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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.1 São João del-Rei Jan./Mar. 2020

 

Narrativas LGBT de pessoas em situação de rua: repensando identidades, normas e abjeções

 

LGBT narratives of homeless: rethinking identities, norms and abjections

 

Narrativas LGBT de personas sin hogar: Replanteamiento de identidades, normas y abyecciones

 

 

Lis Paiva de MedeirosI; Ana Karenina de Melo Arraes AmorimII; Maria Teresa NobreIII

IPsicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Faz Residência Multiprofissional em Saúde da Família no Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco (CCS/UFPE)
IIProfessora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Membro do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPgPsi/UFRN). Mestre em Psicologia Clínica. Doutora em Psicologia Social
IIIProfessora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGPsi/UFRN). Mestre e Doutora em Sociologia

 

 


RESUMO

Este trabalho é oriundo de uma pesquisa-intervenção de inspiração etnográfica realizada com população em situação de rua de uma cidade do Nordeste brasileiro. Desde a perspectiva da análise institucional, a realização de entrevistas, além de oficinas, rodas de conversa temáticas e eventos, permitiu a produção de narrativas de vida. Com base nos registros das narrativas, observações e experiências em diários de campo, analisamos as categorias "Gênero, Sexualidade e Diversidade Sexual", relativas às experiências de pessoas que se identificam como LGBT ou que se desviam do referencial cis-heteronormativo. Essas experiências são analisadoras das vidas LGBTs que habitam as ruas, explicitando graves violações de direitos, vulnerabilidades e exclusão em diferentes contextos sociais. Ressaltamos a necessidade de refletir sobre as categorias identitárias criadas e suas implicações nesse cenário, além da necessidade de luta por direitos, políticas públicas, entre outras lutas voltadas para a população em situação de rua que priorizem essas vidas precarizadas.

Palavras-chave: Pessoas em situação de rua. Narrativas. Gênero. Vulnerabilidade. Exclusão.


ABSTRACT

This work comes from an ethnographic-inspired intervention research carried out with the street-dwelling population of a Brazilian Northeastern city. From the perspective of institutional analysis, the interviews allowed the production of life narratives, workshops, thematic talk wheels and events. Based on the records of narratives, observations and experiences in field diaries, we analyzed the category "Gender, Sexuality and Sexual Diversity", concerning the experiences of people who identify themselves as LGBT or who deviate from the cis-heteronormative referential. These experiences are analytical of the LGBT lives that inhabit the streets, explaining serious violations of rights, vulnerabilities and exclusion in different social contexts. We emphasize the need to reflect on the identity categories created and their implications in this scenario, as well as the need for a struggle for rights and public policies, and another battles, aimed at the street population that prioritize these precarious lives.

Keywords: Homeless. Narratives. Gender. Social vulnerability. Social exclusion.


RESUMEN

Este trabajo surge de una investigación-intervención de inspiración etnográfica realizada junto a personas sin hogar de una ciudad del noreste de Brasil. Desde la perspectiva del análisis institucional, las entrevistas permitieron la producción de narrativas de vida, así como talleres, círculos de conversación temáticas y eventos. Con base en los registros en diarios de campo de las narrativas, observaciones y experiencias, analizamos las categorías "Género, Sexualidad y Diversidad Sexual" en las experiencias de personas que se identifican como LGBT o que se desvían del referencial cis-heteronormativo. Estas experiencias son analizadoras de vidas LGBTs en las calles, expresando violaciones graves de los derechos, vulnerabilidades y exclusión en diferentes contextos sociales. Hacemos hincapié en la necesidad de reflexionar sobre las categorías de identidad creados y sus implicaciones en este escenario y la necesidad de luchar por derechos, políticas públicas y otras luchas para personas sin hogar que dan prioridad a estas vidas precarias.

Palabras clave: Personas sin hogar. Narrativas. Género. Vulnerabilidad social. Exclusión social.


 

 

Introdução

Refletir sobre a vida das pessoas que se encontram em situação de rua é pensá-las como uma realidade complexa e multifacetada. Poder-se-ia, então, falar de uma multiplicidade de vidas que habitam, circulam e fazem uso da rua para sua sobrevivência. Entre essas pessoas destacamos as LGBTs que vivem nas/das ruas como objeto deste artigo.

Este trabalho tem origem em uma pesquisa-intervenção de inspiração etnográfica, a qual teve como objetivos delimitar um perfil psicossocial da população em situação de rua de uma capital do Nordeste brasileiro e conhecer intervindo sobre as condições de vida e as possíveis violações de direitos humanos que essa população sofre. A pesquisa ocorreu no período de março de 2014 a julho de 2016, tendo como campo praças, calçadas, canteiros e diferentes espaços urbanos das regiões leste e oeste da cidade de Natal-RN, além de espaços institucionais produzidos na intervenção relativos a audiências públicas, eventos políticos e acadêmicos, entre outros.

Nesse sentido, a pesquisa teve um enfoque amplo, porém orientado pela perspectiva levantada pelo Movimento Nacional da População de Rua e ratificada na Política Nacional para a Inclusão da População em Situação de Rua (2008): ao contrário de estereótipos sociais historicamente construídos - de "mendigos" ou "vagabundos" -, essa óptica reafirma os processos macrossociais ligados ao sistema capitalista que produzem as desigualdades sociais, de gênero, entre outras, e reforçam a condição da população em situação de rua como sujeitos de direitos. Dessa forma, entende-se que ela, apesar de toda a sua heterogeneidade, tem em comum

a pobreza, vínculos familiares quebrados ou interrompidos, vivência de um processo de desfiliação social pela ausência de trabalho assalariado e das proteções derivadas ou dependentes dessa forma de trabalho, sem moradia convencional regular e tendo a rua como o espaço de moradia e sustento. (Brasil, 2008, p. 9)

Este artigo debruça-se sobre um dos recortes entre os vários possíveis que compõem a população em situação de rua. A partir desse quadro amplo com o qual se entrou em contato ao longo da pesquisa, enfocamos aqui de forma mais específica o contexto da diversidade de gênero e sexual nas ruas. Para tanto, tomou-se como base experiências de pessoas em situação de rua que se reconhecem como LGBT1 (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) ou que relatam vivências fora de um referencial de cis-heteronormatividade,2 durante entrevistas ou durante encontros e acontecimentos no campo, vivenciados pelos(as) pesquisadores(as) por meio dos vínculos estabelecidos com essas pessoas.

O interesse pelo tema, assim, surgiu a partir do encontro com essa realidade ao longo da inserção no campo: a diversidade sexual e a vastidão de possibilidades de modos de lidar com as categorias de gênero na vida eram notáveis. No entanto, essas temáticas ainda se apresentam pouco exploradas em pesquisas sobre a população em situação de rua, como apontam Garcia, Salgado, Paiva, Costa e Pascoal (2010).

A Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), traz poucos dados acerca dessa temática; são citados apenas os percentuais de homens e mulheres que se encontram em situação de rua no Brasil, a partir das estimativas: 82% da população em situação de rua é masculina e o restante, 18%, feminina (Brasil, 2009, p. 86). Essa escassez de dados sobre questões de gênero e diversidade sexual no contexto da rua também pode ser vista no âmbito internacional. Os estudos concentram-se em pesquisas amplas, principalmente com o enfoque em adolescentes e jovens LGBTs que se encontram em situação de rua. A maioria delas foi realizada nos Estados Unidos (Cochran, Stewart, Ginzler & Cauce, 2002; Ray, 2006; Kruks, 1991; Woronoff, Estrada & Sommer, 2006), uma no Reino Unido (Cull, Platzer & Balloch, 2006) e outra na Austrália (Mallet, Rosenthal, Keys & Averill, 2009). Os objetivos desses estudos são voltados para características sociodemográficas no contexto desses jovens. É interessante perceber que os dados apresentam informações bastante variadas: a prevalência de americanos jovens LGBTs homeless3é divergente, a depender das fontes buscadas pelos estudos, variando de 6% a 11% e chegando até 35% (Cochran et al., 2002), 20% a 40% (Ray, 2006), e também 40% no Reino Unido (Cull et al., 2006). Esses autores discutem a maior vulnerabilidade desses adolescentes e jovens LGBTs em situação de rua, sendo a violência física e abuso sexual (Cochran et al., 2002) e os conflitos familiares devido à orientação sexual ou identidade de gênero as razões mais significativas para estarem em situação de rua (Cochran, et al., 2002; Ray, 2006).

Esses dados, assim como a literatura ainda escassa no contexto brasileiro, também carregam um peso histórico de estigmatização e exclusão social, até mesmo se tomarmos como referência, de forma separada, a população em situação de rua e as identidades LGBTs. Essa realidade tem sido transformada mais recentemente, por meio da inserção de estudos e políticas públicas específicas para esses grupos, mas também para a interseção entre eles. Exemplos disso são os próprios marcos legais que orientam as práticas institucionais do Estado, a saber: a Política Nacional para a População em Situação de Rua e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBTs, ambos lançados no ano de 2009.

A vida nas e das ruas apresenta-se ainda distante do que é preconizado pelas diretrizes das políticas públicas e, no caso das pessoas que se encontram nessa condição e vivem uma identidade LGBT, a situação ainda se mostra mais árdua. De acordo com pesquisa realizada pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da cidade de São Paulo, em 2015, estima-se que uma percentagem entre 5,3% e 8,9% de pessoas em situação de rua pertençam à população LGBT. Essa percentagem distingue-se bastante do que é visto no contexto internacional, porém as semelhanças se revelam quando se observa as condições de vida dessa população: ela se encontra estatisticamente mais vulnerável a violências, discriminação - agressões físicas e verbais, ser barrada em lugares públicos, ou exercer atividades marginalizadas (São Paulo, 2015).

Esses dados, no entanto, falam de um perfil demográfico, um quadro amplo que perpassa as experiências singulares, as quais foram acessadas na pesquisa que originou este artigo. Restam, então, alguns questionamentos: que (não) identidades habitam nas ruas? Que modos de vida a categoria da diversidade sexual abarca? Existiriam táticas para viver a sexualidade e a diversidade sexual no contexto da rua?

Na trilha aberta por essas questões, a pesquisa convocou uma busca pelos estudos de gênero, nos quais encontramos referências para pensar a diversidade sexual nas ruas, partindo-se do pressuposto de que falar sobre gênero e sexualidade é pensar em como as relações com os corpos são estabelecidas ao longo da história. Nesse sentido, procuramos traçar uma breve discussão acerca dos caminhos conceituais percorridos nesse âmbito, particularmente no âmbito da produção acadêmico-científica, conectada com as questões políticas envolvidas e, finalmente, como esse jogo de forças tem se expressado nas histórias com as quais nos deparamos nas ruas.

 

Estudos de gênero e diversidade sexual: situando as questões em análise

Para pensar sobre "questões de gênero", é preciso situar esse conceito na história dos movimentos de produção acadêmica feminista. Na verdade, esse conceito surge num momento de crítica ao universalismo biológico que a categoria "mulher" evocava, sendo esta central para a luta e a produção feminista até então (Piscitelli, 2002). Segundo Bento (2006), o início da discussão sobre gênero ainda se pauta por um oposiocinismo/binarismo entre homem e mulher, quando há uma tentativa de desnaturalizar a mulher como ser biológico - fêmea, porém ainda há uma rigidez firmada na biologia - o corpo seria uma matéria fixa e universal sobre a qual o gênero se sobreporia, dando-lhe forma e significado. É aqui que se situa a famosa obra de Simone de Beauvoir, O segundo sexo, de 1949. Nesse contexto, é forte a noção de patriarcado, como um sistema de relações de poder rígido, de hierarquia entre os gêneros, no qual a mulher se encontra oprimida pela dominação masculina (Piscitelli, 2002).

Esses conceitos se complexificam, a partir da crítica ao caráter universalista exposto anteriormente. Desse modo, os estudos de Michel Foucault na História da Sexualidade (1988) representaram uma importante influência nas abordagens no campo da sexualidade: explicitou-se a relação entre a produção de corpos e de discursos sobre eles e sobre o que entendemos como sexualidade a partir da sua relação com o poder. O autor entende o poder como

[...] a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (Foucault, 1998, pp. 88-89).

Essa noção de um poder amplo e difuso, que é exercido diretamente sobre os corpos, nas relações íntimas, traz uma reflexão importante para os estudos de gênero. É inspirada nela que surge uma nova forma de analisar as categorias de gênero - a perspectiva relacional, que se desenvolve ao longo da década de 1990. Nesse sentido, o gênero é conceituado como um dispositivo de análise das construções e transformações temporais nas relações entre masculino e feminino, como elemento que dá significados às relações de poder contextuais baseadas nas diferenças entre os sexos (Bento, 2006). É dessa forma que outras categorias são postas em análise em conjunto com o gênero, como é o caso da raça e da classe. O conceito de gênero como absoluto é posto em questão.

A terceira perspectiva emergente nessa discussão tem uma influência explícita dos estudos foucaultianos e de outros autores pós-estruturalistas. Nela, os chamados estudos Queer, cuja principal expoente é a filósofa Judith Butler, têm ganhado amplitude nas últimas décadas, principalmente por se debruçar numa investigação genealógica do gênero e das identidades sexuais sobre as sexualidades dissonantes, os corpos desviantes, as quais, para essa compreensão, "desestabiliza[m] as próprias distinções entre natural e artificial, profundidade e superfície, interno e externo - por meio das quais operam sempre os discursos de gênero" (Butler, 2003, p. 8). Nesse sentido, Butler (1993; 2003) expõe e critica a ideia de uma norma, uma "heterossexualidade compulsória", baseada no binarismo de sexo/gênero masculino e feminino e nas identidades que esse conceito produz, embora estas tenham sido fundamentais para os movimentos feminista e LGBT, no sentido de unificar vivências em torno de uma pauta de luta. Butler (2003) afirma ainda que essa busca por identidades comuns dificulta a possibilidade de investigar o modo como são operadas essas construções identitárias.

É interessante observar ainda que a palavra queer tem origem no vocabulário inglês e significa, em livre tradução, "estranho", "esquisito". Mais ainda, a palavra costumava ser usada pejorativamente, nos países de língua inglesa, para se referir a pessoas LGBTs. O termo, então, é apropriado pelos teóricos e militantes desse movimento no sentido de afirmar essa estranheza, essa diferença; trata-se de transgredir uma normatividade, assim como distanciar-se de termos médicos, assépticos, por exemplo, o de "homossexual" (Louro, 2013).

Esses estudos, então, afastam-se de um interesse anterior de procurar origens para o gênero ou para o sexo, ou mesmo distingui-los. Seu intuito é voltar-se para a materialidade dos corpos, desconstruindo uma ideia de uma matéria pronta, fixa, naturalizada, um corpo sexuado dissociado de uma construção social posterior sobre esse mesmo corpo. Fala-se, então, em produções discursivas que operam nesses elementos de forma imanente:

No que se segue, o que está em jogo é menos uma teoria de construção cultural do que uma consideração da cenografia e da topografia da construção. Essa cenografia é orquestrada por e como uma matriz de poder que permanece desarticulada se nós tomamos construtividade e materialidade como noções necessariamente opostas. (Butler, 1993, p. 28, tradução livre)

É a partir dessa premissa que podemos discutir sexo/gênero a partir de uma proposta que ultrapassa um binarismo em que sexo seria uma base sobre a qual o gênero moldaria seus constructos. Podemos falar, assim, numa relação complexa entre esses elementos, que possibilitam outras interpretações e outras experiências com e no corpo e suas relações com o poder, em sua cenografia e topografia, nos termos de Butler (1993).

Estamos, portanto, interessadas em discutir as vidas de pessoas LGBTs que vivem a "diferença" em suas histórias, tendo a rua como morada e ou fonte de sobrevivência. Entendemos que nesse contexto as relações de poder explicitadas forçosamente se relacionam com a condição cis-heteronormativa experimentada socialmente como norma.

 

Metodologia

A pesquisa a partir da qual este artigo se desenvolveu embasa-se sobre a perspectiva da pesquisa-intervenção. Como é trazido por Rocha & Aguiar (2003, p. 67), como uma modalidade de metodologia de pesquisa participativa, esta se baseia na indissociabilidade entre a gênese teórica e a gênese social do conhecimento que, no modelo positivista de produção científica, eram considerados polos afastados. Assim, tal concepção de pesquisa objetiva a construção de conhecimentos nessa interface, destacando o eixo político da produção científica e recusando o ideal de neutralidade científica. Além disso, a pesquisa-intervenção "aprofunda a ruptura com os enfoques tradicionais de pesquisa e amplia as bases teórico-metodológicas das pesquisas participativas, enquanto proposta de atuação transformadora da realidade sócio-política, já que propõe uma intervenção de ordem micropolítica na experiência social" (Rocha & Aguiar, 2003, p. 67).

Dessa maneira, nesta pesquisa, os princípios metodológicos se concretizaram por meio das ações realizadas com população de rua no contexto do trabalho de um Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH/UFRN). Os(as) pesquisadores(as) realizaram observações participantes em espaços nos quais se concentravam grupos de pessoas em situação de rua, como cafés da manhã servidos por grupos religiosos em uma praça da cidade e em uma igreja, em canteiros, calçadas e em frente a serviços destinados à população em situação de rua. Além disso, foram realizadas, nesses espaços, entrevistas individuais com questionários estruturados, que somaram uma quantidade de 159 pessoas entrevistadas. Também foram promovidas rodas de conversa, oficinas e eventos sobre temáticas que envolviam a vida na/da rua, também com o intuito de pautar uma organização política dessas pessoas, ação que contribuiu para o desenvolvimento do Movimento Nacional da População de Rua do estado (MNPR/RN). Todos os dados produzidos nesses espaços foram registrados em diários de campo feitos pelos pesquisadores(as), que também escreveram narrativas de histórias de vida dos participantes a partir das entrevistas e dos encontros no campo.

Esses dados foram analisados a partir de sucessivas leituras desses registros. Na primeira, delimitou-se a existência de nove categorias de análise, entre estas a intitulada Gênero, Sexualidade e Diversidade Sexual, que inspirou a produção deste artigo. Numa segunda leitura, a análise aprofundou-se nessa categoria e destacamos as temáticas emergentes nas falas das pessoas entrevistadas, nas suas narrativas de vida e nos diários de campo e a partir delas foram definidas 10 subcategorias, entre as quais focalizamos aqui as temáticas que diziam respeito à população LGBT.

 

Resultados e discussão

As temáticas que apresentamos a seguir têm, antes de tudo, uma divisão didática, já que dialogam entre si constantemente e, muitas vezes, perpassam uma a outra. Não é nosso objetivo esgotar uma análise sobre elas, mas levantar questões a partir de inquietações que a rua nos traz, por meio de dois eixos de discussão que emergiram das subcategorias de análise: Sexualidade na rua e Violências e vulnerabilidades.

Sexualidade na rua, o estatuto de vida abjeta e resistências

É dito que a sexualidade ainda se constitui um tabu no tecido social. Ela seria reprimida, afastada, ou, no máximo, reservada ao espaço íntimo. Essa tese, no entanto, é contraposta por Foucault (1988), quando atenta para o fato de que, mais do que a repressão, à sexualidade é reservado um lugar de ênfase na modernidade, e é a partir desse lugar de produção de discursos - de ditos e não ditos, de modos de dizer, ver e saber - que a sexualidade, como dispositivo histórico, seria analisada.

Desde o século XVIII o sexo não cessou de provocar uma espécie de erotismo discursivo generalizado. [...] Talvez nenhum outro tipo de sociedade jamais tenha acumulado, e num período histórico relativamente tão curto, uma tal quantidade de discursos sobre o sexo. Pode ser, muito bem, que falemos mais dele do que qualquer outra coisa: obstinamo-nos nessa tarefa; convencemo-nos por um estranho escrúpulo de que dele não falamos nunca o suficiente, de que somos demasiado tímidos e medrosos, que escondemos a deslumbrante evidência, por inércia e submissão, de que o essencial sempre nos escapa e ainda é preciso partir a sua procura. (Foucault, 1988, pp. 34-35)

Assim, concorda-se com o autor ao entender o sexo e a sexualidade não como objetos naturais observados, analisados e destrinchados pelo discurso científico. A ciência moderna, na verdade, tem contribuído para a produção desse dispositivo nos moldes da medicalização, de controle dos corpos e patologização daqueles considerados perversos, desviantes. Compreende-se, portanto, o lugar de tensão aqui ocupado entre a posição da ciência perante a sexualidade ao longo da história e nosso posicionamento ético-estético-político de produzir outros agenciamentos diante do dispositivo sexualidade.

Nesse sentido, apresentamos algumas considerações a respeito da questão da identidade de gênero, que a nosso ver é um ponto nevrálgico, tanto do ponto de vista teórico e da organização política quanto referente às relações afetivas e sociais com pessoas LGBTs, e ainda com relação à construção de si, como processo de subjetivação individual e coletivo, além de ser uma categoria que transversaliza as demais. Sendo assim, a categoria de identidade de gênero é perspectivada quando consideramos que o processo de subjetivação ou de produção das subjetividades é heterogenético, plural e polifônico, que envolve as dimensões ética, estética, política, econômica, biológica, cultural, entre outras, e cujos efeitos não se resumem à subjetividade individual, envolvendo o conjunto de condições que torna possível a emergência de "territórios existenciais" em instâncias coletivas e ou individuais, tal como nos afirma Guattari (1992). Vejamos o depoimento a seguir:

Ao perguntar o nome completo dele, ele me respondeu que era [nome masculino], mas que era conhecido como [nome feminino] e queria ser chamado assim por mim porque já tinha se acostumado. Ao falar de si mesmo, usava palavras masculinas. (Narrativa de história de vida registrada no dia 15 de agosto de 2014)

Quais deduções são possíveis quando nos deparamos com tal depoimento? A transitoriedade aqui se faz por meio da identidade entre nomes masculinos e femininos. Mais ainda, qual o sentido de se fazer deduções, quase como um "diagnóstico identitário" diante desse modo de estar na vida? A princípio, a coerência entre nome masculino e identidade de gênero masculina é requisitada. Porém ela é rompida e reivindicada novamente: o sujeito transita entre elas, entre os gêneros, na medida em que vai se produzindo na vida social. Poderíamos pensar que o uso dos termos masculinos é uma forma de resistir, uma tática de sobrevivência num contexto em que um(a) pesquisador(a) ainda é um desconhecido. Porém, isso representa apenas uma hipótese. Também há a possibilidade de essa ser a forma de autoidentificação dessa pessoa - uma "incongruência" entre gênero/sexo e discurso. Nesse sentido, resta o questionamento: qual o gênero dessa pessoa? Não faz sentido responder a essa pergunta de uma forma definitiva, os conceitos de sexo/gênero enquanto "caixinhas" excludentes entre si deixam de operar de uma forma que abarque as experiências das vidas. As ideias levantadas por Butler (2000) são bastante interessantes para se refletir a indissociabilidade entre sexo e normas demarcadas discursivamente, uma vez que corpos se produzem como efeito de uma dinâmica de poder, e a produção do sujeito é efeito desse processo, e não o contrário. Isso significa que sexo/gênero são formas intimamente conectadas com o processo de subjetivação: as identidades que nos formam nesse sentido - mulher trans, bissexual, heterossexual e tantas mais utilizadas corriqueiramente como categorias bem delimitadas - são elementos de uma matriz discursiva que produz subjetividades, subsumidas a identidades.

Há que se considerar, no entanto, que essa matriz é furada em muitos pontos, a exemplo do depoimento citado anteriormente, que borra essas normas ao mesmo tempo em que dialoga com elas. É preciso repensar também, nesse sentido, a produção de discursos acadêmico-científicos, que tendem a criar regimes de verdades sobre cada uma dessas "caixinhas identitárias". A vida vaza para além dos limites discursivos impostos normativamente. Tudo isso remonta para um questionamento, uma necessidade de transformação dessa própria matriz, da sua produção de exclusão e de vidas abjetas.

As transformações dessa matriz dizem respeito também aos relacionamentos e não apenas a questão das identidades. Em contato com as ressonâncias que as vidas de pessoas LGBTs em situação de rua nos trazem, destacamos uma voz das ruas: "Tenho 31 anos e atualmente estou com um companheiro e uma companheira" (Narrativa de história de vida registrada no dia 12 de abril de 2014). Essa frase aparentemente simples carrega uma série de significados: trata-se de uma mulher que se relaciona ao mesmo tempo com outra mulher e com um homem. Se pensássemos em rótulos, talvez fosse possível enquadrá-la como bissexual. Mas, qual o sentido desse rótulo? E mais ainda, há o fato de o relacionamento acontecer com duas pessoas ao mesmo tempo, num triângulo amoroso - sem o tom de desaprovação ou censura que essa expressão historicamente carrega.

Como refletir sobre relacionamentos fora de uma norma de monogamia e de uma heteronormatividade compulsória? Poderíamos pensar que se trata de uma realidade emergente em um contexto de rua em que as normas sociais, principalmente ditadas por uma moral burguesa, estariam pulverizadas, abrindo espaço para essas relações.

Essas reflexões falam de uma potência instituinte que a história dessa mulher carrega. Poderíamos pensar que esse relacionamento seria um modo de resistir na rua, uma forma de agregar vínculos, de se proteger, de afastar a solidão que é tão presente nos relatos sobre a vida na rua. Entretanto, para além dessas suposições, o que se vê é um afeto que fura uma norma. Afeto que rompe com ditames que agem sobre corpos e afirmam que tais corpos somente podem viver um relacionamento com um único corpo outro. Há uma afirmação de novas possibilidades nesses corpos. Poderíamos falar em máquinas desejantes (Deleuze & Guattari, 1972) que furam as normas capitalísticas quando deslocam-se de um padrão, ao mesmo tempo em que são postas para as bordas da estrutura capitalística em seus valores sustentados na propriedade privada em relação a qual a noção de família monogâmica é basal.

Ao questionar esses valores, as pessoas LGBTs em situação de rua sofrem na própria pele as recusas e violências ao sustentar seus modos de ser e experienciar a sexualidade.

Depois que [uma/um participante4 da pesquisa] saiu um momento, um dos colegas que o havia recebido na comunidade terapêutica em que estavam falou mal dele/dela dizendo que ela/ele só havia vindo aqui à procura de outro rapaz. Falou disso de forma depreciativa. Refletiu que um cara pegar uma gay dessa era só por causa da carne, mas não valia a pena. (Diário de campo do dia 7 de março de 2015, durante visita a uma Comunidade Terapêutica)

[...] um homem já colocou duas facas no pescoço dela/dele para degolá-la/lo porque ela/ele se recusou a fazer sexo com ele porque o homem não queria pagar o programa. Quando esse homem ia perfurando as duas partes do seu pescoço ela/ele "repreendeu". Depois disso o homem começou a se "tremer todinho" e ele/ela conseguiu fugir. - É... deve ter alguém orando por mim mesmo, se não eu já tinha morrido. Já passei por muita coisa! (Narrativa de história de vida registrada no dia 3 de janeiro de 2015)

Nos trechos anteriores, referentes à mesma pessoa, temos alguns elementos em jogo: o primeiro deles, comum aos dois fragmentos, é a desumanização do corpo homo e transexual. Em ambos os casos, esse corpo é tratado com desprezo, é quase descartado, seja por meio da depreciação da relação homossexual, como no caso do primeiro trecho; seja pela morte, que por pouco não chegou a ser literal, no segundo. Trata-se de um corpo abjeto, como define Butler em entrevista (Prins & Meijer, 1996): "Relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante." Dito de outro modo, a abjeção põe em xeque o próprio status de "humano" (Butler, 1993, p. 8). Quando um discurso afirma que "pegar uma gay dessa não vale a pena", há um questionamento concreto que remete a uma legitimidade que uma relação com aquele corpo abjeto não pode ter; quando, num ato, se tenta matar pela recusa do sexo, chega-se num nível extremo de desconsideração da vida.

Ademais, no primeiro trecho, expressa-se uma normatividade por meio do tom depreciativo que é dado para a relação homossexual - há uma clara desvalorização desta como um motivo para que a/o participante da pesquisa voltasse à Comunidade Terapêutica. Percebemos que a matriz heterossexual é ressaltada nessa situação, quando é dito que "não vale a pena". No entanto, há um desejo que ainda escapa, resiste - a "carne" ainda é explicitada no discurso, por mais que exista uma tentativa de abafá-la por meio da normalização.

Já no segundo, por mais que exista uma tentativa de aniquilação da vida abjeta, ela resiste. Resiste inventando, em meio ao perigo, uma tática - o "repreender" - determinante para sua sobrevivência. A ideia de tática enquanto "artifício do fraco" (Certeau, 1998) trata das astúcias como invenções cotidianas utilizadas no sentido de dar seguimento à existência, produzidas na vida na rua, fugazes improvisos que atendem necessidades imediatas. Nesse contexto, elas podem se fazer de diversas formas: um "bico" para conseguir dinheiro, a utilização ou não de determinados espaços de acordo com os intuitos de um momento. Embora não deixe de envolver uma precarização extrema do trabalho e do corpo, a prostituição também pode ser vista, dessa forma, como uma tática para conseguir renda bastante presente na rua.

Longe do contexto de violência, as táticas também podem ser pensadas na vivência da sexualidade e dos relacionamentos no espaço público, nas subversões de seus usos e interditos. É interessante pensar que esses elementos geralmente estão reservados ao âmbito privado, porém a dicotomia público versus privado é borrada no contexto da rua, e as pessoas inventam formas de experienciar o sexo e a sexualidade, os relacionamentos, os afetos em sua multiplicidade, sendo tênues os limites entre eles, como nos lembra Frangella (2009).

Violências e vulnerabilidades

No contexto da rua, não raras vezes nos deparamos com a questão da violência envolvendo as pessoas em situação de rua, notadamente a população LGBT. Diante desse cenário, alvo de muitas das ações do CRDH/UFRN que acompanhamos ao longo da pesquisa, é importante conceituar aquilo que consideramos aqui como violência e analisar as suas implicações específicas às populações consideradas vulneráveis.

A definição de violência está longe de ser consensual no âmbito das ciências humanas e sociais e na esfera política. Os inúmeros dissensos variam desde o seu caráter intencional, passando pela discussão sobre legitimidade e justificação, produção de dor ou sofrimento, entre outros aspectos. Aqui adotamos a noção de violência como uma ação deliberada que, independentemente das intenções que a acompanhem, é capaz de destruir ou violar a dignidade humana e integridade física e ou psíquica de alguém, coisificando-o e causando-lhe danos profundos e irreparáveis (Arendt, 1994; Chauí, 1997). Nesse sentido, concordamos com Costa (1986) quando argumenta que não existe "instinto de violência", ou seja, não existe violência sem desejo de destruição do outro, objeto da ação agressiva, independentemente de ser voluntário ou involuntário, racional ou irracional, consciente ou inconsciente. Esse autor ressalta ainda que considerar a ação violenta como instintiva seria banalizá-la, justificá-la. Quando falamos em violência, é importante destacar que estão em jogo sempre o contexto onde o ato de violência acontece e o julgamento daquele que vive a violência, seja como vítima, seja como observador. Sinalizamos com isso que a discussão sobre a violência deve sempre ser guiada pela ética, afastando as pretensões à neutralidade e os julgamentos morais como prioritários na análise.

Considerando os contextos vários de violências com os quais nos deparamos na pesquisa, destacamos aqueles relativos às pessoas LGBTs em suas diferentes experiências na rua, como no trecho de diário a seguir.

Um homem estava exaltado e alterado por psicoativos e [participante da pesquisa] pediu para eu olhar e disse que ele não queria que levassem um outro homem internado, pois tinham um caso com ele há 8 anos. Ele gritava - "Não vão levar ele não!" [grito]. Porém, seu parceiro queria ir. Ele repetia gritando - "Não vão levar ele não!" Se debatia. Quando tentaram mandar ele ir embora, disse: "Então me levem também". Disseram que ele podia ir e ele grita mais uma vez: "Vocês não tinham me dado essa opção não!" Seu parceiro tentou interceder. Porém, ele pegou um paralelepípedo do chão e gritou: -"Eu vou estilhaçar o vidro desse carro!" Com paridade a todos esses gritos do outro lado estavam cerca de seis protestantes repreendendo o mal e o diabo nele. [A participante] falou com o pastor que eles têm um caso há 8 anos. O pastor concluiu: - "É um caso de homossexualismo junto!" Ele veio com o paralelepípedo, mas tomaram da mão dele e jogaram no chão. Ele estava desesperado e bradou: "Esses filhos da puta desses crentes, eu vou matar tudinho!" Ele viu cerca de 3 carros se afastando ligeiramente levando seu companheiro, se aproximou do paralelepípedo novamente, mas o impediram de continuar o movimento. Foi cambaleando para longe da Praça.

Uma das mulheres do grupo evangélico depois disse: "Está vendo o que o mal faz na vida da pessoa? Não quer nem deixar o outro se internar." Eu [pesquisador] disse que às vezes quem está na rua não tem mais relação com a família. O que resta são as próprias pessoas da rua, que se tornam a família. No caso dele foi como se tivesse perdido a sua família. (Diário de campo de 29 de setembro de 2014)

Uma cena de violência é descrita nos trechos anteriores. Violência em vários sentidos: violência física, violência que toma as vidas homossexuais em situação de rua como corpos abjetos - "o mal" que merece apenas a contenção e o expurgo. Um relacionamento de oito anos é desconsiderado, o desamparo de um homem que vê seu companheiro há quase uma década ser levado, mesmo que voluntariamente: não há diálogo, não há acolhimento da sua dor. Ele é, de modo contundente, culpado por ser pobre, por estar em situação de rua e, ao mesmo tempo, por ser "um caso de homossexualismo junto". Ele tenta arremessar um paralelepípedo, no ápice do seu desespero, mas é impedido e sua saída é seguir cambaleando e gritando sua dor. A violência se produz a partir do momento em que sua condição de "companheiro" não foi considerada e sua dor foi negligenciada, incorrendo em possíveis danos a ele. A sua dor e seu protesto revelam também a sua persistência em se afirmar como corpo sexual em situação de rua cuja ofensiva resiste ao contraefeito de captura da homossexualidade pela exploração econômica e biopolítica na contemporaneidade, como nos mostra Foucault (2008).

As pessoas LGBTs são violadas cotidianamente, na rua e fora dela. Nas famílias, o não acolhimento das pessoas que vivem sexualidades destoantes de um modelo cis-heteronormativo é motivo para a expulsão ou a saída de casa, como nos foi relatado também em entrevistas Desta pesquisa.

Está em situação de rua há 1 mês, devido ao desemprego e àa perda de vínculo familiar. Ele trabalhou na prefeitura e no governo do estado, mas foi demitido. A perda de vínculo familiar se deu devido à reação da sua família quando ele assumiu sua homossexualidade. Não tem contato com os familiares hoje em dia. (Diário de campo de 8 de novembro de 2014)

Nesse sentido, a sexualidade desviante se torna mais um elemento de vulnerabilidade: os conflitos familiares advindos dessa questão contribuem ou provocam a saída de casa, que se associa com a falta de acesso a emprego e renda formalmente, a única saída é estar na rua, como também foi constatado por Machado (2015). Há normas regulatórias que produzem e determinam o que deve pertencer ou não a ela, e aquilo que fica nas suas bordas é excluído, suprimido, esquecido, até se tornar invisível, abjeto. Suas vidas, as quais ocupam "zonas inóspitas" e "inabitáveis' da vida social", chamadas de "vidas precárias" (Butler, 2000, p. 155), são necessárias para a delimitação precisamente daquilo que habita o interior dessa mesma vida social, que é digno da posição de sujeito.

A noção de "vidas precárias" de Butler (2000) se articula aqui na própria noção de vulnerabilidade, que designa

a exposição a riscos em princípio evitáveis, ou, pelo menos, controláveis, mas que, de fato, escapam, ou podem escapar, ao controle dos sujeitos, incidindo em circunstâncias a que eles não podem se furtar facilmente e em meio dos quais não têm como desligar-se sem grandes perdas. (Serra & Volpini, 2016, p. 119)

Os autores destacam ainda que só faz sentido falar de vulnerabilidade em termos relativos, ou seja, quando comparamos um grupo social a outro que pode ou não eludir certos danos, tornando-se ou não suscetível a eles em determinados contextos. Assim, a população em situação de rua é considerada vulnerável à violência em relação àqueles que têm moradia e/ou não vivem da rua. Do mesmo modo, pessoas LGBTs estão em condição de maior vulnerabilidade à violência e a maus-tratos quando comparadas a pessoas heterossexuais, mesmo aquelas que também estão em situação de rua. Nesse sentido, é possível afirmar que a população LGBT na rua é duplamente vulnerável.

Corrobora essa análise os dados sobre homicídios de pessoas LGBTs, que nos últimos anos têm apresentado um aumento significativo no Brasil, líder mundial em assassinatos desse público, concentrando 44% das mortes de todo o planeta, segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB). A entidade, anualmente, contabiliza as mortes advindas da "lgbtfobia": em 2012, foram registrados 338 assassinatos; em 2013, 312; em 2014, 326 e em 2015, 318 homicídios, sendo a maior incidência na Região Nordeste.

Assim, para as pessoas LGBTs nessa condição, mesmo tendo a rua como uma saída para a situação de violência doméstica enfrentada por muitas, e mesmo encontrando nela formas de afirmação, reinvenção de suas vidas e construção de novos territórios materiais e existenciais, não podemos negar que as violências persistem e se complexificam: como o depoimento anterior mostra, as reações a um relacionamento destoante são de rejeição, afastamento ou tentativa de extermínio. Segundo a primeira pesquisa censitária sobre a população em situação de rua que incluiu variáveis sobre a população LGBT (São Paulo, 2015), as pessoas que se identificam como LGBT em situação de rua tendem a ser mais jovens e exercer atividades marginalizadas (como mendicância, venda de drogas e roubos): são 27% da população LGBT e 5% da heterossexual (os dois grupos analisados são LGBTs e heterossexuais, porém não foi feita nenhuma referência a identidades de gênero trans e cis, apesar de o grupo trans estar incluso na população LGBT). A prostituição é a atividade que guarda a maior diferença: enquanto é exercida por 20% da população LGBT, esse percentual é de 1% no grupo heterossexual, que encontra outras possibilidades de trabalho e renda nas ruas. Há também um percentual assustador de abuso/violência sexual, que chega a 25% na população LGBT, contra 3% no grupo autodeclarado heterossexual. No caso da prostituição de pessoas LGBT, essa atividade tem início muito cedo e aparece na grande maioria das vezes como única possibilidade de trabalho, mesmo para as que não se encontram em situação de rua, como discutido por Siqueira e Nobre (2009, p. 227): "Você já viu travesti empregada? Trabalho a gente não encontra, não. Trabalho de travesti é: prostituição, salão de beleza e casa de família."

Ainda segundo dados recolhidos pela Secretaria de Direitos Humanos - SDH (Brasil, 2013), por meio das denúncias ao Disque 100, polícia, secretarias, ministérios e outras entidades, 60,44% das vítimas de violência no Brasil são gays, 37,59% lésbicas, 1,47% travestis e 0,49% são transexuais. A própria SDH, no entanto, questiona esses dados e discute a ocorrência de uma invisibilização das pessoas trans, as quais apresentam uma severa subnotificação nas estatísticas de denúncias de violência. Em dados recolhidos pela mídia, o grupo T chega a compor 51,68% das denúncias de violência veiculadas na imprensa (Brasil, 2013).

Em acordo com esses dados, foram várias as observações de campo realizadas que envolviam violências contra pessoas LGBTs em situação de rua e que indicam esse silenciamento. Foi necessária a construção de vínculos e a garantia de sigilo, de modo que pudéssemos ouvir depoimentos sobre as violências e o medo das retaliações por agentes do próprio poder público, como agentes da Guarda Municipal ou mesmo profissionais da rede socioassistencial.

Contrapondo-se a esse cenário, a mesma pesquisa releva que a população LGBT tem conseguido mais acesso a benefícios: 55% das pessoas LGBTs pesquisadas recebe algum benefício, 50% recebe bolsa família ou Benefício de Prestação Continuada (BPC), enquanto no grupo heterossexual esses valores são de 46% e 40%, respectivamente (Brasil, 2013). Esses últimos números positivos, entretanto, não se mostram suficientes para uma efetivação na melhoria das condições de vida da população LGBT em situação de rua, quando se observa o amplo quadro de violação de direitos.

Para além disso, no entanto, a pesquisa nos permite avançar nas análises sem restringir ao discurso da luta de direitos e, consequentemente, à luta por "mais Estado". Quando consideramos mais amplamente a produção de subjetividade reconhecendo a precarização, vulnerabilizacão e a reprodução de controle, normalizações e violências nos diferentes contextos sociais e institucionais em relação às pessoas LGBTs em situação de rua, é preciso considerar os diferentes movimentos e produções de transformação, reinvenção e afirmação dessas vidas que acontecem nas "brechas", nas "fissuras" dos instituídos e dos arranjos normativos. Os próprios corpos, em suas existências e resistências nas ruas nos conduzem a outras possibilidades que merecem novas análises e provocações, capazes de criar outros possíveis ali onde o capital explora, violenta, nega e tortura.

 

Considerações finais

Este trabalho guarda um tom inconcluso de diversas maneiras, seja pela impossível tarefa em trazer todas as vozes das ruas que foram escutadas, seja pela própria complexidade das questões aqui levantadas que ainda merecem ser mais bem exploradas. Nesse sentido, apontamos as questões étnico-raciais, geracionais e de pessoas com deficiência, não mencionados na análise, por não dispormos desses dados quanto ao público LGBT investigado. Contudo, destacamos que a grande maioria da população em situação de rua no Brasil é negra, o que tem sido insistentemente associado à criminalidade. Em se tratando de mortes de pessoas em situação de rua, os racismos institucional e estrutural têm papel importante na produção de um discurso midiático de desumanização dessas pessoas, na produção de uma representação dessa população como classe perigosa, associado às representações depreciativas sobre usuários de drogas, muitas vezes responsabilizando as próprias vítimas pelos seus assassinatos (Melo, 2019). Se consideramos os cruzamentos entre situação de rua, cor da pele e orientação sexual/identidade de gênero, aludimos que racismo e lgbtfobia são combinações perversas que condenam essas vidas na rua a uma condição de extrema vulnerabilidade e a riscos iminentes.

Ressaltamos, portanto, a necessidade de pesquisas e outros tipos de projetos que desenvolvam ações para a população em situação de rua LGBT no sentido de garantir mais espaços de debate e luta política para a efetivação de direitos sistematicamente violados, bem como para visibilizar os problemas, desafios e conquistas que essas vidas experimentam, na construção de outras possibilidades de viver. Além disso, entendemos que, quando se fala de experiências no âmbito da sexualidade, há uma tentativa por parte do discurso acadêmico de compreender, descrever, produzir verdades. Contudo, o processo de subjetivação contínuo segue abrindo lacunas e escapes a essa tentativa. Dessa forma, nosso intuito aqui foi no sentido de apontar esses vazamentos, repensar os caminhos com que temos produzido nossos discursos, refletir se e como estamos construindo práticas excludentes e assim mudar os rumos dessas construções a favor da possibilidade de confrontar, desafiar, romper ou transitar por entre essas normas, a favor das bordas e suas permeabilidades.

Do ponto de vista político, vale destacar que à época da produção deste trabalho, o MNPR-RN havia criado o Núcleo de Mulheres e LGBT em Situação de Rua, que tem como objetivos construir um espaço de formação, diálogo, troca de experiências, fomento ao protagonismo; discutir as violações de direitos humanos e buscar formas de resistência e canais de enfrentamentos. Englobando essa pauta às prioridades do MNPR, dava-se um claro sinal da urgência de considerar as questões de gênero e diversidade sexual como fator indispensável para a construção de novos movimentos, transformações e interferências que devem ir além da luta pela garantia de direitos da população em situação de rua. Tal acontecimento nos aponta o sentido de seguir acompanhando essas vidas em suas andanças e percalços e o cenário do movimento social parece ser rico para tais possibilidades de pesquisa e intervenção no sentido de contribuir para a transformação social necessária à afirmação da vida dessas pessoas.

Faz-se necessário, portanto, um amplo debate social sobre direitos humanos, cidadania e justiça que envolve pessoas LGBTs em situação de rua, cercadas por preconceitos, estigmatização e tentativas de "higienização social", reveladas pelo crescente número de homicídios, tornando-as as mais excluídas e vulneráveis entre a população em situação de rua. Frequentemente os relatos vindos desse segmento são de que, além de sofrerem violência do Estado, sofrem violências de outros agentes institucionais, como descrevemos aqui, e ainda dos próprios pares com quem dividem a rua como espaço de sobrevivência, o que coloca um enorme desafio à organização desse segmento em torno de suas pautas e suas agendas específicas.

De fato, a inclusão da temática dos direitos de pessoas LGBTs na luta política dos movimentos sociais é absolutamente uma conquista. Persiste, porém, uma base identitária nesse contexto que segmenta, reduz e limita as possibilidades de transformação. Há, assim, a redução da potência em se incorporar essas experiências que vão além das demarcações discursivas e identitárias, considerando a multiplicidade e heterogênese dos processos de subjetivação no campo social.

Por fim, acreditamos que o encontro com as pessoas LGBTs em situação de rua nos convoca, em suas experiências singulares, a borrar expectativas de verdade, aproximando pensamento acadêmico-científico e ação política, de modo a considerar esses "corpos transitórios", essas "vidas abjetas" na sua potência de vida que vai além dos limites discursivos por garantia de direitos e afirmam outros modos de viver.

 

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Recebido em: 3/4/2017
Aprovado em: 12/12/2019

 

 

1 Optou-se pela utilização da sigla "LGBT" em consonância com a deliberação do próprio movimento na Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (GLBT), em 2008, conforme é exposto na Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2009/2013).
2 O conceito de cis-heteronormatividade envolve dois aspectos: o primeiro, no campo da identidade e das expressões de gênero, traz a transgeneridade e a cisgeneridade como possibilidades de existência no sistema sexo/gênero. Na primeira existem rupturas, desvios e questionamentos para com o caráter compulsório desse binômio, enquanto na segunda há uma adequação à normatização de congruência entre sexo e gênero. Já no campo da sexualidade, a heterossexualidade representa a normatização com relação aos afetos e orientação do desejo, enquanto as experiências homossexuais representam suas fugas mais conhecidas, porém apenas outra possibilidade entre a multiplicidade de vivências afetivas, sexuais, românticas. Para aprofundamento na discussão conceitual, ver Maranhão Filho (2015).
3 O conceito de homeless ("sem teto", em livre tradução), utilizado nos estudos internacionais, difere da noção de "pessoa/população em situação de rua", discutida neste trabalho, na literatura e nas políticas públicas recentes no Brasil. Enquanto o primeiro é definido como "um indivíduo que carece de moradia (sem levar em conta se o indivíduo é membro de uma família), incluindo indivíduos cuja residência principal durante a noite é um estabelecimento público ou privado supervisionado (por exemplo, abrigos), que oferece acomodações de vida temporárias, e um indivíduo que é residente em habitação de transição" (United States of America, 1996). Já o conceito de população em situação de rua inclui tanto quem habita a rua como moradia quanto quem tem a rua como meio de subsistência. Essa noção de trabalho não é levada em conta no contexto americano, por exemplo.
4 O uso de termos de gênero neutro para se referir a esse/essa participante da pesquisa se justifica pelo fato de que essa pessoa, atualmente, se reconhece por meio de termos femininos, porém, à época da realização das entrevistas, a depender do contexto, ela fazia referências a si utilizando termos masculinos ou femininos, o que provoca uma inconstância na referência ao gênero nos relatos.

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