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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.4 São João del-Rei out./dez. 2019

 

A mística de Simone Weil e a análise dos sonhos: aproximações entre a Fenomenologia e a Psicologia Analítica

 

The mystic of Simone Weil and the analysis of dreams: approximation between the Phenomenology and the Analytical Psychology

 

El místico de Simone Weil y la analisis de los sueños: acercamiento entre la Fenomenologia y la Psicologia Analítica

 

 

Patrick Wagner de Azevedo

Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense, Darcy Ribeiro (Uenf). Especialista em Psicologia Existencial pelos Institutos Superiores de Ensino do Centro Educacional Nossa Senhora Auxiliadora (Isecensa). Psicólogo clínico com atuação em abordagem junguiana com diálogos com a Fenomenologia Hermenêutica de Heidegger. Professor de Psicologia e Filosofia dos Institutos Superiores de Ensino do Centro Educacional Nossa Senhora Auxiliadora (Isecensa) em Campos dos Goytacazes, RJ. Analista judiciário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Neste trabalho, pretendemos fazer dialogar âmbitos da existência que raramente são vistos reunidos: a análise de sonhos, numa abordagem da Psicologia Analítica num encontro com a daseinsanálise, e a experiência mística. Para tanto, lançamos mão de um sonho de um de meus pacientes e os relatos de Simone Weil, mística judia do século XX. Nesse sentido, meu paciente trouxe um sonho emblemático no qual se evidencia que o âmbito espiritual de sua existência estava recebendo pouca atenção. Vemos que os sonhos podem assumir o papel de apontar ao Dasein que diferentes âmbitos existenciais estão sendo negligenciados. De modo semelhante, para a Psicologia Analítica, a individuação apresenta-se como encontro de âmbitos inconscientes da existência não considerados pelo caráter unilateral da consciência. A experiência mística, entendida como relação de pessoalidade com Deus, no cristianismo, é um desses âmbitos e, quando negligenciada, pode produzir uma limitação na liberdade existencial do indivíduo. O mundo técnico parece desqualificar experiências não apreensíveis pela razão lógica, mas a existência pode sustentar sua essencial liberdade e permanecer aberta, plural e afeita às explosões de possibilidades que o Dasein, em última instância, é. A daseinsanálise é prática psicoterápica apoiada na Fenomenologia Hermenêutica de Heidegger e aponta para o acolhimento da diversidade infindável de possibilidades existenciais que perpassam o Dasein. Para a Psicologia Analítica, o processo de individuação, que recebe dos sonhos sentidos próprios, aponta na direção de diálogo profícuo entre a consciência e o universo plural, dinâmico e aberto do inconsciente. O mistério, doador de sentidos, pode ser um ângulo donde é possível um encontro entre a Fenomenologia e a Psicologia Analítica.

Palavras-chave: Mística. Análise de sonhos. Daseinanálies. Psicologia Analítica.


ABSTRACT

In this work, we intend to make ambits of existence that are rarely seen together dialogue: dream analysis, in an approach of Analytical Psychology in an encounter with daseinsanalysis, and the mystical experience. To this end, we made use of a dream from one of my patients and Simone Weil's reports, a mystical Jew from the 20th Century. In this sense, my patient brought an emblematic dream which revealed that the spiritual ambit of his existence was receiving little attention. We see that dreams can assume the role of pointing to Dasein that different existential ambits are being neglected. Similarly, for Analytical Psychology, individuation presents itself as an encounter of unconscious ambits of existence not considered by the unilateral feature of consciousness. The mystical experience, understood as the personal relationship with God, in Christianity, is one of these ambits and, when neglected, can produce a limitation on the existential liberty of the individual. The technical world seems to disqualify experiences that are not apprehensible by logical reason, but the existence can sustain the essential liberty and remain open, plural and prone to the explosion of possibilities that Dasein, ultimately, is. The daseinsanalys is a psychotherapeutic practice sustained by Heidegger's Hermeneutic Phenomenology and points to welcoming the everlasting diversity of existential possibilities that cross Dasein. For the Analytical Psychology, the process of individuation, which receives from dreams its own senses, points towards a fertile dialogue between consciousness and the plural universe, dynamic and open from the unconscious. The mystery, donor of meanings, can be an angle from which a meeting between Phenomenology and Analytical Psychology is possible.

Keywords: Mystic. Dream analysis. Phenomenology. Daseinsanalysis. Analytical Psychology.


RESUMEN

En el presente trabajo pretendemos hacer dialogar diferentes ámbitos de la existencia que raramente son vistos juntos: el análisis de los sueños en un abordaje de la Psicología Analítica en encuentro con el análisis existencial (daseinanálise) y la experiencia mística. Para esto, tomamos un sueño de uno de mis pacientes y los relatos de Simone Weil, mística judía del siglo XX. En este sentido, mi paciente trajo un sueño emblemático en el cual se evidencia que el ámbito espiritual de su existencia estaba recibiendo poca atención. Observamos que los sueños pueden asumir el papel de señalar al Dasein que diferentes ámbitos existenciales están siendo descuidados. De modo similar, para la Psicología Analítica, la individuación se presenta como el encuentro de ámbitos inconscientes de la existencia no considerados por el carácter unilateral de la consciencia. Por otra parte, la experiencia mística, entendida como la relación de la personalidad con Dios, en el cristianismo, es uno de esos ámbitos y cuando es descuidada puede producir una limitación en la libertad existencial del individuo. El mundo técnico parece descalificar las experiencias no comprensibles por la razón lógica, sin embargo, la existencia puede mantener su esencial libertad y permanecer abierta, plural y afectiva ante las explosiones de posibilidades que el Dasein, en última instancia es. El análisis existencial es una práctica psicoterapéutica apoyada en la Fenomenología Hermenéutica de Heidegger y apunta al acogimiento de una infinita diversidad de posibilidades existenciales que atraviesan el Dasein. Para la Psicología Analítica, el proceso de individuación - que recibe de los sueños sentidos propios-, señala en dirección a un diálogo prolífico entre la consciencia y el universo plural, dinámico y abierto del inconsciente. Finalmente, el misterio, donador de sentidos, puede ser un ángulo por el cual es posible un encuentro entre la Fenomenología y la Psicología Analítica.

Palabras clave: Mística. Análisis de sueños. Análisis existencial. Psicologia Analítica.


 

 

Introdução

Neste trabalho, pretendemos refletir e articular a experiência mística, especialmente de Simone Weil, com a daseinsanálise e a Psicologia Analítica. Para tanto, utilizamos um sonho de um de meus pacientes que, por sinal, enfrentava questões espirituais em sua psicoterapia. Como psicólogo, acredito que a análise de sonhos continua sendo instrumento extremamente criador de aberturas e apropriações que levam o paciente a uma ampliação de possibilidades existenciais. Assim, vamos começar dialogando com Paulo, pseudônimo de meu paciente.

Estávamos no fim de maio, o inverno ainda não tinha descido sobre nós, ainda fazia calor, mas já se sentia uma leve brisa. Paulo costumava ser o último paciente do dia e já era noite quando ele chegou. Confesso que, apesar de meu cansaço, alegrava-me de recebê-lo, pois vínhamos fazendo um trabalho interessante que me deixava feliz. Paulo entrou, sentou-se e demorou um pouco para começar a falar. Fiz as perguntas de costume, como tinha sido a semana, se ele estava bem, etc. Enfim, ele iniciou sua fala dizendo que havia um sonho importante para narrar. Um gesto meu com a mão teve o condão de liberá-lo para a narrativa do sonho. O sonho fora ambientado na fazenda Mangal, fazenda de sua família em que sempre estava quando criança e no início da adolescência. Ele estava montado em um cavalo e conduzia várias reses num grande campo. Os animais eram levados até um canto da pastagem onde havia uma cancela. Seu cavalo parecia relativamente estressado e por vezes custava a obedecer aos comandos do cavaleiro, e ele, apesar de seu cavalo aparentar agitação, estava concentrado em emitir os sons típicos de um condutor de boiada, com gritos e também emitindo sons ritmados e quase cantados. Quando os animais se aproximavam da referida cancela, Paulo viu no cercado vizinho, para onde os animais seguiriam, uma mulher também montada a cavalo que aguardava a passagem das rêses para que ela assumisse a condução e o pastoreio. Era uma amazona montada num belo animal e ela mesma muito bonita. Riu-se um pouco e emendou que se tratava de sua própria mulher. Fiz menção de perguntar algo, mas ele, com um gesto, pediu-me para aguardar e prosseguiu o relato. Agora, não via mais os animais nem sua mulher. Seguia ainda montado em seu cavalo e dirigia-se para a cerca lateral do campo onde estava. Apeou e amarrou o animal em um mourão. Pulou a cerca e seguiu a pé através do campo, agora em um novo cercado. Caminhou bastante sobre o capim alto até se encontrar ao lado de uma outra cerca, uma cerca verde, ou melhor, uma cerca viva com uma vegetação bem espessa que impedia que fosse ultrapassada. Circundou o lugar e percebeu na caminhada que se tratava de um quadrado. Durante sua caminhada junto a esse quadrado, descobriu uma pequena passagem através da cerca verde.

Ao dar alguns passos pelos arbustos, sentiu um forte assombro ao ver que, de fato, era um cercado quadrangular, com o chão de areia branca bem fina, mas bem no centro do quadrado havia uma grande cruz negra. Mesmo assustado andou até a cruz deixando suas pegadas na areia e postou-se diante dela. A cruz era mais alta que ele, e no travessão estava escrito com letras góticas: "São Francisco". Permaneceu ali por algum tempo e, de súbito, resolveu sair do quadrado. Ao atravessar de volta os arbustos, encontrou do lado de fora uma mulher de uns 40 anos segurando pela mão um menino de uns cinco anos. Ao vê-la, perguntou-lhe: Por que você não foi até lá? Apontando para dentro do quadrado onde estava a cruz. Em seguida a mulher lhe respondeu: Ninguém me disse que eu deveria entrar.

Após narrar o sonho, Paulo permaneceu em silêncio, mas sem olhar para mim. De súbito, voltou a falar e disse que não sabia se era uma informação relevante, mas que no sonho já era de tarde, por volta de umas 18h e o sol se punha. Continuou e narrou como na fazenda o pôr do sol era lindíssimo, o amarelo vai aos poucos se convertendo em um vermelho rubi e o astro segue descendo, mergulhando, num mar verde dos campos, campos de Campos. Arrematou dizendo que no sonho o pôr do sol era assim também. Novamente o silêncio se fez ouvir. Mas eu o rompi dizendo que o sonho apresentava traços bem interessantes: havia elementos religiosos, caminhos percorridos montado sobre animais e percorridos a pé, passagens, revelações, surpresas. Há contradições nítidas, como ser o sonhador um homem e no sonho haver mulheres bem marcantes; o sonho acontecer no crepúsculo, nem noite, nem dia. A cruz negra, maciça, e a areia nada moldável e branca. E o mais intrigante, o nome que parece ser o sentido central do sonho, São Francisco. Perguntei a ele que sentido tem tudo isso para você? Paulo demorou um certo tempo para responder e finalmente disse: É difícil dizer, mas fico pensando: o que São Francisco teria a ver com minha vida? Intuo o que seja, mas precisamos desdobrar tudo isso aqui.

Não costumo falar de teorias psicológicas para meus pacientes, mas lembrei-me de Jung, que sempre se referia à presença de aspectos contrários nos sonhos. O inconsciente desvela, especialmente nos sonhos, infindáveis âmbitos de possibilidades contraditórias que a psiquê contém. E mais, sempre pressiona no sentido de compensar a unilateralidade da consciência. Apresentei esse quadro para Paulo, e ele pareceu concordar que seus sonhos são ricos de contrários. Em seguida perguntou: Se são tantos contrários, haveria algum tipo de harmonização? Seu trabalho aqui, Patrick, seria justamente me auxiliar a harmonizar-me e superar os contrários? De fato, são vários aspectos contraditórios, sob a irradiação da cruz de São Francisco. São Francisco era um santo da igreja e talvez tenha sido um dos primeiros a apresentar as chagas de Jesus em seu corpo. E há mais contrários: sou homem e há mulheres no sonho. Há também a presença do crepúsculo, é de dia, mas é também quase noite, luz e sombras. Fiquei em silêncio um tempo e percebi algo no sonho que Paulo ainda não tinha visto e comentei com ele: Você notou que seu sonho é ambientado em região rural, uma planície, uma fazenda, onde, obviamente, o contato com a terra e a natureza é mais presente? E mais, há fortes elementos religiosos e nenhuma igreja? Nem padres, nem pastores, nem liturgia, nem missa? Isso, talvez, não fosse a contradição fundamental? Eu continuava devaneando e voltei a pensar em Jung: Será que o inconsciente de Paulo apontava para uma forma de religião? Religião no sentido mesmo de religare. Deveria Paulo realizar uma religação consigo mesmo, com aspectos abandonados de sua personalidade? Ainda, nesse sentido, preferi não comentar, por enquanto, com ele a presença do "quaternio", o quadrado, a mandala que estava em seu sonho, pois tratava-se de um quadrado com uma cruz central. Cruz que tem quatro pontos, quatro direções. Vê-se que o sonho desvelava a indicação da totalidade, da quaternidade, daquilo que Jung mostrava como o elemento divino em nós. A individuação seguia seu curso?

Paulo voltou a falar e parecia pensar algo semelhante ao que eu mesmo pensava: Talvez você tenha razão e a contradição fundamental do sonho é justamente a presença de elementos religiosos num ambiente não institucional, fora da igreja, das liturgias. E isso, acredito, tem muito mesmo a ver comigo, pois experimento Deus na minha vida, mas não é o Deus das igrejas, das liturgias ou ao menos não é exclusivamente esse Deus instituído, glorificado em altares e púlpitos. Até pode sê-lo, mas não é totalmente isso, não é exclusivamente isso. Nesse momento, Paulo sorriu largamente e emendou: Será que eu posso ser franciscano, católico, mas fora da igreja? Não seria isso muito contraditório? Fui eu quem sorriu agora e pensei em mim mesmo quando nunca consegui conciliar as contradições existentes entre o pensamento de Heidegger e o de Jung. Talvez, seja uma pretensão arrogante insistir nisso. Ou será que sustentar a contradição é o estímulo à pesquisa e estudo? Respondo à contradição com respostas contraditórias. Mas Paulo seguiu falando e me perguntou se eu já tinha lido algo sobre Simone Weil, mística do século XX. E logo me fez uma provocação perguntando se a saída para ele não seria uma aproximação do que fosse a mística. Agora, provocado, fiquei intrigado: Seria a experiência mística uma forma de compreensão dos contrários? Será a experiência mística possuidora de uma disposição afetiva que lançasse o Dasein numa abertura às explosões de contradições mundanas? A experiência mística seria radicalmente incompatível com o princípio da não contradição e romperia com toda lógica aristotélica e cartesiana?

Como meu paciente trouxe à presença Simone Weil, lancei-me a estudá-la para que a mística, professora e filósofa viesse ao nosso encontro.

 

Simone Weil e a atenção criadora

Simone Weil, judia francesa, nascida em 1909, em uma família de classe média, seu pai era médico e sua mãe dona de casa. O ambiente familiar era culto e o amor ao conhecimento extremamente valorizado. Weil era também filha do século XX, século que para Bingemer (2007) foi o século no qual Deus esteve mais ausente. Século em que ideologias totalitárias prevaleceram, ideias materialistas expulsaram Deus da cena social e em seu lugar foram postos o progresso e a técnica. A expansão capitalista se intensificava e elementos religiosos eram vistos com desconfiança. O ateísmo e o agnosticismo assumiam a dianteira e falar de Deus e de religião tornou-se quase ridículo. Por outro lado, foi o século em que mais se viu demonstrações brutais de violência, como duas guerras mundiais que dizimaram milhões de pessoas. É nesse contexto sócio-histórico que Simone Weil viveu e escreveu. E levou toda sua vida tentando realizar um diálogo entre cultura e santidade. Ela sempre se perguntava se poderiam haver pontes dialógicas entre a cultura contemporânea e Deus.

Nesse sentido, Simone Weil, pelos idos de 1938, sente fortes dores de cabeça e suas agruras físicas a debilitam muito. É nesse tempo que ela tem suas primeiras experiências místicas. A primeira em Póvoa de Varzim em Portugal e a segunda em Assis. O Cristo a toma e ela sente um profundo amor por todas as criaturas. Tais experiências reforçam sua mística martirial. Com martirial, quero dizer uma espécie de vocação a partilhar o sofrimento dos outros. A dor e a miséria humana devem ser partilhadas, o cristão deve sentir e viver o que seus irmãos mais humildes sentem. Simone viverá sempre em busca desse encontro com tudo e todos a partir de uma mística da partilha do sofrimento. Ela diz:

O governo de meu país não poderia me fazer um bem maior do que me proibir nas profissões intelectuais e fazendo do pensamento uma coisa gratuita como deve ser. Desde a adolescência, eu sonhava com o casamento de São Francisco com a pobreza, mas sentia que não devia ter o trabalho de desposá-la, porque um dia ela viria tomar-me à força e que seria melhor assim. (Weil in Bingemer, 2007. p. 64)

Para Simone Weil, Deus é a fraqueza do amor, obediente e missioneiro. Amor esse que deseja partilhar a dor do outro e nunca infligir nele a dor. Weil diz: "O amor de quem é feliz, é querer partilhar a dor do amado infeliz". Simone crê que só partilhando a dor e a desgraça do outro infeliz poderá compreender e viver o Cristo. Jesus doou-se inteiramente à humanidade, é o pastor que deu a vida pelo rebanho, dessa forma, não é possível compreender-se Deus como poder, que impõe e inflige dor, mas só há divindade no despojamento, na entrega, especialmente que essa entrega seja martirial. Aqui, Simone nos contempla com seu conceito de atenção, o amor exige atenção, atenção à desgraça alheia, à dor do próximo. Só há amor ao próximo quando temos atenção à infelicidade que nos cerca. E é uma atenção que nos constrange a vivermos inteiramente a dor que nos vêm ao encontro. Antes da piedade, calor humano, solidariedade, ou de outra qualquer virtude, a atenção, prestar atenção na infelicidade do próximo é o ponto de partida para uma experiência cristã. Doar-se ao desgraçado, dar-se inteiramente ao que sofre, transladar sua existência àquele que a perdeu, pois o desgraçado, infeliz que sofre, já não tem mais humanidade, pois a perdeu pela violência imposta, é a imitação do que Jesus fez ao entregar-se voluntariamente à morte. Jesus, apesar de Deus, assume inteiramente a condição humana vivendo-a até as últimas consequências e, assim, entregando-se à humanidade. A respeito de Jesus ser Deus, trata-se de um dos dogmas centrais do cristianismo, senão o mais importante e fundamental; se Jesus não é Deus, não há cristianismo. Por sinal, o que é chamado de transdescendência, isto é, de Deus assumir a condição humana e encarnar-se e habitar entre nós, só acontece no cristianismo, é sua marca fundamental; em nenhuma outra religião o Deus encarna-se. Quando, para Simone, nos doamos ao sofredor infeliz, partilhando de sua dor, compreendemos o núcleo do cristianismo, pois entregamos àquele que não a tem nossa própria humanidade, como Jesus entregou-se para iluminar de amor toda dor da humanidade. Entregando-se, Simone encontra Cristo.

Aqui vemos como ressoam em Simone as palavras de São Paulo, pois é Cristo que vive em Simone agora. Simone Weil (Bingemer, 2007) tem atenção especial a uma contradição fundamental: como o sofrimento humano provocado pelo mal pode se harmonizar com a perfeição de Deus? Ela não consegue explicar e dar conta dessa contradição de modo racional, lógico, mas só a mística da cruz de Cristo a faz saber e viver tal contradição. Pois, é a contradição mais radical ver-se o inocente pagar, sofrer, morrer, sem culpa e receber sobre si mesmo todo mal que não provocou. De certa forma, sem explicações teológicas, Simone percebe que estar ao pé da cruz a faz compreender o sentido de tal contradição insolúvel: apenas um Deus que sofre, e um Deus inocente pode dar sentido a toda dor da humanidade. Seu amor que o faz viver a dor, banha toda a miséria humana de amor caloroso e de ternura acolhedora por tudo e todos. Simone vai seguir a tradição mística cristã que, ao estar na luz do Encontro, ama a tudo e todos, percebe e compreende Deus como tudo e nada, como diria o Mestre Eckhart. E o mais importante: as contradições deixam de ser um problema e elas mesmas são amadas e sua solução nunca é racional e lógica. Elas nem mesmo têm solução, apenas compreensão e experiência.

A experiência mística em Simone Weil e em outras mulheres de seu tempo e também judias, como Edith Stein, por exemplo, se caracterizam por uma radical transformação vital (Bingemer, 2007). O amor de Deus, a experiência desse amor, faz com que Simone realize uma nova ética, uma ética de responsabilidade por toda humanidade, uma ética que nos compromete com a dor do outro, é verdadeiramente uma ética da alteridade. Sim, uma ética que se reconhece fundada num Deus que ama a vida, que abomina a violência e quaisquer formas de imposição. Notamos que a experiência mística, caracterizada como Encontro amoroso com o Absoluto, tendo uma disposição afetiva própria, apresenta aproximações com a espiritualidade (Boff, 2001), pois compreendo que espiritualidade é justamente essa nova postura ética de responsabilidade pelo mundo, acolhedora da alteridade e amante da vida. Espírito que é pneuma, sopro, sopro de um Deus avesso ao poder e à violência.

A mística tem uma disposição, como vimos, pois disposição é dis-posição, isto é, algo que nos desloca, nos retira da familiaridade do mundo (Holanda, 2014) e nos desvela algo novo, novos sentidos e modos de ser no mundo. Pois o prefixo dis é negação, ou seja, a disposição é a negação da posição, do lugar habitual. Vê-se claramente em Simone essa disposição, esse novo lugar de sentido e amor.

Nesse mesmo sentido, Edith Stein afirma que ter conhecimento não é suficiente, mas importante é a capacidade de doar a própria pessoa. E vai além dizendo que: "Quem busca a verdade, no fundo, busca a Deus" (Bingemer, 2007). Simone Weil realizava sua mística, como dissemos, na partilha absoluta da dor do próximo. Ela mesma dizia que não há poesia sobre o povo que não seja fruto da fadiga, da fome e da sede vividas em si mesmo. Dar o próprio corpo e alma na participação do sofrimento dos infelizes é para ela uma mediação, uma Eucaristia. Sua primeira e radical experiência de Deus se dá em Portugal numa pequena aldeia de pescadores, Póvoa de Varzim. Simone chega lá no dia da festa do padroeiro. À noite acompanha uma procissão cantada de mulheres de pescadores. Cânticos e orações que a tocaram e a transformaram profundamente, pois era a própria expressão da dor e do sofrimento dos mais frágeis, aqueles que nada possuíam e que amavam suas famílias e seus homens que se lançavam ao mar, sem nenhuma garantia de retorno. Um trabalho árduo, difícil, perigoso, mas que era acalentado por aquelas mulheres que com profundo amor e dor oravam e cantavam. O Cristo desceu sobre ela naquela noite e a transformou por inteiro.

Simone diz:

[...] Num estado físico miserável entrei nessa pequena aldeia portuguesa - que era, ai! tão miserável também - sozinha à noite, sob a lua cheia, no dia da festa do padroeiro. As mulheres dos pescadores faziam a volta aos barcos em procissão, levando círios e cantando cânticos, certamente, muito antigos e de uma tristeza dilacerante. [...] Ali tive de repente a certeza de que o cristianismo é, por excelência, a religião dos escravos, que os escravos não podem não aderir a ela, e eu entre os outros. (Weil in Bingemer, p. 274)

Simone Weil (1993) prossegue dizendo que quando tomado pela Graça de Deus o homem não está totalmente sujeito às puras leis da natureza, mas quando essa Graça não está presente, nos abandonamos às puras leis mecânicas. Ou estamos na Graça ou nos abandonamos à gravidade e às leis de queda dos corpos prevalece. E diz mais: a atenção criadora vê o que não existe. O samaritano viu a humanidade naquele que estava caído à beira da estrada, quando os que passaram antes nem o notaram ou ao menos não viram sua humanidade.

A fé é crer no que não se vê (Hebreus 11:1), e Deus é mesmo invisível, só o notamos, por vezes, no encontro de dois olhares e no sorriso de quem amamos. Weil, como já vimos antes, dá forte ênfase à atenção, e aqui ela fala do olhar. O olhar, a atenção, é a própria presença de Deus. No Antigo Testamento, a serpente de bronze foi erguida para salvar os que jaziam doentes (Números 21:8). É o olhar, a atenção que salva. E mais ainda, é a experiência de Deus o verdadeiro sacramento. Os sacramentos ganham real sentido quando iluminados pela presença de Deus em nossas almas. A Graça é o Espírito Santo presente na alma das pessoas. Lembrei-me que após a ressurreição Jesus aparece para os discípulos e sopra neles o Espírito Santo (João 20: 19-23). A partir de então, eles estão renovados e são outros homens. A mística, notadamente a mística cristã, é esse desvelamento que tem o condão de fazer o mundo aparecer de certa forma, uma forma salvífica e de espera pela volta de Jesus. Vê-se uma disposição afetiva, um afeto que nos desloca, desfamiliariza-nos de tudo que era "antigo" e nos põe abertos a uma compreensão diversa.

Voltando à Simone Weil (1993), notamos que sua forma de pensar é deveras radical, pois para estarmos na Graça nenhum consolo pode existir. A judia francesa insiste que, para alcançarmos o vazio absoluto, uma infelicidade sem consolo deve se abater sobre nós. Sem consolo, pois tudo que dá consolo ou que justifica o mal vivido nos afasta do vazio onde Deus de fato pode entrar. Viver a dor inteiramente, sem explicações ou justificativas, eis o que Simone nos propõe. E vai além, insistindo que a imaginação e muitas crenças tentam criar sentidos para a dor e a infelicidade. Tentemos não preencher esse vazio, buscar isso é ser medíocre e nos afasta de Deus. O vazio referido é noite escura e a inteligência não vai nos salvar, pois a inteligência é servil, só tem função de desobstruir o caminho que está entulhado e que nos afasta do vazio (Weil, 1993). Aqui vemos como Simone se aproxima de Mestre Eckhart (2004), pois o desapego, ser pobre de espírito é condição, necessária para a experiência de vazio, pré-requisito para que a Graça nos tome. Deus só pode estar onde nada há. Nossa alma precisa estar desprendida do mundo para que Deus se aproxime. Uma das temáticas mais importantes referidas por Simone Weil é o modo como ela pensa as contradições. As contradições não são superáveis no plano da inteligência ou no plano representacional, devemos "subir mais" para alcançarmos algum tipo de compreensão. Mas não podemos subir por nós mesmos, devemos ser "puxados", puxados por Deus. Ela usa uma metáfora da montanha: se começamos a subir uma montanha e de um lado temos uma floresta e do outro um lago, devemos escolher entre a floresta e o lago, de onde estamos não conseguimos ver os dois ao mesmo tempo, só poderíamos ver se subíssemos mais. Contudo, a "montanha" a que ela se refere não existe, é feita de "ar", e só podemos subir se formos puxados por Deus. Tentar superar as contradições ou ao menos as mais radicais, usando da inteligência representacional, é degradante (Weil, 1993). Nesse sentido, a Verdade implica necessariamente em contradições.

A compreensão e harmonia ou união entre contrários só se dão com a Graça. A contradição é a ponta da pirâmide. Antes de passarmos a outro tema, é importante que saibamos que Simone morreu jovem, em Londres, tentando voltar à França em plena segunda guerra mundial. Voltar à França para lutar contra o nazifascismo, contra tudo aquilo que ameaçava a liberdade e o amor. Doou toda sua vida ao que acreditava e tentou, sempre, compreender a vontade de Deus para sua vida.

 

A daseinsanálise, a Psicologia Analítica, a mística e os sonhos

Para Heidegger (Carneiro Leão, 2000), o Dasein é o guardião do Ser. Como guardião, o Dasein é abertura na qual os envios do Ser se manifestam. Mas o Ser envia ao mesmo tempo que se retrai. O Ser é mistério, não há como dizer nada dele, apenas há uma tentativa de apropriação de seus envios, de seus sentidos. Mas como mistério o Ser se retrai em sua abissalidade. Contudo, para uma apropriação dos envios do Ser, faz-se necessário um silêncio, silêncio que permita ouvir o nada. É do nada e do mistério que o Ser envia e doa seu sentido. Sem o silêncio próprio, só escuta-se a técnica, sua produção e exigências.

O Dasein é quem escuta, mas Dasein é essencialmente uma abertura, uma clareira onde os entes podem aparecer e onde são desdobrados seus significados. O próprio sentido de homem é desdobrado na clareira do Dasein. Como ser-aí, o Dasein não é um "lugar" fisicamente determinado ou objetivado, mas a clareira onde o Ser doa sentidos (Heidegger, 2001).

Como abertura fundamental, o Dasein redimensiona as representações comumente relacionadas à Psicologia como consciência, psique, etc., pois os conceitos tradicionalmente considerados devem ser olhados a partir do âmbito de desvelamento de sentido que o Dasein é. Em outras palavras, representar, conceituar, significa objetivar, como se tais "objetos" fossem em si mesmos independentes de um acontecimento de apropriação.

Enquanto a metafísica considera que o real pode ser capturado por conceitos, a Fenomenologia volta à experiência e ao fenômeno, pois os conceitos, as representações sempre laçam os entes e os paralisam em uma posição qualquer, mas isso nada diz propriamente sobre os próprios entes ou ao menos diz muito superficialmente, sempre como perspectiva.

Como perspectiva, o mundo se apresenta extremamente fluido, dinâmico, mutante, e o que se vislumbra abaixo e além dele é a referida inospitalidade movediça, o nada. Nada, pois as coisas em si mesmas não são nada, são sempre dependentes da trama de sentidos que os homens constituem e assim formam-se as "tradições". Tradições que se sedimentam a partir e pelo modo representacional metafísico de se pensar. Mas como a daseinsanálise lida com os sonhos? Com o meu paciente, o sonho parecia indicar um conflito existencial que se referia à espiritualidade. Nesse sentido, pode-se perguntar se os sonhos atuam como indicativos de abandono de possibilidades existenciais. Jung (1985) diria, pela Psicologia Analítica, que os sonhos têm um caráter compensatório. Compensatório no sentido de tentar reequilibrar o fluxo energético, homeostase psíquica, que nos neuróticos atua fortemente num sentido de unilateralidade da consciência e uma recusa da abertura aos processos inconscientes. Os sonhos, ao menos os "grandes sonhos", segundo Jung, são atividades psíquicas que serviriam, por assim dizer, como "alarmes de incêndio". Assim, quando todo sistema psíquico está em crise de sobrecarga, especialmente quando há uma sobrecarga de unilateralidade dimensional, os sonhos podem indicar ao ego a necessidade de abertura a novas possibilidades existenciais, requestionar-se e, talvez, iniciar o processo de individuação.

Na daseinsanálise, o sonho pode ser interpretado, mas sempre tendo como referência o próprio paciente ou analisando. A existência concreta do analisando é que interessa na análise dos sonhos. Uma análise sobre o que os sonhos são, em geral, não cabe à daseinsanálise e sim a uma análise ontológica, pois a daseinsanálise é ôntica (Heidegger, 2001).

Estabelecer leis gerais sobre os sonhos dos homens não é o âmbito de atuação do daseinsanalista. O aspecto fenomênico é central e importa compreender os sonhos naquele Dasein em particular. De modo semelhante, para a Psicologia Analítica, a vida do paciente, os sentidos pelos quais vive o paciente, mobilizam forças inconscientes que simbolicamente surgem nos sonhos. Os sonhos, assim, indicariam os padrões existenciais do paciente e até apontariam para possíveis sentidos não assumidos e que poderiam auxiliar na lida com as polaridades energizadas entre consciente e inconsciente.

Heidegger (2001) nos diz que não podemos tomar o sonho como um âmbito objetivo independente do ser no mundo. Sonhar é ser no mundo e está intimamente relacionado com o estado de vigília. A vigília é pré-requisito para se sonhar, pois só se fala e só se interpreta um sonho estando acordado. A historicidade cotidiana do Dasein é o âmbito não objetivo em que o sonho se ancora. Em outras palavras, posso dizer que interpretar um sonho é interpretar o mundo do Dasein, sua existência como um todo. Mas é possível que o sonho possa tematizar algum aspecto ou aspectos da existência pouco apropriados ou nada apropriados pelo Dasein. Assim, o sonho seria um indicativo de possibilidades existenciais não apropriadas pelo Dasein.

Diferentemente de Jung, o sonho na daseinsanálise não teria um caráter objetivamente compensatório, podendo assumir tal característica num analisando concreto, mas poderia ser compreendido como âmbito de ampliação de uma reflexão sobre possibilidades existenciais. Os sonhos mostram-se por si mesmos, são o mundo do analisando. Ainda sobre sonhos, deve-se compreender que eles não ocultam propriamente nada, nem são consequência de nenhum processo causal, eles são o que mostram, e mostram o Dasein em seu mundo.

Pensando como Heidegger, Boss (1979) indica-nos como um daseinsanalista deve lidar com os sonhos. Caso tentemos realizar interpretações que levam a explicações e teorias que sustentam a noção de que há algo, por assim dizer, por trás e escondido sob a imagem aparente dos sonhos, como se eles fossem "coisas em si mesmos", não compreenderemos o significado de uma interpretação fenomenológica dos sonhos. Devemos, afinal, seguir o aforismo de Goethe: "Não procure nada por trás dos fenômenos, eles próprio são a lição".

Nesse sentido, a experiência do paciente ou analisando é central para a Fenomenologia. Desse modo, os conteúdos que aparecem nos sonhos indicam o modo de existir do Dasein, para que possibilidades existenciais ele está aberto ou não. Assim, uma imagem onírica pode levar o Dasein a analisar como ele mesmo se relaciona em seu mundo; com que afinações o Dasein está vivendo; quais seus modos de relacionamento com os entes intramundanos, especificamente com o conteúdo significativo que a imagem onírica aponta. Pode-se perguntar então: que significados estão relacionados com a imagem sonhada pelo Dasein? Que aspecto fenomênico está aberto para a apropriação do Dasein? Quando desperto, o Dasein poderá voltar sua atenção para âmbitos de seu mundo que não estavam apropriados anteriormente.

Para Boss (1979), não podemos abandonar o mundo do Dasein, seus modos de relação e sua experiência com os entes. Entes que podem aparecer nos sonhos e assim apontar para possibilidades que merecem atenção e apropriação pelo Dasein. Neste trabalho, Boss talvez perguntasse a Paulo de que modo ele relaciona-se com o divino, a espiritualidade e como esse fenômeno faz parte de seu mundo; sob que afinação ou disposição afetiva Paulo experimenta a espiritualidade? Podia perguntar também: como a religião ingressa em suas experiências?

No universo da psicoterapia, Heidegger compreende a "doença" como uma limitação das possibilidades existenciais do analisando. A questão fundamental nesse âmbito é a liberdade.

A limitação da liberdade é fonte de adoecimento. Nesse sentido, o que a daseinsanálise entende por psicossomática diz respeito a um modo próprio que o Dasein está no mundo e não propriamente à referência a duas dimensões do homem. O Dasein é ser no mundo, desse modo, quem adoece é a existência, a maneira que o Dasein é no mundo, suas relações de sentido é que estão limitadas a dimensões pouco flexíveis, fechadas em sentidos fixos e impróprios. Os significados disponíveis dos entes intramundanos estão aprisionados a um horizonte de sentido e tais entes sempre surgem em condições unidimensionais. Assim, para Sá (2017), referindo-se a Medard Boss, problemas respiratórios, por exemplo, podem estar associados a âmbitos vitais do analisando; não há vida sem respiração. Respirar, sopro vital, são os sentidos originários para a alma, psychê. Therapeia quer dizer cuidado.

Desse modo, psicoterapia significa cuidado pela vida, pela alma (Sá, 2017). Vida que se mostra por si mesma, em que não há representações explicativas que a julgam, determinam, condicionam, limitam.

No caso de meu paciente, o sonho indicava que âmbitos existenciais fundamentais para ele estavam soterrados e sob pouca atenção. Referimo-nos especialmente à espiritualidade. Dogmas, regras e leis podem literalmente matar o espírito, matar a vida ao assumir uma unilateralidade dimensional própria da metafísica e da verita.

E quanto ao sonho da cruz de São Francisco? Como seria sua análise? Precisamos discutir, antes, com Jung (1985), que os sonhos são melhor compreendidos numa sequência e não é tão bom analisá-los isoladamente. Meu paciente apresentou uma série de sonhos com a temática espiritual, mas, para o objetivo deste artigo, resolvi selecionar um único que parece condensar sentidos fundamentais para a existência de Paulo.

Para a daseinsanálise, a interpretação isolada é possível. Mas, se os sonhos apontam para a existência do analisando (Boss, 1979), é bastante conveniente uma análise de uma sequência de sonhos, pois, assim, o terapeuta poderá olhar para uma gama maior de perspectivas referidas à vida do paciente. Desse modo, tanto para Jung quanto para a daseinsanálise é razoável uma análise de um número maior de sonhos. Assim, tomei a decisão, com meu paciente, de analisar os sonhos em conjunto e não isoladamente, mas, como disse anteriormente, aqui neste trabalho não foi possível uma análise de uma sequência de sonhos. Novos trabalhos virão que poderão complementar o conteúdo deste artigo.

Um aspecto do sonho que não pode passar desapercebido é a ligação com a terra. Há um ambiente rural, de ligação com a natureza, parece remeter a um enraizamento que precisa ser resgatado. Talvez possamos encontrar em Heidegger alguns apontamentos para um entendimento do aparecimento da "terra" nos sonhos de Paulo. Para Heidegger (Bornhein, 2001), há uma distinção fundamental entre mundo e terra. No primeiro, trata-se do que se expõe, do que aparece, que se sustenta em abertura e na luz. Ele cita por exemplo o templo grego que mantinha na "luz" os sentidos mais centrais da cultura daquele tempo e encontrávamos no templo toda a atmosfera, o estilo e modo de ser do mundo grego. No mundo vemos, vemos os sentidos, os significados disponíveis num certo horizonte. Na terra está o mistério, o que se recolhe nas sombras, nas raízes, o que se oculta e de onde poderá advir outros mundos. Mundo e terra estão sempre em conflito, o eterno conflito entre luz e sombra, o conflito entre o que se conhece e o mistério. Esse conflito é ontológico, não poderá se resolver em nenhuma dialética no sentido hegeliano. A tensão permanece sempre. É uma tensão que demanda atenção, pois dela pode advir o que há de mais criativo e produtor de variações. Nesse sentido, pode-se afirmar que luz e sombra, mundo e terra, numa linguagem junguiana, é compreendido como consciência e inconsciência. Afinal, a sombra é por excelência o arquétipo do mistério, do que se oculta, do que está em tensão com a "luz" da consciência. E aqui posso antecipar o que entendo como intersecção entre a daseinsanálise e a Psicologia Analítica: o mistério. Sim, o mistério que é ontológico, isto é, não será "esvaziado" por nenhum trabalho terapêutico. O que efetivamente o referido trabalho terapêutico poderá fazer é apontar para um olhar atento aos envios criativos do inconsciente que polarizam com a consciência unilateral.

Nos sonhos de Paulo, parece haver um apelo para uma atenção à "terra". Terra que sustenta e ambienta os sonhos, mistério que Paulo não deve mais recusar a olhar. Paulo deve assumir seu Hades, seu reino dos mortos, lidar com a morte, abrir-se para o mistério em última instância.

Nessa mesma trilha de pensamento, Von Franz (1985) afirma que o encontro do feminino, da criatividade, da abertura, é talvez a principal demanda de nosso tempo, pois o mundo lógico, racional, científico, debilitou âmbitos existenciais que não são de imediato apreensíveis, como o próprio inconsciente. Feminino tem a ver com mistério, aquilo que não se toma e controla, o que escapa e, por isso mesmo, é criativo. Criatividade que encontramos no dogma da assunção de Maria. Sim, Maria, âmbito feminino que entra em relação com o masculino do Deus judáico-cristão. A Trindade não tem nenhum elemento feminino, e Maria, a mãe de Deus, mesmo não sendo deusa para a dogmática cristã, agrega o elemento terra, carnal, feminino, à divindade e, mais uma vez, o "quaternio" está composto. Considerando que a quaternidade remete à totalidade, ao âmbito de mistério que é pano de fundo da existência (Jung,1987). A totalidade misteriosa está simbolizada no sonho de Paulo e sua consciência está convocada a lidar com isso.

Não podemos deixar de fora dessa discussão o Mestre Eckhart (Giachini, 2009), pois ele se refere à terra, origem, humus, informe que de onde tudo poderá advir, forma que se sustenta no que não tem forma. Novamente fala-se de tensão entre opostos, forma e informe, ser e nada. Com o mistério em jogo, não há vida sem tensão, sem angústia, sem perpétuo jogo de luz e sombra, morte e vida, amor e dor. Polaridades que não desaparecerão, mas poderão receber sobre si sentidos que auxiliem o paciente a lidar com elas, sustentando-as. A individuação como processo, diria de modo arriscado e talvez precipitado, pode ser vista como uma experiência espiritual, pois, afinal, individuar-se é abrir-se para os sentidos doados pelo inconsciente.

É importante deixar claro que toda interpretação sugerida aqui foi amplamente discutida com meu paciente, nada é resultado de mera especulação teórica de minha parte. Assim, prosseguindo com a análise, o sonho da cruz de São Francisco parece ser fundamental para uma compreensão mais geral de como Paulo é no mundo, de como ele acolhe e dá sentido a toda trama de significados que o envolve, seu mundo em última instância.

O sonho se inicia na mesma fazenda de sua infância, Mangal. Paulo foi muito feliz lá, nada o preocupava propriamente, divertia-se, relacionava-se, projetava seu futuro, amava. Amava sua vida de menino e de adolescente. E nesse tempo era um menino que sentia Deus, rezava e acreditava na presença de uma intenção amorosa em tudo que vivia. Foi dessa forma que Paulo descreve para mim esse período de sua vida. Acontece que ao crescer, ao enfrentar um grave problema de saúde e vivendo numa família nada religiosa, todo esse "espírito" místico parece ter sido posto de lado, ou ao menos Paulo cessou de olhar para ele.

A partir do que foi dito sobre mundo e terra, tem-se a impressão que o âmbito de mistério inerente à vida de Paulo, menino, foi sendo esquecido. Certamente, esse olhar místico sobre o seu mundo tem a ver com todas as indicações imagéticas contraditórias que o sonho apresenta: mística sem templos; presença de homens e mulheres no sonho; não é exatamente dia nem exatamente noite; a cruz negra está fincada sobre a areia branca; cruz de madeira maciça sobre uma areia permeável. Talvez possamos pensar que uma disposição afetiva, como a que tem a experiência mística, exige a presença de contradições que o pensamento lógico representacional não poderá dar conta.

A experiência mística faz o mundo abrir-se em todos os seus âmbitos de variabilidade conflitiva, contraditórios. Assim, pode ser que Paulo tenha tentado "livrar-se" da dúvida, da angústia dos conflitos, assumindo uma lógica metafísica antirreligiosa familiar, o que fez a afetação dispositiva da mística recuar e um caráter unidimensional se apresentou em sua vida, adverso ao mistério. A consciência assume um caráter unilateral e os sonhos compensam tal escolha existencial. E talvez o mistério que mais nos amedronte seja justamente a morte.

Abrir-se para o si mesmo mais próprio era o caminho que Paulo procurava. Redimensionar sua existência para âmbitos que ele mesmo abandonou era fundamental para uma mais ampla compreensão de seu sofrimento. A espiritualidade não podia permanecer esquecida na vida de Paulo. Mas, para um amplo Encontro com espiritualidade, ele precisava apropriar-se de sua disposição mística de abertura de mundo. Experiência mística que simbolicamente assumia imagens do feminino (Von Franz, 1985), com a presença de mulheres, da noite, da areia, da cruz negra, da terra. Imagens que polarizavam com outras imagens como o dia, o menino e o próprio sonhador.

Se, como vimos, a espiritualidade é uma postura existencial de plena abertura, a explosão criativa do mundo, se é uma responsabilidade pelo que vivemos e um responsabilizar-se pelo mundo que construímos, a mística pode ser vista como uma experiência que está intimamente relacionada à espiritualidade. Certamente há espiritualidade sem mística e, diria até, mística sem espiritualidade, mas há uma possibilidade de ambas surgirem na experiência de alguém, e parece ser assim com Paulo. Pelo que escrevemos até aqui, acontece o mesmo com Simone Weil e com Mestre Eckhart. Ambos experimentam Deus e ambos transformam-se radicalmente, abrindo-se para um amor pleno pela humanidade, pela vida e um acolhimento do sofrimento como algo próprio ao homem.

Ao ouvir e ver as mulheres dos pescadores em Portugal, Simoni Weil transforma-se e a partir de então ama e entrega-se à partilha do sofrimento. De modo semelhante, Mestre Eckhart entrega-se, abandona-se à vontade de Deus. O homem é abrigado na vontade de Deus, buscada, encontrada e sustentada. Nesse sentido, o encontro da cruz de São Francisco é significativo para Paulo. Ali estamos diante de um chamamento. Sim, chamamento a viver uma espiritualidade franciscana. Para Paulo, essa vocação não significava entrar para a Ordem ou assumir uma vida propriamente religiosa no sentido institucional, mas sim tinha o sentido de não abandonar e, ao contrário, buscar valores que perpassem o modo de vida franciscano.

Neste trabalho, não poderemos desenvolver tudo que significa um "modo de vida franciscano", utilizando as palavras de Paulo, mas, superficialmente, identificamos, mesmo em seus sonhos, alguns aspectos centrais: uma relação amorosa com a natureza, acolhimento das diferenças, desapego a bens materiais, não institucionalização, entre outros.

 

Considerações finais

Para terminarmos, lembrei-me de que o Mestre Eckhart costumava se referir "aos pobres de espírito": "Bem-aventurados os pobres de espírito" (Mateus, 5:3). Para o Mestre Eckhart, pobres de espírito são os que têm o coração desprendido. São os que se desapegam das criaturas e não se mantém lançados, privilegiadamente, preocupados e ocupados com os entes. São os que mantêm a "boa distância". São aqueles que volvem o olhar para Deus, para a luz que faz os entes aparecerem. Talvez Heidegger pudesse fazer advertência similar, e acredito que o faça, ao menos veladamente, ao nos apontar para o mundo do impessoal, onde nos sustentamos deveras ocupados e preocupados e afastados do Ser que desvela e envolve tudo que há.

Heidegger leva o mistério às suas últimas consequências. Faz assim por trazer a Fenomenologia como método para se aproximar de tais experiências. Desse modo, não há como estabelecermos um sentido objetivo para a mística e outras experiências espirituais. A mística poderá, talvez, neste artigo, ser vista como algo, não objetivável, que é guia, que aponta uma direção, mas que nunca compreenderemos em absoluto, que não é alcançável, mas que permanecemos buscando. Nesse sentido, seria bom pensarmos na atenção criadora de Simone Weil e olharmos para o mundo a partir de novos vieses. A vida de Simone foi profundamente transformada, seu mundo assumiu, como vimos, novos matizes, dores e amores. Também como Mestre Eckhart, Simone Weil compreendia e apropriava-se de sentidos que ultrapassavam o cumprir técnico e objetivo do mundo cotidiano. Aqui talvez encontremos um sentido geral para este trabalho: apontar para âmbitos espirituais da existência e suas disposições afetivas, que, possivelmente, fiquem obscurecidos nesse furor calculador do mundo contemporâneo. Mundo que persiste em delimitar fronteiras, estabelecer protocolos, fixar afetos. Mas as experiências espirituais que aqui desfiamos e suas disposições afetivas insistem em se rebelar. Será que temos um Deus para nos salvar? Talvez tenhamos um Deus, o Ser ou mesmo o nada e o Nada.

Como dissemos algumas vezes neste artigo, a Psicologia Analítica também apela para um questionar radical dos padrões objetivantes que escravizam o homem em seus limites de sentido. A individuação como processo é a ruptura com sentidos assumidos, mas não tornados próprios. E é no caminho da individuação que podemos encontrar e reencontrar sentidos e, assim, redesenhar nossa existência, nos tornando quem somos. A partir de quem nos tornamos, individuando-nos, estamos, possivelmente, aptos a mudanças e mais abertos para novos tornares.

Este trabalho é um simples apelo para que nosso olhar "veja criadoramente", que vejamos a existência como esse lançamento às explosões de significados, de encontros e Encontros. A daseinsanálise e a Psicologia Analítica podem ser boas auxiliares para que nós, e os outros, estejamos "vendo". E quem "vê" é necessariamente o espírito, não os olhos, a visão, e, sim, o olhar criador e atento do espírito volvido ao Ser. O Ser envia, mas não é. O Ser desvela, mas não pode ser essencializado. Talvez em nossa vida permaneçamos onticamente trabalhando, criando e recriando, copiando e usando técnicas, talvez tudo isso seja inevitável, mas não nos esqueçamos do Ser e de Deus. Sim, de Deus, mas aquele Deus de Eckhart, de Weil e de Paulo, Aquele que nos Encontra amorosamente, que nos transforma em amor responsável por tudo e todos e se retrai e sustenta-se na abissalidade.

Este trabalho é simples, simples porque fala de algo pequeno e quase invisível, que onde estivermos, e seja o que estejamos fazendo, lembremos que pode haver algo mais além, adiante, não visto, não ouvido, mutante, aberto, inconsciente, misterioso. Mistério do Ser, mistério do inconsciente, ambos não conceituáveis e apropriáveis, ambos doadores de sentidos. Terminamos com mais contradições, pois Ser e inconsciente não são a mesma coisa, não são sinônimos, não são objetiváveis, diria até que são inconciliáveis, mas unem-se na doação, no sentido entregue a nós.

 

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Recebido em: 31/7/2019
Aprovado em: 29/10/2019

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