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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2020

 

"Vida Loka": vivências de jovens em contextos de exclusão e violência

 

"Crazy Life": experiences of youngsters in contexts of exclusion and violence

 

"Vida Loka": experiencias de jóvenes en contextos de exclusión y violencia

 

 

Joana MissioI; Renata Petry BrondaniII; Dorian Mônica ArpiniIII; Camila Almeida KostulskiIV; Fabiana Müller SchmittV

IPsicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista Capes
IIPsicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Psicóloga do Acolhimento institucional Lar de Mirian e Mãe Celita
IIIPós-Doutora em Psicologia pela Universidade de Lisboa. Professora Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
IVPsicóloga. Especialista em Direito de Família e Mediação de Conflitos pela Faculdade Palotina (Fapas). Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista Capes
VPsicóloga. Residente no Programa de Residência Multiprofissional Integrada em Sistema Público de Saúde, com ênfase em Atenção Básica/Saúde da Família da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

 

 


RESUMO

Este artigo aborda uma pesquisa qualitativa de caráter longitudinal, da qual participaram cinco jovens que foram alunos de uma Escola Aberta que protagonizaram um documentário, em 2012, no qual falaram sobre suas vivências. Depois de quatro anos, esses jovens foram contatados para a segunda etapa do estudo, realizada por meio de entrevistas semiestruturadas. Assim, objetiva-se compreender os atravessamentos do estilo "Vida Loka" nas suas trajetórias. Os resultados apontam elementos que parecem caracterizar a "Vida Loka": a violência, a linguagem própria, as relações conturbadas com a polícia. Ainda, os jovens manifestaram desejos e projetos de vida pertencentes a uma "Vida não Loka", referentes à estabilidade e à segurança, tais como constituir família e empregar-se. Destaca-se a "Vida Loka" como uma "inclusão social às avessas", bem como a importância do compromisso ético por parte dos profissionais e pesquisadores na compreensão de perspectivas mais reflexivas e menos excludentes.

Palavras-chave: Exclusão social. Juventude. Estilo de vida. Identidade social. Violência.


ABSTRACT

This article addresses a qualitative research of longitudinal character, in which five youngsters who were from an Open School participated. They starred a documentary, in 2012, in which they talked about their experiences, and after four years they were contacted for the second stage of the study, carried out through semi-structured interviews. Thus, it aims to understand the crossings of the "Crazy Life" style in their trajectories. The results point to elements that seem to characterize the "Crazy Life": violence, own language, troubled relationship with police. Further more, the youngsters manifested desires and life projects belonging to a "non-Crazy Life", concerning stability and security, such as constituting family and being employed. The "Crazy Life" is highlighted as a "social inclusion in reverse", as well as the importance of the ethical commitment on the part of the professionals and researchers in understanding more reflective and less exclusive perspectives.

Keywords: Social exclusion. Youth. Lifestyle. Social identity. Violence.


RESUMEN

Este ensayo aborda una investigación cualitativa, longitudinal, cuyos participantes fueron cinco jóvenes ex alumnos de una Escola Aberta. Los jóvenes han protagonizado un documentario, en 2012, en que hablaron de sus experiencias, y, tras cuatro años, se volvió a contactarlos para la segunda etapa del estudio, realizada a través de entrevistas semiestructuradas. Así, el objetivo es comprenderlos a través amientos del estilo "Vida Loka" en sus trayectorias. Los resultados apuntan para elementos que suelen caracterizar la "Vida Loka": violencia, lenguaje propio, relaciones turbulentas con la policía. Además, los jóvenes manifiestan deseos y proyectos de vida pertenecientes a una "No Loka Vida", referentes a la estabilidad y seguridad, tales como fundar una familia y emplearse. Señala la "Vida Loka" como una "inclusión social al revés", así como la importancia del compromiso ético de profesionales e investigadores en la comprensión de perspectivas más reflexivas y menos excluyentes.

Palabras clave: Exclusión social. Juventud. Estilo de vida. Identidad social. Violencia.


 

 

Introdução

A juventude, na atualidade, pode ser entendida como complexa e ambivalente, alternando dúvidas e certezas, manifestando descontentamentos, desejando experimentar o novo e marcando indefinições cotidianas que, ao mesmo tempo, atraem e atemorizam (Feffermann, 2013). Oliveira, Maheirie, Moreira e Trancoso (2015) afirmam que a juventude é uma categoria dinâmica e plural, com sentidos construídos e compartilhados historicamente, sendo que cada jovem é uma totalização que não se totaliza e enuncia a diversidade e complexidade da juventude. Vivemos um prestígio da juventude que, conforme Kehl (2004), significa uma busca incessante pelo belo, pelo sensual e pela liberdade, sob a promessa de felicidade; ou seja, ser jovem tornou-se um ideal cultural de vida, a partir de uma referência de "jovem" que remete aos grupos sociais dominantes. Porém, poucos são capazes de consumir os produtos que compõem hoje a imagem "ideal" do jovem, incluindo-os pela via da identificação, mas excluindo-os pela via do consumo, como aponta a autora.

Podemos compreender a exclusão social como um processo multifacetado, que engloba questões econômicas, históricas, sociais e culturais, e que pode afetar os indivíduos principalmente no acesso à garantia de direitos sociais. Sawaia (2014) salienta que é necessário considerar as dimensões de sofrimento da exclusão social, pois falar em exclusão é falar para além de direitos sociais, de poder e de economia: é falar de desejo, de temporalidade e de afetividade. Compreende-se que, mais ainda do que a falta de recursos materiais, haveria um sofrimento advindo dos rótulos nos quais os jovens pobres são enquadrados em características como: carentes, favelados, ladrões, menores infratores, delinquentes, criminosos, entre outros (Mello, 2014; Sawaia, 2014).

No espectro da exclusão social, encontram-se a invisibilidade e a violência, pois a invisibilidade de quem está excluído só se coloca em questão quando ele perturba a ordem social por meio da violência, passando momentaneamente à visibilidade (Kemper, 2013). Em consonância com essa ideia, Rosa (2016) afirma que a invisibilidade dos conflitos gerados no e pelo laço social recai sobre o sujeito, individualizando seus impasses, patologizando ou criminalizando suas saídas. Logo, tomando como "sujeito" o jovem, podemos entender que a exclusão social faz com que pese sobre ele a invisibilidade e, junto dela, a culpabilização total e individual por suas "saídas" - que são perpassadas, muitas vezes, pela violência.

De acordo com Broide (2010), as experiências de dificuldades cotidianas em contextos de situações sociais críticas resultam na criação de uma forte defesa contra as propostas do meio social. Geralmente, os convites são advindos do tráfico de drogas e de propostas de roubos ou assaltos, compreendendo, também, o convívio com cenas de desprestígio, humilhação, derrota de amigos para o tráfico, para o crime ou, até mesmo, a morte. O autor ressalta que, muitas vezes, há a necessidade de fazer uso da violência ou da compactuação com situações ilegais como uma forma de sobrevivência e de não vivenciar as mesmas situações. Assim, as cenas cotidianas de violências exigem que os jovens apresentem uma postura valente e violenta.

Nesse sentido, a juventude pertencente a grupos populares, uma vez invisível e excluída da possibilidade do consumo, cria outras formas de inclusão e visibilidade, outros estilos de vida, ainda que estes incluam a violência (Malvasi, 2011; Arpini & Witt, 2015). Nessa perspectiva, Kehl (2004) acrescenta que esses atos de violência, além da visibilidade e do reconhecimento, também conferem poder, ainda que ilegítimo. Já que não é possível a ostentação de objetos no plano material, ostenta-se um estilo de vida, caracterizado pela "malandragem", comumente chamado de "Vida Loka", como exemplifica a seguinte música:

Bolso esquerdo só tem peixe / E o direito tá cheio de onça / Ai, meu Deus, como é bom ser vida loka / De carrão, de motona / O bagulho te impressiona [...] / Final de semana, só aventura / Fluxo também, se tem balada / Casa lotada, se prepara que hoje tem [...] / Pé no chão, consciente / Na melhor hora nós ataca / Imbicamo na agência / E saímos de veloster sem placa. (Música Como é Bom Ser Vida Loka, de Mc Rodolfinho)

Ainda, outras músicas retratam o estilo da "Vida Loka", falando sobre poder, injustiça social, delinquência, criminalidade, dificuldades e estigmas, mas também sobre superação, dinamismo, desejos e motivação, como as seguintes: "pro olho do mundo, mais um louco vagabundo / Poeta, artista, delinquente ou terrorista? / [...] Da vida dura loka hardcore" (música Vida Loka Hardcore, de Do Protesto à Resistência); e "Eu sou guerreiro do rap, sempre em alta voltagem / Um por um, Deus por nós, tô aqui de passagem / Vida loka, eu não tenho dom pra vítima / Justiça e liberdade, a causa é legítima" (música Vida Loka, de Racionais Mc's). Assim, os jovens de periferia comumente são ativos participantes de grupos de rap e ativistas da cultura, de forma que as letras contidas nessas produções costumam retratar esses contextos conflitivos e violentos (Broide, 2010).

Podemos associar o estilo de uma "Vida Loka" àqueles jovens que não conseguem alcançar os requisitos esperados pela norma social. De acordo com Soares (2004), nessa condição, pode-se evidenciar uma anulação social desses jovens, ora porque a sociedade se coloca indiferente à sua presença, ora porque lança estigmas e preconceitos sobre eles. A essa anulação, os jovens responderiam vivendo uma "Vida Loka", que, para Malvasi (2011), estaria permeada pela visibilidade e pelo reconhecimento conquistado pela apropriação dessa identidade. Corroborando isso e considerando a busca incessante dos jovens pela identidade, pela autonomia e pela continência, Feffermann (2013, p. 70) afirma que eles "agem numa tentativa de catalisar um modelo de identidade que a sociedade não lhes oferece, mas impõe e requisita". Esse modelo seria aquele que reflete os grupos sociais dominantes, marcado pela possibilidade do consumo.

Levar uma "Vida Loka" parece se apresentar como a única alternativa que a sociedade colocou à disposição dos "invisíveis" que circulam desamparados e desfiliados, buscando nas situações limites uma forma de constituir filiação e visibilidade (Botelho & Leite, 2008; Leite, 2008; Soares, 2004). Essa maneira de levar a vida parece retirar esses jovens de uma posição de passividade diante das contradições e da exclusão social vivenciada cotidianamente, pressupondo que viver "loucamente" seria expor-se a situações perigosas e enfrentá-las, muitas vezes, de forma violenta. Assim, parece que esse estilo de vida apresenta-se como uma forma de inclusão às avessas, uma possibilidade de saída criativa para a experiência da juventude. Nesse sentido, podemos entender a "Vida Loka" como uma vida intensa, insegura, ameaçadora, com a presença constante do risco e do medo, mas pulsante e desejante (Malvasi, 2011).

Assim, alguns questionamentos se fazem relevantes para nossa discussão: que tipo de vivências pode caracterizar uma "Vida Loka"? Que efeitos essas vivências podem ter na trajetória de jovens em situação de exclusão social? Seria a "Vida Loka" uma escolha ou uma estratégia de sobrevivência? O que desejam esses jovens, afinal? Logo, a partir dessas reflexões, o objetivo deste artigo é compreender os atravessamentos do estilo de vida "Vida Loka" nas trajetórias de jovens em contextos de exclusão social, a partir de uma pesquisa longitudinal.

 

Metodologia

Delineamento e participantes

O presente estudo tem perspectiva qualitativa, visto que busca fornecer dados para a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação, de modo que os fenômenos são compreendidos a partir dos sujeitos envolvidos (Minayo, 2007). Além disso, a pesquisa apresenta caráter longitudinal, pois aborda dois momentos distintos: em 2012, quando os participantes da presente pesquisa foram protagonistas de um documentário, produzido a partir de um Projeto de Extensão na escola onde estudavam; e em 2016, quando foram novamente contatados, a fim de compartilharem suas trajetórias por meio de entrevistas. Cabe destacar que a característica longitudinal do estudo possibilitou uma riqueza de detalhes, no que se refere ao acompanhamento dos percursos de "Vida Loka" dos participantes que integraram esta pesquisa, gerando, assim, dados significativos.

O percurso de pesquisa delineado decorre de um projeto de extensão realizado em uma escola de Ensino Fundamental do interior do Rio Grande do Sul, que se caracteriza por ser uma Escola Aberta trata-se de uma instituição governamental que utiliza um sistema de etapas (cada série do ensino fundamental corresponde a duas etapas) e oferece oficinas pedagógicas no turno inverso das aulas (oficinas de padaria, papel reciclado, cabeleireiro, etc.). A escola atende alunos com idade entre 10 e 18 anos, crianças e adolescentes que apresentam problemas escolares e que têm suas histórias marcadas por dificuldades familiares, uso de drogas, violências, comportamentos de risco, relações instáveis com a escola, cumprimento de medidas socioeducativas, entre outros aspectos. Assim, a instituição também oferece café da manhã e almoço, além de disponibilizar espaço para os alunos que queiram tomar banho.

O documentário produzido em 2012 abordava questões sobre infância e adolescência, vida escolar, família e projetos de vida. O vídeo tem cerca de 50 minutos de duração e conta com falas de seis participantes, alunos da referida escola. Assim, quatro anos depois da produção desse documentário, contatamos novamente esses protagonistas, a fim de vislumbrar aspectos das suas trajetórias de vida durante esse tempo percorrido. Logo, os participantes do presente estudo são cinco jovens que integraram o referido documentário.

Esses cinco jovens participaram da segunda etapa da pesquisa, realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, nas quais foram retomados aspectos que envolveram lembranças sobre o documentário, sonhos e projetos que foram mencionados naquele momento; suas experiências adolescentes nesse percurso e também aspectos considerados marcantes em suas vivências. Além de questões mais gerais, os roteiros de entrevista continham, ainda, algumas questões específicas para cada adolescente, considerando as particularidades trazidas no documentário por cada um deles.

Cabe ainda destacar que um dos jovens não foi contatado pessoalmente, em razão de estar em privação de liberdade (as informações referentes a ele foram obtidas em entrevista realizada com sua avó). O sexto participante, apesar de muitas tentativas, não foi localizado, no segundo momento da pesquisa, para a entrevista. O Quadro 1 apresenta os participantes, a idade, nos dois momentos da pesquisa, e a escolaridade deles no segundo momento e com quem residem.

Instrumentos e procedimentos

O estudo utilizou como instrumentos: o documentário e também entrevistas semiestruturadas com roteiros que englobavam questões sobre as trajetórias e experiências de vida dos jovens. Cabe ressaltar que a proposta não buscou fazer uma comparação entre esses dois momentos, mas sim retomar pontos do período anterior (momento do documentário), explorando aspectos da trajetória de cada jovem. As entrevistas, com duração aproximada de 50 minutos, foram feitas individualmente nas dependências da escola e tiveram seus áudios gravados e posteriormente transcritos.

Realizamos a análise dos dados por meio da análise de conteúdo, técnica que possibilita produzir inferências sobre o material, transpondo-o para o seu contexto social, sendo importante levar em consideração que o material muitas vezes provém de uma realidade distante do pesquisador (Bardin, 1977/2010). Ela ocorreu em dois momentos: primeiro, foram analisados individualmente os materiais produzidos pelos jovens e, em seguida, o conjunto das informações. A partir disso, para este artigo, foram elencadas duas categorias centrais, que foram intituladas "'Vida Loka': uma inclusão social às avessas" e "Projetando o futuro: o anseio por uma 'Vida não Loka'".

Salientamos que esta pesquisa atendeu a todas as exigências da ética em pesquisa, segundo a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Desse modo, apresentamos a proposta para a instituição e obtivemos autorização para realização da pesquisa, bem como informamos todos os participantes acerca dos objetivos e dos procedimentos, salientando ser voluntária a participação e garantindo o anonimato. O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade em que foi realizado, sob CAAE 61015216.2.0000.5346. Logo, com o objetivo de preservar a identidade dos participantes, o nome do documentário não será mencionado, destacando também que os nomes dos participantes aqui apresentados são fictícios.

 

Resultados e discussões

"Vida Loka": uma inclusão social às avessas

Podemos perceber certa aproximação entre as letras de músicas - citadas no início deste artigo - e as vivências dos jovens que integraram o estudo. Observamos que, no espectro que constitui o modo de "Vida Loka", encontram-se trajetórias marcadas por violências, perdas, conflitos e territórios perpassados por perigos e divergências constantes. Na verdade, a "Vida Loka" parece se impor a esses jovens, por meio de mecanismos de exclusão social, invisibilidade e vulnerabilidade, para que ela seja internalizada e eles se apropriem dela, transformando-a de condição imposta a um "estilo de vida". Afinal, esses jovens, "estranhos invisíveis", precisam de oportunidades que os tornem visíveis, pois a impossibilidade de ser reconhecido ameaça as possibilidades criativas de existência (Kemper, 2013).

A fala de um dos adolescentes, na ocasião do documentário, ilustra esses processos de exclusão e invisibilidade, que podem ser entendidos como pontos de partida para a "Vida Loka": "nem olham pra mim. Só diz 'oi' e 'tchau' e não conversam mais. Deu. Elas não conversam comigo, por causa que eu faço coisa errada" (Gabriel, em 2012). Essa fala de Gabriel denuncia, para além de um desamparo social, um desamparo discursivo, decorrente da segregação a que estão submetidos esses jovens, implicando no silenciamento e dificuldade de se reconhecerem no seu sofrimento e no seu lugar no laço social (Rosa, Estevão, & Braga, 2017). Nessa perspectiva, de acordo com Broide (2010), o desamparo do entorno social gera frustação e dor, além de trazer a possibilidade real de uma aniquilação pelo sistema que se instaura.

Assim, um primeiro aspecto que parece caracterizar os jovens que vivem uma "Vida Loka" se apresenta por meio de uma linguagem própria. Expressões como "cupincho", "ladaia", "mina", "bonde", "banda", "os contra", "pra frente", "rixa" e "rolé" foram bastante utilizadas pelos jovens entrevistados para descrever suas vivências. Essas expressões parecem funcionar como um código de comunicação e aproximação, que pode ser pensado como um modo de estreitar os laços entre os grupos e fortalecer a identidade construída, produzindo a sensação de pertencimento e filiação. Afinal, o reconhecimento e o pertencimento desses jovens no laço social encontram barreiras e limitações perante a trama social (Warpechowski & De Conti, 2018).

Diante desse aspecto, Malvasi (2013, p. 330) define a especificidade da linguagem presente entre jovens de grupos populares como "dialeto da vida loka". Essa seria "uma subversão da linguagem 'oficial' - do 'sistema' ou da 'sociedade' [...] - por meio da qual é possível a união de 'inteligências das quebradas'" (Malvasi, 2013, p. 330). Além disso, essa linguagem pode ser considerada como uma estratégia defensiva, diante da exclusão que esse grupo vivencia, por não compreender, muitas vezes, a dita "língua culta", mas, principalmente, por não ter acesso ao mundo do consumo. Dessa forma, tendo o acesso negado a esse mundo, apresentado como promissor e lugar de encontro com a felicidade, essa linguagem própria poderia ser uma tentativa, juntamente com outros elementos, de produzir uma forma de inscrição social.

Outro aspecto sobre a "Vida Loka", da qual nos falam os jovens entrevistados, diz respeito à violência. Situações em que o medo, a instabilidade e a desconfiança se fizeram presentes e emergiram com força nos discursos dos participantes. Porto (2000) relaciona a violência aos direitos civis à exclusão social, referindo que os excluídos de direitos podem se tornar os alvos ou atores mais imediatos da violência. Assim, podemos compreender que esses jovens, encontrando-se em situação de exclusão social, acabaram se aproximando de contextos de violência, conforme os seguintes relatos: "o que morreu na frente do funk [amigo] [...] Ele foi pro... Pro funk, nessa festinha... Daí os contra dele lá, pegaram e encheram ele de tiro. As bala explosiva" (André, em 2016); "Foi ruim, foi horrível, foi violenta, tipo violenta mesmo [a adolescência]. Não favela, mas é quase igual, sabe? [...] Passam com arma na mão de bicicleta, de a pé, por causa de guerra" (Marcos, em 2016).

Outros episódios, relatados pelos jovens participantes, evidenciam a violência vivenciada em suas trajetórias como reflexo da exclusão social e de uma "Vida Loka". Juliana conta, no documentário em 2012, que gostaria de ser professora. Entretanto, em 2016, fala sobre um ex-namorado - descrito por ela como um "Vida Loka" - que, não aceitando o término do relacionamento, fazia ameaças a ela e a sua família, fazendo com que temesse por sua vida e chegasse a interromper os estudos, postergando seu projeto de vida traçado em 2012: "Tipo, que eu adoro estudar, mas não adianta querer ir pro colégio, estudar bonitinha, sair e perder a vida na frente da escola, entendeu?" Além disso, Karina também conta que o irmão de sua cunhada, com o qual tinha bastante proximidade, faleceu assassinado em um bairro da periferia da cidade. Ainda, ela conta outro episódio, envolvendo seu irmão em uma festa: "Meu irmão que tá preso. Ele... Tava, cheirou lá a cola, e bebeu. E ficou louco. Só que daí ele foi empurrar minha sobrinha e eu não deixei ele, que ele foi pra empurrar pra derrubar, e eu segurei minha sobrinha, ficou brabo e me deu um chute" (Karina, em 2016).

Os episódios relatados pelos jovens, ainda que muitos não os envolvam diretamente, denunciam o risco a que se encontram expostos nos territórios onde experimentam a adolescência e a juventude. De acordo com Warpechowski e De Conti (2018), há a presença da violência e a ausência do Estado sob a forma de políticas públicas efetivas nas periferias, contribuindo para o aumento das mortes de jovens, principalmente os jovens pobres e negros.

Considerando então que as relações cotidianas desses jovens estão fortemente permeadas por situações violentas e atos ilícitos (Broide, 2010), podemos identificar relações bastante próximas (e também conturbadas) com a polícia. Essas relações são estabelecidas nos territórios onde se encontram, sendo que a autoridade policial é vista, muitas vezes, como não confiável e desmoralizada (Arpini & Quintana, 2009). Esse aspecto pode ser identificado no relato dos participantes do estudo: "aí chegou os home [polícia]. Os home deram uma tunda de pau nele [irmão]. E ele chegou em casa e ainda reclamou com a minha mãe.[...] Aí ele falou que eu vi os home bater nele" (Karina, em 2016). Além disso, André relata que: "se eu tô junto com eles e a polícia bate... Leva eu junto, sendo que eu não tenho nada a ver" (em 2016). Ainda, Juliana traz a seguinte narrativa:

Aí, nisso, a gente, no outro dia, a gente chamou a polícia pra ir lá buscar as coisas, que as polícia falaram? "Não porque eles são os [nome do grupo], e os [nome do grupo] tem que ter mais viatura, tem que ter força policial, só isso aqui não adianta, que eles dão pedrada e dão isso e aquilo na viatura", então eles ficaram com medo, sabe o que que é isso? [...] E polícia, polícia não muda nada, porque tem medo deles, né. Que que eu posso contar com polícia! (Juliana, em 2016)

As ações policiais presenciadas pelos jovens parecem corroborar a ideia de que pessoas de baixa renda teriam maior tendência ao crime, oferecendo risco às demais classes de "pacíficos cidadãos, amantes da Lei" (Zaluar, 1994, p. 88). Nesse sentido, as falas dos jovens denotam a falta de investimento do poder policial na proteção deles e de suas famílias. A lei parece sofrer uma distorção, e passa a ser representada não mais pela autoridade policial ou judiciária, mas sim a "autoridade" do crime. Portanto, pertencer a um grupo, gangue ou organização criminosa em determinado território pode significar a garantia da impunidade sobre os crimes praticados. Não pertencer, por outro lado, parece gerar o sentimento de desproteção, e consequentemente de resignação adiante da violação de direitos, como demonstram as falas citadas. Além da proteção e do pertencimento, esses grupos podem oferecer uma imagem de periculosidade e violência, incorporada por muitos jovens, às vezes, por ser a única e, outras vezes, por ser a voz mais potente (Torossian, Ribeiro, Silva, & Barbosa, 2017).

Com relação ao que mais pode se suceder a partir dessa inclusão social às avessas, não podemos deixar de destacar alguns aspectos da trajetória de Ítalo. Para ele, a "Vida Loka" parece ter atingido proporções maiores. Em 2012, no documentário, quando questionado sobre seus projetos futuros, afirma que gostaria de trabalhar como técnico em informática, desejo que ainda mantinha, apesar de já ter cometido atos infracionais e estar cumprindo medida socioeducativa. No entanto, no contato realizado para a etapa da entrevista, sua avó nos contou que ele se encontrava em privação de liberdade devido a assalto, porte de armas e envolvimento com drogas. Com relação à violência perpetrada pelos jovens, pode-se questionar se esta não seria uma forma exacerbada e urgente de buscar expressão, reconhecimento e legitimação no laço social (Gurski, 2017).

Além disso, a avó relata, com muito pesar, a ocorrência de três mortes na família: do pai (por facadas), de um irmão (com tiros por envolvimento com drogas) e de uma irmã de Ítalo (em decorrência de violência sexual). A mãe de Ítalo pouco permanece em casa, pois faz uso abusivo de álcool. Dessa forma, a violência e o crime, impulsionados por conflitos e questões familiares bastante difíceis, parecem ter se encarregado de interromper os projetos futuros de Ítalo.

Como nos revelam os relatos dos jovens, a "Vida Loka" mostra-se turbulenta e intensa, mas também admirada. De fato, os participantes parecem reconhecer algum tipo de status e de poder nesse estilo de vida, conforme o relato: "é tipo, é gangue, entendeu? [...] O cara era 'Vida Loka', me mandava, todo mundo tinha medo dele na banda, entendeu, aí pegava, tu acha que alguém ia afrontar? Ninguém afrontava, entendeu?" (Juliana, em 2016). Gurski (2017, p. 53) aponta certo "fascínio pelo trágico" ou "paixão pelo real" como marca na vida desses jovens, visto que "o assassinado pode ganhar as páginas do jornal; assassinando encontram o caminho de uma inclusão pela via da exclusão". Ainda que a maioria dos participantes não estivesse numa posição de "representantes do crime e do perigo", eles parecem atribuir valor àqueles que estão. Nessa direção, percebemos que os jovens do estudo não se incluem quando falam na "Vida Loka", colocam-se como espectadores dela; contudo, suas vivências parecem estar inseridas naquilo que entendem por uma "Vida Loka". Talvez esse "colocar-se de fora" possa nos dizer algo sobre o desejo ou não de estarem mergulhados nesse estilo de vida.

Projetando o futuro: o anseio por uma "Vida não Loka"

Os relatos dos jovens apontam, para além do estilo, do dialeto e da busca pelo status, para vivências perpassadas pela violência, mortes, perdas e atos ilícitos. Todos esses eventos, misturados a contextos familiares fragilizados e a atravessamentos do território em que vivem, parecem gerar uma atmosfera de sofrimento, medo e insegurança. Podemos, assim, pensar a "Vida Loka" de forma análoga a um tornado - que amedronta, bagunça e destrói por onde passa, mas que também se mantém grande, poderoso, vitorioso, em movimento, que deixa suas marcas no caminho. Nesse sentido, a "Vida Loka" não parece ser uma escolha, mas sim, como já aludimos, um movimento de sobrevivência psíquica e identitária. Nessa perspectiva, podemos nos perguntar: se houvesse a possibilidade de escolha, que estilo de vida eles escolheriam? Que direção tomariam seus desejos e projetos de vida?

Contrariando a admiração que parece pairar sobre a "Vida Loka", André, em 2012, falou que aproveitava a vida enquanto ainda era pequeno, afirmando que ser criança é melhor: "quando eu crescer, não vai dar certo" (André, em 2012). Assim, partindo do pressuposto de que o que esperava André quando crescesse seria uma "Vida Loka", apresenta-se outra percepção sobre esse estilo de vida - a do fracasso e da destrutividade. Afinal, por que não vai dar certo? É possível que André estivesse nos falando, antecipadamente, primeiro, que não quer crescer, pois algo que ele não pode controlar irá acontecer; e, segundo, que esse "algo" (que podemos entender que faça parte da "Vida Loka") terá um preço. Warpechowski e De Conti (2018) salientam a necessidade de considerar a trama social ao pensarmos na passagem adolescente, uma vez que a pobreza, as violências e as vulnerabilidades produzem marcas no processo psíquico do adolescer.

Da mesma forma, Karina nos aponta os desdobramentos que se sucederam com a chegada da juventude, que podem evidenciar que, assim como André, ela não deseja, de fato, uma "Vida Loka", mas se insere nela por ser uma inscrição social possível. Quando questionada sobre o que diria à "Karina do documentário", caso pudesse voltar no tempo, ela responde: "acho que pra ela continuar do jeito que ela era. [...] Sempre foi uma guria alegre. [...] Hoje ela mudou [risos]. Aí ela não tem toda aquela alegria que ela tinha" (Karina, em 2016). Entende-se, com essa resposta, que algumas situações podem ter sido responsáveis por tirar dela essa alegria - falecimento de entes queridos, conflitos familiares, interrupção dos estudos, etc. Situações que parecem estar conectadas com a exclusão social e com as violências que perpassam a trajetória de Karina e também a trajetória dos demais participantes.

Assim, ao compreender o que está por trás desse estilo de vida, podemos ver que, na verdade, os sonhos e desejos que manifestam são os mesmos presentes no universo daqueles que representam os ideais sociais. A partir das falas dos participantes, o que podemos dizer que almejam, afinal, é uma "Vida não Loka", ou seja, é o contrário do que prega o discurso da ostentação, do crime, da instabilidade e do medo. Isso fica evidente nas seguintes falas:

A mãe ficar mais perto de nós, a nossa família tá mais em casa conversando, todo mundo tá separado. Podia melhorar de todo mundo ser unido, assim nossa família, conversar bastante. [...] Ter minha casa, tá casado, ter meu carro e ter meu serviço. (Marcos, em 2012)

Ah, meu sonho é morar na favela lá do Alemão no Rio de Janeiro [...] Eu pensei "Eu quero ir pra lá, pra ajudar quem precisa, né! Assim como eu quero ser ajudado, né, eu quero ajudar as pessoa também, né". (André, em 2012)

Ter minha própria casa, viajar [...] Queria conhecer o [nome de um parque de diversões] [...] Vê a minha família mais reunida ainda [...] Ter responsabilidade pras coisas. E ter ânimo, né, porque se não Se não tem ânimo, não Não vou conquistar nada. (Karina, em 2016)

Uma profissão, uma profissão massa, né [...] Eu sempre quis fazer isso, engenheira e culinária [...] Tipo, eu queria trabalhar em lojas, tipo [...] vendedora de vestido e calça. Eu acho muito legal [...] Eu queria poder pegar, fazer meus cursos [...] numa coisa que eu acho legal, entendeu? Que eu ia fazer, mas com vontade, porque eu quero, eu acho muito bom. (Juliana, em 2016)

A partir dessas manifestações, podemos perceber que os projetos futuros dos jovens participantes abarcam reunir a família, ter filhos, ter uma casa, finalizar os estudos e ter profissão, entre outros. Sobre as perspectivas de futuro, Winnicott (1999) coloca que os sonhos, as expectativas e os projetos de vida são construídos a partir das experiências, da história de vida de cada sujeito, e dependem das condições ambientais. Esses jovens, a despeito de todos os desafios presentes em seus cotidianos, parecem valorizar suas lembranças, seus afetos e a esperança de um futuro profissional e familiar diferente daquele que se apresenta por meio de seus contextos sociais.

De forma bastante similar aos jovens desta pesquisa, Mendes (2008) mostra que os projetos de vida de jovens pobres, participantes de seu estudo, organizavam-se em torno da aquisição de um trabalho e da constituição de uma família, sendo que a perspectiva que pareciam visar era a de ter uma vida estável, controlada e feliz. Por isso, mesmo compreendendo que essa etapa da vida comporta "estilhaçamentos" de vínculos e identificações, podemos também reconhecer seu potencial de sonho, esperança, alegria e transformação (Figueiredo, 2006). Logo, o "sonho" parece ser exatamente o oposto da "Vida Loka": estabilidade e segurança. Desejar distanciar-se da "Vida Loka" parece ser também desejar se distanciar das suas identificações, origens e referências.

Nesse sentido, Marcos, no documentário, afirma quanto aos seus sonhos: "ter minha casa, tá casado, ter meu carro e ter meu serviço. Só isso. O meu plano é ter a mulher que eu gosto, junto com a minha filha, na minha casa. Quieto, sem incômodo" (Marcos, em 2012). Já na entrevista, ele conta que conquistou o que almejava: "olha, o que eu mais queria mesmo era minha casa, meu terreno próprio, eu consegui. [...] Poder ficar assim sozinho com ela, com a minha mulher, na minha casa, com meus filhos, trabalhando. Foi isso aí que eu consegui realizar" (Marcos, em 2016). Ao mesmo tempo, ele conta que, para realizar esse sonho de uma "Vida não Loka", precisou se afastar de sua família e de seu local de origem: "eu não podia vir pro colégio, os cara tudo bêbado aí, incomodando, tudo isso mudou, depois eu saí de lá, aí ficou tudo pra trás. Eu segui a vida pra frente, foi bom" (Marcos, em 2016); "Eu que fiz minhas próprias escolhas, eu que decidi sair de casa, tudo fui eu. Nada, nem um ponto, nenhuma vírgula foi eles [família]" (Marcos, em 2016). Assim, "para os jovens da periferia, crescer é uma empreitada que ele deve enfrentar sozinho, um salto no escuro" (Feffermann, 2013, p. 69), tendo em vista as escassas oportunidades, a precária situação socioeconômica e os contextos familiares fragilizados.

Logo, a admiração pelo estilo "Vida Loka" e o anseio por uma vida que parece ser "Não Loka" colocam diante de nós um paradoxo. Como podemos compreender esse paradoxo? Primeiramente, pela diferenciação entre o que é da ordem do possível (a "Vida Loka") e o que é da ordem do ideal (a "Vida não Loka", ou a estabilidade). Em seguida, podemos pensar na capacidade desses jovens de "ampliar o possível", por meio de sonhos, de projetos e da resiliência, que permite o enfrentamento dos desafios, a partir da criatividade, não esmorecendo diante deles. Além disso, podemos tentar compreendê-lo com as possibilidades de escuta que têm ou tiveram esses jovens, não apenas do momento de encontro que a pesquisa proporcionou, mas também nas relações cotidianas (escola, família, amigos, etc.); escutas que permitem emergir sujeitos que desejam algo.

Rosa (2007) afirma que é necessário levar em consideração o "lugar de resto" que esses sujeitos ocupam na sociedade, colocando esse lugar em suspensão, na medida em que possibilita a eles, por meio da escuta, a manifestação do desejo. A autora ainda ressalta que é imprescindível que essa escuta esteja aliada a uma ética de implicação com a modificação das estruturas sociais e políticas que sustentam a situação desses jovens. Assim, "ampliar o possível" significa escutar um sujeito que está situado precariamente no campo social, enredado pela maquinaria do poder e ocupando um lugar alienado pelo discurso ideológico vigente (Rosa, 2012). Nesse sentido, Torossian, Ribeiro, Silva e Barbosa (2017) apontam que é necessário romper com essa imagem alienante que, historicamente, é conferida a esses jovens, produzindo desvios, por meio de uma escuta acolhedora, que propicie que se emerja um sujeito desejante e se criem possibilidades para o exercício da cidadania. Apenas aliando a escuta do desejo (representado pelos sonhos e projetos de vida) à implicação com a realidade social é que podemos pensar em políticas públicas de qualidade.

A "Vida Loka" perpassou as trajetórias dos jovens participantes de diferentes formas: Ítalo parece ter sido "tomado" pela "Vida Loka", não conseguindo se desvencilhar da violência e sendo influenciado pelos aspectos mais negativos desse estilo de vida; já Marcos nos conta ter conquistado a "Vida não Loka" com a qual sonhou em 2012, no documentário, mediante a tranquilidade e a estabilidade do lar que constituiu (longe de sua família e território de origem); e, por fim, Karina, Juliana e André seguem em meio aos encantos e desencantos da "Vida Loka", porém, ainda sonhando com um futuro sem "loucuras", no qual possam se sentir incluídos socialmente por outras vias.

 

Considerações finais

A partir da pesquisa, pudemos compreender que a "Vida Loka" pode se configurar como uma estratégia de sobrevivência psíquica e social, uma vez que pode proporcionar uma forma de inclusão social - que chamamos de "inclusão social às avessas" por ocorrer, muitas vezes, por vias que perpassam a violência. Desse modo, os jovens participantes convocaram-nos a refletir e a reconhecer diferentes modos de ser jovem e integrar comunidades populares. Esses modos, para eles, pareceram englobar uma linguagem própria e específica, demarcadora de uma identidade. Além disso, seus contextos de vida, permeados pelo medo e pela desproteção, apresentam a violência como uma vivência cotidiana, com o agravante da descrença na autoridade policial e dos conflitos com esta. Os relatos dos jovens participantes englobavam, nesses contextos de pobreza, violência e exclusão social: alcoolismo, tiroteios, ameaças, violência sexual, violência policial e conflitos e violências familiares.

Outro aspecto importante observado foi que, para os jovens participantes, a vida adulta parece chegar clamando pelo abandono da "Vida Loka" (ou pela conquista de uma "Vida não Loka")¸ estilo de vida que parece fazer parte, essencialmente, do momento da juventude nesse cenário. Talvez possamos pensar que a "Vida Loka" cessa - ou melhor, deixa de ser "Loka" - à medida que os sonhos e projetos de vida parecem estar mais próximos de serem alcançados, ou quando outros caminhos e possibilidades de inscrição social surgem. Assim, é importante e necessário colocar em questão o entendimento geral (por vezes estigmatizador) que se tem sobre o jovem pobre e excluído socialmente, deixando-nos tocar por essa outra dimensão: de resiliência e do desejo. As narrativas dos jovens corroboram esse aspecto, na medida em que seus projetos apontam para a estabilidade e a tranquilidade, características opostas a uma "Vida Loka". Logo, o jovem "Vida Loka" ama, deseja e sonha, e parece ser justamente esse o grande desconforto que provoca na sociedade, uma vez que não podem ser definidos unicamente como jovens endurecidos, tomados totalmente pela agressividade e pela violência.

Podemos dizer que o encontro com esses jovens nos surpreendeu pela proximidade e, ao mesmo tempo, pelo distanciamento. Afinal, pesquisar contextos de vida distantes do universo no qual estamos imersos é uma experiência capaz de produzir estranhamento; entretanto, esse estranhamento se faz necessário para que possamos derrubar paradigmas estigmatizantes e lançar novos olhares sobre esses jovens e o cenário no qual se inserem. Nesse sentido, acreditamos ter proporcionado um momento de acolhimento e escuta, sobretudo de visibilidade e interesse pela potência e pela riqueza das vidas que estavam diante de nós, contrariando todo o "empobrecimento" que parece circundar esse público. Acreditamos que é a partir da aproximação que encontraremos caminhos menos invisíveis e excludentes, porque é no encontro genuíno que eles podem ter a oportunidade de nos apresentar a vida como eles a vivenciam.

Não temos a pretensão, com este estudo, de esgotar o tema. Pelo contrário: seria de grande valia a realização de outros estudos sobre a "Vida Loka" e as formas de identidade social que abarcam a juventude em contextos de exclusão social, uma vez que é necessário somarmos forças em prol dos jovens que vivenciam o desamparo e a invisibilidade. Também, é imprescindível que a comunidade científica, o poder público e a sociedade civil estejam engajados no objetivo de oferecer melhores possibilidades de vida a esses jovens, por meio de ações que visem potencializar seus projetos de vida. Afinal, precisamos de uma sociedade mais inclusiva, e isso exige o compromisso ético dos profissionais e pesquisadores. Que possamos fazer a nossa parte.

 

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Recebido em: 31/3/2019
Aprovado em: 4/4/2020

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