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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.1 São João del-Rei ene./mar. 2020

 

O consumidor de crack: a influência das crenças familiares no tratamento

 

Crack consumer: family beliefs influence in treatment

 

Consumo de crack: la influencia de creencias de la familia en el tratamiento

 

 

Paulo de Tarso MeloI; Suely de Melo SantanaII

IPsicólogo graduado em 2008 pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Mestre em Psicologia Clínica pela Unicap, Doutor em Psicologia Clínica pela Unicap
IIUniversidade Católica de Pernambuco (Unicap)

 

 


RESUMO

A literatura considera que existe um conjunto de valores, crenças e práticas familiares que constituem o referencial cultural da família e que interfere na participação dos familiares no tratamento dos consumidores de crack e outras drogas. O objetivo deste estudo foi investigar as crenças familiares sobre consumo de crack e sua relação com a participação familiar no tratamento de seus membros. Participaram desta pesquisa qualitativa 10 familiares de consumidores de crack que estavam em tratamento em uma Comunidade Terapêutica (CT) e um representante da instituição. Foram aplicados os seguintes instrumentos: uma escala para avaliar o nível socioeconômico; uma versão resumida do questionário Cebrid/Samsha, para avaliar a percepção de risco sobre o consumo de substâncias psicoativas; e dois roteiros de entrevista semiestruturada - versões família e representante da CT. Na avaliação de risco, os familiares consideraram que o consumo de crack, desde a primeira vez na vida, já apresentava um risco grave, em comparação com as outras substâncias. Foram investigadas crenças relacionadas ao consumo do crack, principalmente com relação à influência dos amigos, dependência química, influência do consumidor com o tráfico, entre outras. Os familiares acreditam na importância da participação familiar e consideram que contribuem nesse sentido. Os resultados puderam fornecer subsídios para uma melhor compreensão das crenças familiares sobre o consumo de crack, contribuindo para fomentar uma intervenção que favoreça a participação familiar no tratamento.

Palavras-chave: Drogas. Tratamento. Família.


ABSTRACT

According to the literature, there is a set of values, beliefs, and family practices that form a family's cultural frame of reference and may even interfere in the participation of the family in the treatment of crack users - and users of other types of substances. The goal study is to explore family beliefs regarding the use of crack and its correlation with the family's involvement in the treatment of its members. Ten family members of crack users, all of whom were receiving treatment at one of the recovery centers known as Therapeutic Communities, and a representative of this institution took part in the study. The following tools were used: a scale to evaluate the socioeconomic status, a shortened version of the questionnaire developed by Cebrid (the "Brazilian Center of Information on Psychotropic Drugs") and Samsha (the Substance Abuse and Mental Health Services Administration), in order to evaluate the perception of the risks involved in the use of psychoactive substances, and two semi-structured interview scripts. Two versions of the script were elaborated: one for the family and another for the Therapeutic Community representative. The family members stated that using crack is dangerous from the very beginning, particularly when compared to using other substances. Beliefs related to the use of the drug were analyzed, especially concerning the influence of friends, substance abuse, the relationship between the drug user and the traffic, and other factors. The family members believe in the importance of their participation. The results provided a better understanding of family beliefs regarding the use of crack, which helped to create an intervention that may emphasize more the family's participation in the treatment.

Keywords: Drugs. Treatment. Family.


RESUMEN

La literatura tiene en cuenta que hay un conjunto de valores, creencias y prácticas familiares que constituyen el referencial cultural de la familia y que interfieren en su participación en el tratamiento de los consumidores del crack y de otras drogas. Esta investigación tuvo el objetivo de buscar las creencias familiares acerca del consumo del crack y su relación con la participación de la familia en tratamiento de sus miembros. Participaron de esta investigación cualitativa 10 familiares de consumidores del crack que recibían tratamiento en uno de los centros de recuperación conocidos como Comunidades Terapéuticas y un representante de la institución. Las siguientes herramientas fueron utilizadas: una escala para que se evaluara el nivel socioeconómico, una versión resumida del cuestionario desarrollado por Cebrid (el "Centro Brasileño de Informaciones sobre Drogas Psicotrópicas") y Samsha (la "Administración de Salud Mental y de Abuso de Sustancias", en los EE.UU.), para que se evaluara la percepción de riesgo acerca del consumo de sustancias psicoactivas, y dos guiones de entrevistas semiestructuradas - en las versiones "familia" y "representante de la Comunidad Terapéutica". En la evaluación de riesgos, los miembros de la familia afirmaron que el consumo del crack, desde el principio, representa un grave riesgo en comparación con otras sustancias. Se investigaron las creencias relacionadas al consumo del crack, sobre todo con respecto a la influencia de los amigos, a la dependencia química, a la relación del consumidor con el tráfico y otros factores. La familia cree en la importancia de su participación y en su contribución. Los resultados colaboraron con una mejor comprensión de las creencias de la familia acerca del consumo del crack, lo que ayudó a desarrollar un tipo de intervención que favoreciera la participación de la familia en el tratamiento.

Palabras clave: Drogas. Tratamiento. Familia.


 

 

Introdução

A literatura atual aponta que o Brasil é um país com alto padrão de consumo de drogas, proporcionalmente, sendo o que mais consome crack no mundo (Lenad, 2012), indicando a necessidade de mais pesquisas nessa área. Esse novo panorama vem a alertar as autoridades para a urgente necessidade de intervenção pública nessa direção.

Estudos científicos (Bonkay, 2015, Bastos & Bertoni, 2014) mostram que é comum a experimentação de drogas pelos jovens em algum momento de sua vida e, nesse sentido, o papel da família e sua influência na prevenção e no tratamento do transtorno por uso de substâncias psicoativas pode ser entendido como primordial. Bessa (2012), por exemplo, reflete que, em muitos casos, essa experimentação juvenil passa a ser problemática quando esse consumo se torna habitual e excessivo, favorecendo os conflitos familiares. Carvalho e Santana (2018), em seus estudos, indicam que parece haver uma crença na destruição familiar como consequência do consumo de crack e outras drogas e, talvez por isso, muitas pessoas que consomem esse tipo de droga encontram-se com vínculos fragilizados ou rompidos.

Schenker e Minayo (2004) descrevem que o uso de drogas pode tornar-se uma forma de lidar com dificuldades inerentes de cada fase da vida, sendo esse um fenômeno complexo, que remete, necessariamente, à influência do contexto sociocultural e familiar.

Sendo a família, geralmente, o primeiro núcleo social do indivíduo, quando esse suporte não se dá de forma efetiva, pode haver uma substituição nessa condição formadora por um relacionar-se com a substância de abuso, sendo necessário buscar relações mais estruturantes em grupos mais próximos (Bandura, 2006). A percepção do suporte familiar como possível mediador de comportamentos encontra respaldo no conceito de modelação social proposto na Teoria Social Cognitiva (Bandura, 1986), no qual este estudo também se baliza. De acordo com os construtos bandurianos, a aprendizagem ocorre pela aquisição do "princípio condutor" que será utilizado para produzir novas versões do comportamento observado, adaptando-o e inovando-o. Na aprendizagem por observação que ocorre por meio das interações familiares, a eficácia familiar percebida tem um papel fundamental no modo como o indivíduo expressará esses novos comportamentos em contextos sociais mais amplos, assim como na forma de ele influenciar proativamente o seu contexto familiar.

Esse enfoque teórico surge provocando muitas reflexões, pois transcende o pensamento behaviorista clássico (Skinner, 1974). Bandura (2005) traz a reflexão de que a aprendizagem pode ser efetiva também por meio da observação, ampliando esses processos para além da própria experiência.

Bandura (1986) defende que grande parte do comportamento humano é aprendido por meio da modelação social e que as pessoas são seres proativos, autorregulados, autorreflexivos e autorreativos. São capazes de intencionalmente planejar suas ações, antecipando o futuro, representando-o cognitivamente e ajustando-o às suas necessidades e desejos. São agentes intencionais de sua própria história.

Estudos (Caprara & Barbaranelli, 2011) especificam que as diferentes formas da ação humana são influenciadas pelo sistema familiar e referem que a eficácia desse sistema é um mecanismo central por meio do qual todos os aspectos do desenvolvimento pessoal e de bem-estar durante o período formativo da vida podem ser acometidos, por isso a importância de se estudar as crenças familiares nesses aspectos.

Pesquisas sobre a ação humana tem-se centrado, quase exclusivamente, na agência humana individual, que, conforme Bandura (2001, p. 6), "se caracteriza pela consciência e intencionalidade com a qual o homem funciona em seu contexto e circunstância de vida". No entanto, os membros da família também influenciam e são influenciados, permitindo que a Teoria Social Cognitiva (TSC) amplie o conceito de agência humana do individual para o coletivo (Bandura, 2005).

No exercício da eficácia coletiva, as pessoas reúnem seus conhecimentos, habilidades e recursos, proporcionam apoio mútuo, formam alianças e trabalham juntas para conquistar coletivamente o que não conseguem alcançar individualmente. Assim, a família funciona como um sistema social com relações de interdependência, em vez de simplesmente como um conjunto de membros que operam de forma solitária (Bandura, 2005).

Alguns trabalhos (Santana, 2009; Bandura, Caprara, Barbarelli, Gerbino & Pastorelli, 2003) apontam a importância de uma elevada autoeficácia familiar, no intuito de favorecer um desenvolvimento saudável e auxiliar seus membros mais jovens no enfrentamento das situações de risco, tornando-os mais aptos a resistirem às pressões sociais para consumirem drogas ou adotarem outras condutas de risco.

Apesar de estudos (Bonkay, 2015; Bastos & Bertoni, 2014) apresentarem a importância do suporte familiar na prevenção e no apoio ao tratamento de seus membros, torna-se válido refletir sobre o momento de fragilidade que a "instituição família" se encontra nos últimos anos. Formiga (2011) aponta para uma suposta "crise estrutural e funcional", principalmente no que diz respeito ao papel social e à influência que ela tem em relação à dinâmica do indivíduo e sociedade. Outro fator diz respeito à dificuldade de conceituar "família", dada a multiplicidade de configurações que se observa na contemporaneidade (Carvalho & Santana, 2018).

A busca de um conceito de família traz consigo intensos desafios, tendo em vista a influência de vários aspectos, entre eles os socioculturais. Melo (2015) refere que levar em consideração apenas fatores como a consanguinidade, ou mesmo a moradia (residência comum), já não contemplam a gama de aspectos que podem incidir em um conceito de família contemporâneo. Nesse sentido, há de se concordar que "entender a família como um grupo de pessoas ligadas por laços afetivos e psicológicos tem se mostrado como um conceito importante" (Melo, 2013, p. 206), principalmente quando se refere às pessoas que consomem drogas.

Outro fato relevante diz respeito à observação de que as crenças e os padrões culturais contemporâneos podem estimular o uso de substâncias psicoativas, principalmente o álcool e o tabaco. Nesse sentido, o ambiente familiar seria o lócus privilegiado para compartilhar crenças e valores que estimulam práticas mais saudáveis e adaptativas (Roehrs, Lenardt & Maftum, 2008).

Partindo dessas considerações apresentadas na literatura, o objetivo da presente investigação foi conhecer as crenças dos familiares e a sua influência na participação durante o tratamento dos consumidores de crack. Buscou-se compreender seus achados à luz das contribuições da Teoria Social Cognitiva (TSC) e outros autores contemporâneos.

 

Método

Participantes

Neste estudo, foram investigados 10 familiares de consumidores de crack que estavam em processo de tratamento na Comunidade Terapêutica (CT), bem como um representante da instituição, localizada na região metropolitana do Recife. Essa CT atendia o público masculino com problemas relativos ao consumo de drogas por intermédio de convênios com o Sistema Único de Saúde (SUS) e planos de saúde em geral.

Optou-se por uma análise qualitativa da pesquisa, pois, segundo Godoy (1995, p. 63), "quando o que se busca é o entendimento do fenômeno como um todo, na sua complexidade, é possível que uma análise qualitativa seja a mais indicada". Assim, a análise qualitativa se caracteriza por ser descritiva e ter o ambiente natural como fonte direta de dados. O pesquisador é instrumento fundamental e o significado que os participantes dão às coisas e à sua vida torna-se preocupação essencial (Godoy, 1995).

A seleção dos familiares participantes foi referenciada pelo profissional representante da CT tendo como base os seguintes critérios: 1. Ser familiar do consumidor de crack em tratamento na CT. 2. Concordar em participar voluntariamente da pesquisa. O projeto foi aprovado pelo Comitê Científico e de Ética da Universidade Católica de Pernambuco de número CAAE: 0023.0.096.00011.

Instrumentos

Para a coleta de dados socioeconômicos e demográficos, foi utilizada a Escala Abipeme. O critério Abipeme foi desenvolvido para dividir a população em categorias segundo padrões ou potenciais de consumo. A classificação socioeconômica da população é apresentada por meio de cinco classes denominadas A, B, C, D e E, correspondendo, respectivamente, a uma pontuação determinada.

Para avaliar a percepção de risco que os familiares atribuem ao consumo de algumas substâncias, de acordo com a frequência e quantidade do consumo, foi utilizada a versão resumida e adaptada do questionário do Cebrid, baseado nos levantamentos do Sahmsa (Substance Abuse and Mental Health Services Administration) do U. S. Department of Health and Human Services Public Health Services (Carlini, Galduróz, Noto & Nappo, 2005). Esse questionário apresenta quatro possibilidades de respostas sobre os riscos para a saúde (sem risco, médio, moderado ou grave) que as pessoas se submetem quando fazem uso de algumas drogas. Assim, buscou-se entender qual a percepção de risco que esses familiares tinham relativos ao consumo de tabaco, álcool, maconha, cocaína, crack e benzodiazepínicos, levando em consideração a frequência e intensidade desse consumo.

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com o intuito de colher mais informações acerca da relação dos familiares e seus membros, bem como levanta dados sobre o início do consumo, quantidade de internamentos/tratamentos, entre outros assuntos pertinentes. Também foi realizada uma entrevista semiestruturada com o representante da CT, para conhecer, de uma perspectiva institucional, o que se entende por participação familiar no tratamento.

Procedimento

Os resultados obtidos nas entrevistas semiestruturadas foram analisados qualitativamente por meio da análise de conteúdo temática desenvolvida por Bardin (1979), balizada pelos princípios de Minayo (1992). Para preservar o anonimato, foram atribuídos nomes fictícios aos participantes.

Esse método é definido como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que tem o objetivo de descobrir relações existentes entre o exterior e o próprio discurso (Bardin, 1979). A análise de conteúdo temática consiste, segundo Minayo (2004, p. 209), "em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado". Ela se constitui nas fases da pré-análise, organização do material, análise e interpretação dos dados obtidos.

Aplicada essa técnica, cada tema foi fundamentado e discutido individualmente. As respostas obtidas foram classificadas em temas específicos e, a posteriori, foram identificados núcleos de sentido, nos quais as respostas dos familiares foram alocadas de modo não exclusivo.

 

Resultados e discussão

Ao considerar que o quantitativo de vezes que o indivíduo procurou tratamento pode influenciar nas crenças de cada familiar, verificou-se que cinco indivíduos estavam se tratando pela primeira vez e os outros cinco já haviam buscado outras formas de tratamento. Outra questão importante foi o relato unânime de que todos os parentes dos familiares que estavam em tratamento iniciaram o uso de substâncias psicoativas (SPA) ainda na adolescência.

Os familiares que participaram da pesquisa apresentaram o seguinte perfil sociodemográfico: entre os 10 participantes, oito eram do sexo feminino (sendo cinco mães, uma tia e duas irmãs) e dois do sexo masculino (um pai e um padrinho). As idades desses familiares variaram de 24 a 62 anos. Duas pessoas tinham o ensino médio completo, seis o ensino fundamental (três completo e três incompleto) e duas não sabiam ler nem escrever. Seis pessoas eram casadas e/ou estavam em união estável, uma era viúva e três eram separadas. Com relação à religião, cinco se disseram católicas, três evangélicas e duas relataram não ter nenhuma religião.

Em termos da classificação socioeconômica, foi observado que seis participantes estavam classificados na classe "E", dois na classe "C" e dois na classe "B".

Apesar dos dados apresentarem uma incidência de pessoas cuja situação socioeconômica é precária, pode-se observar que classes intermediárias e até de condições socioeconômicas mais favorecidas também fizeram parte da amostra. Tal afirmação corrobora os estudos de Perrenoud e Ribeiro (2012), no sentido de que o consumo de drogas perpassa por várias classes e instâncias sociais, indo do mais pobre ao mais rico. Entretanto, o alastramento do crack foi observado, principalmente, em ambientes em que era constatada maior exclusão social.

Quanto ao risco associado ao consumo de drogas, evidenciou-se que o "risco grave" foi atrelado a qualquer consumo de crack, mesmo o uso uma ou duas vezes na vida. Esse fato demonstra como esses familiares entendem o crack como uma droga devastadora. Em contraponto, as únicas drogas que apresentaram respostas de que não ofereciam risco à saúde, a depender da baixa frequência e intensidade do consumo, foram o álcool, a maconha e os benzodiazepínicos. A cocaína apresentou respostas associadas aos riscos de moderado a grave. Um dado importante a ser relatado é que a análise de risco à saúde do tabaco foi considerada grave (sete respostas) e moderado (três respostas), trazendo a reflexão que a crença associada a esse tipo de droga vai de encontro ao que foi relatado nos estudos de Gigliotti, Presman e Aguilera (2012), que apesar de ser uma droga associada a mais de 10 mil mortes por dia, o tabaco ainda hoje é considerado por muitos, inclusive por profissionais da saúde, como uma droga leve quando comparada a outras, por exemplo, o crack.

No que se refere à análise das 10 entrevistas semiestruturadas aplicadas aos familiares, foi possível identificar vários núcleos de sentido (NS) relacionados às crenças, a partir dos temas principais, como apresentados no Quadro 1. Vale ressaltar que esse tipo de análise permite a geração de vários núcleos de sentido (NS) a partir de uma única resposta, sendo alguns discorridos mais a fundo.

Ao analisar o tema sobre motivação para o consumo, a crença mais revelada foi sobre a influência dos amigos (NS 1.1). Essa atribuição foi feita por oito familiares, sendo possível exemplificar por meio dos seguintes recortes:

Eu acredito que vai muito pela influência de amigos [...] o meu filho nunca pensou nisso. Teve um tempo que foi um evangélico junto comigo. Era uma benção [...] e eu acredito que a influência ajuda muito. (Maria, mãe)

[...] as companhias. As pessoas que ele estava andando. Não ia mais para a escola [...] as pessoas que ele estava andando usavam drogas [...] ele não quis escutar a gente. (Rosa, mãe)

A crença observada, que vincula consumo de drogas e influência dos pares, principalmente na adolescência, encontra respaldo em diversos achados da literatura (Caprara & Barbaranelli, 2011; Roehrs, et al., 2008; Schenker & Minayo, 2004). Na perspectiva da Teoria Social Cognitiva (Bandura, 1986), que contempla em seu arcabouço teórico o importante papel exercido pela modelação social, os relatos sugerem que a aprendizagem de condutas desviantes ocorre por meio da observação e valorização das condutas do grupo de amigos.

Nesse sentido, os comentários de Caprara e Barbaranelli (2011), apoiados na Teoria Social Cognitiva, apontam que, na medida em que os indivíduos se sentem acolhidos no espaço familiar, aumentam a probabilidade de receberem uma orientação mais esclarecedora e pertinente, isso contribui para torná-lo mais apto a gerir as pressões dos colegas, reduzindo a probabilidade de se inserir em atividades transgressivas. Entretanto, quando isso não acontece, as pessoas podem ficar mais vulneráveis à influência dos pares. Bandura et al. (2003) refletem que a elevada autoeficácia familiar favorece o

desenvolvimento saudável e auxilia seus membros no enfrentamento das situações de risco.

Santana (2009) assinala a importância de se considerar a construção adquirida na infância e na adolescência para o desenvolvimento de hábitos mais saudáveis que os jovens virão a apresentar em sua vida futura. Dessa forma, as considerações bandurianas (Bandura, 2005) versam que o envolvimento em atividades de risco no período da adolescência não necessariamente irão ser desencadeadas, mas, caso ocorram, poderão contribuir para o desenvolvimento de um consumo problemático de drogas ou mesmo um quadro de dependência, tornando o papel da família essencial também como catalisador dos fatores capacitantes.

A crença de que a "responsabilidade" pelo início do consumo passa pelo contexto das amizades sugere a análise do que pode ser realizado preventivamente pelo núcleo familiar, no intuito de minimizar essa influência dos pares. O discurso de suposta "impotência" diante do fato, leva à reflexão de quão vulneráveis se encontram essas famílias no suporte às necessidades de seus membros. Esse fato corrobora alguns estudos sobre famílias codependentes, que apontam a igual necessidade de apoio ao núcleo familiar, assim como para seus membros que consomem drogas (Fernandes & Soares, 2018). Esse fato pode estar atrelado ao comprometimento na obtenção de ferramentas necessárias para exercer seu papel de primeiro alicerce protetivo.

Outra questão apontada ao início do uso de drogas teve relação com o consumo precoce, principalmente de drogas lícitas (NS 1.3), fato esse muito presente na fala dos familiares: "É através de cigarro e bebida, né? [...] eu acho que sim [...] através de cigarro ou bebida [...] porque bebe, depois vem fumar droga, aí pronto, aí fica viciado, né? [...] eu acho que sim" (Violeta, mãe).

As respostas retratam uma crença já evidenciada na literatura, que refere as drogas lícitas (tabaco e álcool) como "porta de entrada" para drogas ilícitas (Bastos & Bertolini, 2014, Gigliotti et al, 2012). Esses estudos apontam que quanto mais cedo se dá o início do consumo de substâncias psicoativas, mais vulnerável fica o indivíduo a "escalar" para uma relação com as drogas que tragam maior prejuízo. Esse entendimento faz refletir como as políticas públicas ainda negligenciam as medidas preventivas, principalmente as voltadas ao consumo do álcool.

Com relação ao cigarro (tabaco), a análise de risco já comentada anteriormente remete a uma possível mudança de crença referente ao consumo dessa substância, considerando seu consumo como um risco de moderado a grave. Talvez, em decorrência da maciça atuação governamental no sentido de restringir as propagandas e os pontos de venda, bem como o incremento de ações de mídia que focam nos malefícios possíveis causados pelo consumo dessa droga.

A mídia, já referida em estudos (Azzi, 2010), também é vista como fomentadora de modelos e mantenedora de estilos, favorecendo o estabelecimento de crenças. Bandura (2006) ressalta o poder que a modelação simbólica exerce tanto no desencadear como na manutenção de padrões de condutas desviantes ou saudáveis (proativas), a depender de como serão utilizadas.

Outro núcleo de sentido presente na fala dos familiares diz respeito à percepção do consumo do crack poder provocar a dependência (NS 2.4). "A dependência, não é? Porque dizem que a primeira vez não vicia. Ele disse que não viciava, que fumava na hora que ele queria. E depois ficou incontrolável" (Bárbara, tia).

Apesar de não se poder atrelar todo consumo de crack a um quadro de dependência, muitos estudos (Laranjeira, 2012; Soussumi, 2012; Ribeiro, Nappo & Sanchez, 2012) versam sobre o poder dependógeno desse tipo de droga. Perrenoud e Ribeiro (2012) referem que o maior problema do consumo do crack está na gravidade das consequências atribuídas à droga, uma vez que expõe os usuários ao menos a dois fatores de risco: a dependência química e a vulnerabilidade social.

Um fato importante que é observado na resposta é a concepção que os familiares têm sobre o problema. O que era para a sociedade em geral, algum tempo atrás, considerado "safadeza" ou falta de vontade de largar as drogas, na crença dos familiares pôde-se interpretar a questão do consumo "incontrolável" [sic] como um problema de saúde.

A despeito de que o consumo de crack pode ser entendido como um fenômeno complexo e multifatorial, que também pode ter influências socioculturais, a percepção evidenciada nas respostas dos familiares vai ao encontro de concepções ligadas ao âmbito da saúde, em que esse consumo "compulsivo" pode estar ligado à dependência química. Laranjeira (2012, p. 23) conceitua a dependência química como "uma doença crônica e recidivante, na qual o uso continuado de substâncias psicoativas provoca mudanças na estrutura e no funcionamento do cérebro". Segundo o autor, essas neuroadaptações cerebrais levam o indivíduo a perder sua capacidade de discernimento, ou seja, ele não consegue mais escolher se quer ou não usar a droga, de forma a pôr o consumo como única fonte de prazer.

Outra crença observada que é de suma importância, principalmente quando se traz a reflexão sob a óptica dos constructos bandurianos, é a crença de desvalorização do indivíduo (NS 3.3) representada na seguinte fala: "Uma pessoa que usa crack, aliás, qualquer tipo de droga, fica uma pessoa sem valor [...] mas querendo ou não é um ser humano [...] mas para todo mundo, a pessoa que usa droga é um nada. É um Zé ninguém" (Maria, mãe).

Bandura (1986) refere que os mecanismos de desengajamento moral não são exclusivos dos indivíduos, pois a sociedade também desenvolve essa postura com o intuito de justificar suas ações excludentes. A exclusão social que acomete os usuários de crack, até mesmo antes de seu engajamento no consumo dessa substância, pode ganhar entendimento nessa teoria, que aponta a "desumanização" como um dos mecanismos utilizados quando se retiram das pessoas suas "qualidades humanas".

O mecanismo de desumanização apontado pelo autor pode retratar como, não só os familiares, mas a sociedade em geral, "justifica" seu afastamento desses indivíduos consumidores de drogas. Ribeiro et al. (2012) referem que o perfil mais recorrente entre os consumidores de crack corresponde ao de indivíduos do sexo masculino, jovens e adultos jovens, com baixa escolaridade, desempregados, provenientes de famílias desestruturadas e de baixa renda. Essa camada social, que é entendida como "sem valor" e muitas vezes tratada como "invisível", é levada, devido ao uso de crack, ainda mais para a margem da sociedade, sendo atrelada ao consumidor a identidade de um "noiado", ou mesmo de um "marginal", pela aproximação com condutas ilícitas e com o tráfico.

A reflexão sobre a aproximação estreita entre o consumo de crack e o tráfico de drogas (Diehl, Pillom, Santos, Rassool & Laranjeiras, 2016; Sapori & Sena, 2012; Soussumi, 2012) aponta para outras crenças sobre o tema "Relação droga - indivíduo". As respostas dos familiares foram divididas em dois núcleos de sentido (NS): traficar difere de consumir (NS 4.1) e consumir sinônimo de traficar (NS 4.2). Esse tema pode ser exemplificado de acordo com as seguintes respostas:

São totalmente diferentes. O traficante faz pelo dinheiro e o usuário faz pelo prazer momentâneo [...] o cara que é traficante faz pra ganhar o dinheiro dele e ferre-se quem está usando. (Francisco, padrinho)

Nenhuma. [...] Porque, tem não. Quem usa crack um dia vai traficar do mesmo jeito, vai ficar sem dinheiro, vai roubar, e quando não tem jeito de roubar ele vai o quê? Ele vai vender pra ter dinheiro pra consumir. (Suelen, irmã)

Estudos (Diehl et al., 2016; Soussumi, 2012) refletem sobre o envolvimento de consumidores de crack com o tráfico de drogas, apontando que, principalmente nas comunidades da periferia, traficar é a forma mais fácil de ganhar dinheiro, envolvendo até crianças. Muitas vezes os traficantes não são somente aqueles que podem comprar as coisas ou ostentar riquezas, mas também são vistos como "gente poderosa" que desperta admiração e respeito. São temidos e representam autoridade no grupo, sendo figuras significativas, no que se refere à modelação social (Bandura, 1986), embora essa autoridade não seja consenso em toda a comunidade.

Alves, Ribeiro e Castro (2011) também comentam que o crack trouxe uma profunda modificação à economia doméstica do tráfico, e um importante paradigma é a separação entre o vendedor e o consumidor. Segundo o autor, quando se trata do crack, essa separação fica cada vez mais difícil. Os consumidores, para ter mais contato com a droga e com os recursos que podem ser gerados por ela, muitas vezes também acabam assumindo papéis na distribuição da droga. E, por sua vez, muitos traficantes se tornaram dependentes. Desse modo, o consumo da droga pode se sobrepor ao negócio, fazendo o indivíduo deixar de "cuidar" da mercadoria do traficante, colocando-o em situação de risco (Diehl et al., 2016; Sapori & Sena, 2012).

Refletindo sobre esses aspectos à luz dos preceitos bandurianos, pode-se resgatar a importância do processo de autorregulação e a concepção de desengajamento moral (Bandura, 1986). As considerações acerca do mecanismo de autorregulação apontam para a importância de três subfunções psicológicas básicas que envolvem a auto-observação, os processos pessoais e sociais de julgamento, assim como a autorreação. Falhas nesse mecanismo, conforme Bandura, podem provocar efeitos psicossociais, tais como abuso de substâncias, depressão, transtornos alimentares e condutas transgressoras.

Por sua vez, ao considerar os processos de julgamentos sociais e pessoais, Bandura (2006) salienta que os indivíduos recorrem a mecanismos psicológicos de desengajamento moral para legitimar algumas condutas que tendem a gerar autossanções, em alguns contextos sociais. No caso do abuso de substância, o efeito da droga no organismo atuaria de modo a não ativar o mecanismo cognitivo que permite ao indivíduo processar um julgamento moral em relação a suas condutas ilícitas. Isto é, os indivíduos, sob o efeito da substância ou submetidos à abstinência dela, poderiam ser acometidos de um comprometimento transitório em sua capacidade para julgar as consequências de seus próprios atos. Contudo, é importante esclarecer que, partindo dessa perspectiva, a pessoa que consome drogas não está desprovida de valores morais, mas temporariamente comprometida em sua habilidade cognitiva para priorizá-los.

Já o que pode ser visto nas falas dos familiares, principalmente dos que apontam que existem diferenças entre o traficante e o consumidor, é que não fica claro que tipo de traficante está em questão. Parece haver uma diferenciação entre o "grande traficante", que só cuida dos negócios e não aparece no dia a dia das vendas, e o "pequeno traficante", aquele que trafica para manter o vício. Levando em consideração que o traficante é aquele que comercializa a droga, nesse caso, utiliza da mercancia (Gomes & Donati, 2009), seja em pequenas ou grandes quantidades, a crença desses familiares pode apontar para uma relação de sobreposição de papéis entre o consumir e o traficar crack.

Todavia, se na crença dos familiares o consumidor também assume uma postura de traficar, tal fato pode interferir no desejo desse familiar para dar suporte ao processo de recuperação do adicto, assumindo uma postura de distanciamento, levando em consideração o risco a que é submetido nessa relação. Sendo assim, distanciar-se do dependente também pode ser entendido como uma medida de proteção à própria vida (Gomes & Donati, 2009).

Com relação ao suporte familiar, pode-se fazer menção ao último tema ligado à "Contribuição e participação familiar" na recuperação e tratamento do consumidor de crack. Nesse caso, foi possível entender que a crença referida em todas as respostas estava ligada à importância do suporte familiar (NS 6.1) como um fator essencial no tratamento dos consumidores de crack. As respostas são exemplificadas pelos seguintes recortes:

Eu acredito que sim. Assim, apoiando, lógico, recebendo orientações de quem tem para dar [...] a família ajuda muito estando ali, dando atenção e fazendo, lógico, o que nos foi pedido [...] não adianta deixar, jogar para lá. (Maria, mãe)

Acho. Tanto ela pode contribuir como deve contribuir [...] eu acho que ela também pode atrapalhar [...] a família é primordial para ter a recuperação [...] precisa ter o apoio da família, dos amigos, para poder fazer isso. (Francisco, padrinho)

Para que se possa fazer um paralelo entre as crenças familiares que apontam para um suporte efetivo de seus membros e a influência destas na participação do tratamento, torna-se importante refletir sobre as considerações que o Representante da Comunidade Terapêutica (RCT) pôde fazer.

Olha, eu tenho absoluta certeza de que todos irão dizer que a participação da família é enorme e tem um valor extraordinário. Agora, aproveitando a oportunidade, eu queria salientar a dificuldade das famílias no enfrentamento desse problema [...] Se uma criança já nasce num casebre separado por panos. A mãe, que também já era viciada em algumas drogas, principalmente o álcool, o fumo e ela quando engravida, ela perde o marido [...] temos que acreditar que a gente pode fazer alguma coisa. Mas, levando em consideração todos esses fatores que são contrários a um apoio adequado, eficiente da família. Mas, sem dúvida, mesmo com essas dificuldades, o apoio da família é essencial. (Eliel, RCT)

Diante das afirmações, é possível observar que as respostas dos familiares e do representante da CT são unânimes sobre a importância do suporte familiar no tratamento, porém, as respostas divergem quando o assunto é a real participação deles no acompanhamento e suporte de seus familiares. Sobre o assunto, Bonkay, 2015; Bastos e Bertoni, 2014; Carvalho e Santana, 2018; Guimarães e Aleluia, 2012 apontam que, muitas vezes, quando o consumidor de crack busca ajuda, esta não vem acompanhada do apoio familiar, até mesmo em decorrência do comprometimento dos vínculos familiares, gerado pela gravidade da dependência. As dificuldades apontadas por Eliel (miséria, membros da família dependentes de outras drogas, desestruturação familiar, entre outros), encontram respaldo na literatura (Bonkay, 2015; Bastos & Bertoni, 2014; Carvalho & Santana, 2018; Guimarães & Aleluia, 2012; Laranjeira, 2012; Alves, Ribeiro & Castro, 2011).

Outro fato importante, tendo em vista que o consumidor de drogas, na maioria dos casos, passa por muitas recaídas em seu tratamento, é o conceito de autoeficácia. Bandura (2006), em seus estudos, aponta para a contribuição do conceito de autoeficácia, na medida em que a forma adotada pelos indivíduos no enfrentamento das pressões e questões estressantes vai determinar sua capacidade resiliente de recuperação e superação das dificuldades durante o processo de tratamento.

Segundo Bandura (2006), o indivíduo pode encarar as pressões exercendo seu papel de agente e concentrando-se nas possibilidades que as situações proporcionam. Ou seja, acreditar em sua competência, sendo um agente sobre as situações de sua vida. Nesse caso, a autoeficácia familiar atuaria como um mediador de recuperação em busca da resiliência, favorecendo o desenvolvimento saudável e auxiliando seus membros no enfrentamento das situações adversas.

Contudo, diante do quadro atual já explanado, pelo qual a maioria dos familiares de consumidores de crack passa, as condições de se obter uma autoeficácia familiar podem ser comprometidas. Essa reflexão suscita que o foco dos tratamentos, tanto para o indivíduo consumidor de drogas quanto para seus familiares, deveria ajudar no desenvolvimento de crenças que protejam contra o desencorajamento diante dos recorrentes fracassos, buscando sempre um suporte social que contribua para fortalecer a crença de que se pode encarar as adversidades de uma forma resiliente. Essas indicações podem ser observadas nos estudos de Fernades & Soares (2018), que destacam a importância do suporte social, bem como a atendimento psicológico também para os familiares.

Sobre o assunto, Fernades e Soares (2018) e Guimarães e Aleluia (2012), comentam que, apesar da grande dificuldade da participação familiar no tratamento de consumidores de drogas, é fundamental que a equipe se empenhe na convocação desse suporte. Desse modo, quanto mais se alcançar a mudança no estilo de vida do consumidor de drogas e, consequentemente, de sua família, melhor o prognóstico. Sendo assim, os autores referem que o tratamento do consumidor de crack, assim como de outras substâncias, apresenta melhores resultados quando a família é abordada, orientada, incluída no processo terapêutico e auxiliada na resolução de suas dificuldades específicas.

Diante de tudo que foi explanado, pode-se entender a importância das crenças no suporte familiar no tratamento do dependente. Alguns estudos (Fernades & Soares, 2018; Guimarães & Aleluia, 2012) referem que o engajamento do consumidor no tratamento está relacionado com as crenças de expectativas parentais positivas. Esses autores argumentam que a combinação entre o reconhecimento dos problemas e a crença de que seu familiar pode ultrapassá-los reflete diretamente no engajamento de seu familiar, sugerindo que as percepções da família são primordiais para a vinculação e continuidade do tratamento.

 

Considerações finais

A análise das crenças que foram apresentadas nesta pesquisa forneceu um melhor panorama de entendimento sobre as questões que podem ajudar ou atrapalhar a participação efetiva do familiar no tratamento. Crenças ligadas à concepção da dependência como doença, assim como a crença de que a família pode contribuir, podem ajudar as equipes na sensibilização dos familiares no suporte de adictos. Já outras crenças ligadas à destruição familiar ou que relacionam o consumidor ao traficante, podem estar vinculadas a um afastamento familiar. Dessa forma, pode-se refletir sobre a importância das intervenções baseadas na reconstrução do vínculo emocional da família, reestabelecendo a crença de que é possível se obter melhoras.

É importante ressaltar que o tratamento do consumidor de crack é uma questão complexa e vários fatores podem influenciar na adesão ou não do consumidor e seu familiar. Essa multifatorialidade faz crer que abordar essa problemática requer olhar para as crenças familiares como "um fator" e não "o fator" que influencia na participação do familiar. Em outras palavras, acredita-se haver uma relação moderadora que vincula as crenças familiares à relação consumidor-tratamento e que perpassa uma teia de aspectos internos e externos que repercutirão na saúde e motivação dos indivíduos.

Como consequência, pode-se entender a necessidade de se "tratar" todo o sistema familiar, buscando ações que tenham como base a resiliência. Então, as formulações operacionais dos diversos tratamentos, provavelmente, terão alcance limitado para a produção de mudanças do indivíduo e do sistema familiar, caso não observem o contexto que circunda essas pessoas.

Concordando com alguns estudos (Diehl et al., 2016; Sapori & Sena, 2012), questões levantadas, como o estigma a que essa população (consumidores e familiares) é submetida, podem revelar que o problema da propagação do consumo de crack, possivelmente, seria somente a ponta de um iceberg, em que todos os problemas de desigualdade social, bem como o aporte de condições de saúde, educação, moradia, entre outros, precisam ser diagnosticados e tratados, concomitantemente, com consumidores de drogas e seus familiares.

Pode-se refletir que essa pesquisa, por se tratar de um estudo qualitativo, visa ter um olhar exploratório sobre o assunto, devendo-se ter cuidado em não extrapolar esses resultados. Os exemplos e reflexões aqui mostrados são poucos, diante do conjunto de aspectos que podem ser discutidos por esse ponto de vista, entretanto, certamente, servem de provocação para outros estudos na área.

Espera-se, em estudos posteriores, poder investigar um maior quantitativo de familiares, assim como poder conhecer a visão dos próprios consumidores de crack em tratamento sobre os aspectos que influenciam em sua recuperação.

 

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Recebido em: 23/8/2018
Aprovado em: 21/10/2019

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