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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2020

 

Super-heróis na fase pré-capa/pré-máscara: inspiração para intervenções psicoeducacionais positivas

 

The pre-cloak/pre-mask phase of comic superheroes: inspiration for psychoeducational interventions

 

La fase pre-capa/pre-máscara de los súper-héroes del cómic: inspiración para intervenciones psicoeducativas

 

 

Gelson Vanderlei WeschenfelderI; Maria Angela Mattar YunesII; Chris FradkinIII

IPrograma de Pós-Graduação em Educação (Universidade La Salle)
IIPrograma de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), Niterói, Rio de Janeiro
IIIUniversity of California, Merced

 

 


RESUMO

Enredos com super-heróis das histórias em quadrinhos são geralmente focados no poder, força, coragem e resiliência, temas inspiradores para áreas das Ciências Sociais. A fase intitulada pré-capa/pré-máscara da vida dos super-heróis é tema cuja literatura científica é escassa. Entretanto, estudos recentes indicam que a maioria dos personagens fictícios viveu situações de risco antes da fase de superempoderamento e reforçam o potencial da fase pré-capa como ferramenta em intervenções psicoeducacionais positivas. O foco deste artigo foi investigar intervenções que utilizam super-heróis em suas concepções. Para tanto, foi realizado um mapeamento exploratório de ações nacionais e internacionais, sendo selecionadas para análise apenas as divulgadas em website ou fanpage. Resultados indicaram que a maioria das intervenções (70%) é da área da saúde e ocorre eventual ou esporadicamente. A totalidade usa o super-herói em fase de pós-empoderamento. Conclui-se que os recursos do estágio pré-capa/pré-máscara são subutilizados tanto por profissionais de ambientes clínicos como pedagógicos.

Palavras-chave: Crianças. Empoderamento. Resiliência. Super-heróis.


ABSTRACT

Superhero comic book histories are generally focused on power, strength, courage and resilience, inspiring themes for Social Science´s investigations. The pre-cloak/ pre-mask phase of the superheroes´ lives is a theme whose scientific literature is scarce. However, recent studies indicate that most of these fictional characters lived in adverse situations prior to being super empowered and reinforce the potential of the pre-cloak superhero as a tool for positive psychoeducational interventions. The focus of this article was to investigate interventions that use superheroes in their conceptions. For that, an exploratory mapping of national and international actions was carried out, being selected for analysis only the ones exposed by websites or fanpages. Results indicated that most interventions (70%) are in the Health area and occur eventually or sporadically. All of them use the superhero in their super empowered phase. In conclusion, this research shows that pre-cloak/pre-mask superhero life is underestimated by both clinical and educational professionals.

Keywords: Children. Empowerment. Resilience. Superheroes.


RESUMEN

Enredados con súper-héroes de los cómics, generalmente se enfocan en el poder, fuerza, el coraje y la resiliencia, temas inspiradores para las áreas de las Ciencias Sociales. La fase titulada pre-capa/pre-máscara de la vida de los súper-héroes es tema cuya literatura científica es escasa. Sin embargo, estudios recientes indican que la mayoría de los personajes ficticios han vivido situaciones de riesgo antes de la fase de súper-empoderamiento y refuerzan el potencial de la fase pre-empoderada como herramienta en intervenciones psicoeducativas positivas. El foco de este artículo fue investigar intervenciones que utilizan súper-héroes en sus concepciones. Para ello, se realizó un mapeamiento exploratorio de acciones nacionales e internacionales, siendo seleccionadas para análisis sólo las divulgadas en sitio web o fanpage. Los resultados indicaron que la mayoría de las intervenciones (70%) son del área de la salud y ocurre eventual o esporádicamente. La totalidad utiliza al súper-héroe en fase de pos-empoderamiento. Se concluye que los recursos de la etapa pre-capa/pre-máscara son infrautilizados tanto por profesionales de ambientes clínicos como pedagógicos.

Palabras clave: Niños. Empoderamiento. Resiliencia. Súper-héroes.


 

 

Introdução

Definições de "intervenções psicoeducacionais positivas" aparecem de forma controversa entre pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. A expressão é oriunda de investigações dos cientistas adeptos da Psicologia Positiva, movimento que vem se consolidando há mais de uma década na voz do Professor Martin Seligman e seus colaboradores (Seligman, Steen, Park & Peterson, 2005). Promover o campo da Psicologia Positiva significa rever abordagens e concepções da Psicologia tradicional para compreender cientificamente os aspectos potencialmente saudáveis dos seres humanos. A crença fundamental da Psicologia Positiva é que "as pessoas almejam vidas plenas de sentido, e querem cultivar tudo de melhor que existe dentro delas para maximizar as experiências de amor, trabalho e lazer" (http://www.ppc.sas.upenn.edu/). Tal afirmação, encontrada no site oficial de Psicologia Positiva da Universidade da Pensilvânia, contrasta com os aportes da Psicologia tradicional, focada na investigação e compreensão de sintomas e de psicopatologias. Entretanto, com tais argumentos não se quer dizer que a Psicologia deva ignorar as doenças psíquicas e seus desdobramentos, mas que seja possível construir novas perspectivas que estudem tanto o sofrimento quanto a felicidade, bem como as interações entre essas duas dimensões humanas (Seligman et al., 2005). No que se refere às intervenções positivas, os autores enfocam que a meta principal é ajudar as pessoas a buscarem felicidade e aliviar sintomas de depressão (Seligman et al., 2005). Além disso, significa atuar em nível de prevenção, ou seja, intervir antes que as patologias apareçam, quando o indivíduo, grupo, comunidade ainda estão sãos. Tais intervenções somente tornam-se possíveis a partir de uma visão mais otimista dos seres humanos, o que é um grande desafio num mundo atual midiático que sobrevive do "consumo" de manchetes e reportagens que vendem o lado perverso e maldoso de alguns seres (des)humanos. Portanto, neste artigo, define-se como intervenções positivas aquelas que visam a promover aprendizagens transformadoras e geradoras de resiliência a partir de exemplos inspiradores e interações de bons tratos. Discutir-se-ão as possibilidades de desenvolver intervenções psicoeducacionais positivas a partir dos enredos das histórias dos super-heróis em quadrinhos, cujos recursos serão focados na fase de pré-empoderamento intitulada pré-capa/pré-máscara das vidas dos super-heróis (Fradkin, Weschenfelder & Yunes, 2016).

A expressão "pré-capa/pré-máscara" foi criada por nós, autores deste trabalho, para fazer referência a um determinado período da vida do personagem ficcional super-heroico que antecede a aquisição de poderes (Fradkin, Weschenfelder, & Yunes, 2016). Nessa fase, a maioria dos personagens, assim como todos os indivíduos na vida real, apresenta momentos difíceis de desenvolvimento na sua vida ficcional, durante os quais eles ainda não desempenham funções heroicas (Weschenfelder, Fradkin & Yunes, 2017).

Sabe-se que o uso de super-heróis como fonte de inspiração em ambientes educativos, tais como a sala de aula, divide opiniões de pesquisadores. Há os que alegam a importância da imaginação e fantasia das histórias para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional na infância e os que acentuam o lado perverso do super-herói como aquele que incita preconceitos e práticas de violência (Fradkin, Weschenfelder & Yunes, 2017). O objetivo principal desta pesquisa foi investigar intervenções que utilizam super-heróis em suas concepções.Para tanto, um mapeamento exploratório das ações foi realizado para obter-se um panorama no Brasil e em outras partes do mundo. Buscou-se encontrar indicadores da área, local de aplicação, uso do momento da fase de empoderamento dos super-heróis e a constância e sustentabilidade das intervenções.

 

Intervenções com super-heróis em ambientes educativos e clínicos

Poucos profissionais da Educação infantil acreditam que os personagens de superaventura podem ser usados como recurso pedagógico de motivação e inspiração no desenvolvimento de crianças (Weschenfelder, 2017). Ao tratar desse tema em um artigo recente, os pesquisadores do assunto, Fradkin, Weschenfelder e Yunes (2017), destacaram o trabalho de Harris (2016). Esses autores ressaltaram a eficácia de uma das estratégias usadas pela educadora americana em seu trabalho no contexto de sala de aula, qual seja, possibilitar que as crianças vistam os trajes, as capas e as máscaras dos personagens das superaventuras. Com essa simples movimentação do mundo simbólico infantojuvenil, algumas crianças revelaram sentir-se especialmente empoderadas, seguras, confiantes e com a coragem e o olhar esperançoso de um super-herói (Harris, 2016). O estudo de Harris sugere ainda que o trabalho escolar com os sentimentos de compaixão e preocupação solidária, sublinhados em várias histórias de super-heróis, podem ser ferramentas a serem usadas por profissionais da Educação para prever e conter iniciativas de bullying. Isso está em consonância com os argumentos de Weschenfelder (2014) de que os super-heróis são modelos de valores de ética e educação moral.

Ainda, no que se refere ao uso de super-heróis em contextos terapêuticos da área da Saúde, Fradkin et al. (2017) citaram o exemplo bem-sucedido dos casos conduzidos pelo terapeuta Cory A. Nelson com sua técnica intitulada What would Superman Do? (WWSD). Trata-se de uma estratégia para situações específicas que podem motivar uma criança que tenha previamente apreciação pelos personagens de HQs (Nelson, 2007). As crianças usam a técnica WWSD como recurso reflexivo em situações sociais que envolvem suas famílias e amigos com resultados positivos notórios na vida e na convivência interpessoal.

Já em relação ao uso dos super-heróis por profissionais da área da Saúde, a psicóloga Janina Scarlet (2016) elaborou um programa do tipo "autoajuda" para adolescentes e adultos jovens para ser utilizado como um recurso psicoterapêutico. O programa é destinado a leitores com quadros de ansiedade ou que sofram de estresse pós-traumático (Fradkin, 2017). Em uma resenha sobre o livro recém-lançado da autora, Fradkin (2017) apresenta uma explanação descritiva acerca do programa intitulado "Terapia dos super-heróis". Fradkin (2017) discorre sobre os capítulos do livro de Scarlet que alinhavam um processo terapêutico que pode levar o leitor a lidar com seus próprios conflitos internos e angústias. O programa tem por base os princípios da terapia de aceitação e compromisso (ACT, Acceptance and Commitment Therapy). Entretanto, ainda não há estudos sobre as evidências de que esse programa tenha gerado resultados positivos sobre seus praticantes ou leitores.

Entretanto, nenhuma das intervenções mencionadas anteriormente, seja no campo da Educação, seja no da Saúde, refere utilizar o recurso pré-capa/pré-máscara dos super-heróis como eliciador de processos de transformação de seus participantes e de contextos pelos quais eles circulam. A seguir, apresentar-se-á, um panorama das intervenções que usam um ou mais super-heróis como tema norteador de encontros de programas de intervenção mapeados a partir de um levantamento exploratório realizado por pesquisa online no Brasil, no continente sul-americano e em outros continentes.

 

Panorama nacional e internacional de intervenções com super-heróis

Para a construção deste artigo, um estudo exploratório realizou um mapeamento de intervenções que usam super-heróis das histórias em quadrinhos como fonte de inspiração de suas ações. A busca inicial dessas informações foi realizada por meio de pesquisas online em: a) portais de periódicos eletrônicos (SciELO, Research Gate, Capes). Foram usadas as seguintes palavras e descritores: super-herói e Educação; super-heróis e saúde; intervenções e super-heróis; super-herói em hospitais; b) sites de notícias sobre o universo das histórias em quadrinhos - Estes existem em grande número e foram consultados os mais populares, tais como: Papo de Quadrinho; Quadrinhos na Sarjeta; Universohq; Judão; Impulso HQ; Melhores do Mundo; Pipoca e Nanquim; Good Comics; Comic Book Resources; Newsarama; e, c) consulta a nove pesquisadores identificados como líderes de grupos de pesquisa que estudam resiliência e temas afins no continente americano e europeu. Esses últimos foram considerados experts por serem conhecidos dos autores por suas publicações no assunto e suas contribuições em congressos e conferências. O contato com eles ocorreu por e-mail e todos responderam de forma receptiva. Porém, apenas um deles sabia algo acerca do assunto e indicou um colega que sugeriu uma das intervenções que foi listada neste trabalho. Outro expert e pesquisador do assunto também indicou uma ação, mas esta era realizada com personagens dos contos de fadas e foi excluída da listagem a ser analisada por não tratar de super-heróis.

 

Resultados

A partir das informações coletadas em âmbito nacional e internacional, as intervenções foram detalhadas e analisadas a partir de seu conteúdo temático, periodicidade e o elemento crucial para a elaboração das reflexões deste texto: a fase de empoderamento usada no planejamento e execução das intervenções. Portanto, a partir dos achados obtidos pelo mapeamento inicial, foi usado um outro critério de busca de intervenções: foram selecionadas apenas aquelas que tivessem um website/fanpage. Com isso, foi gerada uma tabela com as intervenções que utilizam super-heróis com qualquer periodicidade. Assim, foram relacionadas no total 10 intervenções com sede em diferentes locais: Brasil, EUA, Continentes Africano e Europeu. Deve-se ressaltar que as intervenções que não têm publicidade virtual não puderam ser registradas, estudadas e incluídas na análise. Se iniciativas ocorrem em diferentes locais, cidades, países e são divulgadas por outros meios midiáticos, elas são não identificáveis e/ou padronizadas, Portanto, não fizeram parte deste levantamento.

Inicialmente foram mapeadas 118 intervenções que usam quadrinhos de super-heróis como temática de suas ações no Brasil e em outros países. A primeira característica identificada como elemento de distinção entre as ações foi a periodicidade ou a (ir)regularidade do intervalo de tempo das atividades realizadas para elucidar a compreensão do levantamento, sendo definidas as seguintes categorias de tempo: a) intervenções permanentes - aquelas que têm fluxo contínuo com demonstrações de constância nas suas ações; b) intervenções esporádicas - aquelas que ocorrem em intervalos de tempo determinados e previsíveis, por exemplo, a cada seis meses, a cada ano etc.; c) intervenções eventuais - aquelas que ocorrem num único evento ou situação e /ou podem ocorrer novamente sem qualquer previsão.

A grande maioria das intervenções mapeadas, cerca de 92,31%, ocorre de forma eventual e, destas, 72% ocorreram apenas uma única vez. Assim sendo, estas não fizeram parte da Tabela 1, que apresenta a síntese do mapeamento de intervenções que usam super-heróis com periodicidade categorizada pelos critérios anteriormente descritos e definidos.

De acordo com a Tabela 1, as intervenções com super-heróis mapeadas nesta pesquisa iniciaram-se a partir do ano de 2010. Poder-se-ia argumentar que isso coincide com o auge dos grandes investimentos das adaptações dos quadrinhos para o cinema. Segundo Irwin (2005), o super-herói é o grande símbolo da cultura pop da atualidade, principalmente no início do século XXI, quando esses personagens saem dos quadrinhos e invadem as salas de cinemas com grandiosas adaptações cinematográficas e sucesso nas bilheterias de todo o mundo. Em meados dos anos 2000, um jornal de grande circulação em solo norte-americano afirma que "este mundo é dos quadrinhos" (Irwin, 2005, p. 9). Essa referência global não é exagerada, já que personagens como Super-Homem, Batman, Homem-Aranha, entre outros, são reconhecidos internacionalmente e por culturas distintas.

Um multiverso de produções foi criado a partir dos quadrinhos de super-heróis desde seu surgimento no fim de 1930: programas de rádio, séries televisivas, animações, livros, cinema etc. É possível visualizar em qualquer parte do planeta que há um sem número de pessoas usando camisetas com um símbolo de super-heróis estampada no peito. As convenções de quadrinhos, que antes recebiam apenas centenas de fãs, hoje quebram recordes de públicos. Essas convenções eram somente realizadas em espaços norte-americanos, porém, de uns anos para cá, passaram a ser realizadas em diversos países, inclusive no Brasil, onde em 2016 foi realizada a terceira edição. A Comic Con Experience do Brasil se tornou a maior Comic Con do mundo, com 196 mil visitantes (Sessa, Silvestre & Vícola, 2017). Isso atesta que os super-heróis das histórias em quadrinhos (HQs) são personagens fictícios que alcançaram o reconhecimento internacional e nacional. Não surpreende que haja um número considerável de intervenções usando a imagens desses personagens no mundo inteiro. Entretanto, paradoxalmente, como indicado na Tabela 1, ainda é baixo o número de ações divulgadas pela internet de forma organizada, manualizada e passível de replicação.

Outra questão explicitada pelos dados da Tabela 1 é que a maioria das intervenções está ligada à área da Saúde. Poucas focam seus esforços no campo da Educação. Das 10 intervenções no mundo que usam os personagens super-heroicos das HQs, 70% são explicitamente vinculadas à área da Saúde (sendo que em 10% há indícios de que sejam da saúde comunitária e 10% da saúde escolar). Apenas 20% se adapta à área de Educação e outros 10% está no campo do Direito Social.

Como se pode constatar, não foram listadas as intervenções com periodicidade duvidosa. Há inúmeras ações que ocorrem de vez em quando e são imprevisíveis. Nestas não se verifica um planejamento institucional, com objetivos e metas. Um exemplo dessa modalidade são os profissionais de limpezas de janelas que usam vestimentas dos personagens das superaventuras e descem de rapel em unidades hospitalares infantis. Essas ações acontecem em diversos países, bem como os cosplayers (Cosplay são fantasias de algum personagem de animações, HQs, filme ou seriado. Os cosplayers se vestem com fantasias em eventos ou concursos de "melhor interpretação do personagem, melhor roupa etc."). Há também os indivíduos que se fantasiam de super-heróis e visitam entidades onde há crianças institucionalizadas em casas de acolhimento ou hospitais. As informações que se tem sobre essas ações são matérias de jornais de TV, rádio ou noticiários sem frequência determinada. Por isso, não há um registro organizado dessas intervenções, mas, ao que tudo indica, poucas são voltadas diretamente para a área de Educação.

Entretanto, para efeitos da argumentação deste texto, outra importante dimensão a ser observada na Tabela 1 é a fase da vida dos super-heróis utilizada para nortear as intervenções. Não há indícios de que a fase Pré-Capa/Pré-Máscara dos super-heróis seja mencionada. O enfoque permanece na fase já empoderada dos personagens, a fase Pós-Capa/Pós-Máscaras, quando eles já superaram ou estão em estágio de superação de suas adversidades. Essa observação se dá claramente na tabela citada com 100% das intervenções e suas atividades na fase pós-poder e nenhuma menção ou destaque para o super-herói no estágio pré-poder.

 

O super-herói em sua fase pré-capa/pré-máscara

Personagens super-heróis apresentam potencial como recursos educativos e podem se fazer presentes nas salas de aula (Weschenfelder, 2014) e em ambientes terapêuticos (Nelson, 2007; Scarlet, 2016). Mas, o personagem super-heróico poderia auxiliar na fase antes de se empoderar, previamente aos seus superpoderes, sem capas e máscaras que escondem suas identidades reais. Conforme afirmam Fradkin et al. (2016, p. 139), "o super-herói na fase "pré-capa/pré-máscara" está muito vivo e compartilha suas histórias com muitas crianças em situação de risco". Para exemplificar, os autores referem Peter Parker (Homem-Aranha), Superman, Capitão América e Viúva Negra, cada qual deles sendo vítimas de abandono, perdas de entes queridos, bullying, entre outros casos de adversidades na vida desses super-heróis. Em uma indexação das adversidades dos top-20 de super-heróis das HQs, um estudo recente (Fradkin, Weschenfelder, & Yunes, 2016, p. 412) observou que "86% dos personagens super-heróicos, foram órfãos ou abandonados; 49% tiveram pelo menos um dos pais assassinado; 15% foram sequestrados; 29% sofreram bullying e 29% vivenciaram e cresceram com limitações econômicas".

As histórias de adversidades na fase pré-capa/pré-máscara podem ser inspiradoras e propulsoras de reflexões que potencializam o empoderamento de crianças que vivem situações de vulnerabilidade. As crianças e adolescentes em situação de risco estão mais propensas à evasão escolar (Achkar, Leme, Soares & Yunes, 2017) e abuso de drogas (Carvalho et al., 2006), por exemplo. Esses jovens podem ser facilmente identificados em salas de aula do mundo inteiro, e para que não sejam encaminhados para centros de acolhimento juvenis com cumprimento de medidas socioeducativas, algo deve ser preventivamente realizado. Leone & Wruble (2015) afirmam que no sistema penal norte-americano há instalações que abrigam jovens - por ordem dos tribunais - que cometeram crimes e que permanecem aguardando medidas legais, o que não é muito diferente do Brasil e outros países sul-americanos.

Como experiência demonstrativa da aplicabilidade dos super-heróis em fase pré-capa, Weschenfelder (2016) realizou uma intervenção-piloto no espaço de salas de aula. A experiência buscou trabalhar com a autoestima dos alunos de Educação para Jovens e Adultos (EJA), geralmente em condição de risco pela relação da idade com a escolaridade. Sabe-se que com esse público há necessidade de traçar práticas positivas para incentivá-los e motivá-los a perseguir objetivos de sucesso. Com essas ideias em mente, foi realizada uma intervenção com super-heróis, na qual a fase pré-capa/pré-máscara dos personagens era o foco. As ações foram organizadas de modo que, após a apresentação das adversidades vividas pelos super-heróis, os alunos eram solicitados a escrever um roteiro para criação de uma história em quadrinhos, a qual deveria conter adversidades sociais, conter um ponto de virada (Rutter, 1987) e finalizar com a transformação de vida ou uma busca por essas viradas e transformações.

Durante a intervenção, os alunos receberam a orientação de que a história poderia ser a sua história de vida, caso se sentissem à vontade para tal (Weschenfelder, 2016). Participaram 41 estudantes de idade entre 16 e 55 anos de duas escolas na modalidade EJA no sul do Brasil. O exercício dessa intervenção resultou no fato de que os participantes manifestaram que tomaram ciência de que em suas vidas houve pontos de virada e transformações positivas. Os relatos evidenciaram que os participantes sentiram-se bem e diziam-se fortalecidos por verem suas histórias de dor e luta transformadas em arte quadrinhada. As histórias deles foram posteriormente desenhadas por um quadrinista convidado que, voluntariamente, se dispôs a colaborar com a proposta.

Esse projeto-piloto reitera que ambientes educativos são ideais para programas de intervenção dessa natureza e que a imagem dos super-heróis pode possibilitar que crianças e jovens encontrem um "mentor" ou tutor sob o disfarce de Superman (ou Homem-Aranha, ou qualquer outro personagem). Estes, funcionam como modelos positivos e auxiliam a buscar direções em diferentes momentos do ciclo do desenvolvimento humano. Os personagens já estão presentes no imaginário infantojuvenil e quando inclusos numa elaboração interventiva passam a ter grande força de identificação lúdica, auxiliando o encontro de caminhos com gosto de empoderamento.

Cabe ao profissional educador, em um ambiente de sala de aula, buscar encontrar a linha tênue que separa as brincadeiras com super-heróis da elaboração de uma intervenção usando super-heróis. No exemplo mencionado anteriormente sobre o uso de intervenções com base em super-heróis em contexto pedagógico, foi inegável o valor alcançado de reflexão, diálogo e promoção de resiliência. Nesse sentido, inspirar-se em super-heróis poderia ser visto também como um programa de recuperação, o que está em sintonia com as ideias de Scarlet (2016) e a aplicabilidade dos superpoderes em contexto clínico (Fradkin, 2017; Rubin, 2007; Scanlon, 2007). Segundo Fradkin et al., 2016), o uso proposto da figura dos super-heróis das HQs entre populações vulneráveis de crianças e adolescentes seria mais exatamente descrito como reabilitação e tais situações exigem intervenções positivas e políticas afirmativas.

Criar programas de intervenção usando a imagem positiva dos super-heróis é especialmente sugestivo para as atividades do contraturno escolar, quando muitas crianças e adolescentes precisam ocupar seus tempos livres com programação saudável para seu desenvolvimento. Esse é um aspecto especialmente importante no Brasil, já que o IBGE (2015) aponta que a vida familiar de muitas crianças se dá, em 37,3% dos casos, em lares monoparentais e chefiados apenas por mulheres. Com isso, não se quer afirmar que lares monoparentais femininos são mais vulneráveis do que outras configurações familiares., Ao contrário, Yunes, Garcia e Albuquerque (2007) demonstraram e atestaram as possibilidades de resiliência familiar nesses grupos liderados por mulheres, contrariando muitas teorias implícitas e crenças de algumas classes de profissionais. Entretanto, apesar de sua força relacional e empoderamento feminino, esses grupos necessitam recorrer com mais frequência aos diferentes pontos da rede de apoio social (Dessen & Polonia, 2007; Juliano & Yunes, 2014), entre os quais a escola com duplo turno pode ser um dos mais relevantes.

Possibilitar que crianças e jovens façam paralelo de suas vidas com as vidas dos super-heróis na fase pré-capa/pré-máscara pode ser inspirador e fonte de superação de adversidades, tornando os super-heróis das HQs verdadeiros tutores de resiliência (Cyrulnik, 2009). E, em cidades com índices elevados de criminalidade e perigosas distrações, personagens como Batman, que dedica sua vida aos outros, pode inspirar e promover empatia além dos comportamentos heroicos de superação e auxílio em sua comunidade. Vale ressaltar ainda que o personagem Bruce Wayne cresceu sem os pais, mas teve a tutoria de Alfred, seu mordomo, e, mesmo quando iniciou sua jornada de autoconhecimento para compreender a mente criminosa, ele tinha "para onde e para quem voltar". Alfred realizou a mediação necessária ao amadurecimento de Bruce Wayne (alter ego de Batman). Para uma criança de periferia, que muitas vezes não conhece ou convive com familiares significativos, geralmente, há possíveis tutores: o traficante, o professor(a) ou um adulto significativo das suas relações, conforme demonstram os pesquisadores Yunes, Fernandes e Weschenfelder (2018) em trabalhos recentes. Em alguns casos da realidade brasileira, poder-se-ia dizer que o traficante é um tutor frequente, embora não se tenha dados empíricos atuais para provar essa afirmação. Mas um traficante pode ensinar o adolescente "a sobreviver" numa realidade adversa e se tornar forte o suficiente para conquistar seu lugar, trazendo a tona o que Liborio e Ungar (2010) conceituaram como "resiliência oculta" e identificado no trabalho de Pessoa (2015) com adolescentes que praticavam o tráfico de drogas. Ou seja: é uma espécie de Ras'Al Ghul (inimigo de Batman). Com isso se quer argumentar que deve-se trabalhar para que os os profissionais da área de Educação sejam os "Alfreds" acolhedores numa situação em que a criança precisa de laços e vínculos que a auxiliem a "tornar-se" ele/ela mesmo. A escola tem um papel fundamental em formar um ambiente de empoderamento e de resiliência para crianças e adolescentes que passam por diferentes processos de adversidade social. É sua responsabilidade educacional ocupar-se do desenvolvimento dos alunos em todas as dimensões: social, física, emocional e intelectual (Yunes, Pietro, Silveira, Juliano & Garcia, 2015).

 

Considerações finais

A totalidade das intervenções pesquisadas e analisadas neste levantamento exploratório demonstrou que o elemento norteador destas estava concentrado principalmente na força e no apelo do super-herói em sua fase super-heróica de superpoderes, como possíveis narrativas mitológicas dos tempos atuais. É fato que não foram encontradas intervenções que usassem exemplos da vida de sofrimentos e adversidades que tão frequentemente permeiam as histórias dos personagens super-heróis. Além disso, poucas intervenções são divulgadas e publicizadas no campo da Educação em diferentes países e continentes. Identifica-se uma tendência maior na aplicação dessas ideias no campo da saúde com fins psicoterapêuticos.

Acredita-se que a fase pré-capa/pré-máscara é fundamental e vem sendo subutilizada para oferecer às crianças e jovens em situação de adversidade social um ponto de partida para novas aprendizagens, interações sociais, criatividade e transformações de si mesmo e de contextos, aspectos cruciais para ativar processos de resiliência. Os personagens das superaventuras podem servir de exemplo moral, ético e de empoderamento, pois suas histórias são compatíveis com muitas trajetórias de crianças reais em situação de risco. Tanto na área de saúde como na Educação, há lugar e espaço para que a fase pré-super-heróica seja o tema nuclear das intervenções positivas.

Intervenções positivas na área da Educação com a imagem do super-herói como grande ícone da cultura e presentes no imaginário infantojuvenil podem ser fonte de grande inspiração em qualquer ambiente institucional e escolar. (Yunes, Fernandes & Weschenfelder, 2018). A criação de programas de intervenção usando a imagem positiva dos personagens de superaventura no ambiente escolar pode vir a ser de grande ajuda nos processos de desenvolvimento psicopedagógicos dos envolvidos. Usados em outras áreas, principalmente na área da saúde, como visto neste estudo, os super-heróis da HQs são fortes influências em empoderar positivamente os indivíduos e, assim, alcançam resultados positivos. Nesse sentido, há urgência e necessidade de testá-los em ambientes pedagógicos.

 

Referências

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Recebido em: 19/9/2018
Aprovado em: 15/11/2019

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