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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2020

 

A loucura em Ponta Grossa/PR: uma história de desigualdades expressa nas ruas

 

The madness in Ponta Grossa/PR: a history of inequalities expressed on the streets

 

Locura en Ponta Grossa/PR: una historia de desigualdad expresada en las calles

 

 

Fernanda Pimentel Santos

Bacharela em Psicologia. Mestra em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa

 

 


RESUMO

A saúde mental e o fenômeno de rua por vezes se enlaçam pelas vulnerabilidades econômicas e sociais acarretadas pelo sistema econômico vigente, o capitalismo. Diante da problemática entre a saúde mental e o fenômeno de rua, o presente trabalho buscou, por meio de uma discussão teórica, apresentar o enlace entre saúde mental, condição de pobreza e situação de rua no município de Ponta Grossa/PR, a partir de parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado. A presente discussão utilizou-se de pesquisa qualitativa, pesquisa bibliográfica e pesquisa documental, evidenciando a utilização da internação compulsória, por meio de profissionais e familiares de pacientes psiquiátricos, e o enclausuramento social como tratamento.

Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica Brasileira. População em situação de rua. Condição de pobreza.


ABSTRACT

Mental health and the street phenomenon are sometimes linked by economic and social vulnerabilities brought about by the current economic system, capitalism. In view of the problem between mental health and the street phenomenon, this paper sought, through a theoretical discussion, to present the link between mental health, poverty and street situation in the municipality of Ponta Grossa/PR, based on part of results of a Master's research. This discussion used qualitative research, bibliographic research and documentary research, showing the use of compulsory hospitalization, through professionals and family members of psychiatric patients, social confinement as a treatment.

Keywords: Brazilian Psychiatric Reform. Homeless population. Poverty condition.


RESUMEN

La salud mental y el fenómeno de la calle a veces están vinculados por vulnerabilidades económicas y sociales provocadas por el sistema económico actual, el capitalismo. En vista del problema entre la salud mental y el fenómeno de la calle, este trabajo buscó, a través de una discusión teórica, presentar el vínculo entre la salud mental, la pobreza y la situación de la calle en el municipio de Ponta Grossa/PR, basado en parte de resultados de una investigación de maestría. Esta discusión utilizó investigación cualitativa, investigación bibliográfica e investigación documental, mostrando el uso de la hospitalización obligatoria, a través de profesionales y familiares de pacientes psiquiátricos, el encierro social como tratamiento.

Palabras clave: Reforma Psiquiátrica Brasileña. Población sin hogar. Condición de pobreza.


 

 

Introdução

A saúde mental e a pobreza unem-se em suas demandas ao se tornarem emergentes em determinadas realidades. São demandas sociais que se exteriorizam nas pessoas em situação de rua, que vivem em extrema pobreza e muitas vezes adoecidas psiquicamente. As ruas das grandes e pequenas cidades são preenchidas pela ausência de atendimento às necessidades básicas: falta de comida, de moradia, segurança, emprego e renda, que por vezes estão aliadas ao adoecimento psíquico, fazendo surgir graves demandas sociais.

As marcas sociais delineadas pelos estigmas loucura e pobreza esculpiram a exclusão do convívio social que assinala a marginalidade de uma parcela da população vulnerável (Foucault, 1972/2014; Castel, 1978). A exclusão social vivenciada pelas pessoas em condição de pobreza, por vezes adoecidas e em situação de rua, produz obstáculos ao acesso aos direitos sociais, entre eles os previstos pelas políticas de reintegração social regulamentadas no Brasil (Presidência da República, 2008, 2013; Ministério da Saúde, 2014).

Nesse sentido, o presente trabalho objetiva apresentar alguns resultados de um estudo amplo, abordando aspectos históricos do enlace entre a saúde mental, a condição de pobre e a situação de rua, discutidos a partir da realidade encontrada no município de Ponta Grossa/PR.

Para isso, devemos ponderar o fenômeno de rua e o adoecimento psíquico, buscando compreender seu enlace, a partir das vulnerabilidades socioeconômicas. Durante a elucidação desse recorte, esbarramos na história da industrialização, instalação do capitalismo e dos tratamentos destinados à loucura e à pobreza no Ocidente, e mais tarde no Brasil.

Para tanto, foram utilizados procedimentos metodológicos com abordagem qualitativa, iniciando-se a partir da pesquisa bibliográfica, fazendo alusão a discussões que permearam a pesquisa documental.

Os resultados obtidos a partir da discussão proposta apontam para uma exclusão social reafirmada ao longo dos anos, em que o discurso de minorias reflete a realidade excludente das pessoas em situação de rua, por vezes adoecidas psiquicamente, que não mais são enclausuradas nos antigos manicômios, mas tornam-se invisíveis à sociedade capitalista. Diante de tal realidade, torna-se evidente que às minorias cabem políticas públicas insuficientes, estando submetidas à pobreza, ao adoecimento psíquico, por vezes à situação de rua, que se agrava a cada movimento, a cada ação higienista da sociedade como um todo.

 

O fenômeno rua na sociedade desigual

Nenhum olhar pode ver, nenhum ouvido pode escutar, e nenhum coração pode experimentar, sequer a metade do sofrimento suportado por essa pobre gente (Engels, 2010).

Ao nos remetermos à história, podemos entender que o fenômeno de rua se agrava a partir do surgimento das sociedades pré-industriais na Europa com o desenvolvimento do capitalismo. Engels (2010), ao analisar a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, aborda a vulnerabilidade que a classe operária vivenciou em decorrência da chamada acumulação primitiva1 pelo processo de industrialização. O autor evidencia que a priorização do capital pela acumulação primitiva deu lugar, entre outras vulnerabilidades, ao fenômeno de rua. A fala exposta na epígrafe se trata de um operário que denuncia a Engels sua condição de vida e de trabalho em Londres a partir da industrialização, que foi alicerçada pelo desenvolvimento do capitalismo (Engels, 2010).

Desse modo, com o nascimento do capitalismo como sistema econômico na Europa, uma massa de pessoas passa a ocupar as ruas em condições precárias de vida, pela ausência de emprego e renda, agravando-se a vulnerabilidade socioeconômica de uma gama da população britânica - realidade que no decorrer do desenvolvimento do capitalismo como sistema econômico vigente vigora em outros países.

Desse modo, a acumulação capitalista na Europa, com a ascensão da Revolução Industrial, resultou em trabalhos precários, na ausência de saúde dos trabalhadores empregados e desempregados, expropriação de produtores rurais e camponeses na indústria nascente e na não inclusão de todos no mercado formal (Engels, 2010). O adoecimento psíquico e a condição de pobreza de inúmeros trabalhadores em Londres e por toda a Europa, de acordo com Engels (2010), estavam para além do processo de industrialização, apresentava os resultados de um sistema econômico desigual. Sobre isso, o mesmo autor elucida a realidade dos trabalhadores desempregados, que se encontravam às margens da sociedade, afirmando que:

Se tem a sorte de encontrar trabalho, isto é, se a burguesia lhe faz o favor de enriquecer a sua custa, espera-o um salário apenas suficiente para o manter vivo; se não encontrar trabalho e não temer a polícia, pode roubar, pode ainda morrer de fome, caso em que a polícia tomará cuidado para que a morte seja silenciosa para não chocar a burguesia (Engels, 2010, p. 69).

E quando não se encontra trabalho, como o autor evidencia, pode se render a outras formas de subsistência, entre elas:

[...] mendigar? Não há, pois, porque assombrar-se com o exército de pedintes, a maioria homens em condição de trabalhar; [...] É surpreendente notar que esses mendigos se encontram em especial nos bairros operários e sobrevivem quase exclusivamente com as esmolas dos operários empregados (Engels, 2010, p. 127).

Desse modo, Engels (2010) traz que a reprodução do fenômeno de rua na Europa faz referência à acumulação do capital alarmado pela ascensão da Revolução Industrial, que por meio da crescente superpopulação nas cidades industriais não pôde absorver em sua totalidade os trabalhadores que ali se encontravam - e essa não inclusão de todos no mercado formal faz parte do funcionamento do sistema econômico capitalista (Engels, 2010).

Diante da exposição de Marx (2011) e Engels (2010), e pensando na realidade da América Latina e do Brasil, nos deparamos com uma história semelhante à anteriormente apresentada. Na Europa, a instalação do sistema econômico capitalista, por meio da industrialização, agravou a condição de vulnerabilidade social e econômica de uma gama da população não absorvida pelo mercado formal. No caso da América Latina, para além das consequências sociais advindas do capitalismo, do processo de industrialização também vivenciado pelos países latinos, as condições históricas e estruturais dos países, como a escravidão, contribuíram para o agravamento do fenômeno de rua (Silva, 2009). Desse modo, as exposições teóricas de Engels (2010) no Ocidente nos aproximam das consequências sócio-históricas vivenciadas pelos países da América Latina.

Iglésias (1994), ao elucidar sobre a industrialização e instituição do capitalismo como sistema econômico vigente no Brasil, aborda a dominação portuguesa evidenciando a permanência da estrutura institucional de Portugal. Essa herança institucional, como a falta de tecnologia para a industrialização e desenvolvimento, e a exploração dos recursos naturais e humanos brasileiros, acarretou em inúmeras consequências, entre elas o subdesenvolvimento (Iglésias, 1994). O autor ainda destaca que essa exploração não se limitava a Portugal, se estendendo aos espanhóis, flamengos, britânicos, franceses e todos aqueles que se lançaram "na fase de audácia e revelação de terras, e que aos poucos as ocuparam, com a exploração direta ou indireta" (Iglésias, 1994, p. 13). Assim, apropriaram-se de terras brasileiras para exploração de riquezas, degradando-as por onde exploravam, levando as riquezas encontradas para seus países de origem, com a justificativa da descoberta das terras brasileiras.

Iglésias (1994) afirma que a terra, o ouro, o povo e toda a riqueza brasileira foram explorados pelos estrangeiros. De início pelos portugueses e, mais tarde, por outros países europeus. Essa exploração também foi evidenciada por Galeano (1989) ao estudar a História da América Latina. Para Galeano (1989, p. 5), a América Latina, intitulada pelo autor como a "região das veias abertas", desde o descobrimento até a atualidade, baseou-se no capital exterior, europeu e norte-americano. Desse modo, as riquezas encontradas nos países que compõem a América Latina tornaram-se riquezas externas, acumuladas nos chamados "centros de poder" europeu e norte-americano (Galeano, 1989, p. 5).

Para Galeano (1989), até os tempos atuais, as terras, as reservas naturais, ou ainda os trabalhadores que compõem a América Latina, continuam a servir à Europa e a outros países, como no início. O autor salienta que a América Latina, desde seu descobrimento, preocupa-se com as necessidades alheias, produzindo pela agricultura, pela produção de carne, matérias-primas e outros alimentos, recursos destinados aos países ricos, estes, que "ganham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os" (Galeano, 1989, p. 5).

Os resultados dessa história permeada pela exploração levaram, segundo Galeano (1989), a uma industrialização tardia, com economia baseada no latifúndio, e a uma estrutura social desigual. Essa desigualdade, segundo o mesmo autor, contribuiu para o crescimento do desemprego e da pobreza no Brasil. Galeano (1989, p. 64) afirma que no ínterim de uma crise à outra na frágil economia brasileira "os salários de fome se alternam com o trabalho servil" aos quais os brasileiros estão submetidos.

Silva (2009), ao se remeter à História brasileira e à situação de rua que abarca uma parcela da população, compreende que os resultados dessa histórica exploração, descrita por Galeano (1989) e Iglésias (1994), foram potencializadores do fenômeno de rua. Para a autora, a acumulação do capital e a superpopulação excedente, resultado do funcionamento do sistema econômico desigual que não absorve em sua totalidade os trabalhadores no mercado formal, agravou o fenômeno de rua no Brasil. Isto é, pessoas desempregadas, sem renda, tornaram-se vulneráveis socioeconomicamente, resultando por vezes na condição de rua.

De acordo Silva (2009), a situação de rua na contemporaneidade constitui parte do resultado da instituição do capitalismo, em que as pessoas mais atingidas pela acumulação primitiva do capital se encontram em condição de pobreza. Essa condição de pobreza agrava-se ao resultar na situação de rua, uma vez que é acrescida do preconceito pela condição de vida a que essa parcela da população está submetida. Desse modo, a população em situação de rua vive as consequências do sistema econômico excludente, compondo um mar de capital humano à margem do trabalho formal, sobrevivendo da informalidade ou, ainda, das misérias das ruas, conforme anteriormente explicitado.

Diante do complexo fenômeno de rua que envolve outras demandas sociais além da ausência de moradia, no Brasil foi instituída por meio do Decreto n° 7.053, em 2005, a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PSR). De acordo com a citada Política, a existência de pessoas em situação de rua no Brasil faz referência à história das desigualdades sociais presentes na lógica do capital.

A Política Nacional para a PSR descreve que o fenômeno de rua está presente desde a formação das primeiras cidades brasileiras, marcada pela exclusão de pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica. A Política ainda elucida essa realidade afirmando que "a população em situação de rua encerra em si o trinômio exprimido pelo termo exclusão: expulsão, desenraizamento e privação" (Presidência da República, 2008, p. 5). Diante de tal realidade, a Secretaria Nacional de Renda e Cidadania, assim como a Secretaria Nacional de Assistência Social (2011, p. 13), ressaltam que com o crescimento das cidades, ampliou-se a demanda ao acesso a "saúde, educação, assistência social e trabalho e renda" . Entretanto, para as pessoas que estão à margem da sociedade capitalista, o acesso a essas demandas sociais ainda se mostra distante. De acordo com as mesmas Secretarias, a não absorção de todos ao mercado formal tem como consequência o agravamento das chamadas "classes subalternizadas" (Ministério da Saúde, 2011, p. 14). Essas pessoas empobrecidas, com baixa ou nenhuma escolaridade, sem qualificação profissional, permanecem à margem da sociedade, sem acesso à renda, moradia, alimentação digna e serviços públicos, tais como educação e saúde, buscando quase que exclusivamente as ruas para a sobrevivência (Ministério da Saúde, 2011).

Diante da reflexão exposta e pensando na condição de vulnerabilidade social e econômica que emerge da PSR brasileira, atrelada por vezes ao adoecimento psíquico, na sequência abordaremos o enlace entre a pobreza e a loucura, frente a outras demandas sociais.

 

Saúde mental e Reforma Psiquiátrica Brasileira: uma história desigual

A discussão da saúde mental remonta a um cenário permeado por tratamentos excludentes. Foucault (2014), ao descrever a realidade dos tratamentos na Europa, reitera a realidade dos hospitais asilares da América Latina e dos manicômios brasileiros, conforme pontua Amarante (2015) ao explicitar o modelo psiquiátrico clássico. Destarte, a história da loucura na Europa, exposta por Foucault e Castel (1978), nos aproxima da nossa própria história. Por isso, devemos analisar a história da loucura pontuada por Foucault (2014) para elucidar os porvindouros movimentos brasileiros pela luta antimanicomial.

Desse modo, ao retornarmos à história da loucura e de seu tratamento no Ocidente, nos deparamos com a longa exposição de Foucault (2014, p. 56) ao descrever que "à primeira vista, trata-se apenas de uma reforma, apenas de uma reorganização administrativa". Entretanto, essa reorganização apontava para a reclusão de pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica. Foucault (1975, p. 54) evidencia que essas instituições destinadas aos internamentos de pessoas em sofrimento psíquico foram também estabelecimentos destinados a recluir os "inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, os libertinos de toda espécie". Dessa maneira, o autor assinala uma reclusão de pessoas com ou sem sofrimento psíquico, mas que estariam em uma condição considerada pela sociedade burguesa "menor" e que deveriam ser excluídas do convívio social.

Amarante (2007) corrobora com as denúncias de Foucault ao descrever os chamados hospitais gerais na Era Clássica no Ocidente, reiterados no cenário brasileiro. O autor enfatiza que os hospitais foram criados no Brasil "como instituição de caridade, que tinha como objetivo oferecer abrigo, alimentação e assistência religiosa aos pobres, miseráveis, mendigos, desabrigados e doentes", repetindo o mesmo funcionamento dos hospitais gerais originados no Ocidente (Amarante, 2007, p. 22).

A forma excludente de tratamento da loucura, que abarcava as pessoas pobres e vulneráveis pelo enclausuramento aos manicômios, foi denunciada em longos anos de reivindicações e lutas. Essa transformação resultou em uma instituição médica que redefiniu o lugar da loucura, do louco e do pobre (Amarante, 2007). O hospital, segundo Amarante (2007), deixa o lugar de caridade, com aspecto religioso, para se tornar uma instituição de tratamento médico. Contudo, o controle social exercido pela instituição religiosa não se dissipa, apenas passa a ser exercido pelo saber médico justificado por um tratamento.

Amarante (2015) realça que a reforma psiquiátrica no Brasil foi instigada pelo Movimento Democrático Italiano, protagonizado por Franco Basaglia. O médico psiquiatra propunha inovadoras formas de tratamento da loucura, por meio de novos espaços, que priorizavam a relação médico/paciente (Amarante, 2015). O autor (2015) ressalta que Basaglia preconizava a relação entre o saber e prática médica, mas ainda reduzindo a loucura a um objeto de intervenção. Desse modo, Amarante (2015, p. 47) constata que a proposta de Basaglia se limitava a "humanizar o manicômio", sem preconizar as discussões sobre as formas excludentes do tratamento manicomial, pela reclusão dos loucos e pobres.

Amarante (2015, p. 27) elucida que as críticas ao modelo clássico psiquiátrico deram lugar a um "ato de "libertação" dos loucos, que "ressignificou práticas e fundou um saber/práticas que aspirava ao reconhecimento e ao território de competência sobre um determinado objeto: a doença mental". O autor (2015) salienta que as críticas ao modelo de tratamento excludente, direcionado às pessoas pobres, vulneráveis e por vezes adoecidas, ganham lugar depois da segunda guerra, aliadas a outras questões sociais oriundas da guerra.

De acordo com Amarante (1992), a Reforma Psiquiátrica no Brasil foi pautada no período de redemocratização, quando estava sendo questionada a conjuntura política do país, contexto no qual movimentos da sociedade civil colaboraram com a organização de núcleos de estudo de saúde mental. O autor salienta que por meio de denúncias se fomentou a construção de políticas de saúde mental, tensionando o cenário dos serviços hospitalares e manicomiais.

Amarante (1992, p. 103) ainda evidencia que a prática e o saber psiquiátrico clássico tinham uma incessante "função tutelar e segregadora da intervenção psiquiátrica ao aparato manicomial" - indo ao encontro com as denúncias de reclusão que Foucault já realizava ao apontar uma exclusão social pela condição de vulnerabilidade social de homens ou mulheres. Desse modo, o autor corrobora com o pensamento foucaultiano, ao analisar que o interesse na reorganização psiquiátrica parte de um interesse de reinscrições político-partidárias e da organização da sociedade civil pela redemocratização. Interesse que, de acordo com Amarante (1992), permitiu que papéis em conselhos de saúde e associações profissionais fossem definidos, estando além da preocupação com a promoção da saúde.

Destarte, a mobilização crescente diz de uma busca institucional por formações técnicas, criticando um modelo médico tradicional, que incluía "determinações socioculturais nas enfermidades, das relações saúde-capital-trabalho" (Amarante, 1992, p. 104). O autor afirma que ao longo do processo de transformação da loucura, tratada exclusivamente pelo internamento vitalício, passa a preconizar a inserção social. Entretanto, as transformações na saúde mental esbarram em obstáculos, durante as tentativas de estabelecer limites entre a loucura e a sanidade. Amarante (1992) assevera que as funções sociais correspondentes à segregação de uma parcela da população em situação de vulnerabilidade, das quais os antigos manicômios se responsabilizavam, ao longo das denúncias de violência e negligência realizadas contra os internos, passaram a ser vistas com descrédito pela sociedade, ao pensar no tratamento da loucura.

Assim, a Reforma Psiquiátrica Brasileira teve seu início em 1978 com o movimento social da luta pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, chamado de "O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM)" (Ministério da Saúde, 2005). O movimento era composto por pessoas que trabalhavam com saúde, familiares dos internados, sindicatos, associações e pelas pessoas com histórico de internações (Ministério da Saúde, 2005). Amarante (2015, p. 52) ressalta que esse movimento tinha como objetivo "constituir um espaço de luta não institucional, em um locus de debate e encaminhamento de propostas de transformação da assistência psiquiátrica". Desse modo, o movimento organizou encontros que priorizavam reunir trabalhadores da saúde e associações de outros setores da sociedade, para discutir e concentrar informações que contribuíssem na luta antimanicomial.

No Brasil, de acordo com o documento apresentado na "Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas" em 2005, a reforma psiquiátrica reivindicava mudanças nos modelos de atenção e práticas de saúde. Esse processo ganha atenção no Brasil por se tratar de uma mudança nas políticas públicas governamentais e nos serviços de saúde. Diante disso, a Reforma Psiquiátrica constrói um processo político e social complexo, englobando diversas demandas, percorrendo diferentes caminhos, desde a esfera federal, perpassando movimentos sociais até chegar aos sujeitos com transtornos mentais e seus familiares (Ministério da Saúde, 2005).

A Reforma Psiquiátrica Brasileira trata-se de uma política pública instituída pela Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que dispõe "sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental". Entre esses dispositivos estão os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), considerados os ordenadores da rede, abrangendo usuários adultos, adolescentes, crianças e para tratamento de álcool e drogas de forma especifica (CapsII, CapsIII, Capsi e Capsad); e o programa De Volta para Casa, que objetiva inserir os internos de longa permanência nos hospitais psiquiátricos, na família e na sociedade. Diaz (2008) ainda acrescenta que a Reforma Psiquiátrica Brasileira busca articular a rede básica de saúde com os serviços substitutivos. Esse vínculo possibilita a promoção da saúde dos usuários e a redução dos leitos psiquiátricos nos hospitais.

Desse modo, a Reforma Psiquiátrica Brasileira diz de uma legislação que assegura um novo modo de tratamento das pessoas com transtornos mentais, não mais pela reclusão, mas agora garantindo a reinserção social dessas pessoas. Yasui (2015) afirma que a Reforma Psiquiátrica Brasileira se propôs a ampliar os serviços substitutivos, se distanciando dos tratamentos hospitalocêntricos, opressivos, para fortalecer os serviços extra-hospitalares.

Pensando no conceito de saúde mental, Amarante (2007) realça que esse é um campo do conhecimento complexo, plural e de transversalidades de saberes. Para o autor, tratar de saúde mental é abordar a sociedade, a cultura e todas as demandas acerca do ser humano. Desse modo, Amarante (2007, p. 19) afirma que a saúde mental é "um campo bastante polissêmico e plural, na medida em que diz respeito ao estado mental dos sujeitos e das coletividades que, do mesmo modo, são condições altamente complexas". Entretanto, conforme anteriormente explicitado, a história da saúde mental perpassou pela exiguidade desse pensamento transversal, ao excluir do convívio social pessoas adoecidas ou não, mas em situação de vulnerabilidade socioeconômica (Foucault, 2014; Castel, 1978; Amarante, 2015), o que moldou obstáculos para a construção de um pensamento transversal.

A exclusão social vivenciada pela parcela da população em sofrimento psíquico, e em situação de vulnerabilidade social e econômica, ocorre de forma histórica. Entretanto, ao direcionarmos a reflexão para a atualidade, nos deparamos com as eminentes lacunas que essa população vulnerável e adoecida vivencia, mesmo depois da regulamentação de legislações que os distanciam do tratamento asilar. Sobre isso, Yasui (2015, p. 17) afirma que ainda nessa chamada era da modernidade essa face "tenebrosa" da saúde mental no Brasil se faz presente nas "palavras e nas ações de prefeitos que investem pesado contra os dependentes químicos, propondo internação compulsória como recurso de tratamento". Tais ações são validadas por setores da sociedade, em decorrência dos lucros ganhos com as medidas "policialescas e higienistas" .

A busca constante por higienizar a sociedade, com o propósito de ocultar um problema antigo, mas que ainda se faz presente na realidade brasileira depois da Reforma Psiquiátrica, ainda se faz presente. O tratamento asilar pela reclusão de pessoas adoecidas e vulneráveis socioeconomicamente, indiferentes ao sofrimento ou às singularidades que permeiam a história de cada sujeito, ainda delineia alguns tratamentos no Brasil. Entre esses tratamentos encontramos as internações compulsórias.

Barros e Serafim (2009) elucidam como as internações são realizadas depois da regulamentação da Reforma Psiquiátrica Brasileira. A lei normatiza que as internações devem ser respaldadas por laudo médico e, no prazo de 72 horas, o médico responsável deve comunicar ao Ministério Público Estadual o procedimento adotado, bem como sua respectiva alta (Lei nº 10.216, 2001). Yasui (2015) pontua que a internação compulsória está presente na atualidade e é expressa pelas ações de prefeitos e empresários, que buscam lucro com o adoecimento do outro e, assim, efetivam a higienização da sociedade. Essa higiene social pode ser visualizada na atualidade quando nos deparamos com as ações que ocorreram no ano de 2017, na cidade de São Paulo/SP, por meio do programa de internação compulsória de usuários de drogas que ocupavam a região central da metrópole, chamada de "Cracolândia". O programa proferido pelo estado de São Paulo gerou inúmeros protestos, pois tal intervenção foi entendida como uma política higienista, a fim de suprimir uma grave demanda social por meio das internações compulsórias.

Essa realidade nos faz indagar se essa "minoria" vem sendo culpabilizada de outras formas, não mais pelo enclausuramento vitalício nos hospitais psiquiátricos, mas pela invisibilidade de suas demandas sociais, explicitadas na condição de vida das pessoas em situação de rua que, por vezes adoecidas psiquicamente, vivenciam em suas realidades uma nova forma de exclusão social que substitui a reclusão pelo abandono.

Destarte, a sociedade tornou invisível aquele que percorre as ruas de nossas cidades seminu, por vezes aos gritos, sujo e pobre. Essa invisiblidade vem sendo expressa pelas ações higienistas efetivadas pelos governantes, pelos atos de violência endereçados à PSR, pela falta de recursos às instituições que prestam atendimento à população de rua, entre outras vulnerabilidades e limitações.

A invisibilidade em que a PSR está submetida, contrária às diretrizes regulamentadas pela Política Nacional para a População em Situação de Rua, que prioriza a reintegração social dessa parcela da população, agrava a vulnerabilidade acerca dessa demanda. As instituições que prestam atendimento às pessoas que estão em situação de rua, por vezes adoecidas, relatam a escassez de recursos, de equipe, entre outras dificuldades encontradas que moldam obstáculos na reintegração social regulamentada pela política citada. Diante desses obstáculos apontados na história da loucura na Europa e no Brasil, nos aproximamos do município de Ponta Grossa/PR, apresentando a saúde mental abarcada pela condição de pobreza .

 

Saúdemental e condição de pobreza: um discurso para além das instituições no município de Ponta Grossa/PR

Para refletirmos sobre os tratamentos psiquiátricos clássicos, e a sua reestruturação como assistência à saúde mental brasileira, ponderamos a realidade do estado do Paraná, afunilando a pesquisa no município de Ponta Grossa/PR. Os primeiros hospitais psiquiátricos direcionados ao internamento de pessoas consideradas loucas no estado do Paraná foram inaugurados na cidade de Curitiba, com um intervalo de 40 anos desde a inauguração do primeiro hospital psiquiátrico, no ano 1903, até a inauguração do segundo hospício, em 1945 (Coneglian, 2011).

Direcionando nossa reflexão para o município de Ponta Grossa/PR, região povoada por índios, colonizada por espanhóis e portugueses, conhecida pelo seu importante tronco rodoferroviário, até 1958 não existia um serviço especializado para a saúde mental. O primeiro médico psiquiatra da cidade de Ponta Grossa/PR e também autor do livro Histórias da Medicina em Ponta Grossa, publicado em 1995, Cândido de Mello Neto, evidencia que os loucos e pobres lotavam as cadeias públicas, sem as mínimas condições psiquiátricas para algum tipo de tratamento. Mello Neto (1995) relembra um determinado artigo, escrito e publicado em 1891 e por ele lido, que demonstrava a similaridade das condições às quais seus pacientes estavam expostos. Tais condições repetiam-se na história: "Ali num pequeno espaço, encerrados como animais imundos amontoados, sem um conforto sequer, pobres loucos, abandonados, definham e morrem! Quem poderá contar o que ali se passa, se até as mudas paredes contra os desgraçados conspiram?" (Mello Neto, 1995, p. 17).

Mello Neto (1995) relata a grave condição a que os pacientes em sofrimento psíquico, ou aqueles em condição de vulnerabilidade socioeconômica, estavam submetidos. O possível tratamento acontecia pela reclusão nas cadeias públicas, pois os hospitais locais não dispunham de nenhuma unidade psiquiátrica (Mello Neto, 1995). Essa realidade perdurou até 1958, ano em que o médico Mello Neto iniciou seus atendimentos psiquiátricos em consultório próprio (Mello Neto, 1995). Mais tarde, o autor evidencia que, em decorrência de uma emergência psiquiátrica, o atendimento ao adoecimento psíquico em Ponta Grossa/PR foi direcionado a uma unidade do Hospital Clínico São Lucas. A inauguração dessa unidade médica psiquiátrica esteve marcada pelas lutas dos profissionais da saúde e dos familiares dos pacientes, que reivindicavam por um tratamento médico digno (Mello Neto, 1995).

Mesmo diante das lutas e da necessidade de um local específico para o tratamento psiquiátrico, somente depois de 22 anos inaugurou-se o segundo hospital psiquiátrico no Estado do Paraná - e em 1° de setembro de 1967 inaugurou-se no município de Ponta Grossa/PR o Hospital Psiquiátrico Franco da Rocha (Mello Neto, 1995), dotado de expectativas para um melhor tratamento psiquiátrico aos pacientes. Vale destacar que Mello Neto (1995) ressalta que até a inauguração do Hospital Psiquiátrico Franco da Rocha (HPFR) as pessoas em sofrimento psíquico, e por vezes em situação de vulnerabilidade econômica, eram tratadas de forma improvisada e sem a estrutura institucional para o atendimento de todos.

Trentini (2011), no decurso da sua pesquisa de mestrado, entrevistou as primeiras funcionárias do HPFR, as quais relembram que os primeiros atendimentos realizados pelo hospital foram de pacientes transferidos de outro hospital geral de Ponta Grossa/PR. Foram os 19 pacientes que estavam internados no Hospital São Lucas em Ponta Grossa/PR e um paciente que residia na cidade de Telêmaco Borba, que totalizaram os 20 primeiros pacientes do HPFR.

Logo, o HPFR se tornou a instituição de referência no município de Ponta Grossa/PR e em seus municípios e distritos vizinhos. O tratamento psiquiátrico realizado no HPFR foi baseado no internamento de pessoas consideradas loucas, em surtos, crises e em dependência química. Assim, o HPFR moldou a história da loucura no município de Ponta Grossa/PR e região, permanecendo em funcionamento durante 37 anos, de 1967 a 2004 (Coneglian, 2011).

Mello Neto (1995) evidencia o crescimento do HPFR, que chegou a abrigar 400 pacientes/dia, o que ressignificou a história da Psiquiatria no município. O autor ainda corrobora que: "Até certo ponto, a vida do Hospital Psiquiátrico Franco da Rocha confunde-se com a História da Psiquiatria na Cidade" (Mello Neto, 1995, p. 23), enfatizando o importante lugar que o HPFR ocupou na vida dos pacientes e familiares que foram atendidos.

O encerramento dos atendimentos no HPFR ocorreu de forma gradativa, a partir do esgotamento de verbas advindas do SUS, o que não permitiu a continuidade do funcionamento dos leitos psiquiátricos. Para que ocorresse esse estrangulamento dos leitos psiquiátricos, a violência vivenciada pelos pacientes nas instituições asilares foram constantemente denunciadas, dando lugar ao movimento sanitário que protagonizava o início da Reforma, o que colaborou para que a política de saúde mental do SUS progressivamente impedisse que os leitos psiquiátricos ainda disponíveis permanecessem em funcionamento. Entre os leitos, estavam aqueles assegurados pelo HPFR, acarretando o encerramento definitivo das atividades médicas no referido hospital no ano de 2004.

Trentini (2011) enfatiza que depois do fechamento do HPFR houve um intervalo de dois anos para a inauguração do primeiro Centro de Atenção Psicossocial na cidade de Ponta Grossa/PR. A autora afirma que durante esse intervalo os pacientes e as famílias permaneceram sem tratamento, verificando a dependência cultural deles ao HPFR, ao reivindicarem os leitos indisponíveis em decorrência do encerramento das atividades do HPFR.

Diante da tamanha dependência cultural da sociedade aos hospitais psiquiátricos, e pela emergente busca por transformações no modelo de tratamento psiquiátrico e, ainda, de forma similar à realidade no Ocidente, em que os hospícios foram destinados à segregação dos pobres e loucos, também no Brasil os hospitais psiquiátricos chegaram a ocupar o que Amarante (2015, p. 38) chama "os mais baixos níveis", visibilizados pelas denúncias de violência, abandono e descuido contra os internos.

Desse modo, Amarante (2015) ressalta que o modelo centrado nos Centros de Atenção Psicossocial de base comunitária tem sua história vinculada à substituição do modelo biomédico. Modelo que, segundo o mesmo autor, era fundado em um sistema com dispositivos de punição, vigilância e controle. Amarante (2015) constata desafios na superação do modelo biomédico enraizado em nossa sociedade. O autor enfatiza que a emergente necessidade de superar o modelo psiquiátrico clássico é por vezes entendida apenas como uma "simples reestruturação de serviços de assistência, num movimento que vai do modelo biomédico asilar em direção ao sistema de saúde mental e atenção psicossocial" (Amarante, 2015, p. 62), sem ponderar as importantes transformações direcionadas à saúde mental e ao tratamento biopsicossocial que se instalam depois da superação do modelo asilar.

Frente à história da loucura e depois da instituição da Lei Federal Brasileira nº 10.216, de 6 de abril de 2001, que institui os direitos e a proteção das pessoas adoecidas psiquicamente, identificamos as modificações que ocorreram na política de saúde mental no Brasil. Essas transformações oriundas da Reforma Psiquiátrica Brasileira mudaram o curso de vida de uma parcela da população, que até a instituição da lei permanecia às margens da sociedade, assombrando-se com o tratamento ofertado pela higienização social. O Centro de Atenção Psicossocial, bem como as instituições assistenciais, depois do fechamento do HPFR, iniciaram seus atendimentos às pessoas em sofrimento psíquico e em condição de vulnerabilidade, enfrentando os desafios e lacunas deixadas pela Reforma Psiquiátrica.

Sendo assim, os dados evidenciam o tortuoso caminho até a promulgação da lei federal de proteção às pessoas em sofrimento psíquico. Também foi possível entender o quanto o HPFR se tornou referência ao longo da história para o município e para cidades vizinhas no atendimento psiquiátrico, realizando todas as intervenções psiquiátricas pela hospitalização. Sua atual estrutura hoje abriga o Hospital Sociedade Beneficente São Camilo, sendo ainda utilizada pela população e pelos profissionais que prestam atendimento a essa demanda.

Diante dessa realidade, podemos nos indagar se o encerramento do HPFR contribuiu para o agravamento do fenômeno de rua em Ponta Grossa/PR, visto que grande parte dos antigos pacientes, ainda encaminhados algumas vezes para internação compulsória no Hospital Sociedade Beneficente São Camilo pela assistência social do município, não têm moradia, estando permanentemente em situação de vulnerabilidade social, e retornando algumas vezes às ruas. A grave e histórica realidade em que o pobre e louco são reclusos em instituições asilares, marginalizados pela sociedade, deixa resquícios dessa preocupante segregação. Pessoas pobres, em sofrimento psíquico, que por vezes estão em situação de rua, ainda vivenciam a exclusão social pela sua condição de vida.

 

Conclusão

É difícil escapar à impressão de que em geral as pessoas usam medidas falsas, de que buscam poder, sucesso e riqueza para si mesmas e admiram aqueles que os têm, subestimando os autênticos valores da vida. E no entanto corremos o risco, num julgamento assim genérico, de esquecer a variedade do mundo humano e de sua vida psíquica (Freud, 2011).

Como pensar na organização social de uma sociedade sem estar constantemente amordaçado pela busca do poder, pelo sucesso, pela riqueza? Como pensar em uma sociedade mais justa e igualitária, quando estamos submetidos a um sistema econômico desigual? Como pensar no outro ser humano, quando se está saturado de estigmas sociais? Com esses questionamentos plausíveis, Freud (2011, p. 7) inicia sua obra O mal-estar da civilização. O autor indaga como homens que são "venerados" pelas possíveis grandezas realizadas podem simplesmente ignorar as demandas e desejos de uma "multidão" (Freud, 2011, p. 7).

Neste trabalho, objetivamos discutir, a partir de teóricos, o enlace entre a saúde mental, a condição de pobreza e a situação de rua no município de Ponta Grossa/PR, explicitando o encerramento das atividades do Hospital Psiquiátrico Franco da Rocha. Evidenciou-se que durante sua história o município enclausurou no antigo hospital psiquiátrico os chamados loucos e pobres pelos mesmos motivos, a vulnerabilidade social e econômica, que remontam à história do tratamento do adoecimento psíquico explicitada em todo o Ocidente (Foucault, 2014; Castel, 1978) e no Brasil (Amarante, 2015).

A história da saúde mental no município de Ponta Grossa/PR relata casos de loucos e pobres enclausurados. Depois de um longo período de lutas, com a legislação da proteção às pessoas em sofrimento psíquico, o HPFR deixa de existir, mas sua atual estrutura, ocupada pelo Hospital São Camilo, vem sendo utilizada de forma recorrente, por meio das internações compulsórias.

Assim, podemos ponderar que as minorias ainda são submetidas a políticas públicas insuficientes, à pobreza, ao adoecimento psíquico, por vezes à situação de rua, que se agrava a cada movimento, a cada ação higienista da sociedade como um todo. Sobre essa realidade, como devemos pensar o adoecimento psíquico das pessoas em situação de vulnerabilidade que, depois de um longo período de transformações sociopolíticas, viu preconizada na contemporaneidade a inclusão do público historicamente excluído nas políticas sociais de proteção? Essa inclusão se efetiva? E qual o seu alcance na promoção à saúde da PSR? Os gritos dos andarilhos seminus, que percorrem as ruas no município de Ponta Grossa/PR, nos despertam tal reflexão: sujeitos protagonistas da história da loucura, preenchida por caminhos empobrecidos, que por vezes fizeram das ruas sua única possibilidade de sobrevivência.

 

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Recebido em: 15/5/2018
Aprovado em: 31/3/2020

 

 

1 Conceito denominado por Karl Marx para explicitar o processo de acumulação de produção capitalista, a partir do acúmulo e centralização de riquezas. Para mais detalhes ver: A chamada acumulação primitiva. Marx, . O Capital: para a crítica da economia política.

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