SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número1Narrativas LGBT de pessoas em situação de rua: repensando identidades, normas e abjeçõesInterrogando o dispositivo de segurança na judicialização da vida: notas biopolíticas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2020

 

O corpo transgênero em animações e quadrinhos: uma análise psicossocial

 

The transgender body in animations and comics: a psychosocial analysis

 

El cuerpo transgénero en animaciones y historietas: un análisis psicosocial

 

 

Alexsander Lima da SilvaI; Adélia Augusta Souto de OliveiraII

IUniversidade Federal de Alagoas (Ufal)
IIUniversidade Federal de Alagoas (Ufal)

 

 


RESUMO

Investigação de significado e sentidos acerca do corpo transgênero em animações e quadrinhos infantojuvenis., utilizando pressupostos téorico-metodológicos da Psicologia Social e dos Estudos de Gênero. Realiza uma análise qualitativa, descritivo-interpretativa, das personagens ficcionais Verônica de Nasu, Trio Amazonas, Sailors Starlights, SheZow, Princesa Biscoito e Unicórnio Donny. Os resultados evidenciam que "Verônica e Trio Amazonas" reconfiguram suas transexualidades como acesso à maldade; "Sailor Starlights" se utilizam da estratégia de disfarce transgênero; "SheZow" se torna heroína, em um contexto de significações pautadas nos binarismos masculino e feminino; e a "Princesa Biscoito e Unicórnio Donny" se apresentam como personagens questionadores aos padrões cisnormativos de comportamento e de imagem corporal. Conclui-se que a pluralidade identitária, as significações históricas e culturais dessas obras permitem diversos sentidos ao corpo transexual.

Palavras-chave: Transgênero. Corpo. Análise psicossocial. Quadrinhos. Animações.


ABSTRACT

This research is about meanings and senses of transgender body in animations and comics for children and young. Theoretical and methodological assumptions of Social Psychology and Gender Studies are used on it. Performs a qualitative analysis, descriptive and interpretative, on fictional characters Veronica Nasu, Amazon Trio, Sailors Starlights, SheZow, Cookie Princess and Donny Unicorn (Powerpuff Girls). The results show "Veronica and Trio Amazonas" reconfigure their transexualities as access to wickedness; "Sailor Starlights" use the strategy of transgender; "SheZow" becomes heroine in a context of meanings based on masculine and feminine binarisms and "Princess Cookie and Unicorn Donny" present themselves as questioning to the cisnormative patterns of behavior and body image. It is concluded that a plurality of identities, historical and cultural significance allowing different senses to the transexual body.

Keywords: Transgender. Body. Psychosocial analysis. Comics. Animations.


RESUMEN

La investigación del significado y sentido sobre el cuerpo transgénero en las animaciones y historietas para niños y jóvenes. Utiliza los supuestos teóricos/ metodológicos de la Psicología Social y Estudios de Género. Lleva a cabo un análisis cualitativo, descriptivo-interpretativo, de caracteres Verónica Nasu, Amazon Trio, Sailors Star Lights, SheZow, Princesa Galleta y Unicornio Donny. Los resultados muestran "Verónica y Amazon Trio" reconfiguran sus transexualidades como el acceso al mundo del mal; "Sailor Starlights", para usar la estrategia disfraz transgénero; "SheZow" se convierte en la heroína, en un contexto de significados guiadas en binarismos masculinos y femeninos y "Princesa Galleta y del Unicornio Donny" aparecer como interrogadores de los cisnormativos patrones de comportamiento y cuerpo. Concluye pluralidad de identidad; significado histórico y cultural de las obras que permiten diversos sentidos al cuerpo transexual.

Palabras clave: Transgénero; Cuerpo; Análisis psicosocial; Historietas; Animaciones.


 

 

Introdução

Discute-se a forma como personagens transgêneros são representados em animações e quadrinhos, destinados aos públicos infantojuvenis, as quais demarcam o olhar de roteiristas e ilustradores sobre transexuais, travestis e pessoas não binárias. Considera-se que a transexualidade, travestilidade e identidade de gênero não binária são fenômenos que trazem consigo vários questionamentos e rupturas no campo da sexualidade, dos binarismos de gênero, corpo e identitários. Um deles diz respeito ao não reconhecimento dos marcadores, de corpo e gênero, atribuídos em seu nascimento, que podem acarretar sofrimentos e preconceitos por parte daqueles que não os aceitam. Destaca-se, entretanto, que esse sofrimento psíquico não é universal e tem seu caráter contextual, cultural e resultado de interações sociais específicas.

Questões que se apresentam: a transexualização é um fenômeno debatido apenas por LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Travestis, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas, Pansexual/Polissexual, e mais) e pela comunidade científica? Apenas adultos têm contato com pessoas ou personagens transgêneros? Obras infantis e infantojuvenis podem conter personagens transexuais, travestis e não binários? Como o corpo transgênero é representado em animações e quadrinhos direcionados às crianças e adolescentes? Os esforços aqui apresentados buscam abordá-las.

Do ponto de vista conceitual, transexuais são pessoas que não se identificam com o gênero imposto em seu nascimento, diferenciando-se das pessoas cis (palavra em latim que significa "deste lado"). Os cisgêneros se identificam com o gênero designado em seu nascimento - em sociedades cisnormativas, os cisgêneros não sofrem preconceito, por apresentarem um corpo e gênero "alinhados" e em consonância com as normas estabelecidas (Bonassi, Amaral, Toneli & Queiroz, 2015; Torres & Prado, 2014). Essas regras, imutáveis de cisgeneridades e suas polaridades, feminina e masculina, se configuram como as únicas formas de gênero e negligenciam aqueles que não atendem a esses binarismos (De Jesus & Alves, 2012). Aos transgêneros resultam algumas possibilidades de transformação corporal e visual: uso da hormonioterapia (para aumento ou diminuição de pelos/seios), intervenções cirúrgicas (neocolpovulvoplastia, faloplastia e mastectomia), com intuito de readequação do corpo ao gênero identificado. Por sua vez, os marcadores (barba, seios, pomo de adão, genitália) corporais evidenciam ou negam a sua identidade de gênero (Aran & Murta 2009; Sampaio & Coelho, 2012). No entanto, há transgêneros que consideram que sua identidade de gênero independe de transformação corporal (Silva & Oliveira, 2015).

Na relação entre identidade e gênero, pontuam-se controvérsias: há transexuais que não se consideram transgêneros, pois alegam que suas reivindicações estão associadas a uma identidade negada, já que sempre foram homens ou mulheres cujo corpo era incoerente ao seu psiquismo (Bento, 2009). Entretanto, mesmo com tal crença referente a um corpo "equivocado", transexuais estão inseridos(as) juntamente com travestis e pessoas não binárias nesse grupo conceitual, enquanto essas últimas preferem transitar entre os dois gêneros (Silva & Oliveira, 2015). O próprio termo queer abarca esse não binarismo por questionar as categorias que podem rotular e limitar a vivência livre da sexualidade e da identidade (Bandeira, 2019; Colling, 2013).

O termo travesti foi muito utilizado por Benjamin, nos anos 1950, para compor a sua escala de sexualidade com o termo "travesti fetichista" (Bruns & Pinto, 2003) e, com o passar dos anos, adicionou significados atrelados às patologias psiquiátricas, prostituição e/ou em tom jocoso e pejorativo. Pesquisas evidenciam que algumas pessoas trans consideram o ser travesti como parte de um processo que culmina na transexualidade (Carvalho, 2011).

Com o crescimento de movimentos trans, houve uma ressignificação política e identitária ao termo travesti, com a autoidentificação determinada pelo movimento histórico e as interações sociais. Desse modo, novos nomeares operam novos sentidos à travestilidade (Bandeira, 2019; Barbosa, 2010; Carvalho, 2011; Colling, 2013).

Pode-se observar que as pessoas trans, travestis e não binárias questionam, em comum, sua identidade, gênero e corpo e, em suas especificidades, se diferenciam uns dos outros, por suas histórias de vida e relações com seu meio. Mas a sociedade em geral tem acesso a essas experiências e histórias de transgêneros? Os meios artísticos e midiáticos, como o cinema, a televisão, os livros ficcionais, as animações e histórias em quadrinhos podem permitir essa acessibilidade ao fenômeno trans? Para tanto, apresenta-se um panorama acerca da transgeneridade nos desenhos animados e quadrinhos infantojuvenis como meio de acesso aos sistemas simbólicos culturais de uma determinada sociedade (Silva & Oliveira, 2013).

As animações e as revistas em quadrinhos são recursos linguísticos muito populares e confluem imagem e palavra falada ou escrita e (re)produzem fenômenos sociais, com suas peculiaridades, ideologias, características e, por vezes, permitem aos seus consumidores (leitores e espectadores) reflexões, opiniões e sentidos (Oliveira, 2014; Silva & Gomes, 2009). Destacam-se as proposições de produção de sentidos por meio da Semiótica de Percurso Gerativo de Sentido (Bernardes & Scoz, 2017). Ao realizar conexões entre imagem e som, os balões de diálogos eliciam atos cognitivos, os traços do desenho, o uso das cores, do cenário, figurinos, maneirismos, expressões que compõem os personagens, combinando-se a uma trilha sonora e ao roteiro (diálogo) que representam toda a encenação e construção de uma realidade (Silva & Gomes, 2009).

Os gibis e os desenhos são edificados de acordo com o contexto cultural e social de uma comunidade. Os animes e os mangás, desenhos e quadrinhos japoneses, respectivamente, apresentam conteúdos extremamente violentos, com certo erotismo e androginia, os quais envolvem personagens da cultura nipônica: ninjas, samurais, colegiais fardadas etc. (Luyten, 2001). Os quadrinhos brasileiros voltados ao público infantil, por sua vez, ilustram crianças e adultos em situações cotidianas em seus bairros, figuras folclóricas. Os quadrinhos adultos apresentam personagens de cunho urbano variados, com temáticas voltadas à sexualidade, política etc. (Oliveira, 2014). Consideram-se ainda que as metáforas, onomatopeias, entre outras figuras de linguagem, expressam sentidos linguísticos, oriundos do escritor/roteirista/ilustrador com construções textuais e imagéticas, os quais se direcionam ao meio e possibilitam a mediação do ser humano com o externo (Alt, 2015; Meireles, 2015).

Há estudos da Semiótica que trabalham com a influência do tempo e espaço como determinantes dos estilos de se fazer quadrinhos (Alt, 2015). Os quadrinhos e os desenhos animados não apenas representam a cultura de um país, mas também a história de uma época, por meio dos seus veículos e formas de publicação. As tirinhas de jornais impressos, no Século XIX, os gibis e encadernados, no caso dos quadrinhos, e os desenhos animados preto e branco, curtas e longas-metragens, além dos episódicos, em formatos de séries, são alguns exemplos de toda essa trajetória histórica (Oliveira, 2014; Silva & Gomes, 2009).

As histórias em quadrinhos apresentam ainda uma reflexão sobre seu conteúdo, por intermédio da imagem e da palavra escrita. O leitor é observador da representação de uma realidade, coleta informações (imagens e textos de diálogos) que estão no enredo e realiza significados e sentidos a esse roteiro. Ou seja, "não se reduz à descrição da transmissão de um dado conteúdo (de um emissor para um receptor), mas se relaciona primeiramente às condições gerais do processo de significação" (Bernardes & Scoz, 2017, p. 250), entretanto, seu poder de alcance é menor do que os desenhos animados exibidos na televisão e internet (Luyten, 2001; Oliveira, 2014).

Desse modo, as expressões artísticas (animações e quadrinhos), na criação e representação de personagens transexuais, permitem que várias gerações tenham acesso às histórias de pessoas (reais ou fictícias) transexuais, acompanhados de imagens, textos, subtextos, que possibilitam experiências e produção de subjetividade. Tal fator direcionou a pesquisa com um panorama e análise de personagens transexuais de desenhos animados e quadrinhos infantojuvenis exibidos e comercializados no Brasil.

 

Método

Realiza-se estudo qualitativo com a descrição dos personagens, a obra da qual fazem parte, o contexto da ação e enredo, seguido da interpretação fundamentada e amparada nos referenciais teóricos da Psicologia Social e Estudos de Gênero.

As personagens transexuais em desenhos animados foram obtidas a partir das plataformas de streams, os populares vídeos online (Netflix, YouTube, Vimeo, Dailymotion, Uol Mais, Mega Tudo) e em acervo de DVDs. Os personagens de histórias em quadrinhos se deu por meio de sites de busca Google, Yahoo e Bing, e, posteriormente, foram adquiridos os encadernados e revistas que continham figuras ficcionais escolhidas para análise. De quarenta personagens LGBTQIAP+, realizou-se uma triagem dos personagens transgêneros (transexuais, travestis, não binários, queer) e escolhidas 10 figuras ficcionais transgêneras, sendo três oriundas de produções ocidentais e sete de produções orientais. O critério para seleção foi autoidentificação trans, travestilidade, questionamentos identitários e de gênero ou identificação com o gênero oposto ao que foi designado em seu nascimento.

As personagens selecionadas foram: Verônica de Nasu (Cavaleiros do Zodíaco - Lost Canvas), Trio Amazonas (Sailor Moon) e as três Sailor Starlights (Sailor Moon Stars), essas são as representantes de obras orientais. SheZow (desenho com o mesmo nome), Unicórnio Donny (Meninas Super Poderosas) e Princesa Biscoito (Hora de Aventura) são as de produções ocidentais. Caracterizam-se como quadrinhos e desenhos animados: Verônica de Nasu, Sailor Starlights e Trio Amazonas, as demais são apenas animações. Todos os gibis/mangás foram publicados no Brasil. As animações também foram exibidas em território nacional em redes de televisão aberta, por assinatura e em streams. Outro ponto a acrescentar é que SheZow, Unicórnio Donny e Princesa Biscoito são direcionadas ao público infantil, enquanto as demais são produções destinadas ao público infantojuvenil.

A análise priorizou a autoidentificação transgênero a partir da leitura flutuante, o que permitiu elencar as categorias e as figuras ficcionais: transgêneros como vilãs (Verônica e Trio Amazonas), transgeneridade como acesso ao heroísmo (SheZow), estratégia de disfarce transgênero (Sailor Starlights) e transgeneridade como realização de um sonho (Princesa Biscoito e Unicórnio Donny). A leitura em profundidade identificou, descreveu e sistematizou trechos que retratam as personagens selecionadas; a interpretação estabeleceu relações entre o texto abordado nos enredos, sobretudo das falas dessas figuras ficcionais, com os aspectos históricos de transgenericidade e dos estudos de gênero; o subtexto identificou nas falas das personagens o sentido e significado relacionados à autoidentificação. Identificou-se, ainda, palavras e características mais recorrentes que representam o fenômeno da transgeneridade e a sua relação com a identidade. Apresenta-se, ainda, uma breve sinopse das obras selecionadas para situar o contexto, espaço temporal e realidade em que se encontram as figuras ficcionais estudadas. Destarte, será apresentada, a seguir, essa análise das personagens privilegiadas.

 

Resultados e discussão

Verônica e Trio Amazonas: transgêneros como vilãs

Cavaleiros do Zodíaco (Lost Canvas) é um mangá (quadrinhos japonês), em seguida adaptado para anime (animação japonesa), produzido em 2006, escrito pela autora japonesa Shiori Teshirogi. O enredo narra os conflitos entre os Cavaleiros de Athena e as Estrelas Malignas da Reencarnação de Hades, chamado de Alone. Verônica de Nasu pertence ao grupo dos Espectros de Hades/Alone e entra em combate com Cavaleiro Manigold de Câncer, um personagem machista, sarcástico e trans/homofóbico: "Até que de perfil você parece mulher de verdade!" ou é ofendida "Vamos tirar a prova, seu transformista" e "não venha dar em cima de mim, não gosto de gente como você." O significado do seu sobrenome - Nasu -, no contexto do enredo, carrega sentidos negativos: nas sombras, impuro, obsceno. Esse mangá apresenta, em sua maioria, personagens masculinos cis. As poucas figuras ficcionais cis femininas são submissas, amantes revoltadas e amargas, além de malignas. O enredo é envolto de homens que lutam entre si para proteger uma mulher (Athena) ou embates entre egos. Diferentemente do mangá/anime Sailor Moon, que tem 90% das personagens femininas e é composto por mulheres cis hétero e homossexuais, homens e mulheres trans heterossexuais.

As outras personagens transgêneros vilãs pertencem ao mangá Sailor Moon. A revista em questão teve seu primeiro número publicado em 1992 e foi criada pela escritora japonesa Naoko Takeuchi, sendo também adaptada em forma de animação em 1993. Exibida no Brasil por duas redes de televisão aberta (a primeira em 1996), um canal por assinatura, lançada em DVD e exibida em serviços de stream. A revista apenas foi publicada em território nacional em 2014. O Trio Amazonas (Olho de Peixe, Falcão e Tigre) aparece na temporada Super S como capangas da Rainha Neherenia e da Grande Zirconia.

As três personagens, que eram animais de circo, são transformadas em homens, por Zirconia, entretanto, Peixe, Tigre e Falcão não aceitam os corpos masculinos e nem se identificam com o gênero dessas imagens corporais. Para manter os corpos humanos, devem ser más e atacar as Sailor Moons. No roteiro do mangá, as três adotam a identidade de gênero feminino, referindo-se sempre com pronomes femininos. Já no desenho, na dublagem brasileira, usam pronomes masculinos. Outra diferença é que, na revista, nada é falado sobre suas orientações sexuais, enquanto na animação Olho de Tigre e Falcão são assexuadas e Peixe assume sentir atração por homens. "Por que está calado, Olho de Peixe? Está pensando em homens? Você gosta de homens? Você está apaixonado por um homem? Que piada."

A animação e o mangá são produções orientais de épocas diferentes, Sailor Moon é noventista, e Lost Canvas é da década de 2000. Mesmo com a diferença histórica de mais de uma década, pode-se observar que as quatro personagens fazem parte do núcleo de vilões de suas histórias e apresentam uma carga de significados negativos. Verônica carrega no sobrenome o obsceno e a impureza, e as três personagens Amazonas caracterizam-se como animais descartáveis. Todas são punidas de forma violenta, além do fato, de as nomenclaturas transgêneros, transexuais, travestis não serem utilizados. O único termo utilizado é transformista, de forma pejorativa por um inimigo de Verônica.

As pessoas travestis e transexuais são as representantes do universo LGBTQIAP+ com o maior número de casos de sofrimento psíquico relacionado ao preconceito, tanto em agressões verbais quanto físicas. Por expressarem sua identidade por meio da transformação corporal e adoção de identidade opostas ao gênero designado no nascimento, tornam-se alvo corriqueiro de intolerância e violência. Além disso, grande parte vive reclusa ou restrita a guetos de grupos organizados ou no mundo da prostituição (Bonassi et al., 2013).

O indivíduo considerado, pela sociedade em geral, como alguém descomedido não é aquele que trata mal os outros membros ou que não acata a ideia de outrem, Mas, sim, o que não consegue conviver de acordo com as regras da comunidade, aquele que não é considerado "cooperativo" com essas normas construídas socialmente e historicamente. Com isso, há o estranhamento advindo dos outros por esse indivíduo, que pode ser um comportamento de intolerância ou de exclusão (Silva & Oliveira, 2013; Torres & Prado, 2014).

Verônica de Nasu é ridicularizada e desacreditada pelo seu oponente desde o primeiro momento em que se encontram, pois apresenta uma imagem e corpo que não são se adaptam às normas dos guerreiros naquele contexto. A violência e a intolerância se iniciam nesse momento, além do fato de ser confundida com uma transformista ou homossexual "efeminado". Essas confusões acerca das categorias identitárias trans são advindas de construções sociais. Nos anos 1960, no Brasil, não se usava o termo travesti. Pessoas travestis eram consideradas homossexuais que trajavam roupas femininas: "Neste período, o termo travesti não é utilizado propriamente como categoria identitária. Por diversas vezes ele aparece em expressões como: ter uma travesti ou estar em travesti" (Carvalho, 2011, p. 23).

Após o período da ditadura no Brasil, os movimentos sociais e organizados das travestis e transexuais iniciaram uma mobilização para fazerem parte do, até então, Movimento Gay e terem suas categorias reconhecidas, lutando por visibilidade (Barbosa, 2010; Carvalho, 2011). Na contemporaneidade, as travestis, transexuais e pessoas não binárias fazem parte do movimento LGBTQIAP+ e evidenciam a pluralidade de experiências queer e transgêneros.

Pessoas transgêneras trazem rupturas, nos binarismos de gênero, impostos pela cisnormatividade. Por meio da sua imagem corporal, performances de gênero e reivindicação identitária, transexuais e travestis questionam essas barreiras conceituais. Assim, a ideia de que sexo e gênero estão atrelados e só existem as polaridades: macho/pênis/masculino e fêmea/vagina/feminino. Ao contrariarem essas normatizações, sofrem represálias da sociedade (Bonassi et al., 2014; Lomando & Nardi, 2013). Essa transgressão aos binarismos é um ato identitário e, acima de tudo, político. Há uma desconstrução do que se entende por sexualidade hegemônica (Colling, 2013).

Outro ponto a destacar é que o Trio Amazonas sofre a mutação corporal sequenciada como animais/homens cis/mulheres trans para atacarem um grupo de heroínas. Há pessoas trans que afirmam que são seres em constante transformação, pois passam pela cisgeneridade homossexual, travestilidade e, por fim, a transexualidade, enquanto outras consideram que sempre foram transexuais, sem passar por esse processo, contrariando a ideia de uma identidade que deve ser estática e imutável (Leite Jr., 2011), além de existirem as pessoas não binárias, que preferem transitar entre os binarismos (Colling, 2013).

Outra questão interessante é que a maldade é o passaporte para as personagens serem humanas efetivamente. Caso falhem, são castigadas com a volta dos seus corpos de origem animal, ocasionando sofrimento psíquico. Suas transformações corporais são objetos de barganha, moedas de troca oferecidas por um ser maior - mulher cis e feiticeira Zirconia. Tal situação reflete a sociedade que nomeia e regula os corpos que os indivíduos devem apresentar, os quais ditam os comportamentos e transformações na aparência que as pessoas devem ter e, caso não atendam, sofrerão psiquicamente (Bento, 2009).

O Trio Amazonas satisfaz-se com suas novas identidades, sujeitando-se às ordens de sua líder. Tal fato deve-se às experiências em sua história de vida, o que faz com que essas personagens tenham uma visão negativa da sua identidade anterior (animais de circo) e uma exaltação das suas novas identidades e corpos. O poder de nomeação dos seus corpos e gênero se constrói de intencionalidades nas suas interações sociais. A identidade é construída e produzida socialmente e a partir da relação interdependente com o meio (Colling, 2013).

Outro ponto interessante é que as três personagens discutem sobre os "papéis" de homens e mulheres, exclusivos e diferenciados para cada binarismo, naquela sociedade. "Ele nunca vai vê-lo como uma garota, Olho de Peixe. Você é estranho, seu corpo não é de garota." Tal fator reside na ideia de uma identidade sexual em que homens e mulheres têm corpos diferentes e, por conseguinte, devem apresentar comportamentos diferenciados e orientações sexuais baseadas na hétero e cisnormatividade (Lomando & Nardi, 2013; Nicholson, 2000).

Olho de Peixe passa a modelar o corpo, com enchimento, para ser vista como uma mulher. Uma vez que tem acesso a essa nova identidade, a sexualidade de Olho de Peixe se reconstrói. Essas transformações corporais e adaptações comportamentais impostas atendem à cisnormatividade, pois estas negam as pluralidades e tudo que foge dos binarismos de gênero (Barbosa, 2010; Bonassi et al., 2015; Carvalho, 2011). É notória, ainda, a diversidade de experiências transgêneros. Olho de Tigre e Falcão transitam entre os gêneros, não se identificam como somente mulheres ou homens, não binárias. Diferente de Olho de Peixe que se autoidentifica como mulher.

Em relação ao contexto sociocultural, pode-se salientar que, diferentemente da dublagem original, a brasileira faz questão de usar os pronomes masculinos, somando-se ao fato de que as vozes são todas de dubladores masculinos. No original, a voz de Olho de Peixe é feminina. Os sentidos e significados produzidos acerca desses personagens trans são diferentes de uma cultura para outra.

Sailor Starlights: estratégia de disfarce transgênero

As Sailor Starlights são personagens do mangá e da animação Sailor Moon Stars, sendo exibida em 2002 no Brasil. Essas personagens são três guerreiras alienígenas: Sailor Star Fighter, Sailor Star Maker e Sailor Star Healer que precisam se disfarçar tomando a forma de três homens: Seya, Taiki e Yaten, membros de uma banda chamada Three Lights.

Na forma considerada masculina, os seios e cinturas desaparecem e as vozes ficam graves. As personalidades se transformam: Seya é um homem machista, Taiki é galanteador e Yaten é grosseiro. "Não tem amigos, só pode ser uma mulher mal-amada, pois só pega no meu pé. O problema dela é a falta de rapazes." Ao voltarem à forma original de Starlights, as mudanças retornam e se autoidentificam como mulheres. As Sailor Starlights, com as identidades e corpos masculinos, apresentam uma orientação sexual voltada à heterossexualidade e um comportamento mais grosseiro e predatório. Em contrapartida, ao assumirem a forma Starlight, tornam-se assexuadas e com foco em sua missão. Evidencia-se que as personalidades das Sailor Starlights mudam de acordo com o gênero vivenciado.

A visão das polaridades masculino/feminino como formas únicas de gênero asseguram o controle e o poder, do forte - macho - sobre a mais fraca - fêmea. Esses binarismos certificam as diferenciações entre os sexos e gêneros, os quais conservam e reproduzem as regras e valores correspondentes ao grupo do qual o indivíduo faz parte (Laqueur, 2001). As Starlights, nas formas masculinas, se rendem aos estereótipos masculinos para que seus disfarces funcionem, em concordância com a repetição ritualística, ou seja, a performatividade de um gênero e de sexualidade corresponde à transformação corporal que deve atender às regras normativas (Butler, 2010). As expressões de suas sexualidades se evidenciam em Seya, Yaten e Taiki quando paqueram as mulheres, sem preocupações. Compreende-se que o corpo masculino é ressignificado e ganha o sentido de liberdade de exercer sua sexualidade, mesmo que pautado na heteronormatividade e cisnormatividade (Butler, 2010; De Jesus & Alves, 2012). A imagem corporal e suas sexualidades tornam-se alusões para suas identidades como Three Lights, destarte, é esperado que não acarretassem dúvidas e nem ambiguidades.

Seus corpos em mudança imagética permitem que, enquanto membros da banda Three Lights, tornem-se masculinos, sem marcadores femininos (voz aguda e seios), além do uso de roupas consideradas masculinas. Assim, seus poderes, suas corporalidades, são modificadas e ressignificadas. Transexuais masculinos e femininos e travestis realizam transformações corporais para atender as suas identidades de gênero, por meio das tecnologias - transgenitalização, hormonioterapia, mastectomia etc. -, que geram rupturas e novas significações em seus corpos (Haraway, 2009; Leite Jr., 2011; Santos, 2011). Entretanto, o gênero das Starlights é fluido, pois há um livre trânsito entre suas vivências como transgêneros, assemelhando-se às pessoas não binárias.

Os corpos masculinos e femininos são significados pela cultura, mas também ressignificados pelas suas experiências com o meio externo (Louro, 2000; Nicholson, 2000). Os Three Lights apostam na transformação visual e corporal para serem os mais masculinos possíveis, no intuito de transitarem entre os humanos, sem serem descobertos que são as Sailor Starlights. Seus corpos são produzidos, desconstruídos e reconstruídos.

Essas ressignificações, por meio das tecnologias, e no caso das Starlights, poderes mágicos, são chamadas de acoplamentos e funcionam como demarcações que objetivam produzir identidades. A produção desses corpos não é feita por intermédio de uma identidade natural, inata, biológica, mas na interação, experiência e convivência com outras identidades e expressões corporais (Haraway, 2009). Ou seja, suas imagens corporais são produzidas e potencializadas a partir da disposição de serem afetadas por outros corpos. O olhar do outro influencia suas expressões de gênero e corporais, o que acarreta sentimentos conflitantes do que se deve ou não mostrar (Leite Jr., 2011).

Entende-se que os corpos masculinos e femininos das Starlights não são negados, mas ganham novas significações a cada transformação. O próprio comportamento das personagens se modifica, no decorrer dos episódios, quando encontram outras Sailors Moons. Assim, suas formas masculinas tornam-se menos grosseiras, frias e machistas. É uma mudança processual, adaptativa e simbólica, que evidencia a fluidez de seus gêneros. Dessa forma, essas rupturas, reconstruções de corpos e personalidade, ressignificações, expressam mudanças que favorecem novos modos de existir.

SheZow: transgeneridade como acesso ao heroísmo

O enredo dessa animação gira em torno de Guy, um menino de 12 anos, que mexe nos pertences da sua tia falecida, chamada Agnes, e descobre um anel mágico, que a revela como a heroína SheZow. Decide, por brincadeira, colocar o anel em seu dedo e se torna poderosa, com gênero e identidade alterados, tornando-se a nova encarnação da SheZow, ao gritar "Arrasa, diva!". É um desenho animado canadense, criado por Obie Scott Wade, em 2012. Essa animação é exibida no Brasil, desde 2015, por de uma rede fechada de streams.

Guy é um garoto esqueitista, machista, bagunceiro e arrogante. Na figura de SheZow, é insegura, histérica, obsessiva com a aparência. Seu pai é policial e odeia a heroína, por ela ser mulher e conseguir combater o crime, chamando-a de "She-vaca", "She-munda" etc. Essa animação aborda um tema ousado e controverso acerca do universo transgênero, apresentada como forma de acesso ao mundo do heroísmo e dos superpoderes, além de questionamentos aos binarismos de gênero em sua sinopse inicial. Entretanto, os diálogos e as situações do desenho apresentam diversos estereótipos, o que evidencia um contraste entre as rupturas da súmula inicial e a manutenção de preconceitos e hétero/cisnormatividades no enredo de grande parte dos episódios.

A transição de gêneros de Guy em SheZow é algo imposto e não autoidentificado. Nessa direção, a literatura aponta que há casos de pessoas que se transexualizaram por imposição religiosa, societária ou para guerrear. Os escravos greco-romanos eunucos para tornarem-se sacerdotisas do templo da deusa Afrodite, teriam, como requisito para a função, de extirpar os testículos e o pênis. Tal prática, pautada na tradição da época, prezava pela castidade daquelas que iriam ser "as guardiãs" daquele local sagrado. Essa prática ocorria, também, no reino de Frígia, com as sacerdotisas transexuais do deus Átis. Existiam, ainda, as mulheres que durante a Guerra Civil se travestiram para lutar e adotarem identidade masculina (Bento, 2006; Bruns & Pinto, 2003; Ceccarelli, 2008; Silva & Oliveira, 2013).

Nos episódios, evidencia-se uma divisória entre os objetos, comportamentos, vestimentas, atitudes de meninos e os de meninas. As personagens femininas são organizadas, têm obrigação de sempre estarem belas, usarem roupas de cores claras com vários tons de rosa, lilás, branco, amarelo. As heroínas e vilãs apresentam armas e poderes baseados em objetos considerados do universo feminino e fundamentados em atitudes estereotipadas de comportamento das mulheres: grito histérico, unhas afiadas etc. Por sua vez, os homens não admitem perderem seu espaço para mulheres, como o pai de Guy, ou sentem orgulho de não participarem das atividades de casa: "Eu não vou ajudá-la na mudança e nem a arrumar a casa, Kelly. Isso é coisa de mulher, não faço isso" ou "Você pode roubar os meus poderes, a minha dignidade, mas não pode me obrigar a fazer as unhas. Homens não fazem as unhas."

Os corpos de meninas e meninos estão demarcados em papéis determinados pela cultura, com funções delineadas e diferenciadas para cada gênero, como uma espécie de "roteiros sexuais (Gagnon, 2006). Esses marcadores de gênero são dispositivos sociais e históricos reguladores desses corpos que atendem a extremos masculino e feminino que devem sobrepor-se ao outro: macho sobre a fêmea (Louro, 2008).

Destaca-se ainda a autoafirmação de que SheZow pertence ao universo feminino. Em todo momento é usado o pronome she (ela)com palavras do cotidiano e objetos utilizados por ela, o que lembra a todos que SheZow pode ser Guy, mas tem aparência de menina. Em estudo com transexuais femininas (Galli, 2013), evidencia a presença constante de uma autoafirmação feminina. O caráter de mobilidade das identidades das participantes desses estudos apresenta como mobilização inicial "ser o mais feminina possível" para serem reconhecidas como mulher. Essa autoafirmação feminina, em algumas mulheres trans, deve-se à imposição e pensamento pautados no discurso médico de que seus corpos e comportamentos devem ser femininos para transexualizarem-se ou se adequarem ao que se entende sobre ser mulher (Silva & Oliveira, 2015). Cabe lembrar que nem todas as transexuais apresentam o mesmo tipo de pensamento. Outras entendem que a transformação do corpo é necessária para o bem-estar da pessoa transexual, diminuindo seu sofrimento psíquico (Galli, 2013).

Em relação a Guy/SheZow, não há uma autoidentidade transexual. A personagem é um menino e sua transformação em uma heroína é uma imposição. Entretanto, com o passar dos episódios, Guy começa a sentir-se confortável como SheZow, conseguindo transitar entre os gêneros, mesmo que de uma forma caricata.

Princesa Biscoito e Unicórnio Donny: transgeneridade como realização de um sonho

Princesa Biscoito é uma personagem do desenho animado estadunidense "Hora de Aventura", sua primeira aparição foi na quarta temporada, no episódio treze. A série foi criada por Pendleton Ward, em 2010 e é exibida no Brasil em canal de televisão por assinatura e em uma plataforma fechada de stream. Biscoito sequestra um grupo de seres doces, ele é da mesma espécie, com o intuito de roubar a coroa da Princesa Jujuba. O personagem Jake é o único que considera que Biscoito pode ser uma princesa, realizando seu sonho.

O sonho de se transformar e ser o que deseja também faz parte do enredo da história do Unicórnio Donny, personagem de um episódio do desenho Meninas Super Poderosas, desenho estadunidense criado por Craig McCraken, nos anos 1990 e relançado em 2016. Donny deseja ser um unicórnio e usa um chifre postiço. Questionado por não ter um chifre verdadeiro, é incentivado, por Lindinha, a realizar o processo "transmogrificador" para que sua identidade e corpo possam ser correspondentes. No final, a "Aliança da Coalização dos Unicórnios" informa a Donny que ele sempre foi um unicórnio, não importando a sua aparência externa. Os produtores da série confirmam que o episódio discute a transexualidade.

Diferente dos outros personagens analisados, Biscoito e Donny trazem em seus diálogos questionamentos acerca de a sociedade não deixá-los ser quem desejam, no caso, uma princesa ou um unicórnio. Ou seja, há indagações acerca das suas identidades, naquele momento, não serem aceitas.

Esses episódios apresentam quatro aspectos a serem discutidos: o primeiro refere-se à escuta do outro (Jake, A Aliança), que possibilita uma diminuição do sofrimento psíquico de quem narra (Biscoito, Donny) seu problema. Muitas pessoas transexuais, travestis e não binárias apontam como um dos maiores agravantes de ansiedade o fato de as pessoas não ouvirem suas histórias e não serem empáticas, mediante suas situações como transgêneros. Profissionais da saúde que não as atendem bem, violência psicológica e física a que são submetidas e a não aceitação da família corroboram com esse sofrimento (Piccardi, 2016; Sampaio & Coelho, 2012; Silva & Oliveira, 2015). A narração da sua história de vida, ou o desabafo daquilo que as afligem, alivia a sua angústia, quando há reciprocidade na interlocução entre narrador e receptor (Piccardi, 2016). O indivíduo no momento em que narra seu problema tem contato com este, vai reconstruindo e reinterpretando a sua experiência vivida (Silva & Oliveira, 2015).

No caso do atendimento psicológico a transgêneros, o objetivo do profissional deve ser o de promover a reflexão e a escuta de si diante do sofrimento. Essa ação facilita a expressão de sentimentos, edificação de sentidos e enfrentamento diante das dificuldades do próprio sujeito. Infelizmente, ainda existem alguns profissionais da área da saúde que acreditam que a identificação de gênero da pessoa transexual é algo patológico e que, por isso, é preferível o tratamento psiquiátrico e não a cirurgia (outros acreditam que a própria intervenção cirúrgica seria a "cura"), o que contribui com a ideia da transexualidade como doença psiquiátrica, anulando-se os aspectos subjetivos.

O segundo ponto a ser abordado refere-se ao olhar do outro que legitima sua existência. Jujuba não afirmou, preferiu abster-se, que Biscoito poderia ser uma princesa, diferente de Jake que o reconheceu como uma soberana do principado. Lindinha afirma que Donny precisa passar por transformações no corpo para ser um unicórnio, enquanto "A Aliança" evidencia que o personagem nunca foi um pônei. Um olhar que não reconhece e é silenciador e, em contrapartida, há o outro que legitima. A identidade é um resultado de um processo social e cultural, não sendo institucionalizada com causa e origem, mas experienciada, sempre em coprodução.

O terceiro ponto refere-se ao poder das nomeações do corpo e como se deve transformá-los para corresponder identidade, gênero e imagem corporal. A coroa de uma princesa é nomeada para ser um objeto de uso exclusivo para meninas cis. O chifre é um membro que serve como marcador da categoria unicórnio. O roubo da joia da realeza e o seu uso é que legitimará o "ser princesa" para Biscoito. Por sua vez, Donny tinha um chifre falso, mas somente o processo transmogrificador é que tornará aceitável o seu corpo.

Percebe-se que a idealização e modelização dos corpos, pautados no discurso médico, atende aos binarismos macho e fêmea, pônei e unicórnio, como formas únicas de gênero (Fausto-Sterling, 2002; Laqueur, 2001). O corpo considerado "doente" ou "anormal" deve ser "curado" ou "ajustado" para ser legítimo. Essas estratégias, como o roubo da coroa, utilização de chifre falso, processo transmogrificador, auxiliam na inserção no contexto sociocultural, porém são envoltas de sofrimento, pois atendem às normatizações, mas, por outro lado, conflitam com os desejos dessas personagens.

Observa-se que tal fator parte da ideia das naturalizações dos corpos, que devem atender aos dois modelos biológicos de homem e mulher. Caso a pessoa trans queira se transformar, a sociedade, por meio do discurso médico, vai exigir que essas alterações corporais se adaptem a esses modelos preestabelecidos (Aran & Murta, 2009; Fausto-Sterling, 2002; Santos, 2015).

Por último, destaca-se a compreensão que as crianças têm sobre os gêneros. Lindinha, Donny e Bebelício (a forma bebê de Biscoito) são personagens infantes, mas com concepções diferentes sobre identidade de gênero. A primeira acredita que um unicórnio deve ter um chifre biológico para ser reconhecido como tal, Donny e Bebelício questionam essas regras cisnormativas. A criança edifica a conceituação do que é menino, menina, suas diferenças e funções, pelo contato com a cultura, sociedade e história. Em seu dia a dia, produzem acepções e comportamentos fundamentados no que é esperado para cada "papel de gênero" designado e delineado aos meninos e às meninas (Anacleto & Maia, 2009; Silva & Oliveira, 2015).

Em síntese, observa-se que com a escuta do sofrimento identitário, o olhar do outro como legitimação, normatização e transformação corporal, a compreensão sobre os gêneros, os corpos são nomeados e educados a seguirem padrões. O corpo, as sexualidades e suas regulações são dispositivos que sustentam e mantêm valores históricos importantes para o controle (Louro, 2000; Santos, 2011).

 

Considerações finais

Personagens criadas (heroína compelida, anti-heroínas disfarçadas, princesas com coroa negada, unicórnios com chifres postiços, vilã impura e obscena, animais transformados em pessoas) evidenciam uma pluralidade de identidades, histórias e significações. As décadas de 1990, 2000 e 2010 resultam na significação (identidade e estereótipos de gênero e regras cisnormativas) em contextos culturais e sociais vislumbrados nos enredos transmitidos e sentidos por diversas gerações de crianças e adolescentes.

Os corpos transgêneros e não binários são representados nas mais diversas formas nas obras analisadas. Verônica é um espectro maligno, as vilãs do Trio Amazonas são animais transformados em humanos como moeda de troca, SheZow é um menino que se transforma em menina ao usar um anel. Os marcadores corporais, seios e voz, das Starlights são suprimidos e ressurgem, a depender da identidade adotada; Biscoito e Donny precisam de acoplamentos, coroa e chifre, respectivamente, para realizarem seus sonhos. Os corpos desses personagens proporcionam representações, nomeações, significações e sentidos plurais.

Verônica de Nasu, Trio Amazonas e as Sailor Starlights (ou Three Lights) são personagens japoneses, de autores japoneses, dos anos 1990. As ilustrações, características, diálogos remetem à cultura oriental da época. Em razão do conservadorismo da cultura japonesa, foi observado que essas personagens foram criadas, alocadas na história, mas não há um questionamento acerca de suas transgeneridades, a menos que se apresente como forma de piada perpetrada por um oponente. As personagens trans existem, mas suas transexualidades (Verônica e Olho de Peixe) e identidades não binárias (Olho de Tigre, Falcão e Starlights) não são o mote principal da trama.

Observou-se que as transgeneridades de SheZow e das Sailor Starlights/Three Lights foram imposições para se atender a um objetivo: lutar ou se disfarçar. Não havia autoidentificação como mulheres ou homens trans, o meio externo as obrigou, entretanto, ao ter contato com outras personagens, suas identidades foram sendo produzidas. No caso das Starlights, as mudanças nas suas personalidades e nas suas histórias de vida ocorreram, mesmo que permeadas e reforçadas pelos estereótipos de gênero. No caso de SheZow, a permanência desses estereótipos pautados no binarismo masculino/feminino foi evidenciada. Mesmo com a modificação corporal, a possibilidade de mudança é inerte e a personagem ainda mantém as normatizações.

Considera-se que as transgeneridades e mutações corporais apresentaram significação de moeda de troca ou de barganha e de constantes modificações identitárias. Os corpos animais do Trio Amazonas são transformados e nomeados em homens cis para atacarem as Sailor Moons, entretanto, são modificados e ressignificados em mulheres trans (Olho de Peixe) e pessoas não binárias (Olho de Tigre e Falcão), podendo-se relacionar às diversas transformações identitárias e corporais dos indivíduos transgêneros. O poder da nomeação, a partir da sua interação social, fez Olho de Peixe se autoidentificar como mulher.

Aspectos relacionados ao olhar do outro que legitima a identidade pode ser evidenciado nos casos de Princesa Biscoito e Donny, ou seja, nomeações normativas de objetos e compreensão das crianças acerca das pessoas transgêneros. As crianças nomeiam os corpos de meninos e meninas de acordo com as suas experiências com o meio. Lindinha acredita que se deve expressar o gênero correspondente a sua genitália (o chifre de Donny é uma alusão aos genitais), atendendo às polaridades masculino-femino/pônei-unicórnio. Bebelício e Donny apresentam outra acepção, ao questionarem essas normas e enfatizarem que o importante é suas identidades. O meio e as experiências possibilitam a essas crianças/filhotes atribuírem os diferentes sentidos.

Considera-se, ainda, o sofrimento psíquico das personagens em relação às transmutações corporais e identitárias. Biscoito, Donny, Olho de Peixe e Verônica sofreram preconceito e tiveram suas identidades de gênero negadas. Donny sujeitou-se ao processo de transmutação por influência do meio e se transformou em um monstro temporariamente. Guy, de início, não aceitava sua nova condição como SheZow. Por outro lado, Starlights e Olho de Tigre e Falcão pareciam confortáveis com suas identidades não binárias. Essas diferentes histórias evidenciam a pluralidade de experiências trans e queer e que suas formas de lidar com o corpo, gênero e sofrimento psíquico não são universais, mas contextuais, culturais e sociais.

Por último, considera-se importante o levantamento de revistas e animações infantis e infantojuvenis que identificou um número maior de personagens LGBTQIAP+ em obras orientais. O Brasil não apresentou personagens transgêneros em gibis ou desenhos animados. Apenas um representante homossexual foi encontrado na revista Turma da Mônica Jovem e um andrógino na revista Turma da Xuxa em Quadrinhos. Em quadrinhos brasileiros, o número de personagens trans significativos foi encontrado em publicações de teor adulto, o que pode indicar uma resistência na publicação e exibição de produtos com personagens transgêneros. As razões podem residir no preconceito ou no pequeno retorno de público, entretanto, há uma relevância política na criação de personagens do universo trans nos quadrinhos e animações infantis e juvenis, pois as crianças e os adolescentes, ao terem contato com essas figuras ficcionais, poderão compreender as diversidades identitárias e de gênero. Alia-se a isso o fato de proporcionar maior visibilidade às pessoas transexuais, ao se reconheceram ou serem representadas em publicações de maior alcance de público.

A revisão da literatura permite concluir que a produção científica acerca da temática trans em quadrinhos e desenhos animados é insuficiente. Grande parte dos estudos sobre transgêneros são voltados à área de saúde ou ao reconhecimento de sua categoria em movimentos sociais LGBTQIAP+. Os estudos que utilizam personagens de obras infantojuvenis (quadrinhos, animações e livros) são das áreas da Comunicação Social e Linguagem, principalmente com aporte teórico da Semiótica. Entretanto, não foram encontradas análises de personagens transgêneros em publicações para crianças e adolescentes. Espera-se contribuir com o debate teórico, ético e político, por meio de personagens trans em obras infantojuvenis.

 

Referências

Alt, J. C. M. (2015). Semiótica e quadrinhos: modulações do sentido nas HQs canônicas e abstratas. Tese de doutorado em Estudos da Linguagem, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil.         [ Links ]

Anacleto, A. A. A., & Maia, A. C. B. (2009). Gênero na infância: análise do filme "La vie in rose" como instrumento pedagógico em educação sexual. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, 4(3), 01-11.         [ Links ]

Aran, M., & Murta, D. (2009). Do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade: uma reflexão sobre gênero, tecnologia e saúde. Physis [online], 19(1), 15-41.         [ Links ]

Bandeira, A. M. (2019). A teoria queer em uma perspectiva brasileira: escritos para tempos de incertezas. Revista Arqueologia Pública, 13(1), 1-20.         [ Links ]

Barbosa, B. C. (2010). Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e transexual. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.         [ Links ]

Bento, B. (2006) .A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

Bento, B. (2009). A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na transexualidade. Revista Bagoas, 4, 95-112.         [ Links ]

Bernardes, M., & Scoz, M. (2017). Sentido nos quadrinhos: análise semiótica de uma tira da Mafalda. In G. s. Rosa & C. Portugal (Org.). Anais do 8º CIDI e 8º CONGIC (pp. 250-257). Natal, SBDI.         [ Links ]

Bonassi, B. C, Amaral, M. S., Toneli, M. J. F., & Queiroz, M. A. (2015). Vulnerabilidades mapeadas, violências localizadas: experiências de pessoas travestis e transexuais no Brasil. Quaderns Psicologia, 17(3), 83-98.         [ Links ]

Bruns, M. A. de T., & Pinto, M. J. C. (2003). Vivência transexual: o corpo desvela seu drama. Campinas: Átomo.         [ Links ]

Butler, J. (2010). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Carvalho, M. F. de L. (2011). Que mulher é essa?: identidade, política e saúde no movimento de travestis e transexuais. Dissertação de mestrado, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.         [ Links ]

Ceccarelli, P. R. (2008) Transexualismo. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Colling, L. (2013). A igualdade não faz o meu gênero: em defesa das políticas das diferenças para o respeito à diversidade sexual e de gênero no Brasil. Contemporânea, 2(3), 405-427.         [ Links ]

De Jesus, J. G., & Alves, H. (2012). Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais. Revista Cronos, 11(2), 1-12.         [ Links ]

Fausto-sterling, A. (2002). Dualismos em duelo. Cadernos Pagu, 17(18), 9-79.         [ Links ]

Gagnon, J. (2006). A interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond.         [ Links ]

Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo. Dissertação de mestrado em Psicologia (não publicada), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil.         [ Links ]

Haraway, D. (2009). Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX. In D. Haraway, H. Kunzru & T. Tadeu (Org.). Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano (pp. 33-118). Minas Gerais: Editora Autêntica.         [ Links ]

Laqueur, T. (2001). Inventando o Sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará         [ Links ].

Leite, Jr., J. (2011). "Nossos corpos também mudam": sexo, gênero e a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso médico científico. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Lomando, E., & Nardi, H. C. (2013). Conjugalidades múltiplas nas travestilidades e transexualidades: uma revisão a partir da abordagem sistêmica e da Psicologia Social. Saúde Debate, 37(98), 493-503.         [ Links ]

Louro, G. L. (2000). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Louro, G. L. (2008). Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Luyten, S. B. (2000). Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra.         [ Links ]

Meireles, S. M. (2015). Quadrinhos e linguística: onomatopeias e interjeições e suas funções na narrativa em quadrinhos. In W. Vergueiro & R. E. (Org.). A linguagem dos quadrinhos: estudos de estética, Linguística e Semiótica (pp. 49-77). São Paulo: Criativo.         [ Links ]

Nicholson, L. (2000). Interpretando o gênero. Revista Estudos Feministas, 18(2), 9-41.         [ Links ]

Oliveira, F. N. A. (2014). Queer em quadrinhos: representações brasileiras contemporâneas. Dissertação de mestrado, Programa de mestrado em Letras, Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, Minas Gerais, Brasil.         [ Links ]

Piccardi, T. (2016). Efeitos da narrativa na vivência transexual: a história de Susan Grey. Via Atlântica, 29, 173-187.         [ Links ]

Sampaio, L. L. P., & Coelho, M. T. Á. D. (2012). Transexualidade: aspectos psicológicos e novas demandas ao setor saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 16(42), 637-649.         [ Links ]

Santos, M. F. L. (2011). A invenção do dispositivo da transexualidade: produção de "verdades" e experiências trans. Em Pauta, 9(28), 117-130.         [ Links ]

Silva, A. L., & Oliveira, A. A. S. (2013). Transexualidade/travestilidade na Literatura Brasileira: sentidos e significados. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 65(2), 274-287.         [ Links ]

Silva, A. L., & Oliveira, A. A. S. (2015). Transexualização em narrativas de histórias de vida sobre a infância. Estudos e pesquisa em Psicologia, 15(2), 484-508.         [ Links ]

Silva, T. C. R., & Gomes, A. C. F. (2009). A importância dos desenhos animados como representação ideológica: formação da identidade infantil. Iniciação Científica CESUMAR, 11(1), 37-43.         [ Links ]

Torres, M. A., & Prado, M. A. M. (2014). Professoras transexuais e travestis no contexto escolar: entre estabelecidos e outsiders. Educação & Realidade, 39(1), 201-220.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 22/1/2019
Aceito em: 6/1/2020

Creative Commons License