não aos arquétipos em si. Como ressaltou Jung (2000, p. 16), o termo archetypus "é uma perífrase explicativa do [Eidos] platônico". Padovani & Castagnola (1962, p. 65) esclarecem que

O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino das ideias; a estas contrapõe-se a matéria obscura e incriada. [...] O divino platônico é representado pelo mundo das idéias e especialmente pela idéia do Bem, que está no vértice. A existência desse mudo ideal seria provada pela necessidade de estabelecer uma base ontológica, um objeto adequado ao conhecimento conceptual [...] O mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os valores, o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a que aspira.

O conceito contido no vocábulo "arquétipo", portanto, chancela a indelével marca do idealismo platônico na obra junguiana, este catalisado e aperfeiçoado no século XVIII com o apoio da crítica kantiana. Por essa óptica, Jung assume que nossa realidade é apenas uma imagem geral e imperfeita das formas apriorísticas e universais.

Mas o ideário platônico já havia norteado algumas discussões séculos antes do Zeitgeist (espírito do tempo) iluminista. Na obra Tipos psicológicos, originalmente publicada nos anos 1920, Jung (1991) nos conta uma história que antecede a Kant acerca das extensas discussões da escolástica medieval em torno dos chamados "universais", os quais suscitavam indagações nos pensadores da época, no sentido de saber se determinadas "coisas" eram de fato essenciais, ou simplesmente meras abstrações do intelecto. Em outras palavras, até que ponto podemos atribuir à noção de "beleza", por exemplo, apenas caracteres presentes em objetos "particulares", ou se de fato podemos conceber nesse vocábulo uma alusão a algo superior, ou seja, a uma ideia que seja universal, como teria enfatizado Platão? É da efervescência dessas discussões que derivaram os acalorados debates entre nominalistas e realistas. Conforme Jung (1991, p. 40),

Por nominalismo entendemos aquela escola que afirmava serem os assim chamados universais, ou seja, os conceitos genéricos e universais como a beleza, o bem, o animal, o homem, etc., nada mais do que nomes (nomina), ou palavras ironicamente chamadas sopros de voz (flatus vocis). [...] O realismo, contudo, afirma a existência dos universais antes da coisa (ante rem) e que os conceitos gerais existem em si mesmos, a modo das idéias de Platão. Apesar de sua associação eclesiástica, o nominalismo é uma tendência cética que nega a existência separada e característica das abstrações. É uma espécie de ceticismo científico vinculado com o mais rígido dogmatismo. Sua concepção de realidade coincide necessariamente com a realidade sensória das coisas, cuja individualidade representa o real como oposto à idéia abstrata. O realismo estrito, por outro lado, transfere o acento da realidade para o abstrato, para a idéia, o universal que ele coloca antes da coisa.

 

Por uma Physis ampliada

Levando-se em conta a relevância dos exemplos e fatos supracitados, calcados em tradições de pensadores que salvaguardaram a noção de uma inalienável esfera metafísica esgueirando-se nas fronteiras do conhecimento humano, somos convidados a repensar as bases sobre as quais nosso atual conceito de natureza (a Physis dos gregos) repousa. Em vez de uma natureza encarada apenas como "material" e "causal", talvez o montante de fenômenos que já conhecemos nos ajude a inferir também toda uma ordem de processos que não são aparentes, mas que nem por isso sejam inexistentes, o que nos conduz inevitavelmente ao conceito da "ordem implicada", da alcunha do físico estadunidense David Bohm (1917-1992). Com base nesse conceito, podemos entender que o montante dos fenômenos ou imagens arquetípicas com os quais lidamos na existência cotidiana seriam apenas aspectos parciais e manifestos, a "ordem explícita", oriundos de uma totalidade mais abrangente e não aparente, a "ordem implícita" (Bohm, 2001). É possível conjecturar então, a partir do seio dessa ordem oculta subjacente, a presença de variáveis ocultas, incluindo-se a noção de númenos, que explicariam os aparentes separatismos ou fragmentações com que nos acostumamos a perceber os diversos fenômenos, inclusive aqueles que se manifestam como pares de opostos. Em outras palavras, aquilo que se apresenta às nossas percepções ordinárias, as imagens arquetípicas, muitas vezes de modo separado, fragmentado ou até paradoxal, talvez advenha de uma fonte ou base mais profunda, na qual se revele que os antagonismos que enxergamos sejam apenas aparentes e contingentes à dimensão própria de nossa percepção. Encontramos respaldo para estas ideias também no pensamento do físico hindu Amit Goswami, particularmente na obra intitulada O universo autoconsciente, na qual se destaca o princípio idealista segundo o qual não é a matéria que cria a consciência, mas o contrário, ou seja, o de que é a consciência quem molda a matéria (Goswami, 2000).

Se a marca dos fenômenos (imagens arquetípicas) nos permite inferir a presença de númenos subjacentes (os arquétipos em si), seria muito interessante que nossa ciência e Filosofia se dispusessem a um resgate da antiga noção grega de Physis, em cuja conceituação estão presentes, naquelas origens, não apenas sua fenomenologia material, própria das ciências naturais de nossa modernidade, mas também toda sorte de princípios abstratos, simbólicos e universais que se manifestam em todos os movimentos da vida e do mundo natural. Sua tradução como "natureza", portanto, a depender de como seja utilizada nos meios acadêmicos, não consegue dar conta de toda a amplitude desse conceito tal como no mundo grego.

Com efeito, a influência de diferentes eras e períodos modificou o entendimento que se tinha acerca de "natureza". Interessante notar que, não obstante a Idade Média poder dar a impressão de prejuízos epistêmicos para alguns historiadores, comumente encarada como "idade das trevas", o fato é que sob outras perspectivas também podemos vislumbrar no Medievo Europeu um período que soube preservar melhor certos saberes, se comparado à Modernidade que o sucederia. A Idade Média foi um período no qual a Alquimia e todo um arsenal de alegorias do pensamento mágico-vitalista vivera seu apogeu. A era Moderna, bem diferente, revelou-se um Zeitgeist "desencantador", apartando dos saberes tudo o que não se adequasse ao modelo mecânico e material de mundo. O clássico Da alquimia à química expõe em detalhes todos os principais contornos dessa história. Nele, a autora esclarece que o século XVII viu a necessidade de

formulação de uma nova maneira de interpretar o mundo, condizente e consoante com os apelos da época. [...] Conhecido já desde então como "filosofia natural", esse novo enfoque do universo percorreu complicados caminhos e obedeceu a estranhas combinações antes de se tornar a mola mestra da ciência moderna. (Alfonso-Goldfarb, 2001, p. 155)

Mais adiante, complementa essa análise dizendo: "o que temos de fato, após meados do século XVII é [...] uma época que necessitava de explicações dadas, cada vez mais, em termos quantitativos e precisos, uma época que viveu os 'limites da realidade objetiva'" (Alfonso-Goldfarb, 2001, p. 157). Naquele cenário despontam, então, figuras icônicas da ciência, como Robert Boyle (1627-1691), considerado um dos principais tutores da ascensão da Química sobre as ruínas da alquimia. De acordo com Alfonso-Goldfarb (2001, p. 163),

Será, principalmente, a partir do trabalho de Sir Robert Boyle que a química iniciará seu complexo, mas irreversível, processo de incorporação como teoria científica independente junto à nova "filosofia natural", pois com ele o élan hermético que envolvia o estudo da micromatéria começa a ser rompido.

Foi nesse clima de transição que, da alquimia, aproveitou-se apenas o conhecimento das reações entre os diversos materiais, bem como suas estruturas menores, gerando a Química (Alfonso-Goldfarb, 2001). Da Medicina vitalista, que outrora combinava inclusive elementos da antiga astrologia, derivou-se a Medicina que podemos chamar de "organicista", mais atenta aos metabolismos e estruturas que podiam ser explicados sem qualquer recorrência a princípios mágicos ou energias vitais.

É digno de nota, a esse respeito, que a descoberta da circulação sanguínea tenha sido feita por um médico que nutria grande amizade com um alquimista e astrólogo rosacruciano, o renascentista Robert Fludd (1574-1637). Sob influência dele, o médico William Harvey (1578-1657) fez uma série de associações dos órgãos do corpo, em especial do coração, com a disposição dos planetas no sistema solar, ao cabo do que surgiu sua inspiração para a correta explanação acerca dos caminhos trilhados pelo sangue no corpo humano (Debus, 1996). Mas situações como essa na História da Ciência ilustravam o crepúsculo de inspirações vitalistas e simbólicas que deflagraria uma nova fase no pensamento ocidental.

A respeito da exótica figura de Fludd, o físico Wolfgang Pauli (1900-1958) nos deu um notável parecer na obra de autoria em conjunto com Jung, de 1952, publicada originalmente em alemão sob o título Naturerklärung und Psyche (A interpretação da natureza e a psique). Alguns anos depois, seria lançada a versão em língua inglesa, The Interpretation of nature and the Psyche (Jung & Pauli, 1955). O texto de Pauli que integrou essa obra versava sobre uma análise dos arquétipos que prevaleciam nos pensamentos de Fludd e do astrônomo Johannes Kepler (1571-1630). Mais recentemente, esse mesmo texto passou a integrar uma compilação de escritos de Pauli publicada nos anos 1990, sob o título Writings on Physics and Philosophy - Escritos sobre Física e Filosofia (Pauli, 1994). Especificamente, o texto de que se trata aqui foi intitulado The influence of archetypal ideas on the scientific theories of Kepler (A influência das ideias arquetípicas nas teorias científicas de Kepler), no qual o físico elucida magistralmente de que modo a contenda entre o astrônomo e o alquimista Fludd representou a transição de valores metafísicos e vitalistas do Medievo e da Renascença para a Era Moderna (Pauli, 1994; Xavier, 2003; Meier, 1996).

Na Psiquiatria que antecede ao nascimento oficial da Psicologia, também vemos a influência do Zeitgeist moderno e mecanicista, por meio da divisão daquela em duas correntes ou grupos, os Somatiker - somáticos - e os Psyquiker - psíquicos (Ellenberger, 1970). Os somáticos, que deriva do grego "soma", corpo (Houaiss & Villar, 2001, p. 2605), representaram no século XIX a porção da Psiquiatria que vingaria por assim dizer, isto é, atendia aos anseios de pesquisas que se empenhavam em descobrir e provar as bases causais para todos os comportamentos e patologias humanas, em cuja óptica havia a expectativa de que fossem estritamente biológicas ou químicas. Já os psíquicos, que deriva do grego "psique", alma (Houaiss & Villar, 2001, p. 2327), representaram no mesmo século a porção que seria "marginalizada" no seio da Psiquiatria, pois compreendiam programas de pesquisa nos quais os comportamentos e patologias poderiam em princípio contar com explicações não calcadas somente em bases materiais (do corpo, cérebro e sistema nervoso), mas também em bases propriamente psíquicas, abstratas e, em alguns casos, até mediúnicas.

É possível compreender, portanto, de que modo as transformações iniciadas no século XVII, com o advento do mecanicismo e da Era Moderna, contribuíram para que a antiga ideia de natureza, aquela nascida com os gregos, sofresse um desencantamento, afastando-se dela muitos de seus aspectos animistas, mágicos e vitalistas que outrora eram parte intrínseca de seu entendimento. É certo que a Alquimia representou uma corrente de pensamento paralela, que resgatou aqueles aspectos durante os séculos de sua duração entre Medievo e Renascença, caindo pouco a pouco no esquecimento com o advento do mecanicismo.

Cerca de 400 anos depois, esses mesmos princípios foram resgatados também no chamado encontro Jung-Pauli, cujo maior testemunho foi a publicação de suas trocas epistolares entre os anos 1930 e 1950. Naquelas cartas, estava uma tentativa criativa e inusitada, empreendida por um pensador da Psicologia e outro da Física, no sentido de estabelecer uma ponte epistemológica que aproximasse seus dois campos de estudo (Meier, 1996; Xavier, 2003). No fluxo das reflexões de suas cartas, fica patente a necessidade sentida por ambos de pensar um conceito "dilatado" ou ampliado de natureza, capaz de abarcar inclusive a gama de fenômenos normalmente relegados à marginalidade do estatuto científico (Xavier, 2003).

Com efeito, de todos os encontros interdisciplinares ocorridos no século passado, certamente o intercâmbio entre esses dois pensadores representa epistemologicamente o que de mais ousado aconteceu no sentido de um resgate da antiga noção de Physis. Esse encontro, registrado e publicado magistralmente por C. A. Meier (1905-1995), revela uma tentativa de ponte epistêmica entre suas ciências que os conduziu a modos de contemplar a noção de "natureza" (Physis) sob ópticas em muito heterodoxas para os padrões acadêmicos da época. (Meier, 1996; Xavier, 2003; Jung & Pauli, 1955).

Entre os diversos assuntos por eles tratados e refletidos, o conceito de "sincronicidade" figura entre os resultados mais marcantes desse encontro, pois fala de um fenômeno cujas bases foram por eles consideradas "acausais", portanto metafísicas, que a um só tempo combina elementos psíquicos e físicos, antecipando em meados do século XX muito daquelas concepções dos físicos Bohm e Goswami, comentadas anteriormente. Situações de premonição, pensamentos ou intenções corroborados por símbolos que aparecem com frequência na vida cotidiana, ou sonhos cujo teor simbólico forneça alguma solução para uma futura decisão, são exemplos de sincronicidade (Jung & Pauli, 1955; Meier, 1996; Xavier, 2003). Se um simples pensamento ou intuição (elemento psíquico) é acompanhado por fatos da vida ordinária (elemento físico), então haveria algum tipo de elo acausal (porém repleto de sentido) entre as duas esferas de fenômenos, o mental e o físico. No texto já citado anteriormente (Considerações teóricas...), Jung (1998, p. 220) afirma que

Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo, e, além disso, se acham permanentemente em contacto entre si, e em última análise, se assentam em fatores transcendentes e irrepresentáveis, há, não só a possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa. Os fenômenos da sincronicidade, ao que me parece, apontam nesta direção, porque nos mostram que o não-psíquico pode se comportar como o psíquico, e vice-versa, sem a presença de um nexo causal entre eles.

Os fenômenos de sincronicidade podem ser observados em certas situações da vida cotidiana, na forma do que Jung por diversas vezes chamou de "coincidências significativas", quando, pelas expectativas de probabilidade, a ocorrência de certas coincidências seria improvável. Para Jung e Pauli, quando alguma sincronicidade ocorria, além de representar uma espécie de "anomalia", também significava que tal fato era motivado por arquétipos agindo sob o manto da consciência da pessoa que o experimentava, ou seja, de modo inconsciente. Significa dizer que o arquétipo age como "fator ordenador", isto é, fator que norteia, que confere um logos (sentido) às coincidências entre pensamentos e os fatos do mundo físico (Xavier, 2003). No mesmo texto supracitado, Jung (1998, p. 214) declara: "como fator numinoso que é, o arquétipo determina a natureza e o curso do processo de configuração, com uma precognição aparente ou mediante a posse apriorística da meta que é determinada pelo processo de centralização".

 

Considerações finais

O encontro epistolar e epistêmico que se estabeleceu entre Jung e Pauli despertou a necessidade de um resgate de antigos princípios e alegorias filosóficas, em especial as do pensamento mágico-alquímico. Pode-se dizer, de certo modo, que Pauli seria um "alquimista" pós-moderno na esfera da Física, e Jung um "alquimista" pós-moderno na esfera da Psicologia, pois o manancial de saberes alquímicos que despontou em suas interlocuções epistolares nutria de símbolos e imagens arquetípicas as duas esferas do conhecimento por eles representadas, Física e Psicologia (Xavier, 2003). Ambos perceberam as convergências possíveis de serem delineadas entre suas duas ciências, capazes de estabelecer uma linguagem comum entre elas, bem como sentiram que uma tal empreitada só seria viável sob a égide de um novo e mais amplo conceito de natureza, o que nos conduz ao resgate da antiga noção grega de Physis.

A modernidade nos legou uma imagem cindida de natureza, pois uma série de elementos que dariam contornos mais fidedignos à sua constituição foram apartados, afastados de sua fenomenologia mais densa. Não admira que uma série de fenômenos dignos de serem estudados costumam ficar relegados à marginalidade científica, em função de sua impalpabilidade e abstração características, como é o caso dos eventos de sincronicidade. A noção de Physis, no estilo epistemológico de outrora, e adaptada para a atualidade por pensadores como Jung, Pauli, Bohr, Heisenberg, Bohm, Goswami, dentre outros, nos fornece uma imagem mais ampla de natureza, capaz de incorporar em seu bojo maior liberdade para combinar aspectos materiais com elementos simbólicos, mágicos, abstratos e vitalistas.

Obviamente, não veremos uma preocupação metafísica (além da Physis) no pensamento dos pré-socráticos, haja vista que naquele momento o foco era encontrar a gênese de todos os fenômenos no seio da própria natureza, o arché (elemento primordial), conforme vimos no início deste ensaio. Contudo, a atenção deles sobre os elementos primordiais da natureza passa longe do corte materialista que a modernidade desfechou na imagem que se fazia do cenário natural. Como bem asseveram Reale & Antiseri (1990, p. 31),

Não se deve acreditar que a água de Tales seja o elemento físico-químico que bebemos. A água de Tales deve ser pensada em termos totalizantes, ou seja, como a physis líquida originária da qual tudo deriva e da qual a água que bebemos é apenas uma das manifestações. Tales é uma "naturalista" no sentido antigo do termo e não um "materialista" no sentido moderno e contemporâneo.

Posteriormente, a metafísica platônica agregaria àquelas noções um novo alcance da razão humana, na medida em que se propunha rastrear a universalidade que nortearia todas as análises possíveis de serem feitas sobre a própria realidade da Physis mais imediata. É por isso que, para Platão,

a filosofia é essencialmente teoria, isto é, a capacidade de ver, através de um processo de abstração e de superação de nossa experiência concreta, a verdadeira natureza das coisas em seu sentido eterno e imutável. [...] Para Platão é necessário, assim, uma metafísica, entendida como doutrina sobre a natureza última e essencial da realidade, para que se possa definir o tipo de compreensão e de conhecimento que se possa ter desta realidade. (Marcondes, p. 57)

O conceito de arquétipo, porquanto encerre simultaneamente aspectos empíricos (imagens) e aspectos metafísicos (o arquétipo "em si"), contribui para o incremento da noção de Physis, na medida em que admite princípios universais atuando nos bastidores de fenômenos materiais. A epistemologia da teoria junguiana faz eco a esse modelo de natureza ampliado. De igual modo, a epistemologia da Física Quântica do grupo de Copenhague. É um modelo de Physis que admite não só a transcendência de certos fatores, os arquétipos "em si", como também a imanência na sua forma de "imagens". Trata-se de um modelo epistemologicamente reconfortante, pois aguça a necessidade de uma acurada observação dos diversos fenômenos, como também norteia a imaginação que pode, finalmente, contemplar no seio da natureza algo mais do que meros aglomerados de partículas materiais.

 

Referências

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Recebido em: 17/6/2019
Aprovado em: 10/10/2019

 

 

1 Este pesquisador, juntamente com Paul D. Boyer e John E. Walker, recebeu o Prêmio Nobel de Química no ano de 1997 por esta descoberta.

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