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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.4 São João del-Rei out./dez. 2019

 

Jung e a política: uma leitura do sujeito político no pensamento junguiano

 

Jung and politics: a reading of the political subject in Jungian thought

 

Jung y la política: una lectura del sujeto político en el pensamiento jungiano

 

 

Rodrigo Barros GewehrI; Amanda Barros Pereira PalmeiraII

IProfessor do instituto de Psicologia e do mestrado em Filosofia da Universidade Federal de Alagoas
IIMestranda em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas

 

 


RESUMO

Com a recente publicação da correspondência entre Carl Jung e Erich Neumann, Elisabeth Roudinesco retomou a controvérsia acerca da posição de Jung no que se refere ao antissemitismo. Em referência à Zur gegenwärtigen Lage der Psychotherapie (1934), Roudinesco defende que o conteúdo das cartas em nada contradiz a suposta tendência antissemita de Jung e questiona as consequências do que ela denomina infernal psicologia dos povos. Dado tal contexto, intentar uma leitura do político a partir de Jung parece ecoar questões e complicações que nos são contemporâneas. Poderia a dimensão do coletivo, ao qual o pensamento político de Jung é por vezes reduzido e ao qual é sempre associado, dizer-nos algo sobre a emergência de um sujeito político? Nesse sentido, propomos explorar o modo como o reconhecimento da esfera coletiva condiciona a ação política.

Palavras-chave: Jung. Política. Sujeito político. Coletividade.


ABSTRACT

With the recent publication of the correspondence between Carl Jung and Erich Neumann, Elisabeth Roudinesco resumed the controversy over Jung's position on anti-Semitism. In reference to Zur gegenwärtigen Lage der Psychotherapie (1934), Roudinesco argues that the content of this correspondence does not contradict Jung's alleged anti-Semitic tendency, and examines the consequences of what she calls the infernal psychology of peoples. Given such a context, to approach the political dimension in Jung's thought seems to echo issues and difficulties that are still quite contemporary. Could the dimension of the collective, to which Jung's political thought is sometimes reduced and always associated to, tell us something about the emergence of a political subject? In this sense, we propose to explore how the acknowledgement of the collective sphere outlines political action.

Keywords: Jung. political. Political subject. Collectivity.


RESUMEN

Con la reciente publicación de la correspondencia entre Carl Jung y Erich Neumann, Elisabeth Roudinesco reanudó la controversia acerca de la posición de Jung en relación al antisemitismo. En referencia a Zur gegenwärtigen Lage der Psychotherapie (1934), Roudinesco sostiene que el contenido de las cartas no contradice la tendencia supuestamente antisemita de Jung y cuestiona las consecuencias de lo que llama la psicología infernal de los pueblos. Dado este contexto, el intento de asimilar la dimensión política en el pensamiento de Jung parece hacer eco a problemas y complicaciones que son contemporáneos a nosotros. ¿Podría la dimensión del colectivo, a la que a veces se reduce el pensamiento político de Jung y a la que siempre está asociada, decirnos algo sobre el surgimiento de un sujeto político? En este sentido, nos proponemos explorar cómo el reconocimiento de la esfera colectiva condiciona la acción política individual.

Palabras clave: Jung. Sujeto político. Político. Colectivo.


 

 

Introdução

O acirramento do clima político mundial parece inaugurar uma fase na qual a "vacinação parcial que recebemos" contra os totalitarismos que grassaram em meados do século XX estaria se esgotando, conforme prenuncia o escritor israelense Amós Oz (2016). As atrocidades cometidas nos tempos das duas grandes guerras, bem como nas guerras que as sucederam, soam já como História que perdeu seu colorido, como imagens em preto e branco um tanto esvaziadas de afeto, se não ainda totalmente esvaziadas de sentido. Porém "ódio, fanatismo, aversão ao outro e ao diferente, brutalidade revolucionária, o fervor em 'esmagar definitivamente todos os malvados mediante um banho de sangue', tudo isso está ressurgindo" (Oz, 2016/2017, pp. 20-21).

Esse cenário de instabilidade, potencializado, sem dúvida, pela rapidez tortuosa das informações, convoca-nos a refletir acerca dos movimentos que se vão constituindo, cristalizando-se sob a forma de tendências mais gerais, não sem produzir efeitos nas singularidades, seja do ponto de vista econômico e social, seja na relação que cada qual estabelece consigo mesmo e com seu entorno. No espectro dos países que se reivindicam da democracia, cresce o apelo a políticas de direita, ou mesmo de extrema-direita, reacendendo a chama de velhos autoritarismos, talvez remodelados e disfarçados, não mais tão caricaturais quanto o foram as ditaduras do século XX, com todo seu aparato bélico e sua encenação militar. Esse recrudescimento de uma direita militante, de caráter nacionalista, mostra sua face tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, no Oriente como na América Latina, com especial atenção ao Brasil.

Se há algo de fantasioso na crença de que em algum momento teria havido paz e estabilidade no mundo, isso não implica que estejamos absolvidos de pensar nas práticas que emergem no seio mesmo de uma sensibilidade contemporânea que gostaria de se acreditar mais cosmopolita e menos selvagem. Frequentemente esquecemos o aspecto transgeracional das catástrofes infligidas aos povos, o quanto a miséria alimenta a miséria e se perpetua, gerando um intrincado sistema de pesos e contrapesos, que se expressa na sempre renovada instabilidade do mundo (Prado de Oliveira, 2018). A democracia criou no seu entorno uma aura que replicava o otimismo epistemológico da ciência, como se esse modelo de sociedade fosse o grande bastião dos valores mais nobres da humanidade, contra os bárbaros recolhidos à periferia dos países, autoproclamados desenvolvidos. Situação que se torna tanto mais insustentável que essas mesmas democracias, em nome dos valores nobres da humanidade, não hesitam em destruir os países ditos periféricos, arrasar culturas, instalar o caos, e até mesmo voltar-se contra seus próprios cidadãos. Demagogia e estados de exceção em nome de uma suposta normalidade institucional fragilizam o sistema democrático, que se torna violento e, pela lógica dos extremos, aproxima-se de tipos ditatoriais.1

Podemos tratar isso tudo como fruto de crises econômicas ou de valores. Independentemente do rumo de análise que tomemos, fato é que a guinada à direita, bem como o recrudescer de fanatismos, é algo que não se reduz a uma meia dúzia de senhores de terno e gravata que decidiriam o destino do mundo, e tampouco a um punhado de fanáticos que teriam escorregado nalguma deriva identitária. O fanatismo e a avidez, como lembra ainda Amós Oz, muitas vezes começa em casa, na micropolítica da vida cotidiana, e pouco a pouco vai ganhando terreno, podendo tornar-se fenômeno popular, senão de massa. O fanatismo das políticas identitárias, bem como a avidez do capitalismo, não são apenas atributos de manipuladores, mas forças capazes de arrastar multidões, dadas as circunstâncias propícias.

Jung deparou-se com esse problema dos autoritarismos, com as ditaduras de direita, com as duas grandes guerras, com a perseguição e o extermínio de Judeus, com as revoluções, e trouxe suas interpretações para aquilo que era urgente em seu tempo. Em certa medida, Jung jamais esteve distanciado da política, embora não tenha sido franca e abertamente um homem político. Para além das políticas institucionais da Psicanálise e da Psicologia Analítica, Jung, como representante de certo saber psicológico, entrou em debates a respeito de toda essa problemática cultural e de seus sentidos psicológicos de fundo, entrando também em situações delicadas, como mostram as conhecidas celeumas em torno do judaísmo na Europa e da assim chamada "psicologia judaica".

A questão da relação de Jung com o judaísmo já foi inúmeras vezes salientada, mas ganhou novo capítulo com a recente publicação da correspondência entre Jung e Erich Neumann, judeu alemão que foi um seu analisante e discípulo, formou-se analista e exerceu essa atividade em Tel Aviv, após ter escapado das garras do nazismo. A questão em torno do judaico e do ariano é um elemento nodal dessa correspondência, entre outras razões pelo fato de Jung ter publicado, em 1934, um artigo classificado por Élisabeth Roudinesco (2018) de antissemita. Segundo a historiadora francesa - que acusa o psiquiatra suíço (se não levianamente, de modo apressado) de ser fascinado pelo Führer -, o cerne do problema estaria no que ela denomina como a infernal psicologia dos povos de Jung.

É bem verdade que o referido artigo - Zur gegenwärtigen Lage der Psychotherapie (1934)2 - traz à luz uma série de articulações psicológicas, no mínimo, delicadas, sobretudo se considerarmos o momento histórico e a linguagem adotada por Jung, "o uso de terminologia Nazi", como lembra Neumann (Jung & Neumann, 2015, p. 14). No mesmo sentido, o editor da Correspondência entre Jung e Neumann acrescenta que essa troca de cartas é também

uma expressão da repulsa de Neumann, uma crítica explícita às posições de Jung em relação à Judeidade e ao Nacional Socialismo. Neumann questiona o entendimento positivo de Jung acerca do inconsciente germânico, que havia capturado o povo alemão, acusando-o de fechar os olhos à sombra coletiva. (Liebscher, 2015, p. xxiv)

Não sem receios pelo destino do povo Judeu na Palestina, Neumann aponta uma série de impropriedades e "erro de julgamento" (Jung & Neumann, 2015, p. 18) nas análises de Jung, tanto no que diz respeito à apreciação que faz do povo judeu quanto às consequências psicológicas que tira dessa leitura equivocada. Ademais e sobremaneira importante, Neumann salienta o quanto Jung está ele mesmo tomado por esse movimento que captura a alma germânica, o que o impediria de enxergar certos traços da maquinaria nazista, e a violência engendrada por ela. No meio do fogo cruzado em que se colocou, Jung recebe crítica semelhante de Gustav Bally, ainda em 1934, desta vez dirigida ao fato de Jung ter-se tornado presidente da Sociedade Médica Internacional de Psicoterapia e redator de sua revista, a Zentralblatt für Psychotherapie3, ambas consideradas como alinhadas ao nazismo.

Aquele que se apresenta como o editor de uma revista alinhada, colocando em pauta uma questão de raças, deve saber que o que ele demanda inscreve-se sobre um fundo de paixões orquestradas que dará dele mesmo a interpretação contida implicitamente nas palavras que emprega. (Bally, 2007, p. 682)

Uma acusação direta de antissemitismo, entre outras tantas que Jung recebeu, como se estivesse igualmente capturado pelo que apontava sobre a "besta loira" - termo que utiliza num texto de 1918, Über das Unbewusste, no qual já alertava para o elemento bárbaro que estava gestando na alma alemã. A posição de Jung em todo este affair é bastante controversa e ambivalente, como salienta Deirdre Bair. Por um lado, o então eminente psicólogo suíço usava de sua influência para auxiliar colegas judeus, tanto na fuga das regiões dominadas pelo nazismo quanto na tentativa de mantê-los na controversa sociedade médica internacional, cada vez mais dominada por ideólogos nazistas a partir de 1933. Por outro lado, lançava-se em aventuras teóricas, no mínimo, carregadas de insensibilidade histórica, detalhe que Neumann não deixa de assinalar4 (Jung & Neumann, 2015, p. 12).

Deirdre Bair também não deixa de se inquietar com essa ambivalência. No capítulo de sua biografia de Jung denominado "Em colisão com a história", embora a autora mostre detalhadamente o quão complexa foi a posição de Jung nessa controvérsia, afirma que algumas questões permanecem em aberto.

ele acreditava que sua reputação internacional era suficientemente sólida para que uma simples proposição de sua parte bastasse para constranger [os nazistas] e obrigá-los a mudar a forma como tratavam os judeus? Tratava-se de ingenuidade política? [...] Ou isso era apenas fruto do orgulho desmesurado do jovem que ele seguia sendo [...], que triunfava desconsiderando tudo que se encontrava em seu caminho? (Bair, 2007, p. 684)

A insistência da autora em utilizar, inúmeras vezes, a palavra infelizmente para se referir a essa situação toda mostra o quanto o tema é indigesto...

De fato, a obstinação de Jung em análises de cunho racial soa como uma espécie de incompreensão do momento político. Se sua intenção era não fazer política, uma vez mais se comprova que a política está na tessitura mesma de nossos gestos, e jamais está muito distante das teorias. Entre o reconhecimento direto do plano político na letra do texto e sua emergência indireta no discurso de Jung, as críticas parecem fazer perdurar uma lacuna. Em outras palavras, a tentativa de circunscrever uma psicologia dos povos é automaticamente lida por meio de um referencial político, inserindo essa análise num contexto bastante específico que, aparentemente, vai muito além de seu contexto teórico original. Por outro lado, Jung faz uma série de comentários em sua obra que poderiam ser considerados como reconhecimento de modos de circunscrição do político, que em muito excedem a questão judaica, mas que jamais entram no debate levantado pelas críticas que ele recebeu. Destaca-se nesse dilema a questão do coletivo, o espaço que cada uma dessas posturas - a de Jung e a de seus críticos - atribui à dimensão da coletividade.

A reductio ad hominen, tão tentadora, talvez nos impeça de enxergar o que de fato sustentou o diálogo entre esses dois autores, e que permitiu a Neumann suportar o que entendia como uma deriva injustificada de seu mestre. Não se trata de escusar, ou de querer minimizar os reais dispositivos racistas nesse imbróglio do círculo junguiano, mas sim ressaltar - e Neumann mesmo chama a atenção para isso, que há algo de mais profundo na análise de Jung, aspectos que vão para além de uma hipotética aderência pessoal a uma germanofilia (Bair, 2007) que se mostrou tão desastrosa quanto Jung previra. Logo no início da correspondência, Neumann aponta para um elemento que nos pode indicar um ponto de inflexão entre o que seria da ordem do equívoco pessoal de Jung e o que haveria de estrutural na análise do fenômeno psíquico, o que estaria para além da redução a um discurso racial e seria, quiçá, o fator que sustentou o diálogo apesar das discordâncias: "eu simplesmente não consigo entender que seja possível que o inconsciente coletivo, nos seus estratos mais profundos, possa ter em si tensões maiores ou menores entre as diferentes raças" (Jung & Neumann, 2015, p. 14).

Haveria, pois, uma espécie de deriva metonímica da parte de Jung, a ponto de induzir à ideia de que o inconsciente coletivo poderia ser apreendido por meio de uma psicologia de raças. Se é possível pensar que estratos do coletivo se manifestam a partir de agenciamentos culturais (dentre os quais a ideia de raça estava em voga à época), seria inapropriado pensar que no âmago do inconsciente coletivo o problema se daria nesses termos e não numa abordagem mais estrutural. No fim das contas, o que Neumann está apontando é que Jung acabou por permanecer num nível sociológico de análise, e numa Sociologia bastante questionável.

Se é importante considerarmos os meandros e as minúcias dessa atuação política de Jung, é também fundamental tentarmos apreender as possibilidades de análise política de fundo que suas leituras do período das grandes guerras nos podem fornecer. Esses são os eixos a partir dos quais abordaremos a política em Jung.

 

A política para além da psicologia dos povos

Em Zur gegenwärtigen Lage der Psychotherapie (1934), citado por Roudinesco e outros críticos da obra junguiana, Jung examina se a psicoterapia pode ser praticada como fórmula de receituário ou simples método operacional. Partindo desse questionamento, ele descreve a mudança no status da psicoterapia, outrora considerada apenas como técnica e, enquanto tal, subordinada à ideia de que dominar a técnica seria o suficiente para sua aplicação por qualquer pessoa. Como contraponto, Jung argumenta que a existência de diferentes escolas e sociedades muda esse cenário, ao evidenciar tanto a disputa pela verdade e validade absoluta entre teorias quanto o envolvimento do psicoterapeuta no processo. Não pela primeira vez, ele utiliza como referência as teorias de Adler e Freud, mais uma vez colocando em discussão a atribuição etiológica a determinados aspectos em detrimento de outros. À primeira vista, essa discussão está completamente dissociada do plano político. Entretanto, ao discutir a influência de disposições subjetivas do terapeuta na interpretação do material psicológico, Jung identifica características e as atribui a grupos específicos, como os judeus e o que ele chama de inconsciente ariano [arische Unbewußte]. É esse ponto que passou a ser lido por suas implicações políticas e que acabou por dominar o cenário das interpretações da política em Jung.

Para além das controvérsias já mencionadas, sem escusar ou corroborar suas implicações à época, consideramos que as afirmações de Jung podem revelar um contexto muito mais complexo, inclusive em termos de pensamento político. Por um lado, ele chega a propor uma oposição entre essas variações do inconsciente baseada numa noção de desenvolvimento do que chama "formas culturais" e como consequência direta da crítica às premissas subjetivas do terapeuta. Por outro lado, é preciso reformular a cadeia de raciocínio ao longo do controverso texto de 1934, não para diminuir o peso atribuído às alegações de Jung a respeito dos judeus, mas para averiguar se seu aspecto político pode ser reduzido às alegações de antissemitismo ou se o ultrapassa.

Nesse sentido, nosso primeiro objeto de análise diz respeito à terminologia utilizada por Jung e suas implicações. Segundo Samuels (2005), não há nada metafórico no modo como Jung se refere ao povo judeu, e seu uso do termo "psicologia judaica" apresenta variações que abarcam desde a existência de características psicológicas típicas, presentes em "judeus típicos", até a referência a um sistema psicológico - como o de Freud e o de Adler - baseado em características "dos judeus" e que, por consequência, ignoram a existência de diferenças nacionais ao supor sua aplicabilidade e verdade universais (Samuels, 2015). Dessa forma, tanto Samuels quanto Jung parecem reconhecer a existência da extensão "povo". Este é inclusive o mesmo termo utilizado por Roudinesco, ao se referir à psicologia dos povos que estaria presente em Jung. Essa distinção nos parece fundamental. Até certo ponto, ela retrata atitudes direcionadas à dimensão coletiva, que é o plano de fundo mais facilmente discernível em Jung. Por outro lado, povo e nação não são necessariamente equivalentes, levando em conta suas diferentes formas de composição e ligação com o Estado.

Embora cite Freud e Adler, Jung jamais questiona se sua própria teoria psicológica poderia ser denominada "psicologia suíça". A diferenciação entre um inconsciente x ou y, no texto, parece se referir muito mais a distinções em tradições culturais e não necessariamente a uma mudança definitiva no processo de funcionamento psíquico. Ao mesmo tempo, somada à afirmação da ideia de povo, parece haver a sobreposição das noções de raça e nação, no que concerne à invariabilidade da primeira e a multiplicidade da segunda. Onde Roudinesco (2018) aponta o delineamento de uma psicologia dos povos, entretanto, Samuels (2015, p. 311) identifica uma psicologia das nações. Cada um à sua maneira, eles apontam para a tendência de ler o registro coletivo enquanto uma totalidade. Em termos de desdobramentos, esse seria o cerne do problema.

O nacionalismo tem como função social e política a superação [overriding] de distinções individuais, frequentemente incluindo a superação das chamadas diferenças raciais através de sua redução a um só estado. Longe de ser um fenômeno de algum modo secundário ao indivíduo, a nação imprime sua marca nele ou nela através de sua ideologia e estruturas de poder - uma teia de suposições sobre a sociedade e o lugar do indivíduo nela, sobre moralidade. [...] o nacionalismo requer a equiparação entre o estado e o povo. (Samuels, 2015, p. 308)

A crer nessa perspectiva, Jung teria contribuído, ainda que indiretamente, para consolidar um ideal de nacionalismo. Segundo Samuels (2015, p. 309), com a descrição da dinâmica entre indivíduo e nação e ao demonstrar o entrelaçamento entre cultura, nação e civilização, Jung teria acabado por fornecer uma forma de expressão psicológica do nacionalismo. Não existem elementos suficientes na obra de Jung para precisar se essa seria sua intenção, muito pelo contrário. O aspecto político era por ele considerado primariamente não-psicológico (Jung, 1976, §1309). E não somente isso, mas a política se ocuparia do futuro (Jung, 1961, §78). Pela sequência apresentada na citação de Samuels, temos que o povo ou a nação se compõem na qualidade de supressores da singularidade, o que indicaria a inserção num registro anterior - ao próprio sujeito e em relação à história. Isso significaria dizer que essa unidade de matiz totalitário (no que há de apreensão do todo) poda ao mesmo tempo a ação política do sujeito e o reconhecimento da coletividade enquanto agente político.

Soma-se a isso a profunda desconfiança de Jung em relação a atitudes coletivas, que guardam não obstante uma importante função, inclusive de equilíbrio psíquico. No entanto, acrescenta Jung (1916/1981, pp. 72-73), "não existe absolutamente nenhuma norma coletiva que possa substituir uma solução individual sem que haja perda". A ideia de que se poderia reduzir a leitura de Jung do psíquico ao coletivo é fundamentalmente equivocada, e esquece de associar a essa inevitabilidade do coletivo, em suas muitas manifestações, o que Jung denominou, a partir de Schopenhauer, princípio de individuação, o qual se estrutura pela via da diferenciação, entre outros, com o coletivo. Ainda assim, Samuels (2015) ressalta um fator fundamental: o reconhecimento de diferenças e o estabelecimento de relações entre o indivíduo e o plano coletivo está na base do argumento de Jung. Ou seja, embora pareça atribuir um tom de categoria política à ideia "raça", em grande medida, o percurso de Jung mostra a tentativa de circunscrever essa categoria da cultura - por vezes representada também por meio de ideias como, povo ou nação, demonstrando a dificuldade e a necessidade de pensar como (ou se) isso seria possível.

Se, por um lado, essa tendência à apreensão do todo contribui para que Jung seja considerado um antissemita - pela convenção de pensar, na política, o todo em termos de totalitarismo; por outro lado, essa problemática permite compreender questões de fundo que perpassam a relação entre o indivíduo e a sociedade, o indivíduo e o político, de modo que a coletividade seja compreendida como mais que uma ameaça, tanto ao indivíduo quanto à organização social. A tendência de considerar o peso da coletividade como o que pode enfraquecer a liberdade individual, a instituição política do sujeito, encobre uma característica que geralmente passa despercebida: as divergências internas dentro do que chamamos de "povo", entendidas como algo que já não pode ser superado, mas que são constituintes dessa dinâmica entre o indivíduo e a representação, e que estariam intimamente ligadas à efetividade da ação política. Nesse sentido, o pensamento de Jung pode contribuir para compreendermos a situação política atual, como o sistema democrático parece se voltar contra os próprios cidadãos e os afetos que permeiam essa relação, salvaguardando tanto a liberdade individual quanto a importância assumida pelo plano coletivo.

 

Da dimensão conceitual à psicologia dos povos

Em Die Psychotherapie in der Gegenwart (1946), Jung declara que o objetivo da psicoterapia é educar para a independência e a liberdade moral. Nesse contexto, ele se posiciona contra a atribuição de primazia ao Estado em relação ao indivíduo, e enxerga nisso o perigo de uma transformação de todos os outros aspectos da vida em "instrumentos de um sistema político particular" (Jung, 1946/1954, §223). Ademais, Jung sustenta que, do ponto de vista do desenvolvimento do indivíduo, a relação entre sociedade e Estado nem sempre corresponde à relação com a cultura ou tem como resultado o desenvolvimento desta. Desse modo, ele ressalta que

todos os seus recursos [da formação para a humanidade, da formação humana] são, em sua origem e essência, eternamente, uma questão individual, uma questão daquelas instituições que se ajustam o mais estrita e intimamente ao indivíduo, ao seu coração e espírito. Jamais, em tempo algum, esta formação foi uma questão de multidões. Jamais uma questão de civilização. (Jung, 1946/1954, §223, nota 8)

Apesar disso, Jung (1946/1954) levanta a hipótese de que a sociedade poderia ser considerada um objetivo mais nobre que o indivíduo, cuja emergência só seria possível em função da sociedade. Como resposta a esse argumento, Jung descreve como o fazer parte de uma tribo requer sacrifícios em nível individual, algo análogo a um modelo de civilização no qual a individualidade é limitada ao rei e todas as outras pessoas desaparecem na anonimidade da massa. Em ambos os casos, a relação entre indivíduo e grupo se dá via projeção: quer pela compulsão à projeção ou por uma vontade inata por consciência, liberdade e cultura. Com base nesse diagnóstico de contradição entre a sociedade e o indivíduo, Jung (1946/1954) questiona quem é o Estado, descrito como "a soma de todas as nulidades que o constituem" (§223).

Embora concorde quanto à importância da sociedade para a emergência do indivíduo, Jung nega que ela seja a condição mais predominante. "'Sociedade' é um simples conceito para a simbiose de um grupo humano" (Jung, 1946/1954, §224). Ou seja, sob o fundo da sobreposição dos conceitos de sociedade e estado, o que está em destaque é o modo como Jung se opõe à limitação do indivíduo a um mero componente da sociedade. Por esse motivo, ele questiona a primazia do objetivo político: "em vez da expansão da consciência pela supressão das projeções, surge a retração da mesma, e isso porque a sociedade, que é uma simples condição para a existência humana, é apresentada como fim" (Jung, 1946/1954, §225). Assim, a sociedade é caracterizada em contradição tanto com o desenvolvimento da cultura quanto com o desenvolvimento do indivíduo; o que reafirma a identificação de um traço totalitário, anteriormente aludido com o exemplo de uma individualidade conferida somente ao rei.

Essa argumentação vai na direção oposta à presumida tendência nacionalista de Jung. Segundo ele mesmo, por "Estado", refere-se à "organização da sociedade" (Jung, 1946/1954, §225). Nem a individualidade e tampouco a sociedade deveriam ser consideradas como a meta principal ou único propósito da formação humana, o que faz descartar tanto o coletivismo extremo das massas quanto o individualismo extremo. Para Jung (1946/1954, §227), "o processo de individuação natural produz uma consciência do que seja a comunidade humana, porque traz justamente à consciência o inconsciente, que é o que une todos os homens e é comum a todos os homens. Aqui, a introdução do elemento inconsciente parece desestruturar a ênfase no indivíduo conferida pela dinâmica da individuação. Afinal, o modo como Jung fala de um povo judeu ou ariano, essa conjunção entre povo e nação na mesma expressão, poderia ser tomada como a consolidação de uma identidade de grupo. Nesse sentido, talvez os críticos estejam fazendo alusão ao fato de que, mesmo reconhecendo os problemas impostos pela representação e o desequilíbrio entre comunidade e indivíduo; mesmo resguardando o papel e a importância de cada uma dessas dimensões, Jung estaria no fim das contas afirmando uma influência do inconsciente que, mais uma vez, provocaria a dissolução da dimensão da singularidade no coletivo ou numa abstração representativa.

Não há povo antes do ato pelo qual o povo se torna inicialmente um povo; e, mesmo depois, o povo não é uma unidade ou homogêneo, mas múltiplo e dividido internamente. Em suma, longe de constituir uma identidade estável derivada de uma essência preordenada que poderia ser racial, étnica, linguística, cultural ou definida ontologicamente; "povo" aqui serve como um nome - um nome dentre vários outros - para o processo político que produz seu próprio sujeito, ao mesmo tempo em que nos lembra que não há política sem o elemento de subjetivação. (Bosteels, 2016, p. 20, tradução nossa)

Por conseguinte, a "psicologia dos povos" de Jung nos remete ao que é reconhecido como povo, arriscando uma imagem de homogeneidade que o próprio Jung refutava. Para ele, o Estado somente deixaria de ser uma massa anônima para se tornar uma comunidade consciente quando o indivíduo pudesse contar com a liberdade política de decisão. Em todos os outros cenários, haveria um quê de alienação do sujeito, de imprecisão na multidão. Ou seja, não é de se espantar o modo como esse tipo de asserção gerou mal-estar, naquele momento e ainda hoje. Além da própria noção de "povo", problemática, já que estamos no plano da Psicologia, fundá-la sob uma essência étnica ou racial, como parecia ser o caso, traz consigo uma ideia de deslegitimação.

Segundo Jung, em Der Geist der Psychologie (1946), "a confrontação com o arquétipo ou com o instinto é um problema ético" (Jung, 1946/1967, §410); panorama a partir do qual entende-se o plano ético pela possibilidade de posicionar-se e ser capaz de tomar decisões com base em princípios. É interessante notar que esse ponto é seguido pela demarcação do que ele chama "homem da massa", aquele cuja característica principal é não tomar consciência de coisa alguma e, para o qual, tanto a sociedade quanto o Estado são percebidos como uma vastidão anônima que comete erros. Em outras palavras, o homem da massa não assume a responsabilidade por suas próprias ações, colocando a culpa na sociedade ou no Estado. Desse modo, "tomar consciência" diz respeito ao desenvolvimento do próprio senso de responsabilidade e implica um distanciamento das razoes coletivas.

O homem da massa, pelo contrário, tem o privilégio de nunca ser culpado das grandes catástrofes políticas e sociais em que o mundo inteiro se acha mergulhado. Seu balanço final, conseqüentemente, nunca terá lugar, ao passo que os outros têm a possibilidade de encontrar um ponto espiritual fixo, um reino que "não é deste mundo". (Jung, 1946/1967, §410)

O indivíduo que se sente dependente em relação ao ambiente substitui seu próprio código de ética, quando o consegue desenvolver propriamente, por uma noção do que é permitido, proibido ou mandatório (Jung, 1954/1969); como se essa apropriação ocorresse antes da maturação ética do indivíduo. Esse tipo de afirmação é sustentado pelo reconhecimento de "impulsos éticos espontâneos", aos quais é atribuído uma importância maior que a mera obediência a um conhecimento que viria de uma instância exterior. Nesse sentido, o fenômeno do homem de massa se apresenta como resultado do conflito entre o desenvolvimento ético "instintivo" do indivíduo e o desenvolvimento da sociedade em sua resposta à cultura. Em textos como Wotan (1936) e Die Psychologischen Grundlagen des Geisterglaubens (1919), esse fenômeno atinge uma escala muito mais ampla e, do ponto de vista político, parece operar como sinalizador da dinâmica estabelecida entre os afetos e os atos políticos.

No espaço entre as dificuldades de circunscrição conceitual ou terminológica e o reconhecimento de uma psicologia dos povos, podemos tirar algumas conclusões a partir da leitura de Jung. De fato ele se detém prolongadamente na dimensão coletiva, pelo próprio modo como elabora sua teoria do inconsciente. A denominação "povo judeu", naquele momento, causou uma série de incômodos, que ecoam até hoje. Em grande medida, parece trazer consigo um operador de segregação, que somado ao uso do termo "raça" confere um tom de substituição das diferenças individuais por uma abstração representativa - a qual, nesse caso, estaria sendo pronunciada ou instaurada por um suíço não judeu. Por outro lado, buscamos apontar até aqui indícios de que Jung estaria propondo muito mais que a redução do indivíduo, em sua singularidade e como agente político, a uma forma nacionalista de povo.

Em vez de anunciar um fechamento ou enrijecimento em categorias coletivas, Jung demonstra como a esfera coletiva é fundamental para a ação política. Não há tentativa de igualar esses dois fatores - coletivo e individual -, mas, como bem mostra a introdução da noção de individuação, a dinâmica entre eles traz à tona o modo como se fortalecem ou enfraquecem mutuamente. No plano mais elementar, a individuação significa a possibilidade de fazer parte do plano coletivo sem perder a autonomia do singular. A identificação do indivíduo enquanto tal surge na comunidade e, em grande medida, perdura por conta dela. Todavia, dado o conflito entre o desenvolvimento da sociedade e o desenvolvimento da humanidade como formada por sujeitos propriamente ditos, ser identificado como parte do coletivo pode significar que a autonomia e o engajamento político do indivíduo enfraquecem. Jung está complemente ciente disso, mas ele não parece parar nesse poder normativo exercido pela comunidade. Sendo assim, consideramos a possibilidade de que há um outro elemento nessa análise do plano coletivo; que há em Jung uma perspectiva política que excede a psicologia dos povos, entre os dois polos que são usualmente alvo de análise: a cristalização sob a forma de tendências gerais e a produção de efeito nas singularidades. Na medida em que instaura novas configurações, na dinâmica complexa entre sujeito e a abstração de sua representação política, Jung abre margem para reconhecer a possibilidade do "povo", em sua coletividade, também como um sujeito ou agente político.

 

Sobre o plano da inscrição dos afetos: dissonância entre afetos e atos políticos

Em Gegenwart und Zukunft (1957), Jung defende que a imagem estatística de um homem médio acarreta uma distorção ou redução da realidade, colocando o indivíduo "de lado, ao favorecer unidades anônimas que se amontoam em formações de massa. Ao invés do indivíduo concreto, temos os nomes de organizações e, no ponto mais alto, a ideia abstrata de Estado como o princípio da realidade política" (Jung, 1957/1970, §499). Nesse mesmo texto, Jung ressalta a mudança provocada em termos de desenvolvimento do indivíduo - a meta e o sentido da vida individual (que é vivenciada como a única vida real) são assim deslocados do desenvolvimento individual para o estabelecimento de políticas do Estado. Uma das possibilidades de leitura dessa análise diz respeito à moralidade, implica na adoção de valores externos e anteriores ao indivíduo e a redução deste a uma unidade social. O que propomos nesta seção é, por outro lado, visualizar como as dinâmicas coletiva e individual se complementam a partir de tal modificação e como são percebidas do ponto de vista da "vida real".

Locuções como "o povo francês" ou "povo russo" apenas documentam a inércia de um movimento político passado e ossificado em um estado, de acordo com Badiou. Este "povo + adjetivo nacional" faz referência a um passado histórico de energias políticas reais que foram dissipadas na formação do estado. (Olson, 2016, pp. 108-109)

Essa afirmação coloca mais uma vez em pauta o desequilíbrio entre o objeto de representação, que nesse caso corresponderia à locução "povo + adjetivo nacional", e os sujeitos políticos compreendidos não somente por sua capacidade de agência, mas pela dimensão da vida real e sensível. Em última instância, esse aspecto diz respeito ao elemento de subjetivação, aos afetos. Ou seja, considerar energias políticas "que foram dissipadas" demonstra o quanto os afetos são indissociáveis do plano político, mesmo em casos em que há uma cristalização ou um elemento que ganha valor estrutural.

Em textos como Wotan (1936/1978), por exemplo, Jung parece replicar a tendência de visualizar os aspectos políticos pela via do reconhecimento da influência dos afetos, no modo como penetram nas pessoas e nas sociedades. Dado o funcionamento do inconsciente coletivo, tudo parece contribuir para essa ênfase de interpretação, na qual os afetos "transbordam" e contaminam outros aspectos da vida. Nesse panorama, o que Jung sugere como solução é a integração dos afetos: na dimensão da singularidade, isso provoca o equilíbrio, mas não no plano coletivo. É importante ressaltar que todas essas características, num plano político marcado pelo desnível entre sujeito e sociedade, parecem reduzir a dimensão do afeto ao plano coletivo, levando a ignorar a expressão do sensível em sua concretude na vida real do sujeito.

A tentativa de unificar o sensível do sujeito e a abrangência da coletividade do povo na representação se mostra ineficaz; o primeiro desses aspectos sempre é interpretado como um produto ou efeito, não inscrito na História, mas como marca da inscrição da História (Didi-Huberman, 2016). Esse é o mesmo tipo de descompasso apontado por Jung se pensarmos os afetos para além das tonalidades afetivas advindas do inconsciente coletivo. Há uma tentativa de reequilibrar o aspecto "dialético" que marca a relação entre ato político e afeto; há o reconhecimento da necessidade (Didi-Huberman) ou da inevitabilidade (Jung) de combinar afeto e representação.

Do ponto de vista da relação com a representação, isso implica dizer que há um conflito e há pontos de concordância. Essa dissonância entre os afetos e os atos políticos significa dizer que as representações perdem seu tom dialético; enquanto a representação é legitimada, e sustentada no plano coletivo, as emoções aparentemente se esvaziam - as emoções são vivenciadas como "puro afeto", desvencilhadas de seu teor político, e as ações políticas se mostram sem ressonância na dimensão da experiência de cada sujeito. Embora muito do debate sobre a dimensão política da obra de Jung esteja grandemente reduzida à alegada ambiguidade do autor em relação ao regime nazista, não seria possível avançarmos para outros aspectos de sua obra que sustentem uma análise do político e da política na atualidade? Ainda que esse capítulo do suposto flerte de Jung com a ideologia nazista mereça atenção, é importante notar, como já salientamos, que existe em sua obra aspectos que já denunciavam o potencial destrutivo das dinâmicas que se estavam estabelecendo na Alemanha e na Europa. Mesmo na correspondência entre Jung e Neumann, o potencial de análise política do pensamento de Jung se mostra nas entrelinhas das críticas de Neumann.

Para se pensar a dimensão política da obra de Jung, o conceito de inconsciente impessoal é de suma importância, e seria um equívoco - que possivelmente o próprio Jung tenha cometido, segundo Neumann - reduzir essa dimensão do inconsciente à questão da raça. Esta foi, como vimos, uma das fontes de crítica que Jung recebeu por conta de escritos bastante controversos, mas para além disso, em textos como Wotan (1936) ou Die Psychologischen Grundlagen des Geisterglaubens (1919), o autor trabalha numa abordagem estrutural bastante mais profícua para se pensar as dinâmicas sociais, as quais podem inclusive se manifestar em discursos de raça, e seus corolários de exclusão sistemática de grupos específicos.

"A reintegração de um complexo pessoal tem um efeito de libertação e frequentemente de cura, enquanto a invasão [Einbruch] de um complexo do inconsciente coletivo é um fenômeno muito desagradável e até mesmo perigoso" (Jung, 1919/1967, §591). Da mesma forma que, do ponto de vista da singularidade, somos mobilizados, e por vezes arrastados por afetos, assim também o são as sociedades. No entanto, no que diz respeito aos fenômenos coletivos, a dinâmica que geram tem um potencial perturbador, ou mesmo destrutivo, tanto no plano singular quanto coletivo. Isso porque as dinâmicas coletivas também produzem fortes tonalidades afetivas [stark gefühlsbetont] que podem se espalhar no conjunto da sociedade como rastilho de pólvora, convocando afetos antes latentes, ativando complexos individuais, gerando dinamismos que se assemelham a psicoses coletivas.

No seu livro Das dritte Reich des Traums, Charlote Beradt (1981) mostra como aspectos político-psicológicos do totalitarismo alemão penetraram até a raiz dos sonhos de quem vivia sob aquele regime. O material coletado aponta para "as relações psicológicas e os comportamentos típicos de indivíduos, [para] o efeito direto da dominação total sobre cada um dos dominados" (Beradt, 1981/2004, p. 52). A autora nos mostra ainda como aspectos de fundo da ideologia em vigor à época se manifestam nos sonhos, e como estes contribuem para ilustrar o alcance de dispositivos ideológicos: "A autoridade nazista que afirmou que sob o Terceiro Reich somente dormindo se tinha uma vida privada, subestimou as possibilidades do regime: o homem tornando-se totalmente sujeitado [assujetti]" (Beradt, 1981/2004, p. 57). Os sonhos recolhidos pela autora mostram sobretudo a reação inconsciente de pessoas que resistiam ao sistema que se estava impondo; pode-se sem grande dificuldade imaginar que efeitos mais ou menos semelhantes aplicavam-se aos apoiadores do regime.

Podemos pensar esse fenômeno a partir da ideia de invasão dos complexos coletivos. Diferentemente de uma integração dos afetos na dimensão da singularidade, a ativação de conteúdos coletivos não é necessariamente um fator de equilíbrio; pelo contrário.

Se a tradução do inconsciente em uma linguagem comunicável for bem sucedida, produz-se um efeito redutor. As forças instintivas presentes nos conteúdos inconscientes são canalizadas, graças à tradução, para a consciência e formam uma fonte energética [Kraftquelle] capaz de desencadear, por sua vez, um entusiasmo perigoso. (Jung, 1919/1967, §595)

Os dinamismos coletivos inconscientes buscam continuamente uma forma de expressão, e quanto mais se potencializam por circunstâncias contextuais de uma dada coletividade, mais adquirem condições para exprimir-se, para romper o limiar de impulsos latentes. Ao encontrarem um ponto de apoio, esses dinamismos ganham a luz do dia, ganham determinação e contornos culturais específicos, ainda que sejam graves as consequências disso, como as guerras e suas misérias de curto e longo prazo.

Isso não exclui de forma alguma os fatores objetivos que cooperam na construção de fatos sociais. O que se quer salientar é que as condições objetivas só conseguem se estruturar a ponto de gerar uma irrupção social quando mobilizadas de alguma forma, num determinado sentido, agregando e potencializando afetos latentes na sociedade. "Quaisquer que sejam as circunstâncias exteriores que precipitam o início das guerras, é bastante evidente que estas circunstâncias precisam de apoiar-se sobre fatores psicológicos poderosos" (Valois, 1992, p. 276). Reynald Valois afirma também que há sempre um quê de "dever sagrado" em todas as guerras, ressaltando o aspecto do imponderável que cria o amálgama necessário para dar coesão às condições objetivas e, a partir daí, um povo lançar-se num conflito armado.

Com efeito, Jung detalha, em Wotan, como uma série de fatores culturais se foram conjugando até Hitler tomar o poder. Desse ponto em diante, tudo se organizou e se colocou em movimento, "no seu rumo em direção à perdição" (Jung, 1936/1978, §388). Esses fatores, no entanto, seriam muito parcialmente compreendidos se os reduzíssemos (mesmo associando-os) a aspectos econômicos, políticos ou psicológicos. Ainda que todos esses fatores concorram para o que ganha corpo como nazismo, por meio da figura de Wotan Jung reforça a ideia de que um fator psíquico autônomo foi ativado na cultura, infectando toda uma nação. Há nisso um aspecto mítico, religioso, numinoso.

É difícil negarmos o fato de que pessoas imbuídas de uma "nova fonte de poder" podem rapidamente derivar para um "perigoso entusiasmo". Esse é um aspecto estrutural da leitura de Jung dos fenômenos sociais. E não precisamos apoiar-nos somente nesses movimentos de massa tão característicos de meados do século XX. A atualidade política segue mostrando esse aspecto, ao redor do mundo e também no Brasil, até nos detalhes mais sutis, ainda que, como salientamos anteriormente, sem necessariamente apoiar-se num aparato teatral e militarizado como o dos estados totalitários de tipo fascista ou nazista. A mesma "rejeição gradual da realidade e negação da vida como ela é" (Jung, 1936/1978, §375, nota 3), que Jung identifica em autores que depois fundamentaram direta ou indiretamente o nazismo, pode ser encontrada em diversas manifestações políticas contemporâneas. Difícil também negar o aspecto de "contágio" que certas ideias, impulsionadas por palavras de ordem, tiveram nas últimas eleições gerais no Brasil. É digno de nota, ainda, certo apelo a "figuras de autoridade" truculentas e contundentes em suas manifestações, sem papas na língua como se usa dizer. Essa característica produz um paralelismo bastante direto com as antigas figuras de autoridade dos estados totalitários, retomando inclusive aspectos - que muito rapidamente foram julgados ultrapassados - do arquétipo-paterno e, na esteira deste, do nacionalismo.

Mas se esse dinamismo coletivo produz um efeito direto nas singularidades, resta ainda pensarmos acerca das condições de formação de tais dinâmicas, e de que forma elas se estruturam a ponto de ganhar legitimação social. Jung não é prescritivo a esse respeito, como é de seu costume. No entanto, ele lança alguns fundamentos para que possamos pensar estruturalmente as dinâmicas inconscientes. No que diz respeito às experiências individuais, complexos autônomos irrompem, com seu potencial caráter perturbador, quando algo demasiadamente devastador ocorre na vida de uma pessoa, ou quando os conteúdos do inconsciente coletivo acumulam muita energia e passam a influenciar a consciência (Jung, 1919/1967). O mesmo se aplica à coletividade. E se isso não exclui as caraterísticas próprias do destino de cada grupo ou de cada povo, tampouco pode ser reduzido a uma questão de grupos ou de povos específicos. Noutros termos, a questão racial, que foi responsável pelas mais duras críticas a Jung, é uma péssima e limitada conselheira para se pensar a dimensão impessoal do inconsciente.

"Condições sociais, políticas e religiosas afetam o inconsciente coletivo no sentido de que todos os fatores suprimidos por visões ou atitudes prevalentes na vida de uma sociedade gradualmente se acumulam e ativam seus conteúdos" (Jung, 1919/1967, §594). Atitudes, ideias, afetos que numa determinada sociedade sejam demasiadamente reprimidos [unterdrückt] tendem a criar um acúmulo de energia que, por sua vez, impulsionados pela ativação de conteúdos do inconsciente coletivo (seja por condições sociais, políticas ou religiosas), vêm à luz carregados da tonalidade afetiva dos conteúdos antes recusados. Como não enxergar na reinvestida do autoritarismo sectário uma resposta ao racismo latente? Como não perceber nas investidas contra o feminismo uma resposta à misoginia dissimulada de variadas formas na sociedade?

Se essas manifestações não se dão fora do contexto de cada povo, ou seja, a partir de signos específicos de cada cultura, isso não implica que seja legítimo reduzir o problema a esta ou àquela cultura. Por um lado é possível, e mesmo factível, pensar em termos específicos, como as famigeradas categorias de "psicologia judaica" e "psicologia ariana" o mostram, mas isso circunscreve a discussão, inevitavelmente, a uma questão de "raça", com todas as derivas que daí decorrem. Por outro lado, pode-se pensar em termos estruturais, naquilo que Jung aponta como o caráter compensatório das dinâmicas psíquicas conscientes e inconscientes, seja no plano singular, seja no coletivo. Isso nos distancia dessas categorias mais limitadas, sem, no entanto, nos impedir de pensar nos efeitos inerciais que os percursos coletivos produzem.

É por isso que, apesar das críticas que faz a Jung, Neumann continua estudando os paradoxos de sua judeidade e as características gerais que identifica em sua cultura, mas ao fazê-lo está também ocupado com aspectos ainda mais amplos, que dizem respeito ao todo da humanidade, "quanto mais os mundo interno emerge, mais as questões privadas mostram-se conectadas [bound up with] com o simbolismo universal humano" (Jung & Neumann, 2015, p. 132). Jung também avança nessa perspectiva: "Enquanto você considerar a individuação como uma tarefa metafísica 'universal' inclusive para os judeus, você está de acordo com minha perspectiva, mas você se coloca em desacordo com sua obstinação [determinedness] histórica" (Jung & Neumann, 2015, p. 106). Jung busca esclarecer sua posição, muito embora mantenha uma linguagem, no mínimo, suspeita; busca salientar a diferença entre um estrato histórico de análise e outro que seria mais estrutural e, por conseguinte, "universal".

Essa mesma inspiração, guardadas as diferenças de tempo e tema, pode ser lida em Caio Prado Jr. (1942, 1942/2011, p. 285), quando ele afirma que "organização econômica, padrões materiais e morais, nada há que a presença do trabalho servil, quando alcança as proporções de que fomos testemunhas, deixe de atingir; e de um modo profundo, seja diretamente, seja por suas repercussões remotas". O sociólogo remete a uma característica de fundo de nossa formação cultural e, nesse sentido, ocupa-se de algo que é peculiar ao Brasil, que diz respeito aos efeitos de longo termo que uma sociedade escravocrata como a nossa produz na própria tessitura das relações sociais. Nessa linha de raciocínio, pode-se pensar nos efeitos dessa estrutura nos desdobramentos da vida em comum no país.

Mas é possível ir além disso e pensar também num estrato ainda mais profundo, no qual essa estrutura de relação baseada no servilismo nos remete a um modo operacional que se estende a perder de vista; em grande medida, transcultural. É nesse plano de análise que se pode pensar o impessoal como ultrapassando até mesmo os destinos de cada povo. Ainda que cada povo mostre a face dessa estrutura relacional de diferentes modos, onde houver trabalho servil, sempre haverá ecos de seus efeitos, e isso se pode reativar de diferentes maneiras, como salientado anteriormente.

É importante ressaltar, portanto, que reduzir o inconsciente impessoal à discussão sobre o destino dos povos é tomá-lo apenas por um lado, é reduzi-lo a seus conteúdos. Perde-se com esse processo metonímico o que seria seu aspecto mais interessante e intrigante, qual seja, a dimensão estrutural, de pattern of behaviour, que aproxima estranhamente todos os povos, e todas as pessoas dentro dos povos. Se a acusação de que Jung estaria fazendo uma psicologia dos povos permanece algo injusta, a insistência mesma dessa ideia, e sua perpetuação, revela no mínimo uma inabilidade do autor para dirimir as ambiguidades. E se é verdade que "onde quer que conteúdos do inconsciente coletivo sejam ativados, eles possuem um efeito perturbador na mente consciente e disso surge confusão" (Jung, 1919/1967, §595), Jung não pode evitar de pagar o preço de ter vivido na época do furor teutonicus, assim como pessoa alguma pode evitar de estar sujeita às mobilizações coletivas de seu tempo. Todo o trabalho de Jung em torno da individuação pode, nesse sentido, ser compreendido como a árdua tarefa de não se deixar arrastar pelos contágios de cada época. Não se faz isso inteiramente, nem impunemente.

 

Referências

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Recebido em: 29/7/2019
Aprovado em: 22/10/2019

 

 

1 Agamben nos lembra que "Malgré les apparences, l'organisation démocratico-spetaculaire mondiale qui se dessine ainsi risque d'être, en réalité, la pire tyrannie qu'ait jamais connue l'histoire de l'humanité". Agamben, G. (2002). Moyens sans fins. Notes sur la politique (p. 97). Paris: Payot & Rivages. (Originalmente publicado em 1996).
2 Jung, C. G. (1978). The state of psychotherapy today. Princeton: Princeton University Press (Originalmente publicado em 1934).
3 O texto ao qual Roudinesco faz referência foi inclusive publicado nessa revista. Cf. Samuels, A. (2005). The political psyche. New York: Routledge.
4 "[
] where I come from, great men have always been called upon to exercise discernment and to stand against the crowd - and it is precisely my conviction about the uniqueness of your own nature that causes me now - (not only in my own interest) - to ask you if this easy affirmation, this throwing yourself into the frenzy of Germanic exuberance - is this your true position or do I misunderstand you on this point?" Jung, C. G., & Neumann, E. (2015). Analytical Psychology in exile. The correspondence of C. G. Jung & Erich Neumann (p. 12). Princeton: Princeton University Press.

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