SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.15 número2Editorial PPP 15(2)A loucura em Ponta Grossa/PR: uma história de desigualdades expressa nas ruas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2020

 

Limites da guerra às drogas: por outra ética dos usos e ocupações nas/das cidades

 

Limits of drugs war: for another ethics of uses and occupations in the/of the cities

 

Límites de la guerra a las drogas: por una ética de los usos y ocupaciones en las/de las ciudades

 

 

Dolores GalindoI; Morgana MouraII; Ricardo Pimentel MélloIII; Tatiana BicharaIV

IPsicóloga. Doutora e Mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, Mato Grosso, Brasil
IIPsicóloga. Doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mestra em Psicologia Social pela UFMT. Cuiabá, Mato Grosso, Brasil
IIIPsicólogo. Doutor e Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará, Brasil
IVPsicóloga. Doutora e Mestra em Psicologia. Docente do Instituto de Altos Estudos do Equador, Quito

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta parte dos resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi mapear alguns dos efeitos de estratégias higienístico-urbanísticas da política de guerra às drogas na cidade de Cuiabá, Mato Grosso. Para tanto, utiliza-se das crônicas como narrativa de pesquisa para evidenciar como as políticas de guerra às drogas produzem práticas de mortificação social, num processo de seletividade penal. Em análise, argumentamos que o uso de drogas nos leva a uma problemática central que diz respeito ao modo como coabitamos nas cidades. Cidades fragmentadas, separadas por guetos e por marcadores sociais, muradas material e simbolicamente. As ruas se tornam um território em disputa desigual, onde urge uma ética, em vez de práticas de moralização e mortificação.

Palavras-chave: Guerra às drogas. Cidades. Desalojamento urbano.


ABSTRACT

This paper presents part of the results of a research whose objective was to map some of the effects of hygienic-urban strategies of the War on Drugs policy in the city of Cuiabá, Mato Grosso. For that, chronicles are used as a research narrative to show how drug war policies produce practices of social mortification, in a process of criminal selectivity. In analysis, we argue that the use of drugs leads us to a central problem that concerns the way we cohabit in the cities. Fragmented cities, separated by ghettos and social markers, materially and symbolically walled. The streets become a territory in unequal dispute, where an ethics is urged, instead of practices of moralization and mortification.

Keywords: Drug war. Cities. Urban eviction.


RESUMEN

Este trabajo presenta parte de los resultados de una investigación, cuyo objetivo fue mapear algunos de los efectos de estrategias higienistas-urbanísticas de la política de Guerra a las Drogas en la ciudad de Cuiabá, Mato Groso. Para ello, utiliza crónicas como narrativas de investigación para evidenciar como las políticas de guerra a las drogas producen prácticas de mortificación social en un proceso de selectividad penal. En el análisis, argumentamos que el uso de drogas nos lleva a una problemática central que se refiere al modo como cohabitamos en las ciudades. Ciudades fragmentadas, separadas por guetos y por marcadores sociales, muradas material y simbólicamente. Las calles se hacen un territorio en disputa desigual, donde urge una ética, al envés de prácticas de moralización y mortificación.

Palabras-clave: Guerra a las drogas. Ciudades. Desalojamiento urbano.


 

 

Pra vocês é uma beleza
Desigualdade faz tristeza
Na montanha dos sete abutres alguém enfeita sua mesa
Um governo que quer acabar com o crack,
Mas não tem moral pra vetar comercial de cerveja.

(Criolo, 2014)

 

Introdução

Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi mapear alguns dos efeitos de estratégias higienístico-urbanísticas da política de guerra às drogas na cidade de Cuiabá, Mato Grosso. Para tanto, utiliza-se das crônicas como narrativa de pesquisa, para evidenciar como as políticas de guerra às drogas produzem práticas de mortificação social, num processo de seletividade penal. Como recursos literários, as crônicas ampliam as possibilidades de resistência aos discursos e ações da inevitabilidade, da impossibilidade de escolha, do medo, do desamparo, do terror e da culpabilização social de alguns sujeitos e das ações e políticas de isolamento e de morte, porque escapam das grandes narrativas e produzem novas.

Entendemos que políticas e práticas de atenção às pessoas que fazem uso compulsivo de substâncias psicoativas (comumente chamadas de drogas), ao empregarem a guerra como modelo orientador, direcionadas a determinadas drogas cujo comércio e consumo são proibidos, terminam por operar com base no argumento da inevitabilidade, do medo e do desamparo, (re)produzem e mantêm o funcionamento hegemônico dos aparatos mortíferos do Estado, em parceria com a lógica privada e privatizante, que cerca e fragmenta as relações sociais.

Dessa maneira, ao longo do artigo, nós nos perguntamos sobre as práticas que poderiam romper com a guerra contra determinadas drogas e pessoas que as consomem, os quais acabam sendo a "encarnação de todos os males sociais" (Carneiro, 2008), e promover saídas para a construção de relações de alteridade e cuidado (Méllo, 2018), nas quais seja possível a "convivência efetiva e compartilhada com a diferença" (Bichara, 2014) no exercício da democracia.

Com base em pesquisa realizada em Cuiabá, argumentamos que o uso de drogas nos leva a uma problemática central, no mundo contemporâneo, que diz respeito ao modo como coabitamos nas cidades. Cidades fragmentadas, separadas por guetos e por marcadores sociais, muradas material e simbolicamente, são "trincheiras espaciais simbólicas" (Neves, 2013), as quais se apresentam como parte de ações repressivas do Estado, visando a eliminar as múltiplas possibilidades de ocupação da cidade e definir onde deve estar quem e de qual lado dos muros, acuando, internando, humilhando, "tirando de vista" as pessoas que fazem uso compulsivo de drogas. As ruas se tornam um território em disputa desigual, onde urge uma ética, em vez de práticas de moralização e mortificação.

Conforme assinala Méllo (2016), o uso de drogas se configurara como problema, especialmente, a partir da organização dos Estados modernos, do processo de industrialização, da expansão do sistema capitalista e da consequente ampliação das tecnologias de normatização. Com isso se delimitou o que pode e o que não pode ser vendido e consumido, na justa medida em que também se estabeleciam, nos arranjos de governo, estratégias de controle dos corpos e, consequentemente, segregação de grupos populacionais, ampliação dos modos de produção e distribuição de substâncias consumidas por distintos grupos.

 

Guerra às drogas, proibicionismo, expurgo: tramas nas cidades

A demanda por consumo de drogas nunca foi estagnada por leis, de sorte que o desejo de uso permanece, a despeito da guerra às substâncias que foram sendo nomeadas drogas. Como há demanda, há aumento de oferta, a qual, pela proibição, se torna ilícita. Assim, a venda é considerada tráfico, que tem como consequência a inexistência de estratégias de controle da qualidade do que se oferta, muito menos sobre como pode ser feito o comércio e o consumo: as próprias organizações que detêm o tráfico fazem as regras sobre preços, qualidade e estratégias de venda. Em suas estratégias de comércio bilionário, incluem os agentes do Estado a serem pagos para que o comércio se perpetue. O que afirmamos é constatado pelo United Nations Office on Drugs and Crime (Unodc, 2017), tanto no que se refere à corrupção de agentes estatais - que facilita o comércio de sustâncias ilícitas - quanto no que concerne ao volume de dinheiro arrecadado.

A guerra às drogas segue a lógica repressiva e medicalizante, impõe para uma substância proibida sua condição de "culpada" pela "dependência". Certamente, há inúmeros trabalhos na literatura especializada indicando sintomas e efeitos de certas substâncias em nossos corpos, bem como os efeitos do uso abusivo ou compulsivo de substâncias psicoativas. Isso legitima, por meio do discurso científico, a postura que se apoia, exclusivamente, em um modelo organicista, o qual defende o uso de drogas como equivalente a uma doença ou incapacidade do sujeito por causa da "dependência química".

Perdura um movimento de criminalização respaldado no próprio Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), criado pela Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Carvalho (2014) afirma que essa lei se efetiva como uma política sobre drogas que ainda tem poucos avanços, por reforçar o modelo bélico-sanitário, legitimando toda uma estrutura repressiva, no que tange até mesmo às formas de atenção às pessoas que fazem uso de drogas.

Quando o Governo Federal lançou, em 2006, uma "nova política", esta foi apresentada como inovadora, visto que rompia com o modelo exclusivamente repressor das leis anteriores de 1976 (Lei n. 6.368) e de 2002 (Lei n. 10.409), que igualava a pessoa que consome ao traficante. Traçando algumas distinções entre estas, a "nova proposta" teve a saúde como um dos pontos norteadores da política de drogas de uma maneira intersetorial, assim, a pessoa que faz uso de drogas não deveria mais receber punição, mas ser encaminhado para serviços de saúde, para um processo de "reabilitação e reinserção social". Outro aspecto considerado progressista da Lei n. 11.343 foi ter a redução de danos como um dos eixos da política, seja para os modelos de atenção em saúde, seja para os processos de "reinserção social".

A despeito de um possível caráter libertário, a proposta descriminaliza o uso, mas não a posse. Ou seja, mesmo considerando a existência de figuras distintas (pessoa que faz uso de drogas × traficante), não há parâmetros específicos que orientem para que a posse de determinada substância seja caraterizada como uso ou tráfico. Nesse processo, compete a avaliação, inicialmente, à polícia, em seguida, ao delegado e, constituído processo, ao juiz, a fim de que se estabeleça se a posse se destina ao consumo pessoal ou não. A polícia das ruas se torna guardiã da moral e da seletividade penal.

Em 2015, a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas realizou um levantamento sobre legislação de drogas nas Américas e na Europa, analisando legislações de 47 países. O trabalho buscou identificar a descriminalização do uso e da posse de drogas ilícitas, além de critérios objetivos para discernir a pessoa que consome do traficante, tal como o quantitativo máximo de porte para consumo próprio (Brasil, 2015). Esse levantamento reconheceu o malogro da lei brasileira por não traçar critérios objetivos que sirvam de referência para a avaliação do que seja tráfico, tornando, assim, a distinção entre a pessoa que usa e traficante sujeita a critérios particulares de um delegado ou juiz.

A seletividade penal, tendo como parâmetros um modelo médico ou criminal, opera a partir da construção histórica e social de uma seletividade ontológica definida por marcadores sociais discriminatórios. Nessa seletividade, o modelo médico (sustentado pelo conceito de vício químico), amplamente questionável quando se considera que a noção de dependência escapa à proposição unidirecional de "domínio da substância química" (Hart, 2014), é aplicado aos jovens de classe média, enquanto o modelo criminal (sustentado na posse por tráfico) é aplicado à juventude pobre (Carvalho, 2014). Até mesmo a suposta conquista advinda de termos da Lei n. 11.343, a qual leva em conta aspectos da saúde, no processo de atenção às pessoas que fazem uso de drogas, segue um modelo coercitivo, na medida em que é estabelecida por meio dessa política criminal.

Considerando a criminalização da posse, o tratamento espontâneo para pessoas que fazem uso só tem possibilidade de efetivação se, ao longo do processo de "dependência", elas não forem capturadas pelas agências punitivas. Caso contrário, a lei prevê soluções genéricas para o encaminhamento a tratamento médico, na forma de pena pela posse, rompendo com os parâmetros que norteiam as políticas públicas de atenção em saúde às pessoas que fazem consumo de substâncias, as quais são orientadas por modelos não punitivos e que não exigem como pressuposto ao cuidado em saúde a abstinência, portanto, baseados em estratégias de redução de danos.

A proposta de encaminhamento coercitivo a tratamento rompe com a autonomia da pessoa, evidenciando baixa adesão às propostas terapêuticas. De maneira contrária, funcionam experiências como o Consultório de Rua, em Salvador, com pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas e têm dificuldades na adesão ao modelo tradicional dos serviços da rede de saúde (Oliveira, 2009). Modelo de atendimento que posteriormente passa a ser denominado Consultório na Rua, ampliando as composições de equipe e escopo das ações.

Seguindo um modelo proibicionista, a política nacional se guia por princípios de "guerra às drogas", cujas principais estratégias se dão sob a justificativa do "bem-estar do cidadão comum" respaldado pelo discurso médico e/ou moral. "Nesse sentido, a proibição tem essencialmente um cunho moral, mas um procedure bélico, e arregimenta discursos científico-legais" (Pinto, Caliman, & Barros, 2017, p. 370).

Assim, a política brasileira de drogas é orientada por um viés proibicionista, que não se atém ao discurso da adesão ao tratamento, que, muitas vezes, esconde a dificuldade dos profissionais da saúde de trabalhar, em conjunto com a pessoa, para a promoção de sua saúde. Os profissionais acabam culpabilizando o sujeito por não "aderir" a um tratamento que não o considera em sua integralidade, em suas necessidades, desejos, e tampouco leva em conta o contexto social e histórico no qual se situa e a complexidade envolvida em cada caso singular. As ações estão focadas em uma proibição de substâncias ou práticas de uso, mas se transversalizam em argumentos religiosos e moralistas, cujo objetivo maior é o da patologização e domesticação de modos de vida e de demonização de quem resiste a estes (Labate et al., 2008; Fiore, 2012; Méllo, Moura, & Galindo, 2018).

As políticas públicas "ressoam na vida das pessoas" (Scarcelli, 2017) e têm um emaranhado de modos de funcionamento que atuam como máquinas produtoras de subjetivações e como práticas cotidianas que marcam existências e biografias, garantem ou retiram direitos e oportunidades; trabalham para ou impedem a produção de encontros de convivência com a diferença, direcionam-se em benefício de todos ou de alguns, privatizam direitos ou "produzem comum" (Teixeira, 2015; Ostrom & Hess, 2016).

Os jogos de força se movimentam da macro à micropolítica e vice-versa, há tensão, paradoxos e densidades, há certas forças que trabalham para produzir sofrimento e outras que escapam a elas ou resistem ao que oprime. Nesse contexto, as redes de saúde, no âmbito do SUS, foram pensadas "como estratégia para superar a fragmentação da atenção e da gestão nas Regiões de Saúde e aperfeiçoar o funcionamento político-institucional do Sistema Único de Saúde (SUS) com vistas a assegurar ao usuário o conjunto de ações e serviços que necessita com efetividade e eficiência" (Brasil, 2010, s/p). Nesse aspecto, cada rede de saúde é caracterizada por arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, tendo em vista os diferentes níveis tecnológicos e de atenção, de sorte a promover uma relação horizontal entre os pontos de atenção e tendo a centralidade da comunicação na Atenção Básica.

Como intervenção nesses arranjos organizativos, no início de 2019, por meio do Decreto n. 9.761, de 11 de abril de 2019, as políticas de redução de danos e a lógica de tratamento aberto foram substituídas pelo confinamento e abstinência, reafirmando uma lógica de guerra às pessoas que fazem uso de drogas e seu expurgo para estabelecimentos fechados, pautados pela lógica do trabalho e religiosidade que orientam as comunidades terapêuticas. Assim, as comunidades terapêuticas passaram a ser os principais alvos de investimento público, configurando o ápice de políticas de segregação e mortificação social. Os hospitais psiquiátricos passaram a compor a rede de atenção psicossocial e a Lei n. 13.840, de 5 de junho de 2019, ampliou a internação compulsória como modelo de atenção.

Em âmbito estadual, o Plano Estadual de Enfrentamento às Drogas do Mato Grosso foi formulado em 2011, trazendo singularidades do estado, tal como a extensa fronteira com a Bolívia, que facilita o tráfico pelo Pantanal (Secretaria de Estado de Segurança Pública, 2011). Na proposta estadual, vemos descritas várias propostas de ações (de prevenção, tratamento, repressão e financiamento), pressupondo articulações entre Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, Secretaria Estadual de Segurança Pública, Secretaria Estadual de Educação, Secretaria Estadual de Saúde, Secretaria Estadual do Trabalho e Assistência Social, Secretaria de Administração, Tribunal de Justiça, Ministério Público, Marinha, Aeronáutica, Polícia Rodoviária Federal, entre outros órgãos. Porém, mesmo apresentando como prioridade as ações de prevenção e atendimento, no plano estadual, há um expressivo destaque ao enfrentamento e repressão ao tráfico, o que faz com que essas ações produzam efeitos nas ações de atendimento e prevenção, visto que as ações estão, a priori, articuladas em rede, como o plano descreve. Toda guerra às drogas e ao tráfico é uma guerra contra grupos sociais determinados por uma política seletiva de expurgo.

As imagens de uma grande empreitada de guerra às drogas se fractaliza em guerras múltiplas contra pessoas que escapam ao ordenamento higienista da cidade de Cuiabá. São crônicas que tratam de vidas em desaparecimento, borradas pela homogeneização: crônicas que não têm outra matéria senão arquivos da vida na cidade.

 

Reflexões metodológicas

O trabalho de levantamento de dados que dá base para este relato de pesquisa foi efetuado entre os anos 2015 e 2019, com autorização de Comitê de Ética em Pesquisa. A proposta de acompanhar as estratégias de atenção e cuidado às pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas em Cuiabá se iniciou com o contato com as equipes que atuam nos serviços especializados, como o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps-ad). Especificamente em Cuiabá, para o atendimento de álcool e outras drogas, há dois Caps-ad, um voltado para o atendimento de adultos, de gestão estadual, e outro direcionado ao atendimento de crianças e adolescentes, de gestão municipal. Além dos Caps, há Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192), Unidades Básicas de Saúde (UBS), Consultório na Rua, atendimentos ambulatoriais em policlínicas e unidade de internação psiquiátrica de atendimento masculino. No decorrer da pesquisa, vimos que os espaços destinados oficialmente ao uso de drogas não coincidiam com as demandas e modos de vida das pessoas que fazem uso compulsivo de drogas sem residência fixa reconhecida pelo Estado, assim, migramos, com eles, para outros espaços da cidade, tais como ocupações.

Tendo como cenário as ruas de Mato Grosso - ruas maculadas por uma lógica proibicionista e higienista -, vinculadas ao modelo de Guerra às Drogas, as crônicas contam dos acontecimentos de expurgo, produção de cuidado e articulação política. A crônica, como recurso estético de escrita, permite articular Arte e Psicologia, conjugando uma ruptura das instituições e subversões dos processos de produção acadêmica e científica. Deleuze e Guattari (2011) nos lembram de que a Arte, em seu aspecto inventivo, tem potencial de descodificação e desterritorialização capaz de instaurar e ativar a experimentação como estratégia de fazer ver e falar novas subjetivações. Aglutinar essa potência de experimentação na atuação científica faz com que "os fluxos de conhecimento se esquizofrenizem" (Deleuze & Guattari, 2011, p. 492) em núpcias de potências revolucionárias.

Para Deleuze (2015, p. 152), o acontecimento é o próprio sentido incorporal que encarna em nós, se efetuando. O acontecimento encontra-se em devir. "O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece, o puro expresso, que nos dá sinal e nos espera". A crônica, gênero de escrita sobre o cotidiano, que tem como foco narrar episódios contemporâneos que trazemos da literatura, em aliança com a escrita acadêmica, constitui uma estratégia política de escrita, de ruptura, resistência micropolítica que reinventa as ferramentas científicas e nos reinventa, em alianças que geram singularidade e diferenças nas "línguas bifurcadas prenhes e saturadas de alfabetismos" (Galindo & Milioli, 2016).

As crônicas narram, em sua dimensão acontecimental, cenas derivadas de trajetos de pesquisa, encontros e espaços de diálogos, os quais propiciaram buscar atores e instituições, reforçando as discussões teóricas sobre os usos e operacionalização das políticas de drogas propostas pela lógica do Estado. As personagens de cada história foram se compondo na atuação, são também elas tipos sociais que emergem nas tramas da luta pela vida nas cidades e no enfrentamento das políticas seletivas de expurgo. Cada crônica se compõe no jogo de forças com as linhas duras das políticas públicas, os arranjos para construção e manutenção do atual modelo da política de drogas no país e suas especificidades do cenário cuiabano, comportando vivências de atuação de uma das autoras em uma representação de categoria profissional no Conselho de Política sobre Drogas do município de Cuiabá. Por isso, conservamos os relatos, na forma de crônicas, em primeira pessoa.

A crônica narrada neste manuscrito teve lugar no espaço conhecido como "Ilha da Banana". As cenas se dão fora de instituições fechadas e em espaços que, em tese, seriam de livre circulação na cidade (equipamentos/espaços públicos de lazer). As narrativas evidenciam que as práticas decorrentes das políticas públicas se manifestam em todos os âmbitos da vida social e produzem cerceamentos, barreiras e muros, que caracterizam os "lugares" e os "não lugares" (Augé, 2000) de cada um, de acordo com os marcadores sociais de hierarquização econômico-sociais que lhes são atribuídos.

A privatização das relações e do uso dos espaços mantém-se pela ideia de "harmonia", "apaziguamento", na busca por "homogeneidades perfeitas e acabadas" (Endo, 2005, p. 88), a qual é traduzida pela defesa de pequenas "ilhas de excelência", nas quais não existem corpos ou subjetividades, somente iguais, que transitam por uma camada homogênea e se fecham, produzindo uma cidade em que não se compartilha e não se convive.

Em diálogo com Certeau, Augé (2000, p. 31) traz o conceito de lugar concebido na relação com o espaço e a "ordem social" e indica que "cada corpo ocupa o seu lugar [...] segundo os elementos [que] são distribuídos nas suas relações de coexistência" e a partir de "uma configuração instantânea de posições". O autor explica que, de fato, seria possível que em um mesmo lugar, entendido como "espaço ocupado", coexistam elementos distintos e singulares e relações compartilhadas, o que daria lugar à "ocupação do lugar comum".

Ocupar e usar o espaço público, imprimir marcas, biografias e rostos singulares e heterogêneos nas cidades, pela ação coletiva de conviver de forma efetiva e compartilhada com a diferença, com trabalho, autonomia, arte e expressão, configuram-se em ações éticas, estéticas e políticas para a produção comum de um devir subjetivo e territorial. Chamamos a esses lugares criadores de pontes e passagens, por onde os sujeitos-coletivos podem movimentar-se e resistir às opressões, de "lugares-pontes" (Bichara, 2014).

Os lugares-pontes são aqueles que agrupam heterogeneamente, acolhem, afirmam e exercitam a convivência com a diferença, criam pertencimento, politizam a opressão e a expressam, criam arte. São lugares que permitem o trânsito dos sujeitos pelos polos fragmentados das instituições sociais, ensejam o movimento, o encontro com as tensões e as densidades e a criação de saídas, no sentido da produção de algo que está para além dos polos instituídos. Os lugares-pontes se produzem pelos encontros múltiplos e plurais entre as pessoas, as quais se reúnem para criar algo comum; para resistir, ética, estética e politicamente, às dores coletivas e individuais; para usar, ocupar e deixar marcas singulares na cidade; para tensionar, quebrar ou explicitar os muros, as segregações, e produzir saúde.

Os lugares-pontes constituem-se pelo exercício da contradição e dos paradoxos: pelo diálogo com as dimensões da moralidade, do homogêneo e do politicamente correto e também com a ética das diferenças, do cuidado, da alteridade e do conflito; pelo trânsito por meio das dores (sociais e subjetivas) e pelas buscas de saídas para elas. Mesmo que, de um modo momentâneo, os lugares-pontes propiciem a invenção do novo.

A Ilha da Banana é alvo das políticas de controle urbano de guerra às drogas, em Cuiabá, infligindo movimentos forçados daqueles e daquelas que a ocupam, e adquirem incômoda visibilidade, durante as noites, quando a Ilha da Banana passa de lugares considerados mal frequentados a espaços de lazer das camadas médias. O conflito se expõe na forma de guerra. Como as trincheiras se fazem pontes?

 

Crônica - Ilha da Banana, sirenes e desalojamento forçado (2017)

Nem parecia Cuiabá: era um domingo de muito frio, em junho de 2017, desconcertando os que estão acostumados com o abraço do sol quente. Em meio à febre e tosse, desperto com uma ligação, às 5h30 da manhã. Era uma defensora pública, chamando para acompanhar a demolição da "Ilha da Banana". Justificou a necessidade e de minha presença porque, apesar de a demolição "ser previamente organizada para que as pessoas que lá viviam fossem assistidas pelas Secretarias de Saúde e Assistência Social", não havia ninguém dessas Secretarias. Havia somente máquinas e policiais que começaram a acordar as pessoas, exigindo que saíssem do local. Fui acionada como alguém que atuava em instâncias de controle social que tinham como pauta a política de drogas e pessoas em situação de rua, e também por compor os coletivos de saúde mental, cuja perspectiva antiproibicionista contestava práticas higienistas.

A Ilha se situa no centro da cidade, em uma zona majoritariamente povoada pelos indesejáveis sociais, pobres, pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas, migrantes indocumentados. Localiza-se na frente da área conhecida como Beco do Candeeiro, onde, há 20 anos, houve a maior chacina de pessoas de rua no Estado. A "Ilha da Banana" é um espaço com casarões situados entre a Igreja de São Benedito e o Morro da Luz, na região central de Cuiabá - MT. O local recebeu esse nome por ser um antigo bananal que, aos poucos, foi sendo ocupado com a construção de imóveis, os quais passaram a ser patrimônio histórico material. Desde 2014, quando da Copa do Mundo de Futebol, a Ilha foi escolhida para implantação de um projeto urbanístico de construção, que não se desenvolveu. O projeto, a despeito de não ter sido levado adiante, contemplou a desapropriação, a desocupação e a demolição de 15 edificações (residenciais e comerciais). Os prédios e as casas foram abandonados e o espaço passou a ser ocupado pela população em situação de rua.

Chego ao local com outras pessoas que atuam na defesa de direitos humanos e coletivos, assim como na assistência às pessoas em situação de rua. Afônica, tento falar com o responsável pela ação, mas somente nos direcionam aos policiais que formam um cordão de corpos fardados e enfileirados por todos os lados da Ilha e do Morro da Luz. Da calçada, vemos as máquinas entrando no terreno e passando a demolir paredes onde julgavam não haver pessoas, as quais, às pressas, começam a retirar seus pertences, ajudadas por nós. Aos poucos, chegam a imprensa, políticos a favor da demolição e políticos contrários. Enquanto as máquinas engoliam casas e ameaçavam engolir pessoas que resistiam, os políticos disputavam a atenção das câmeras.

Vendo o inevitável desabamento das paredes, continuo ajudando as pessoas que retiram seus pertences: são colchões amarelados e sacolas que precisavam se expandir para caber tudo que fazia parte do mundo de cada um. Ao subir as escadarias do Morro, encontro um colega que atua no Consultório na Rua e pergunto pela equipe das Secretarias que deveriam lá estar. Ele responde: "Não estou aqui com a equipe. Vim por conta própria, pois sabia o que ia acontecer. A equipe não vem, pois a Secretaria não designou ninguém para vir".

Na Suíte 14, nome dado pelas pessoas que moram ali ao último piso do prédio, alguns moradores resistem. Um porta-voz que mobiliza a resistência sai de um quarto para dialogar com representantes da demolição, sem êxito: queriam mais tempo para retirar suas coisas e um lugar para ir. Mesmo depois de sanadas as pendências indenizatórias que impediam as obras de continuar, em abril de 2017, o Ministério Público Federal recomendou à Secretaria de Estado de Cidades (Secid) a suspensão da demolição de imóveis, sob a alegação de que o governo de Mato Grosso não teria apresentado a documentação necessária para aprovação da demolição no Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em maio do mesmo ano, a Secid recebeu autorização para a derrubada de dois imóveis, incluindo um prédio comercial no qual viviam pessoas em situação de rua e, no mês de junho, se daria início a outras demolições.

Depois de algumas tentativas da defensora pública em obter ajuda das Secretarias, eis que chega o Secretário da Secid, na companhia de uma comitiva de membros de comunidades terapêuticas (CTS). Desejam que as quase 50 pessoas que viviam no local sejam encaminhadas diretamente para as CTS vinculadas à "Federação Centro-Oeste de Comunidades Terapêuticas". A justificativa para essa atitude era a de que sempre: os abrigos da Prefeitura não tinham vagas e "gentilmente" essas instituições se ofereceram para "acolher" os moradores. Certamente se esqueceram de reconhecer que isso teria um preço a ser pago, pela Prefeitura e pelos moradores, a atendimentos sem competência (Méllo, Moura, & Galindo 2018; Galindo, Moura, & Méllo, 2017).

Os agentes do confinamento aludem ao frio como estratégia de convencimento: "Ano passado um morreu de frio no Porto, vocês não vão querer ficar na rua e morrer também, não é mesmo?" Diante da impotência de ter perdido um abrigo e medo do frio da cidade e de seus moradores, algumas pessoas seguiram com os pastores das comunidades terapêuticas. Outras, também com sentimento de impotência e desamparo, afirmavam que já conheciam as práticas dessas "clínicas" e prefeririam ficar no Morro da Luz. Certamente, uma forma de resistir a entregar a vida que ainda pulsava em mão daqueles que só conhecem tratamentos moralistas.

As impertinentes máquinas avançavam. Quando chegaram próximas da Suíte 14, pararam. Sim, a força das máquinas se confrontou com corpos aparentemente frágeis, mas que pareciam feitos de pasta nuclear (matéria mais densa que o ser humano conhece). Prosseguir com as máquinas seria engolir a massa nuclear humana sem mastigar, sem destruí-la, diante de todas as câmeras da imprensa e de telefones móveis nas mãos de alguns. Eis uma massa diminuta, fortalecida como uma "multidão" (Hardt & Negri, 2005) que se irmana na resistência.

O gestor recuou com as máquinas devoradoras e deu prazo de 15 dias para que as pessoas dali saíssem e a demolição fosse concluída. Vitória da multidão. Logo chegaram os que não tinham sido convocados: funcionários das tais Secretarias. A máquina burocrática retoma seu movimento com cadastros, papéis, carimbos, assinaturas etc. Mas a máquina de resistência da multidão também avança e consegue aluguel de moradias. Estes, que não se entregaram ao "consumo" das comunidades terapêuticas, foram encaminhados para uma casa alugada pela Prefeitura, sob protestos de moradores vizinhos, os quais queriam ver os lumpens engolidos por máquinas.

Os conflitos nunca terminam; eles simplesmente pausam por meio de acordos temporários e contratos instáveis que são transformados em instituições de dominação por aqueles atores sociais que conseguem uma posição vantajosa na luta pelo poder, por vezes a custo de permitir algum grau de representação institucional para a pluralidade de interesses e valores que permanecem subordinados. (Castells, 2013, pp. 60-61)

Os moradores da Ilha da Banana são considerados perigosos. Na verdade, são um perigo para o avanço de projetos imobiliários ao avanço dos costumes higienistas. Assim, o Estado declara guerra a eles: "O novo modelo de guerra efetivamente tem certas características originais, mas ainda deve continuar atendendo às necessidades convencionais do poder soberano: reprimir movimentos de resistência e impor a ordem à multidão" (Hardt & Negri, 2005, p. 64).

Olhando tudo aquilo, eu me recordava do que havia acontecido há alguns meses, em São Paulo. Em maio de 2017, o prefeito paulistano disparou uma megaoperação na região da Luz, conhecida como Cracolândia, com as máquinas devoradoras de moradias e gentes. Guiada por uma lógica de guerra às drogas, a operação-surpresa consistiu na invasão da "Craco" por agentes da segurança pública, com balas de borracha e bombas de gás. Um cenário de guerra que tomou conta da imprensa. Dava-se início ao Projeto Redenção e fim ao Projeto de Braços Abertos.. O milionário eleito para o cargo de prefeito da cidade de São Paulo, nas eleições de 2016, trazia como uma de suas bandeiras eleitorais as estratégias de acabar com a Cracolândia, em São Paulo. Norteado pela lógica proibicionista, o programa realizou, em maio, ações de ataque militares, com aparatos bélicos, invadindo prédios e hotéis que acolhiam pessoas em situação de rua, por meio do extinto Programa de Braços Abertos. Dois dias depois da ação, a Prefeitura começou a demolição de alguns prédios da região, sem a devida assistência aos moradores que ainda estavam nos imóveis, deixando três pessoas feridas. Em junho de 2017, uma nova operação policial aconteceu na praça, sob a mesma justificativa de cumprimento de mandado de prisão de traficantes.

Da Ilha, eu me lembro das ações bélicas efetivadas na cidade de São Paulo. Lá, havia a justificativa de "guerra às drogas" e o pretexto de deixar a cidade "linda", para ser investida. Em Cuiabá, o discurso era de retomar projetos parados para entregar melhorias à população, mas os dois projetos seguiam a mesma lógica higienista de colocar as vidas empobrecidas em segundo plano. No viés do Redenção, seguindo a lógica higienista-proibicionista das ações da Secid, no dia 20 de junho de 2017, os vereadores de Cuiabá derrubaram um veto do Prefeito e aprovaram um projeto de lei que permite internações de "dependentes químicos" na capital, sem considerar as normativas federais quanto aos procedimentos de internação. A lei é um aviltamento aos direitos humanos e um retrocesso às políticas públicas de saúde mental, prosseguindo na iminência de ser sancionada pelo governo para entrar em vigor.

Concomitantemente, corre na Assembleia Legislativa um projeto de lei (PL) de autoria de uma deputada estadual, o qual institui a política estadual para a população em situação de rua no estado de Mato Grosso. Entre as providências, o PL agrega as comunidades terapêuticas aos dispositivos socioassistenciais e legitima o acolhimento das pessoas que fazem uso de drogas nessas instituições, quando os dispositivos municipais se tornarem insuficientes para atender à demanda, autorizando o poder público a lhes repassar recursos.

 

Usuários de drogas, sim; usuários nas cidades, não! O que a crônica nos conta?

As ações emergenciais, na Ilha da Banana, evidenciam uma ação política que visava retirar as pessoas dali, seguindo um objetivo comercial de especulação imobiliária e de projetos arquitetônicos adequados à estética e interesses dominantes. Quando nos propomos investigar ou construir modelos políticos e estratégias de cuidado, não podemos nos guiar pela lógica utilitarista da funcionalidade. Toda política, toda estratégia, toda ação funciona, contudo, sempre é importante se questionar: funciona para quê? Está a serviço de quem? Foram ações que tiveram efetividade, ações que funcionaram para a lógica do Estado devorador de vidas empobrecidas?

Os migrantes das cidades (moradores das ruas), em seus fluxos de circulação, são barrados e dispersados. Eles, que não cabem e denunciam os ordenamentos econômicos neoliberais, os conflitos de interesses na gestão da vida nas cidades, que também são negros, empobrecidos e considerados perigosos, têm de lutar cada segundo de suas vidas para que estas se perpetuem diante dos assaltos que sofrem por parte dos que dizem proteger os cofres públicos (como alguns governantes, juízes etc.), com todos os seus aparatos institucionais de mortificação e eliminação da diferença.

As estratégias emergenciais geram a sensação de conforto momentâneo e de esquecimento progressivo pelo estado de pânico frio que convoca a aceitação dos atos. Conforme Stengers (2015), o pânico frio gerado por nossos responsáveis é propiciado pela contraditoriedade das argumentações, um pânico que se respalda no discurso do inevitável como estratégia para justificar as ações: "Não temos vagas em albergue, o frio vai piorar nos próximos dias". O pânico frio de Stengers expõe os desdobramentos do medo e do desamparo, conceituados por Safatle (2016) como afetos-políticos.

As estratégias, nesse cenário, não se dão somente pelo controle e pela disciplina, mas pela produção de afetos-políticos que domesticam as subjetividades. Com a imposição de medo e de desamparo, ante o discurso do inevitável, não nos questionamos sobre as alternativas infernais às quais lançam mão os nossos governantes, que afetam os sujeitos em suas subjetivações, domesticadas e controladas pelo discurso do extremo e do inevitável, do perigo e da subordinação.

A escolha pelo expurgo e confinamento recorre ao argumento da inevitabilidade, mesmo que as consequências sejam violações de direitos humanos, amplamente documentadas (CFP, 2011; CFP, 2018), em prol do crescimento da cidade, porém, sob a justificativa moral de fazer a "boa ação por aquelas vidas". Alternativas, travestidas pela boa ação, são um "truque de feitiçaria" capaz de capturar as potências de ação e resistência. Stengers (2015) enfatiza que o funcionamento do capital se estabelece a partir de alternativas infernais, movimentos que respondem ao "inevitável", quando o progresso não tem mais seu poder de mobilização. No cenário de atenção e cuidado às pessoas com problemas decorrentes do consumo de drogas, vemos que lançar mão das comunidades terapêuticas se mostra uma alternativa infernal, segundo realçado por Stengers.

Onde tememos uns aos outros e onde não há saídas, entre o terror e o inevitável, resistimos quando coletivizamos. Efetivar o coletivo sequestrado, obrigado à internação compulsória ou ao desalojamento forçado, como no caso da Ilha, foi o movimento que possibilitou que os moradores recuperassem sua força e a ampliassem, pela expansão produzida no ato de reunir-se, potência afetiva dos encontros ético-estético-políticos da multidão, que é múltipla, plural, diversa e heterogênea. Reunir-se e coletivizar são movimentos que produzem a convivência com o outro diferente como alteridade (e não como subalternidade), a expansão singular dos sujeitos (porque estão juntos com os outros) e a resistência à violência.

Os aparatos de eliminação da diferença, com seus recursos mortíferos, autorizam as micropolíticas violentas cotidianas, enredadas nas forças de saber e poder, as quais impedem a "convivência efetiva e compartilhada com a diferença" e reproduzem o "inevitável". Por outro lado, essas mesmas forças que produzem o expurgo e a subordinação, ao se depararem com as tensões e contradições expostas na cena, são redirecionadas para o nascimento de novas composições de forças, que, pela ativação de bons encontros, como a reunião dos ocupantes, em parceria com a pesquisadora e os demais atores, mesmo que em uma massa diminuta, impediram que as máquinas continuassem a demolição e o desalojamento forçado naquele momento; romperam com o medo e o "inevitável" e ganharam 15 dias para desocupar a Ilha da Banana. Criaram um "lugar-ponte" para resistir, mesmo que momentaneamente, à opressão.

 

Considerações finais

Quando acompanhamos os processos de desalojamento forçado, na Ilha da Banana, nós nos deparamos com as demandas emergentes das pessoas expurgadas dos espaços públicos, articuladas como efeitos de estratégias higienistas consideradas como alternativas para lidar com as demandas das drogas. A lógica de guerra às drogas alimenta uma dinâmica que traveste ações de exclusão em ações de atenção e cuidado pelo emergencial da demanda. As alternativas infernais, como acolhimento imediato para sobreviver ao frio, configuram-se como modelos assertivos, todavia, trata-se apenas de uma intervenção de limpeza do espaço público, realizada não somente pelas instituições como também pela população que julga quem pode e não pode estar nos espaços públicos.

As pessoas que fazem uso compulsivo de drogas requerem um efetivo repensar da relação com as cidades, a fim de que o espaço urbano seja, também ele, um espaço urbano cuidador ou, ao menos, minimamente suportável com relação aos modos de vida errantes, sem que uma lógica genocida seja atualizada por meio de processos de mortificação social. Com a extinção das políticas oficiais de redução de danos e crescimento das comunidades terapêuticas, quais lugares restarão a quem erra pela cidade, inebriado pelo uso de substâncias, sem endereço fixo reconhecido pelo Estado? Uma nova classe de párias sociais se consolida como clientela no mercado lucrativo do confinamento e da (in)visibilidade.

Como trabalhar efetivamente por outros modos de viver as cidades que não nos reduzam aos limites asfixiantes da nova ordem social a qual se assoma sobre quem pesquisa/atua/milita com pessoas que fazem uso compulsivo de drogas? Sabemos que as práticas de cuidado não proibicionistas tiveram origem antes das políticas oficiais que as legitimaram, assim, continuarão a coexistir com as políticas repressivas, subvertendo lógicas abusivas de expurgo social.

Resistir aos discursos e ações da inevitabilidade, da impossibilidade de escolha, do medo, do desamparo, do terror e da culpabilização social de alguns sujeitos e das ações e políticas de isolamento e de morte é um trabalho que se vincula à luta pela produção do direito de reunião, de coletivização e ocupação diversa e plural dos espaços públicos e de eliminação de práticas de extermínio. Como dar abertura para conviver e aprender com o outro, com a diferença, como alteridade, construindo "lugares-pontes" nos quais as pessoas possam movimentar-se "singularmente-juntos" (Bichara, 2014), pelo bem comum e para além da ponte?

 

Referências

Augé, M. (2000). "Los no lugares", espacios del anonimato: una antropologia de la Sobremodernidad (5aed.). Barcelona: Gedisa.         [ Links ]

Bichara, T. A. C. (2014). "Dança para todos": cartografias artísticas sobre a Oficina de Dança e Expressão Corporal como lugar-ponte. Tese de doutorado (não publicada), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Carneiro, H. (2008). Autonomia ou heteronomia nos estados alterados de consciência. In B. Labate, S. L. Goulart, M. Fiore, E. MacRae & H. Carneiro (Orgs.). Drogas e cultura: novas perspectivas (pp. 65-90). Salvador: EDUFBA/Ministério da Cultura.         [ Links ]

Carvalho, S. (2014). A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06 (7a ed.). São Paulo: Saraiva.         [ Links ]

Castells, M. (2013). Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet (C. A. Medeiros, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia. (2011). Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. Brasília: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia. MNPCT. PFDC. (2018). Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Procuradoria Federal do Direito do Cidadão. Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas - 2017. Ministério Público Federal: Brasília.

Criolo (2014). Duas de Cinco [Gravado por Criolo]. Em Convoque seu Buda [CD]. São Paulo: Oloko Records. (2014).         [ Links ]

Decreto n. 9.761, de 11 de abril de 2019 (2019, 11 abril). Aprova a Política Nacional Sobre Drogas. Diário Oficial da União, Brasília.

Deleuze, G. (2015). Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Deleuze, G., & Guattari, F. (2011). O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Endo, P. C. (2005). A violência no coração da cidade: um estudo psicanalítico sobre as violências na cidade de São Paulo. São Paulo: Escuta/Fapesp.         [ Links ]

Fiore, M. (2012, março). O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Novos Estudos, Cebrap, 92, 9-21.         [ Links ]

Galindo, D., & Milioli, D. (2016). Alianças mestiças com Deleuze e Guattari, Haraway e Anzaldua. In F. C. S. Lemos, D. Galindo, P. P. G. de Bicalho, F. V. de Oliveira, I. C. Santos, A. Santos, ... M. T. B. Almeida (Orgs.). Criações transversais com Gilles Deleuze: artes, saberes e política (pp. 63-71). Curitiba: CRV.         [ Links ]

Galindo, D., Moura, M., & Méllo, R. P. (2017, julho-dezembro). Comunidades terapêuticas para pessoas que fazem uso de drogas: uma política de confinamento. Barbarói, 50, 226-244.         [ Links ]

Hardt, M., & Negri, A. (2005). Multidão: guerra e democracia na era do império (C. Marques, Trad.). Rio de Janeiro: Record.         [ Links ]

Hart, C. (2014). Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Labate, B., Fiore, M., & Goulart, S. (2008). "Introdução". In B. Labate, S. L. Goulart, M. Fiore, E. MacRae & H. Carneiro (Orgs.). Drogas e cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA/Ministério da Cultura.         [ Links ]

Lei n. 6.368 de 21 de outubro de 1976 (1976, 22 outubro). Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias e entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília.

Lei n. 10.409 de 11 de janeiro de 2002 (2002, 14 janeiro). Dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília.

Lei n. 11.343 de 23 de agosto de 2006 (2006, 24 agosto). Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília.

Lei n. 13.840 de 5 de junho de 2019 (2019, 06 junho). Altera as Leis n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.532, de 10 de dezembro de 1997, 8.981, de 20 de janeiro de 1995, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, 8.069, de 13 de julho de 1990, 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e 9.503, de 23 de setembro de 1997, os Decretos-Lei n. 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e 5.452, de 1º de maio de 1943, para dispor sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e para tratar do financiamento das políticas sobre drogas. Diário Oficial da União, Brasília.

Méllo, R. P. (2016). As drogas cotidianas em tempos de sobrevivência. In L. L. F. Vieira, Rios, L. F. & T. N. Queiroz (Orgs.). A problemática das drogas: contextos e dispositivos de enfrentamento (pp. 20-53). Recife: Editora UFPE.         [ Links ]

Méllo, R. P. (2018). Cuidar? De quem? De quê?: a ética que nos conduz. Curitiba: Appris.         [ Links ]

Méllo, R. P., Moura, M., & Galindo, D. (2018). Atendimento terapêutico ou modelos que confinam?: Comunidades Terapêuticas em xeque. Mnemosine, 14(4), 149-166.         [ Links ]

Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Política sobre Drogas. Diretoria de Projetos Estratégicos e Assuntos Internacionais - Brasil. (2015). Levantamento sobre Legislação de Drogas nas Américas e Europa e Análise Comparativa de Prevalência de uso de Drogas. Brasília: Ministério da Justiça.         [ Links ]

Neves, L. (2013). Além da superfície: a produção das trincheiras espaciais simbólicas. Tese de doutorado (não publicada), Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Oliveira. M. G. P. N. (2009). Consultório de rua: um relato de experiência. Dissertação de mestrado (não publicada), Universidade Federal da Bahia, Salvador.         [ Links ]

Ostrom, E., & Hess, C. (2016). Los bienes communes del conocimiento. Quito, Ecuador: IAEN.         [ Links ]

Pinto, G. S. S., Caliman, L. V., & Barros, M. E. B. Das descontinuidades na história da questão das drogas: alegorias psicotrópicas e o deslocamento de enunciados unívocos. Mnemosine, 13(2), 332-387. Recuperado em janeiro 15, 2018, de http://www.mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/view/623.

Portaria n. 4.279, de 30 de dezembro de 2010 (2010). Estabelece as diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no Âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília.

Safatle, V. (2016). O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica.         [ Links ]

Scarcelli, I. R. (2017). Psicologia Social e Políticas Públicas: pontes e interfaces no campo da saúde. São Paulo: Zagodoni.         [ Links ]

Secretaria de Estado de Segurança Pública. (2001). Plano Estadual de Enfrentamento às Drogas. Recuperado em março 16, 2018, de http://www.seguranca.mt.gov.br/UserFiles/File/Plano%20Drogas.pdf.

Stengers, I. (2015). No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify.         [ Links ]

Teixeira, R. R. (2015). As dimensões da produção do comum e a saúde. Saúde Soc., 24(supl.1), 27-43.         [ Links ]

Unodc. United Nations Office on Drugs and Crime. (2017). World Drug Report. Vienna: United Nations Publication.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 5/11/2019
Aceito em: 21/5/2019

Creative Commons License