SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 issue1Overload and support network: the motherhood experience after marital separationOccupational stress in teachers of basic teachers: study with professionals of the Institute of Training Primary Teachers of Nampula-Mozambique author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.1 São João del-Rei Jan./Mar. 2020

 

Atividade de trabalho e saúde de psicólogos do Suas: aproximações

 

Work activity and health of Suas psychologists: approximations

 

Actividad laboral y salud de los psicólogos Suas: aproximaciones

 

 

Iasmin Libalde NascimentoI; Thiago Drumond MoraesII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Atualmente é aluna do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Ufes
IIGraduado em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (2000). Mestre em Psicologia (na área de Estudos da Subjetividade) pela Universidade Federal Fluminense (2002). Doutor em Psicologia Social (na área de Psicologia de Trabalho e Organizacional) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2008)

 

 


RESUMO

Estudos sugerem relações entre o trabalho e o adoecimento de psicólogos que atuam no Sistema Único de Assistência Social (Suas). Considerando-se a importância da atuação do profissional de Psicologia nesses espaços, objetivou-se realizar uma aproximação entre o discurso dos psicólogos que atuam na proteção social básica, em Vitória-ES, sobre seu trabalho e a teoria da Clínica da Atividade, em especial o conceito de gênero profissional, a fim de viabilizar a discussão sobre atividade de trabalho e os atravessamentos que a envolvem no processo de produção de saúde/doença desses profissionais. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, que foram analisadas por análise de conteúdo conforme Bardin. Verificou-se que a possível fragilização do gênero desses trabalhadores contribui para que eles não se reconheçam em sua atividade, despotencializando a produção de saúde. Cabe promover estudos que busquem compreender em profundidade o gênero profissional desses técnicos e seus entrelaçamentos com a saúde laboral.

Palavras-chave: Psicologia. Atividade de trabalho. Sistema Único de Assistência Social. Gênero profissional.


ABSTRACT

Studies suggest relationships between work and illness of psychologists working in the Unified Social Assistance System. Considering the importance of the work of Psychology professionals in these services, the objective was to approximate the discourse of psychologists working in basic social protection, in Vitória-ES, about their work and the theory of Clinics of Activity, in particular the concept of professional gender, in order to make possible the discussion about work activity, and the aspects that involve it in the process of health/disease production of these professionals. Semi-structured interviews were conducted, which were analyzed by content analysis according to Bardin. It was found that the possible weakening of the gender of these workers contributes to them not being recognized in their activity, depotentializing health production. It is important to promote studies that seek to understand in depth the professional gender of these technicians and their intertwining with occupational health.

Keywords: Psychology. Work activity. Sistema Único de Assistência Social. Professional genre.


RESUMEN

Estudios sugieren relaciones entre trabajo y enfermedad de psicólogos que trabajan en el Sistema Único de Asistencia Social. Considerando la importancia del trabajo de profesionales de Psicología en estos servicios, el objetivo era aproximar el discurso de los psicólogos que trabajan en la protección social básica, en Vitória-ES, sobre su trabajo y la teoría de las Clínicas de Actividad, en particular el concepto de género profesional, para posibilitar la discusión sobre la actividad laboral y los aspectos que la involucran en el proceso de producción de salud/enfermedad de estos profesionales. Se realizaron entrevistas semiestructuradas, analizadas por análisis de contenido según Bardin. Se descubrió que el posible debilitamiento del género de estos trabajadores contribuye a que no se los reconozca en su actividad, despotencializando la producción de salud. Es importante promover estudios que busquen comprender en profundidad el género profesional de estos técnicos y su entrelazamiento con la salud ocupacional.

Palabras clave: Psicología. Actividad laboral. Sistema Único de Assistência Social. Género profesional.


 

 

Introdução

O texto que se segue apresenta o relato de uma pesquisa sobre o trabalho dos psicólogos na proteção social básica, em Centros de Referência de Assistência Social (Cras), e os entrelaçamentos da atividade de trabalho desses profissionais com a sua saúde laboral. Para tal, buscou-se realizar uma aproximação entre o relato dos técnicos e a teoria da Clínica da Atividade (CAt), em especial o conceito de gênero profissional que, como veremos, demonstra-se potente para se pensar sobre tais questões. Desse modo, idealizamos favorecer e ampliar o debate sobre os processos que perpassam a atividade de trabalho do psicólogo nesses espaços, subsidiados pelas narrativas dos protagonistas dessa construção.

 

A atuação do psicólogo no Cras

Os serviços de proteção social básica são executados de forma direta em Cras que se localizam em áreas de vulnerabilidade social. O Cras atua na prestação de serviços socioassistenciais a famílias e indivíduos em seu contexto comunitário, visando ao fortalecimento de vínculos e o convívio sociofamiliar. Nesse sentido, realizam a organização e coordenação das redes socioassistenciais locais e são responsáveis pela oferta do Programa de Atenção Integral à Família - Paif (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2009).

De acordo com a Política Nacional de Assistência Social - PNAS (MDS, 2005), o psicólogo participa de todos os serviços, programas, projetos e benefícios ofertados pelo Cras, articulando sua atuação com a equipe de referência composta, minimamente, por um coordenador, com nível superior e experiência em trabalhos comunitários e gestão de serviços socioassistenciais; um assistente social e dois técnicos de nível médio (MDS, 2009). Ainda que a política pública afirme que o psicólogo é indispensável à atuação socioassistencial devido à obrigatoriedade de sua presença na equipe técnica (Lima, 2014), várias dessas demandas de trabalho escapam ao escopo do saber da Psicologia, fazendo com que seja necessária a criação de novos referenciais que orientem as práticas dos psicólogos que atuam nesses espaços (Oliveira, Dantas, Solon & Amorim, 2011; Yamamoto & Oliveira, 2010).

Buscando fornecer orientações teórico-metodológicas que subsidiassem, de alguma forma, o trabalho desses profissionais na proteção social básica, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), em parceria com o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop), publicou em 2007, e reimprimiu em 2008, o guia de "Referências Técnicas para a atuação do psicólogo no Cras/Suas" (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2008; Cruz, 2009; Silva & Corgozinho, 2011). Embora o documento supracitado tenha produzido informações importantes para a atividade dos psicólogos que atuam na assistência social, ainda se apresentava, em grande medida, insuficiente para orientar a atuação prática desses trabalhadores (Beato et al., 2011; Silva & Corgozinho, 2011).

Partindo das considerações apresentadas, Beato et al. (2011) relatam em seu trabalho uma dupla ansiedade produzida pela imprecisão das normas e diretrizes de atuação no Cras que, paradoxalmente, deviam ser seguidas estritamente pelos psicólogos. Além do mais, a impossibilidade da prática clínica em sua concepção clássica, aliada à falta de clareza apresentada pela equipe técnica quanto ao papel do psicólogo no Cras, contribui para que esses trabalhadores não se reconheçam como profissionais de Psicologia a partir de sua atuação na proteção social básica (Beato et al., 2011; Ribeiro & Guzzo, 2014). Aliado a isso, Ribeiro e Guzzo (2014) destacam que a terceirização, as condições precárias de trabalho, a falta de formação e a dificuldade de articulação com as redes socioassistenciais contribuem para a desmobilização desses profissionais, em busca da construção de grupos de discussão sobre a atividade de trabalho nesses espaços.

Tomando como base o recorte das falas dos psicólogos entrevistados pelos autores mencionados, encontramos na teoria da CAt uma possibilidade potente de análise de alguns elementos encontrados na realidade de trabalho desses profissionais. A partir da aproximação com o conceito de gênero profissional, podemos ter um vislumbre do porquê referenciais estabilizados e coletivamente partilhados são fundamentais para a atuação, das construções que possibilitam ao profissional reconhecer-se em sua atividade, e de como essas questões se envolvem na produção de saúde ou, ao contrário, de sofrimento.

 

A Clínica da Atividade

A CAt é uma perspectiva teórico-metodológica idealizada por Yves Clot, deliberadamente filiado à escola russa de Psicologia fundada por Vygotsky. Tal abordagem teórico-metodológica apresenta o coletivo de trabalho como uma de suas questões centrais. Para além de um grupo de trabalhadores reunidos para um fim preciso, o coletivo se apresenta como recurso para o desenvolvimento psicológico de cada trabalhador a ele vinculado (Clot, 2006). De fato, envolve o compartilhamento de um conjunto de valores, formas de ser e de se relacionar com os outros e com os objetos, definindo com mais ou menos precisão o que é desejável ou não de se fazer (Vidal-Gomel, Delgoulet & Geoffroy, 2014).

Na Cat, a dimensão do coletivo de trabalho é içada a um patamar tão importante que se transmuta, originando outro conceito: o gênero profissional (Clot, 2006). Antes, porém, convém explicitar a base a partir da qual construiremos as discussões posteriores: o real da atividade de trabalho. Segundo Melo (2011), a CAt passa a ter como objetivo compreender não apenas o que deve ser feito - a tarefa - ou o que foi, de fato, realizado - a atividade-, tal qual alega o axioma central das teorias ligadas à tradição da ergonomia francófona. Na teoria da CAt, Clot (2007, 2010) desenvolve o conceito de real da atividade de trabalho, que se refere ao conflito sempre presente entre a atividade dos outros sobre o objeto de trabalho, os modos de saber-fazer imbricados nesse objeto e as questões pessoais e sociais do próprio sujeito, isso tudo em sua diversidade e contradições. Assim, em sua ação, o sujeito irá se engajar na escolha de uma das soluções possíveis para a realização da tarefa em uma gama de possibilidades presentes nesse conflito, não realizadas e existentes somente enquanto potência, mas que nem por isso deixam de influenciar sua atividade de trabalho (Clot, 2007; Roger, 2013).

Em outras palavras, o real da atividade de trabalho se refere à densidade de fatores que se digladiam para viabilizar a realização da ação na qual o trabalhador apostou para dar conta da tarefa, considerando-se que essa ação é apenas uma opção das muitas possíveis que, por razões várias, não puderam se realizar, mas que nem por isso deixam de influenciar o desenvolvimento dos trabalhadores e do trabalho (Roger, 2013; Santos, 2006). Com o conceito de real da atividade, Clot propõe uma discussão da atividade de trabalho para além das dimensões da tarefa e da atividade - que permanecem importantes, mas que sozinhas não dão conta da complexidade existente no desenvolvimento da ação do sujeito que trabalha (Santos, 2006).

Segundo a CAt, na medida em que o trabalho que é efetivamente realizado se difere da tarefa que foi prescrita inicialmente, realizam-se "transgressões" à prescrição, que, com o tempo e sua importância para viabilização dos objetivos no trabalho, passam a ser compartilhadas e validadas em determinado espaço sócio-histórico por um coletivo de trabalhadores; compondo um recurso que pode ser acessado pelo sujeito e que se transmuta em instrumento para a ação, uma vez que media sua atividade de trabalho diante dos inesperados do real. Esse conjunto de esperados genéricos da atividade, mutável e vivente no seio do coletivo de trabalho, se perpetuará ao longo da história daqueles profissionais (De Freitas Fonseca & Aguiar, 2013). Podemos dizer, então, que esse espaço virtual, coletivamente partilhado, no qual serão ou não validadas as apropriações singulares das formas de se pensar e fazer uma tarefa, é o que Clot denomina como gênero profissional.

Esse conceito pode ser descrito como um plano de referência, ou melhor, um arcabouço no qual estão dispostas regras transpessoais que ordenam modos provisórios de saber-fazer no trabalho, momentaneamente materializados e validados pelos pares de um ambiente profissional, mediando a atividade de trabalho dos sujeitos in sito (Ruelland-Roger, 2013; Mattedi et al., 2014). Essa formalização, conforme aduz Clot (2007, p. 39), "é com frequência invisível do exterior, distribuída, 'natural', impalpável e, em resumo, apreendida na ação".

A ausência ou a fragilidade desse conjunto de normas genéricas compartilhadas pode reduzir a saúde no ambiente de trabalho. O coletivo de trabalho restringe-se, então, a uma união de indivíduos isolados que devem lidar sozinhos com os imprevistos e obstáculos que surgem no real do trabalho (Clot, 2007; Mattedi et al., 2014). Dessa forma, tendo em vista que um gênero enfraquecido ou ausente se reflete na despotencialização da saúde dos profissionais, a produção e socialização dos saberes mostram-se fundamentais para a realização do trabalho e para a produção de saúde.

Ora, a presente discussão possibilita conjecturar que o conceito de gênero profissional se mostra profícuo na busca por compreender o trabalho dos psicólogos na proteção social básica, assim como seus entrelaçamentos com a saúde desses profissionais. Dessa forma, objetivou-se realizar uma aproximação entre o discurso dos profissionais psicólogos que atuam em Cras sobre seu trabalho e a teoria da CAt, em especial o conceito de gênero profissional, a fim de viabilizar a discussão sobre atividade de trabalho e os atravessamentos que a envolvem no processo de produção de saúde/doença.

 

Método

O estudo foi realizado no estado do Espírito Santo com psicólogos que, na época, atuavam em Cras no município de Vitória. Foram entrevistados 13 profissionais, 12 do sexo feminino e um do sexo masculino, que trabalhavam nos 12 Cras no município de Vitória-ES. Destaca-se que três das instituições pesquisadas tinham dois psicólogos em suas equipes, sendo um deles responsável pelo Programa Capixaba de Redução da Pobreza - Programa Incluir, um programa do governo estadual em parceria com o governo federal que tem como objetivo ampliar o acesso dos munícipes que se enquadram nos critérios do programa aos serviços socioassistenciais e às demais políticas públicas, além da garantia de renda. Um assistente social e um psicólogo compõem sua equipe de referência, que, com os técnicos responsáveis pelo serviço Paif, acompanham as famílias cadastradas no referido programa (Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, 2012). Ressalva-se, ainda, que durante o período inicial da pesquisa não foi possível entrevistar um dos profissionais e uma das instituições ainda aguardava a entrada de um psicólogo em sua equipe.

Dos entrevistados, foi possível verificar que cinco dos psicólogos tinham mais de seis anos de atuação em Cras, outros quatro trabalhavam nesse tipo de serviço por um período que variava entre três e cinco anos, enquanto quatro dos profissionais tinham em média um ano de serviço. Cabe destacar que, com exceção de apenas dois, nenhum profissional trabalhava há mais de um ano e quatro meses na instituição em que se encontrava quando a entrevista foi realizada. Além do mais, cinco dos profissionais entrevistados tinham vínculo empregatício por contrato temporário com a prefeitura, sendo os demais vinculados a uma Organização não Governamental.

Instrumentos e procedimentos para a coleta das informações

Como instrumento, foi utilizada a entrevista individual semiestruturada, que, segundo Fraser e Gondim (2004, p. 139), se configura como uma "forma de interação social que valoriza o uso da palavra, símbolo e signo privilegiados das relações humanas, por meio da qual os atores sociais constroem e procuram dar sentido à realidade que os cerca". Tal instrumento possibilitou a elaboração de um roteiro que permitiu flexibilidade na condução da entrevista, uma vez que os participantes tinham papel ativo na construção do processo. Ademais, a abertura presente durante a interação contribuiu, em certa medida, para que o trabalhador refletisse acerca da sua atividade de trabalho.

Destarte, as entrevistas foram conduzidas de acordo com o conteúdo verbal apresentado pelo profissional, com questões que versavam sobre temas como: vivência laboral em Cras, suporte dos pares, suporte teórico, experiência na assistência social e condições de trabalho. Realizadas individualmente, foram precedidas por uma breve explicação sobre o estudo e, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), gravadas e transcritas na íntegra para posterior análise.

Procedimentos para a análise das informações

A análise do material coletado foi realizada utilizando-se os pressupostos metodológicos da análise de conteúdo idealizados por Laurence Bardin, que entende a análise de conteúdo como "conjunto de técnicas de análise da comunicação que visam obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens" (Bardin, 1977, p. 42). A técnica utilizada foi a de análise categorial temática, que consiste na divisão do texto em unidades, em categorias, a partir da investigação dos temas do discurso.

Em uma primeira etapa, foi realizada leitura flutuante do material e marcação de verbalizações que poderiam representar os temas, sendo estes classificados em categorias, pelo critério de semelhança de significado semântico e lógico. Na segunda etapa, as categorias resultantes da análise foram agrupadas, obedecendo aos critérios de semelhança de significado semântico e lógico, compondo categorias-síntese apresentadas a seguir.

Cabe aqui retomar algumas questões para uma breve consideração teórica sobre o método utilizado. Conforme é possível depreender do exposto até o momento, percebe-se que trabalhar não é apenas executar prescrições, mas usar uma forma pessoal à ação realizada, ação esta que é mediada pelos pressupostos genéricos da atividade - construídos e alimentados no e pelo coletivo de trabalho. Conforme aduz Gomes (2009), ainda que o trabalho seja o objeto de análise, ao se utilizar uma metodologia científica formal, dificilmente se alcança a constante transformação/produção da atividade de trabalho.

Osório (2010) esclarece que, ao ter sua atividade analisada, o trabalhador não revelará ao pesquisador a verdade acerca de seu trabalho. Na presença do analista, ele irá se confrontar com diferentes facetas da atividade, com seus possíveis e possíveis não realizados. Assim, a vivência do trabalho "é sempre uma (re)criação, uma novidade, não pode ser facilmente apreendida em palavras ou descrita previamente, mesmo levando em consideração o depoimento daqueles que trabalham" (Osório, 2010, p. 44).

Portanto, esclarecemos que o método proposto não favorece, de acordo com os pressupostos adotados pela CAt, a análise aprofundada dos meandros da atividade de trabalho do psicólogo em Cras, tampouco beneficia a visibilidade do gênero profissional desses atores. Reforçando o argumento com Clot (2007), somente quando ocorre alguma perturbação à regra que o gênero irá se manifestar, pois o gênero é invisível, informal e transpessoal. Dito isso, essas questões não impedem que a CAt seja utilizada como suporte para se pensar o trabalho e a saúde laboral desses profissionais a partir de aproximações possíveis; em que pese as limitações do método adotado pelo presente estudo, favoreceu-se espaço para que os psicólogos pudessem realizar algumas reflexões sobre seu trabalho.

 

Resultados e discussão

Condições de trabalho

De acordo com a fala dos entrevistados, devido às constantes reduções de equipes com a finalidade de contenção de gastos, é intensa a rotatividade entre os profissionais de Psicologia, de forma que, ao completarem um ano de atuação em um Cras, são realocados em outro equipamento. De acordo com um dos participantes, a rotatividade é justificada pela gestão como "sair da zona de conforto". Como explicitado pela profissional, "Hoje se tem a impressão, pelo menos a impressão que eu tenho, se você começa a ficar muito tempo num território você começa a ser mal visto, vão mudar porque a pessoa não pode, é... Como é que eles falam?! Ela não pode... Ela precisa sair da zona de conforto" (P2).

Serpa (2012), em uma análise da política de assistência social do município de Vitória, destaca a alta rotatividade presente entre os profissionais da assistência social. Entretanto, os resultados relatados pela autora vão de encontro à fala dos participantes, ao mencionar que isso decorre da busca dos próprios profissionais por melhores condições empregatícias. Interessante notar, nesse caso específico, que a rotatividade está ocorrendo não porque o profissional deixa o serviço, mas por uma iniciativa da gestão. Cabe indagar os efeitos que estão sendo produzidos nos profissionais e nos usuários do serviço devido à adoção dessa nova postura.

A intensa rotatividade foi vista por todos os 13 participantes como prejudicial, tanto para o profissional de Psicologia quanto para o munícipe que é usuário do serviço, uma vez que, para os profissionais entrevistados, o estabelecimento de um vínculo com a família que é acompanhada pelo Paif leva certo tempo e demonstra-se fundamental para a realização do trabalho, conforme foi explicitado pela fala de um dos psicólogos em relação à importância do vínculo - "porque a gente percebe que, assim, os munícipes podem vir por benefício, mas eles continuam pelo vínculo, né, por confiar em você" (P10) - e complementado por um participante acerca da influência da rotatividade no trabalho - "Se eles não têm um vínculo com você, eles não vão ter adesão porque eles não sabem se eles podem confiar! Porque também tem casos delicados, tem situações delicadas" (P8).

O fortalecimento de vínculos comunitários e familiares constitui a base das ações que são desenvolvidas em Cras, previstas na PNAS, 2004 (MDS, 2005). O documento ora citado caracteriza a proteção social básica como ações preventivas que reforçam convivência, socialização, acolhimento e inserção; visando "prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários" (MDS, 2005, p. 33). Ademais, no documento de referências técnicas para atuação do psicólogo no Cras/Suas (CFP, 2007), a promoção e o fortalecimento dos vínculos socioafetivos aparece como uma das atividades do psicólogo no Cras.

Cabe destacar que, embora a PNAS (MDS, 2005) coloque que o vínculo deve ser estabelecido com o serviço, por se tratar de uma relação que passa, invariavelmente, pela dimensão do afeto e da confiança, os munícipes se vinculam aos técnicos e não ao serviço. Dessa forma, podemos perceber que o aumento da rotatividade prejudica a base das ações previstas para serem realizadas em Cras.

Os relatos evidenciaram que, seguindo o que é preconizado pelas orientações técnicas para Cras (MDS, 2009), as equipes do Cras têm ao menos um técnico de nível superior que trabalha oito horas diárias. Nos Cras visitados, esse profissional é o psicólogo, pois segundo a Lei nº 12.317, de 26 de agosto de 2010, a jornada de trabalho para assistentes sociais é de 30 horas semanais. Dessa forma, fatores como a carga horária de oito horas diárias, citada por três participantes, e a cobrança por maior produtividade, presente na fala de cinco entrevistados, foram mencionados como questões que contribuem para o adoecimento profissional. Conforme salientam:

A gente é cobrado como técnico de 8 horas, é o tempo inteiro, a nossa produção tem que ser maior, porque nós somos 8 horas. Então, a gente já é penalizado porque não recebe uma capacitação adequada pra entrar no trabalho, né, [...] e na hora do vamo vê, a gente tem que produzir mais. (P2)

Além do mais, a falta de recursos para realizar as atividades, apontada por três psicólogos, a falta de autonomia e a baixa remuneração, presentes na fala de dois entrevistados, também foram fatores relacionados à saúde laboral, conforme citou um participante: "O profissional luta muito, muito, muito, muito, muito com o que que restou sabe?! Talvez esse foi o adoecimento do profissional e a perda do munícipe de perder um bom profissional. Ele não dá mais conta, sabe?!" (P3).

Os psicólogos do presente estudo não fugiram ao cenário exposto na literatura (Cruz, 2009; CFP, 2010; Macedo, Larocca, Chaves & Mazza, 2011), trabalhando com vínculos empregatícios precários, baixa remuneração e, agora, contando com poucos recursos para desenvolver suas atividades.

Suporte dos pares

O relato dos participantes evidenciou que os psicólogos que atuavam há mais de seis anos na proteção social básica entraram em uma época na qual, ao ingressar no serviço de assistência social de Vitória, o profissional tinha a oportunidade de vivenciar um processo de capacitação no qual aprendiam sobre o Suas e os critérios da assistência. Paralelo a essa capacitação, o profissional tinha a oportunidade de aprender com um psicólogo que se encontrava há mais tempo no serviço, acompanhando os atendimentos desse profissional, conforme o trecho de uma participante que iniciou suas atividades em Cras no ano de 2008: "Eu passei tanto por treinamento, na Escola de Governo, e também fiz... Comecei a aprender junto com outro profissional de Psicologia. [...] Eu comecei a fazer esse trabalho com ele. Ele me apresentou pras famílias..., como é que fazia" (P2).

Ao versar acerca da implantação do Suas em Vitória, Serpa (2012) menciona que a formação continuada se desenvolveu no município por meio de um curso introdutório ao Suas e de cursos de aprofundamento de temáticas relacionadas às diretrizes e eixos estruturantes do sistema social, que eram realizados em parceria com a Escola do Governo de Vitória (EGV), objetivando "difundir os princípios, diretrizes e conceitos básicos que orientam a política e a organização do Suas" (Serpa, 2012, p. 91). Entretanto, fica nebuloso o período no qual esses cursos começaram a ser ofertados aos trabalhadores, e quando eles não puderam mais ser solicitados pelos profissionais que ingressavam no serviço.

Obtivemos uma ideia mais clara da temática supracitada com Carvalho (2010), que, ao caracterizar a amostra de seu estudo também realizado no município de Vitória, relata que os profissionais que atuavam na assistência social participavam de capacitações ofertadas pela prefeitura. Contudo, menciona que tais cursos se mostravam insuficientes, poucos eram os profissionais que tinham acesso, e que não tinham conteúdos que atendessem às demandas dos trabalhadores. Dessa forma, podemos inferir que o suporte teórico ofertado pela gestão, em 2008, para a participante dois (P2), no relato citado, sofreu alterações no decorrer do tempo, conforme evidenciado por Carvalho (2010), não sendo mais oferecido aos profissionais que ingressam no serviço atualmente.

Os psicólogos que atuavam há mais de seis anos no serviço informaram que, em 2008, devido à falta de suporte teórico e técnico satisfatório para a realização de sua atividade em Cras, os profissionais de Psicologia fundaram um fórum, objetivando discutir e construir conjuntamente o espaço do psicólogo na política de assistência social. As reuniões ocorriam mensalmente, durante o expediente de trabalho, e delas participavam todos os psicólogos dos 12 Cras de Vitória. O fórum era realizado inicialmente nos espaços dos Cras e, posteriormente, os psicólogos conseguiram respaldo do Conselho Regional de Psicologia da 16ª Região - ES (CRP16) para realizar suas reuniões no espaço do Conselho. Entretanto, após o translado das reuniões para o CRP16, tiveram início as relações conflituosas com a gestão, em vigor na época, da Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura Municipal de Vitória (Semas/PMV), culminando na extinção do fórum, que, na ocasião, tinha pouco mais de dois anos de existência. Veja-se o relato pertinente reproduzido a seguir: "Foi um pouco complicado, porque, na época que a gente foi pro Conselho, a gente teve alguns problemas na gestão, assim, como se os psicólogos estavam se reunindo por uma questão de resistência; [...] era muito pejorativo" (P4).

Tendo em vista que para Clot (2007) o desenvolvimento psicológico se dá por meio da atividade de trabalho, o espaço de trabalho não é somente um local para a realização de tarefas; ele também promove o desenvolvimento subjetivo dos indivíduos. Assim, diante de prescrições genéricas como "articulação de ações que potencializem as boas experiências no território de abrangência" (MDS, 2009, p. 63) e com escasso suporte teórico-técnico para a realização de sua atividade, haja vista que em 2008 as discussões sobre a atuação do psicólogo na assistência social ainda se encontravam incipientes, os psicólogos construíram o fórum, que parece ter se efetivado como um coletivo de trabalho. Tal iniciativa pode ter representado não só a possibilidade de uma produção coletiva de suporte para atuar em Cras, mas também a construção da própria subjetividade dos profissionais, como psicólogos da assistência, "já que a identificação com [uma] profissão somente é possível caso os coletivos que a constituem disponibilizem materiais simbólicos necessários para construção desse vínculo singular entre um trabalhador e suas atividades" (Moraes, Rohr & Athayde, 2015, p. 80).

Ao que parece, as diferentes formas que os psicólogos encontravam para realizar sua tarefa eram confrontadas e validadas ou não no coletivo de trabalho, elas constituíam-se como possibilidade viável, ou inviável, de se fazer a atividade, configurando-se como possível instrumento de trabalho (De Freitas Fonseca & Aguiar, 2013). Podemos ter um vislumbre de tal processo no relato de um dos participantes: "Ainda se discutia muito a visão do psicólogo dentro do Cras. Então, a gente fazia os encontros com os psicólogos, né, os psicólogos se reuniam pra gente discutir também qual a nossa função. E gente chegava, às vezes, em conceitos próprios [...]" (P7).

A fala nos instiga a pensar que, aos poucos, esses profissionais estavam produzindo um modo de ser psicólogo que lhes permitiu "apreender e reinventar os meios de trabalho, renormatizando as formas de realizar as tarefas a partir de uma gestão de si e das atividades, onde cada trabalhador é mais que um reflexo passivo das imposições e dificuldades da profissão" (Moraes et al., 2015, p. 81).

Esse referencial, elaborado entre os trabalhadores, possivelmente estabelecia regras informais e mutáveis numa situação que se referia a um contexto específico de trabalho e que dizia de um conjunto de aptidões importantes na história daquele grupo de trabalhadores. Em outras palavras, dizemos de um conjunto de regras pré-ordenadas pelo coletivo de trabalho que informarão como cada trabalhador deve agir individualmente e às quais o grupo profissional se sujeita. Além do mais, elas também regem a relação com os objetos da ação, e as regras que ordenarão a relação dos trabalhadores entre si (Clot, 2007).

A partir da discussão exposta até o presente momento, podemos inferir que o fórum de psicólogos estava contribuindo para construir as bases para o desenvolvimento embrionário do gênero profissional de psicólogos que atuavam em Cras de Vitória e, com isso, produzindo e potencializando a saúde desses profissionais (Clot, 2007). Entretanto, antes que esse gênero embrionário pudesse ter espaço e tempo para se desenvolver e consolidar, o fórum foi rompido: "E aí ela [a gestão da Semas/PMV] rompeu esse grupo de estudo, e que era um grupo, assim, riquíssimo! [...] foi a maior chateação que foi, na época que aconteceu... [...] E a gente queria a saúde do trabalhador! A gente só queria não adoecer!" (P2).

Com o passar do tempo, várias tentativas de retornar o grupo foram realizadas. Entretanto, os encontros advindos de tais tentativas eram esvaziados e interpretados com certo receio, uma vez que alguns profissionais que participaram do primeiro fórum sofreram sérios prejuízos em seu trabalho.

Para os profissionais entrevistados que não tiveram a oportunidade de pertencer ao fórum, a pouca especificidade da tarefa e a ausência de um suporte de pares para discussão sobre a atuação em Cras produziram um sentimento de desamparo e certo despreparo para a atuação, conforme o trecho que segue: "Eu entrei e já fui trabalhar, né, recebi umas 10 apostilas. 'Leia, aprenda, atue, faça!' [...] já chega, né, e 'opa, o que que eu vou fazer? Como eu vou fazer? Eu preciso dar conta, já tem uns números pra cumprir'" (P3).

Interessante observar que resultados semelhantes foram encontrados por Fontenele (2008), em um dos primeiros estudos sobre a atuação do psicólogo na assistência. Percebe-se, assim, que os profissionais parecem vivenciar um sentimento que se assemelha a uma precariedade subjetiva, caracterizando-se como um "sentimento de precariedade que podem ter assalariados estáveis confrontados com exigências cada vez maiores em seu trabalho e que estão permanentemente preocupados com a ideia de nem sempre estar em condições de responder a elas" (Linhart, 2010, p. 1, citado por Galbiatti, 2015).

Vivências no trabalho

Oito psicólogos, dos 13 profissionais entrevistados, apontaram em seu discurso que a atividade ainda era vista com certa estranheza, como se a realização de algumas tarefas os descaracterizasse como psicólogos, especialmente aquelas relacionadas à concessão de benefícios eventuais. Ademais, a constante menção de que são técnicos de nível superior contribui para o sentimento de que estão atuando em um campo no qual não se reconhecem, conforme salientou um dos participantes: "A gente aprende é: que você é técnico dentro do Cras. Você não é psicólogo, você é técnico, né? E eu não sou técnica! Eu sou psicóloga!" (P3).

Em consonância com o que foi discutido na categoria anterior, encontramos que a ausência de uma tarefa específica para o psicólogo, aliada a uma formação deficitária acerca de seu papel na assistência, produz no profissional que ingressa no serviço a sensação de não ter uma função como psicólogo (Cruz, 2009; Fontenele, 2008; Silva & Corgozinho, 2011; Yamamoto & Oliveira, 2010), segundo o trecho: "[...] meio sem função; eu me sentia sem função. Hoje, assim, eu tava até falando essa semana aqui com as colegas de trabalho, 'ai, às vezes eu nem me sinto psicólogo aqui no Cras', eu acho que é uma angústia que todo psicólogo que trabalha no Cras tem isso" (P1).

Importante lembrar que o sentimento de descaracterização profissional foi relatado somente por um profissional, entre os quatro que participaram do fórum anteriormente mencionado. Ao abordar determinado episódio, relativo à concessão de benefícios eventuais, uma participante mencionou:

E aí, a gente não pode fazer esse atendimento olhando ele [o usuário do serviço] como um todo, holisticamente, a gente tem que saber apenas se está dentro dos critérios ou não está, se eu concedo ou eu não concedo. Então, há um sofrimento. Esse adoecimento, também, passa por esse sofrimento. [...] A gente tem que ficar o tempo inteiro se policiando: 'Opa, eu não sou psicólogo, não posso ser psicólogo'. (P2)

Nota-se na fala da participante o uso da locução pronominal "a gente" e não do pronome "eu", como se tal experiência fosse compartilhada pelos demais profissionais, e não apenas por ela. Interessante notar que "psicólogo" é utilizado no masculino e não no feminino, sugerindo que não se trata dela, mas de uma entidade, "ser psicólogo", que perpassa aqueles que pertencem a determinada categoria e delimita "as fronteiras móveis do aceitável e do inaceitável no trabalho" (Clot, 2007, p. 49), ou seja, o gênero profissional.

Cônscios de que o gênero profissional é ao mesmo tempo um traço de união, mediante ao qual o sujeito se reconhece e experiencia um sentimento de pertença, e um reservatório de recursos (Clot, 2007), o trecho da entrevista pode nos indicar que, mesmo não sendo possível se desenvolver, a construção coletiva promovida no fórum parece ter possibilitado aos psicólogos delimitar sua atividade no Cras e ter relativa segurança para exercer seu papel. Entretanto, não se consolidou de forma suficiente para suprir a necessidade de uma referência de identificação profissional.

Com relação a essa questão, a locução pronominal "a gente", o pronome "nós" e a denominação "o psicólogo" surgiram na fala de sete entrevistados associados à realização de grupos (em uma vinculação semelhante ao suporte terapêutico) e ao atendimento individual, relacionando-se com sentimentos como frustração e/ou descaracterização profissional. Outros dois entrevistados utilizaram tais termos ao versar acerca da falta de suporte para a realização da atividade no Cras, associado a sentimentos como frustração e/ou descaracterização profissional.

Podemos supor que os psicólogos entrevistados, embora entendessem as prescrições para a atuação em Cras e se orientassem no sentido de realizar o trabalho, se identificavam com o gênero de Psicologia, do "ser psicólogo", e não com um gênero construído a partir da atividade de trabalho do coletivo de psicólogos atuantes em Cras, uma vez que este parece não ter passado de sua fase embrionária. Dessa forma, talvez essa seja uma justificativa para a produção de certo sentimento de descaracterização profissional relatado pelos participantes, pois o "ser psicólogo" ainda vincula-se em grande medida ao modelo clínico liberal privatista, o modelo da psicoterapia individual de inspiração psicanalítica, que privilegia a subjetividade em detrimento da realidade sócio-histórica e, portanto, não fornece subsídio para a atuação profissional na assistência social, haja vista as discussões presentes na literatura (Cruz, 2009; Fontenele, 2008; Oliveira, et al., 2011; Silva & Corgozinho, 2011; Yamamoto & Oliveira, 2010).

Por fim, quatro profissionais, ao usarem os termos analisados, referiram-se à construção e ao fortalecimento de vínculos e à realização de grupos, no sentido de mobilização para a ação e promoção de empoderamento dos munícipes. Cabe destacar que, entre esses quatro trabalhadores, somente uma entrevistada não participou do fórum de psicólogos. Entretanto, relatou que atuou na área da saúde e que, para a realização de sua tarefa, buscou adequar algumas das produções partilhadas pelos trabalhadores daquele ofício, conforme sua fala: "Eu meio que peguei mais ou menos o que se fazia no hospital, e meio que transferi pra cá" (P10).

Ora, supondo-se que o gênero de psicólogos que atuam em Cras ainda não se desenvolveu de forma satisfatória, o trabalhador deve lidar individualmente com os imprevistos presentes no meio de trabalho. Diante disso, semelhante aos outros psicólogos que não participaram do fórum, a participante salientou que recorreu às formas de se pensar o fazer no trabalho, que não condiziam com as especificidades da atuação na assistência social, mas que permitiam "mais ou menos" a realização de sua tarefa.

Como colocam Moraes et al. (2015), é essencial que haja um gênero profissional para que o trabalhador realize estilização, uma apropriação singular do gênero dada durante os constrangimentos e imprevisibilidades da atividade cotidiana. O que parece se evidenciar diante da aparente precariedade na qual se encontra o gênero profissional dos psicólogos que atuam em Cras e da fragilidade de um coletivo de trabalho que permita "a produção de meios de se compreender, atuar e transformar - a si mesmo, os colegas, as condições e as exigências do trabalho" (Moraes et al., 2015, p. 79), é a redução da possibilidade de o psicólogo transformar sua tarefa e criar outros possíveis, a partir da mediação do gênero profissional; o que dificulta reconhecer-se em sua atividade de trabalho e contribui para a produção do adoecimento relatado na fala dos profissionais.

Evidenciar essa questão adquire fundamental importância, uma vez que se reconhecer naquilo que se faz implica na possibilidade de ser capaz de fabricar seu ofício. Envolve compreender a prescrição, apropriar-se dela e, diante dos obstáculos do real, confrontá-la com um arcabouço de formas de saber-fazer, de normas e pactuações, que são fruto de tentativas, de erros e acertos construídos ao longo de uma história de trabalho em comum (Clot, 2010). A gestão desse conflito, que também inclui os valores, possibilita que o trabalhador tenha "liberdades" com a tarefa, "não lhe virando as costas, mas renovando-a. E essa renovação reclama dos profissionais que eles se sintam importantes em uma história a fazer viver" (Clot, 2013, p. 7).

Destarte, no que se refere ao psicólogo que trabalha em Cras, conforme viemos explicitando, a possibilidade de reconhecer-se em sua atividade de trabalho se vê diminuída exatamente pela dificuldade de se realizar esse debate de forma sadia com o trabalhador. Conforme ressalta Clot (2010, p. 290), "quando esse movimento é impedido ou contrariado, é que o trabalho se torna um risco para a saúde".

Por fim, agregando aos nossos resultados, Barreto (2011, p. 413), em seu relato acerca da atuação na assistência social, menciona "a vivência de episódios depressivos, de experiências de frustração e de contínuo stress, com uma sensação habitual de sobrecarga nas demandas e impossibilidade de completar o trabalho". Ainda segundo esse autor, tais experiências são "comuns em profissionais que atuam na área social".

 

Considerações finais

A partir do estudo, encontramos algumas pistas que sugerem que os psicólogos que atuam em Cras vivenciam um aparente enfraquecimento dos recursos de ofício que caracterizam uma construção coletiva. Assim, a partir das aproximações realizadas, arrisca-se supor que, diante da impossibilidade da manutenção de discussões sobre a atividade de trabalho em Cras - seja diretamente, mediante aà ausência de espaços formais de discussão, seja indiretamente, devido à intensa carga de trabalho -, as estratégias singulares que respondem aos dramas do real do trabalho deixaram de ser compartilhadas, validadas ou não, e recriadas entre pares.

Nesse sentido, aquilo que foi iniciado no fórum de psicólogos e que ao longo do tempo poderia se aglutinar em memória transpessoal e sócio-histórica do ofício, ampliando a capacidade de agir dos trabalhadores e dotando de sentido e significado a atividade laboral, deixou de ser alimentado pelas trocas e recriações do/no coletivo de trabalho e enfraqueceu-se. Aliado a isso, as precárias condições de trabalho identificadas e a dificuldade de se reconhecer como profissional de Psicologia em sua atividade parecem confluir, despotencializando a produção de saúde no trabalho dos psicólogos em Cras.

Diante disso, adquire fundamental importância promover estudos que se proponham a compreender o gênero profissional dos psicólogos que atuam em Cras e seu entrelaçamento com a saúde laboral. Realizar essa análise pode possibilitar o despertar para a (re)construção de referenciais coletivos de atuação instigados a partir dessas reflexões, viabilizando também a construção de negociações entre trabalhadores que possam vir a intervir, inclusive, na própria organização do trabalho.

 

Referências

Bardin L. (1977). Análise de conteúdo (L. A. Reto & A. Pinheiro, Trad.). Lisboa: Edições 70. (Original publicado em 1977).         [ Links ]

Barreto, A. F. (2011). Sobre a dor e a delícia da atuação psicológica no Suas. Psicologia Ciência e profissão, 31(2), 406-419.         [ Links ]

Beato, M. S. F., Sousa, L. A., de Florentino, B. R. B., Junior, W. M., Neiva, K. M., & Toffaneli, V. F. (2011). A identidade profissional em questão. In Conselho Regional de Psicologia (CRP-MG); Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas - Crepop-MG (Orgs.). A Psicologia e o trabalho no Cras (pp. 39-54). Belo Horizonte: Autor.         [ Links ]

Carvalho, A. P. (2010). Olhando uma realidade, olhando o outro: representações sociais da pobreza e do usuário entre os profissionais da assistência social. Dissertação de mestrado em Política Social, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia. (2007). Referência técnica para atuação do(a) psicólogo(a) no Cras/Suas. Brasília: Autor.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia. (2010). Atuação dos psicólogos no Cras/Suas. Relatório descritivo preliminar de pesquisa. Brasília: Autor.         [ Links ]

Cruz, J. M. O. (2009). Práticas psicológicas em Centro de Referência da Assistência Social (Cras). Psicologia em foco, 2(1), 11-27.         [ Links ]

Clot, Y. (2006). Entrevista: Yves Clot. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 9(2), 99-107.         [ Links ]

Clot, Y. (2007). A função psicológica do trabalho (A. Sobral, Trad.). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1999).         [ Links ]

Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir (G. J. de Freitas Teixeira e M. M. Z. Vianna, Trad.). Belo Horizonte: Fabrefactum. (Original publicado em 2008).         [ Links ]

Clot, Y. (2013). O ofício como operador de saúde [n. especial]. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 16(1), 1-11.         [ Links ]

De Freitas Fonseca J. C., & Aguiar I. O. (2013). Clínica da Atividade no contexto brasileiro: sobre ciências, territórios e compreensões. In A. Pujol & C. Dall'Asta (Comp.). Trabajo, actividad y subjetividad. Debates abiertos [Versão digital em Adobe Reader]. (pp. 33-52). Retirado em 20 dezembro, 2015, de http://www.ripot.com.ar/docs/1-%20Libro%20TAS%202012%20-%20Trabajo,%20actividad%20y%20subjetividad%20-%20Debates%20abiertos.pdf.

Fontenele, A. F. G. T. (2008). Psicologia e Sistema Único de Assistência Social - Suas: estudo sobre a inserção dos psicólogos nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras). Dissertação de mestrado em Psicologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.         [ Links ]

Fraser, M. T. D., Gondim, S. M. G. (2004). Da fala do outro ao texto negociado: discussões sobre a entrevista na pesquisa qualitativa. Paideia, 14(28), 139-152.         [ Links ]

Galbiatti, F. (2015). O poder de agir de trabalhadoras da assistência social no contexto neoliberal. Dissertação de mestrado em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas.         [ Links ]

Gomes, R. S. (2009). O trabalho no Programa Saúde da Família do ponto de vista da atividade: a potência, os dilemas e os riscos de ser responsável pela transformação do modelo assistencial. Tese de doutorado, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Lei nº 12.317, de 26 de agosto de 2010. (2010). Estabelece a jornada de trabalho de 30 horas semanais para assistentes sociais. Retirado em 20 dezembro, 2015, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12317.htm.

Lima, V. C. (2014). A Psicologia que não se reconhece na assistência social e a Psicologia que assume que apenas as suas contribuições podem efetivar a assistência social: contradições na inserção de psicólogos no Suas (p. 26). [Resumo]. Anais do IV Congresso Brasileiro de Psicologia da Saúde.

Macedo, L. C., Larocca, L. M., Chaves, M. M. N., & Mazza, V. A. (2008). Análise do discurso: uma reflexão para pesquisar em saúde. Interface - Comunicação, Saúde e Educação, 12(26), 649-657.         [ Links ]

Mattedi, A. P. V., Louzada, A. P. F., Teixeira, D. V., Pinheiro, D. A. L, Zamboni, J., & Barros, M. E. B. (2014). Cartografando gêneros e estilos: nas bordas da atividade. In D. S. Rosemberg, J. R. Filho & M. E. B. Barros (Orgs.). Trabalho docente e poder de agir: clínica da atividade, devires e análises (pp. 51-80). Vitória: Edufes.         [ Links ]

Melo, E. P. E. (2011). Vamos à luta: o fazer do(a) psicólogo(a) no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Dissertação de mestrado em Psicologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.         [ Links ]

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. (2005). Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004). Norma Operacional Básica (NOB/Suas). Brasília, DF: Autor.         [ Links ]

Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009). Orientações técnicas: Centro de Referência de Assistência Social (Cras). Brasília, DF: Autor.         [ Links ]

Moraes, T. D., Rohr, R. V., & Athayde, M. (2015). Ingresso, permanência e abandono na profissão de motoboys: constituição de si e da profissão. Laboreal, 11(1), 69-83.         [ Links ]

Oliveira, I. F., Dantas, C. M. B., Solon, A. F. A. C., & Amorim, K. M. O. (2011). A prática psicológica na proteção social básica do Suas. Psicologia & Sociedade, 23, 140-149.         [ Links ]

Osório, C. (2010). Experimentando a fotografia como ferramenta de análise da atividade de trabalho. Informática na Educação: teoria & prática, 13(1), 41-49.         [ Links ]

Ribeiro, M. E., & Guzzo, R. S. L. (2014). Psicologia no Sistema Único de Assistência Social (Suas): Reflexões Críticas sobre Ações e Dilemas Profissionais. Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais, 9(1), 83-96.         [ Links ]

Roger, J. L. (2013). Metodologia e métodos de análise em clínica da atividade. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 16(1), 111-120.         [ Links ]

Ruelland-Roger, D. (2013). Gênero de atividades profissionais, variantes estilísticas e genericidade em Clínica Atividade. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 16(1), 133-144.         [ Links ]

Santos, M. (2006). Análise psicológica do trabalho: dos conceitos aos métodos. Laboreal, 2(1), 34-41.         [ Links ]

Serpa, A. M. P. (2012). O processo de implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em Vitória (ES): relato da experiência. In A. M. P. Serpa & E. C. Raizer (Orgs.). Política de Assistência Social no Município de Vitória (ES): olhares sobre a experiência - 2005-2012 (pp. 22-118). Vitória: Prefeitura Municipal de Vitória.         [ Links ]

Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos (2012). Programa Capixaba de Redução da Pobreza Incluir. Vitória: Autor.         [ Links ]

Silva, J. V., & Corgozinho, J. P. (2011). Atuação do psicólogo, Suas/Cras e Psicologia Social Comunitária: possíveis articulações. Psicologia & Sociedade, 23, 12-21.         [ Links ]

Vidal-Gomel, C., Delgoulet, C., & Geoffroy, C. (2014). Competências coletivas e formação em condução de veículos de socorro num contexto de especialização de bombeiros sapadores em França. Laboreal, 10(1), 14-31.         [ Links ]

Yamamoto, O. H., & Oliveira, I. F. (2010). Política Social e Psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26, 9-24.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 3/10/2016
Aprovado em: 20/8/2019

Creative Commons License