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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.3 São João del-Rei July/Sept. 2020

 

Contribuições do modelo feminista nos estudos da deficiência para uma perspectiva de prática inclusiva educacional baseada na interdependência1

 

Contributions of the Feminist Model in Disability Studies to an Inclusive Educational Practice Perspective Based on Interdependence

 

Contribuciones del modelo feminista en los estudios de discapacidad a una perspectiva de práctica educativa inclusiva basada en la interdependencia

 

 

Gabriela Vieira de AbreuI; Janaína Mariano CésarII; Marcia Roxana Cruces CuevasIII

IMestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional (PPGPSI) no ano de 2019, pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Pós-Graduada em 2016 em Terapia Através do Movimento (TAM) pela Faculdade Angel Vianna (FAV). Psicóloga formada em 2014 pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: gabrielavieira.abreu@gmail.com
IIDoutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Mestra em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes/PPGPSI). E-mail: jhanainacesar@gmail.com
IIIDoutora em Educação (2015) pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Mestra em Psicologia (2001) pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Graduada em Psicologia (1996). Professora do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail marcia.roxana@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho visa problematizar a relação entre deficiência e educação, a partir dos processos de construção de uma Educação Inclusiva. A pesquisa foi realizada com educadoras(es) que atuam na interface da Educação "Especial" e da Educação para Jovens e Adultos (EJA), com os(as) quais exercitamos práticas de conversa na Formação Continuada no município de Vitória/ES. Trata-se de uma pesquisa-intervenção de caráter participativo. Como interlocutores, destacamos as contribuições do Modelo Feminista para os Estudos da Deficiência, buscando observar a diretriz ética do lema "nada sobre nós, sem nós" e o princípio da interdependência. Por fim, ao discutirmos com táticas de trabalho cotidianas, esta pesquisa aponta para o exercício ético-político que envolve o cultivo da interdependência como modos de acesso e afirmação de práticas inclusivas.

Palavras-chave: Modelo feminista. Deficiência. Educação. Interdependência.


ABSTRACT

This study aims to problematize the relation between disability and education, analyzing the process of building an Inclusive Education. The subjects of this study were educators who work with Special Education in the context of Adult and Youth Education, and agreed to participate in conversations that took place during their professional development meetings in the county of Vitória/ES. It is a participatory research-intervention. The research had as it interlocutors the contributions of the Feminist Model to the Disability Studies, seeking to observe the ethical guideline of the motto "nothing about us, without us" and the interdependence principle. Finally, when discussing with daily work tactics, this research indicates that the ethical-political exercise involves the harvesting of interdependence as the main way to access and affirm the inclusive practices.

Keywords: Feminist model. Disability. Education Interdependece.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo problematizar la relación entre discapacidad y educación, a partir de los procesos de construcción de una Educación Inclusiva. La investigación se realizó con educadores que trabajan en la interface de Educación "Especial" y Educación de Jóvenes y Adultos / EJA, y con quienes practicamos prácticas de conversación en Educación Continua en la ciudad de Vitória / ES. Es una investigación-intervención participativa. Como interlocutores, destacamos las contribuciones del Modelo Feminista y los Estudios de Discapacidad, buscando observar una conducción ética del lema "nada sobre nosotros sin nosotros" y el principio de interdependencia. Finalmente, cuando se discute con tácticas de trabajo diarias, esta investigación apunta para el ejercicio ético-político que involucra el cultivo de la interdependencia como formas de acceso y afirmación de prácticas inclusivas.

Palabras clave: Modelo Feminista. Discapacidad. Educación. Interdependencia.


 

 

Introdução

Em 2015 foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, que se destina "a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais para a pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania" (Lei n. 13.146, cap. I, art. 1º). Tal afirmação também diz respeito ao direito a uma educação inclusiva, conforme dispõe o Estatuto.

A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem (Lei n. 13.146, cap. V, art. 27).

Sabemos que o texto da lei é efeito de tensões e lutas históricas por afirmação de direitos da pessoa com deficiência, cuja realização e garantia não se esgotam em sua promulgação. É, portanto, na direção de pensar o efetivo exercício de tais direitos que esse texto se dedica à problematização quanto ao sistema educacional inclusivo. Interessa pensar como uma educação inclusiva2tem se constituído no cotidiano escolar e, ainda, problematizar, a partir do campo dos estudos da deficiência, como compreendemos e vivemos a inclusão.

Este estudo é fruto de uma experiência de pesquisa-intervenção (Lourau, 2004; 2007) de caráter participativo, realizada com professoras(es) que atuam na interface das Modalidades de Educação "Especial" e da Educação de Jovens e Adultos (EJA), por meio de encontros de formação continuada no município de Vitória/ES, entre os anos de 2017 e 2018. A proposição do dispositivo formativo se dá em parceria estabelecida entre o Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (Neja) e o Departamento de Psicologia, ambos vinculados à Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e as Coordenações de Educação Especial e de Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Secretaria Municipal de Educação de Vitória (Seme). Os encontros constituíram-se de rodas de conversa que se orientavam pelas análises coletivas das práticas educacionais e das forças experimentadas no decorrer do trabalho inclusivo.

Buscou-se, dessa forma, o exercício com docentes de uma experiência formativa que evitaria o que Larrosa (2002) aponta como uma perspectiva positiva e retificadora que perpassa a educação, legitimada pelo par ciência/técnica, em que as(os) trabalhadoras(es) da Educação, concebidos como técnicas(os), aplicariam com maior ou menor eficácia as tecnologias pedagógicas produzidas por especialistas. De outro modo, o dispositivo formativo declina da relação com as(os) docentes como ouvintes de conteúdos e/ou experiências. Assim, a pesquisa foi gestada no diálogo com docentes e com coordenadoras(es) das políticas públicas aqui focadas, priorizando como estratégia de trabalho a dialogia e a invenção de problemas (Kastrup, 1999). A construção inicial envolveu a escuta das questões que perpassam o cotidiano de trabalho dessas(es) profissionais, de modo a pactuar estratégias de construção das formações e gerar disponibilidade a um processo formativo de experimentação estética, com a direção de construção de sentidos coletivos às práticas.

Participaram dos encontros de formação 34 docentes que atuavam nas modalidades de educação da EJA e da Educação Especial, nos segmentos iniciais da Educação Básica, correspondentes do 1º ao 5º ano. Desses, seis eram coordenadoras(es) das políticas já citadas. Os encontros tinham, em geral, frequência mensal e a maioria das participantes eram mulheres. Desse grupo, duas docentes que atuavam na Modalidade da Educação Especial eram deficientes, uma auditiva e outra visual.

Neste trabalho, a aliança com o exercício de educadoras(es) é que possibilita problematizar as práticas inclusivas. As análises e articulações têm como direção teórico-política a interlocução inseparável entre saberes do cotidiano e saberes teóricos. Esse último é concebido principalmente a partir do diálogo estabelecido com o Modelo Feminista da Deficiência. Tal modelo integra os Estudos da Deficiência que se dão a ver no Modelo Social da Deficiência e Modelo Feminista, uma abordagem teórico-política fundada e fortalecida principalmente por ativistas e pesquisadoras deficientes e cuidadoras de deficientes.3 São suas diretrizes: a concepção sócio-histórica da deficiência; a importância de que qualquer conhecimento e prática de trabalho que envolva a deficiência precisam ser feitas com as pessoas deficientes, observando-se o lema "Nada sobre nós, sem nós" (Gavério, 2015); e - ressalta-se - a contribuição feminista aos Estudos da Deficiência na afirmação da interdependência como condição basal da vida, configurada no princípio da "igualdade pela interdependência" (Diniz, 2003); pois, como veremos, acessar nossa dimensão interdependente é condição basilar para a construção de uma Educação Inclusiva.

 

De estórias e trajetórias: pela produção de saber com

Nessa direção ético-política, importa dimensionar que a necessidade de se construir um sistema educacional inclusivo com a população deficiente apoia-se especialmente no modo como no Brasil se consolidou, inicialmente, o processo de escolarização, já que as crianças deficientes tinham como destino o encaminhamento para instituições especializadas, enquanto as crianças não deficientes eram encaminhadas às escolas regulares.

No Brasil do século XIX, emerge a produção de uma determinada infância e a entrada das crianças nas escolas. Lobo (2008), a partir de pesquisas realizadas por Qualio (apud Lobo, 2008, p. 383), aponta-nos como eram entendidas as "crianças anormais" dentro das escolas regulares: "[...] não se podem adaptar bem na escola comum: perturbam a disciplina e o regular funcionamento das classes. Não aproveitam nada e, o que é pior, não deixam que os normais aproveitem como deveriam aproveitar". Médicos e pedagogos lutavam, nessa época, pela educação especializada, sempre destacando a inferioridade das crianças tidas como "anormais", que não poderiam receber como as "crianças privilegiadas" a educação escolar convencional.

Diante de tal conjuntura, observamos que, por um período, as crianças que hoje chamamos pela nomenclatura de crianças deficientes não frequentavam as mesmas escolas que as crianças não deficientes. Entre as razões principais temos a avaliação de que elas atrapalhavam o desenvolvimento das outras crianças, entendidas como normais, bem como consideravam que as instituições ditas especiais atenderiam melhor suas necessidades.

Lobo (2008), todavia, indica-nos que a criação das escolas especiais no século XX no Brasil está mais vinculada à expulsão dessa parcela da população das escolas regulares que à inclusão em outro espaço escolar. De acordo com Lobo (2008, p. 387), os discursos da época afirmavam que "para evitar os 'danos incalculáveis' provocados pela presença dos anormais nas escolas, defende com veemência a segregação". Reforça-nos Martins (2006, p. 63) "que, apesar do inegável passo constituído pelo surgimento da educação especializada, a resposta social da modernidade à deficiência esteve incontornavelmente ligada à institucionalização e à segregação".

Assim, podemos avançar com pensamento de que o acesso das pessoas deficientes na rede regular de ensino na atualidade é um direito conquistado para combater as práticas segregacionistas, que retiram do laço social o papel de incluir todas as pessoas na sociedade.

Nesse contexto, os Estudos da Deficiência sinalizam uma aposta epistemológica, ou seja, uma aposta em outros modos de produção de conhecimento, que tensionam o exercício educacional hegemônico. Segundo Moraes (2015, p. 27), "as pessoas com deficiência passaram a lutar - tanto politicamente quanto epistemologicamente - por direitos [...]". Afirmava-se, como já pressupõe o lema do movimento "nada sobre nós, sem nós", "que todo e qualquer conhecimento sobre deficiência deveria ser produzido com as pessoas com deficiência" (Moraes, 2015, p. 27).

Tais estudos nos apontam, concomitantemente, a importância de trazer à cena nos estudos da deficiência não somente o indivíduo deficiente, mas também as barreiras sociais, os caminhos excludentes dos diversos elementos presentes no campo de estudo e na sociedade, de modo que estejamos atentos à criação de processos de produção de conhecimento que não sejam sobre a deficiência, mas com a deficiência.

Em interlocução com Foucault (2012), acreditamos que um caminho de produção de conhecimento que explicite essas tramas relacionais político-sociais, atento ao que difere, há que pôr em questão a própria produção de conhecimento. Najmamovich (2003) salienta que no contemporâneo há produções que questionam a modalidade de um saber conclusivo, generalizador, apostando na invenção. Contudo, pontua que isso pressupõe uma dificuldade, a refutação de um saber verdadeiro e garantido, o que implica afirmarmos um não saber, uma incompletude que compõe todo processo de saber.

É também esse o convite às(aos) educadoras(es) e pesquisadoras(es): dar passagem não a um saber que se construirá sobre o outro, no caso aqui "o deficiente" e sua relação com a educação, mas a priorização do saber de sujeitos, grupos e movimentos de deficientes, saber esse silenciado por uma história de marginalização, de modo a integrar e tomar parte principal da discussão; e, assim, a partir desses saberes, reconstruir de outra maneira práticas que ultrapassem a história de exclusão e eliminação das diferenças.

Foram nos impasses vivenciados e abertos pelo cotidiano da experiência de trabalho formativa que nos lançamos no exercício de pesquisar. Grande parte das questões que emergem e as apostas ético-políticas que estão se consolidando no campo da relação entre deficiências e educação desdobram-se no cotidiano de práticas de trabalho, que colhemos nas experiências narradas pelas(os) educadoras(es) no dispositivo da Formação Continuada. Destarte, a pesquisa de base foi construída a partir dos registros efetuados por nós, formadoras e pesquisadoras, na ferramenta metodológica conhecida como Diário de Pesquisa.

O projeto de formação continuada, que se tornou nosso campo de pesquisa-trabalho, almejava uma prática formativa que, também, se fizesse inclusiva e apoiava-se assim em duas perspectivas. A primeira de uma formação inventiva e colaborativa feita com as(os) educadoras(es), que tensionasse as forças instituídas nos espaços escolares; a segunda de uma formação feita a partir da presença de diferentes atores da escola, privilegiando a polifonia e a heterogeneidade.

Assim, a formação envolveu docentes tanto do Atendimento Educacional Especializado (AEE) quanto aquelas(es) regentes de sala de aula, além de gestoras(es), abarcando deficientes e não deficientes; e, ainda, a articulação da modalidade da Educação Especial com a EJA. Há um investimento no encontro das diferentes modalidades, pois esse movimento pode gerar oportunidade de ampliação do olhar, do pensar-fazer educativo (Cuevas, 2015).

Como nos apresenta Jesus (2012), apostamos em um trabalho de formação que seja feito com as(os) profissionais a partir de suas práticas de trabalho, impulsionado pelo que guardam consigo.

Nesse sentido, a formação se alinha aos exercícios de problematização que disparem deslocamentos tanto nas lógicas de ensino quanto nas perspectivas que se relacionam com as/os docentes, de modo que, neste estudo, articulamos as narrativas tecidas nos processos formativos, disparadas pelos Diários de Pesquisa com os debates propostos pelos Estudos da Deficiência, destacando o Modelo Feminista da Deficiência. O intuito é apontar algumas das contribuições dos Estudos da Deficiência para a problematização e elaboração de modos de produção de práticas inclusivas, que ressoam na maneira de construir as práticas educacionais, formativas e de pesquisa concernentes ao tema da deficiência.

 

Pisando no chão da formação continuada

Estávamos em uma formação com as professoras e os professores, na qual trabalhávamos a construção do pensamento crítico por meio da escrita, em relação às práticas de trabalho. Uma professora - que entre outros tantos adjetivos é também surda - compartilha sua história conosco. Diz ter passado em sua própria caminhada um processo de busca pela inclusão, quando entrou na faculdade. Ressalta que foi muito difícil, pois não tinham intérpretes de libras e ela, embora tenha solicitado esse profissional algumas vezes à coordenação do curso, não lhe foi disponibilizado. Ela, então, que sempre havia ido bem nos estudos, começou a ir mal na faculdade. Precisava ficar muito atenta para tentar ler os lábios dos professores, mas não conseguia, pois tudo era falado rapidamente, e os professores quase não escreviam no quadro. A professora pontua que chorava, que era muito difícil e pensou em desistir algumas vezes durante essa caminhada, mas que sua família lhe dava forças para continuar. Foi então a Reitoria e disse ao Reitor que se ele não contratasse um intérprete ela processaria a faculdade. Frente a essa fala, o Reitor faz a contratação. Com o tempo ela foi aprimorando sua performance. Em outro momento, narra que uma estudante surda foi comparada a ela. Diziam que ela estava aprendendo, já a outra menina, por não era esforçada, não. Levantando o dedo, a professora, na época estudante, pontua que ela, diferentemente da outra estudante, tem intérprete de libras o que possibilita melhor aprendizagem. (Diários de Pesquisa, Formação, 2018)

A partir da narrativa da professora-estudante, acompanhamos alguns imbróglios nos processos inclusivos vividos como estudante universitária. Ela nos conta de contratempos no cotidiano com o ensino, apontando que frequentar uma educação que baseia sua transmissão e formação do conhecimento, tendo como referência um determinado padrão corporal, torna-se um caminho difícil para indivíduos que escapam aos padrões socialmente construídos de normalidade, visto que em geral não se pensa em quem não escuta na hora de transmitir o conhecimento. Outro ponto é a articulação de vários fatores, como a importância dos auxílios na produção da inclusão (e da aprendizagem). Em seu caso, sua relação com a família e com o intérprete de libras foi fundamental para que não desistisse.

A Formação já está em andamento e as(os) docentes, conforme proposto no dia, caminham pelo espaço da sala. Entrego um papel a cada uma(a) com a seguinte frase, tirada de uma canção de Vinícius de Moraes: "Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém". E pedimos que interagissem com essa frase, podendo cantá-la, senti-la, compartilhá-la. Depois de um tempo nos sentamos para conversar sobre o tema disparador daquele encontro, que era "dialogismo nos processos de trabalho", e perguntamos: vocês associam a frase com as práticas na educação? Tomando-se essa questão por ponto de partida, algumas falas surgem. (Diários de Pesquisa, Formação, 2018)

Durante essa formação, tomando a questão da inclusão como ponto de partida, três professoras do atendimento especializado (AEE) compartilham posicionamentos a respeito da construção de uma Educação Inclusiva. Uma diz de um pedido: que a professora regente possa compor com ela e com o estudante por ela supervisionado, para pensarem juntas práticas possíveis, posto que, apesar de ela ter a função de acompanhar esse estudante mais de perto, o aluno é da escola, não sendo ela a única responsável pela sua formação. Outra professora diz que ela mesma também precisa sair um pouco de dentro de si, no sentido de poder criar novas estratégias de inclusão, que ela sente que muitas vezes os professores da educação inclusiva colocam apenas a condição de trabalho solitário, mas que é preciso também inventar novos meios de incluir, tentar transformar a situação. Depois dessa fala, outra professora associa o verso com a ideia de sair do que parece estar acomodado e buscar outras coisas. Ela conta que, em sua prática de inclusão, não fica só na sala de aula com o estudante, ela frequenta todos os ambientes da escola e conversa com todos os integrantes desses espaços. Participa do planejamento, das formações, das reuniões de professores e, desse modo, pode levar o processo de formação desse estudante para outros espaços e para outros diálogos

A narrativa nos traz a questões que versam sobre as ponderações tecidas a partir da história narrada pela professora-estudante: que estratégias de inclusão estamos construindo? Que meios utilizamos para incluir? Haveria um responsável pela educação inclusiva? Outras duas professoras reforçam a fala da primeira, no que tange às práticas solitárias no processo de inclusão. Em ambas as cenas há a individualização dos impasses e não se observa, a princípio, uma movimentação da gestão mais ampla e de outros integrantes daquele espaço quanto a repensarem as práticas de trabalho. Contudo, diante das desestabilizações, apontam estratégias importantes de trabalho: meios inclusivos que, ainda que se deparem com qualquer recusa nas escolas, encontram também espaços para se efetuarem. Meios esses importantes para construir práticas em rede, de modo a transformar e fissurar os movimentos solitários e excludentes e gerar práticas coletivas.

O tema do dia é "Dialogismo no processo do trabalho" e propomos algumas experimentações corporais que incitassem o diálogo. Entre elas o "jogo-do-nó". Para construir o nó, solicitamos às(aos) professoras(es) que formem uma grande roda e deem as mãos. Após isso, elas precisam decorar quem está ao seu lado esquerdo e direito. Em seguida, pedimos que fechem os olhos e caminhem pela sala de aula. Com os olhos já abertos, dizemos para que, sem que se desloquem muito de onde estão, deem as mãos para as respectivas pessoas que estavam ao seu lado direito e esquerdo. Após darem as mãos, criou-se um grande nó na roda. Como fazer para voltarmos ao círculo anterior? As(os) professoras(es) para atingirem esse objetivo, movimentam o corpo em suas amplas formas: falam, abaixam, levantam, jogam os braços e pernas para cima e para baixo, giram, pensam, discordam, concordam, arriscam. Pronto! Círculo feito, pensamos por um breve momento. Todos os olhos voltados para o centro da roda. Não obstante, observamos que um par de olhos está voltado para o exterior da roda. E agora? Mais pernas para cima, para o lado, mais giros e agachamentos. E assim seguimos até a roda se formar novamente. (Diários de Pesquisa, Formação, 2018)

Ao finalizar a atividade do "jogo-do-nó", sentamo-nos em roda para conversar sobre o tema disparador do dia: articular as práticas educacionais inclusivas à sua dimensão coletiva no cotidiano do trabalho. Para animar o debate, disparamos duas perguntas: que pistas experimentamos em relação ao diálogo e construção do coletivo? Essa experiência aponta pistas para compreender os desafios diante da construção do coletivo?

O coletivo aqui não se refere à soma de indivíduos ou é restrito à noção de equipe ou trabalho em equipe. Aponta, antes, para um coletivo de forças, plano basal e ontológico do viver (Escóssia & Tedesco, 2015). Construir um coletivo é ao mesmo tempo criar modos de aliança com essa base de onde surgimos e que nos torna inseparáveis dos outros seres e do mundo. Poderíamos, ainda, apontar que o plano do coletivo é também um plano de interdependência.

Diante dessas perguntas surgem falas que salientam a importância ressaltada por esse jogo do dialogar para desenovelar o nó. Consideramos que, para criar outros arranjos no exercício, precisávamos uns dos outros em deslocamento. Não bastava um dizer e o outro ouvir sem que nenhum movimento acontecesse. As(os) participantes precisavam sair da posição que estavam para compartilhar as propostas, ou para que qualquer tentativa de transformar o nó em outra coisa fosse possível. Às vezes, movimentos mais localizados, outras vezes mais amplos, mas ambos convidando todos a participarem.

No prosseguir da conversa, vislumbramos essa dimensão coletiva e as possibilidades de diálogo no dia a dia de uma escola. Em outro encontro, uma professora do atendimento especializado contou que é a professora regente quem decide como vai ser o ritmo da sala de aula e, nem sempre, o professor da AEE pode transformar esse ritmo, para que o estudante com quem trabalha participe das atividades. Explica que pelas diferentes relações que estabelece com as professoras(es) regentes, sua prática na escola em que trabalha de manhã é uma e, na escola em que trabalha à tarde é outra. A vivência contada por outra professora diz que no começo do seu trabalho tentava um diálogo com a docente regente, mas que ela avaliava e não acolhia as propostas. Logo, teve de abrir mão de suas ideias, pois sentia que, sem a permissão e a mudança nas práticas da professora, nada se poderia fazer.

Essas cenas nos auxiliam a entrever que a dimensão coletiva é constitutiva do trabalho inclusivo. A partir dela é possível elucubrar dois aspectos do âmbito coletivo na educação: primeiro, a compreensão de que a dimensão coletiva está presente na escola - mesmo que invisibilizada ou dificultada, pois as práticas das(os) professoras(es) não se dão de modo independente das práticas de outras(os), ao contrário, afetam-se mutuamente. A maneira como a professora do AEE comporá com a turma e sala de aula está diretamente ligada às possibilidades e também aos obstáculos encontrados. Em segundo plano, trata-se dos desafios vividos pelas professoras em construir práticas que possibilitem a articulação e o acesso a essa dimensão coletiva, intrínseca à vida e às práticas escolares. De modo que muitas(os) professoras(es) se sentem sozinhas(os) em suas práticas de trabalho, ainda que paradoxalmente compreendamos que nunca trabalhamos sozinhos. "Nunca estamos totalmente esvaziados ou em total solidão, às vezes precisamos, apenas, construir estratégias para acionar esse patrimônio." (Barros et al., 2014, p. 29).

 

Caminhando com pensadoras feministas: aproximando-nos da noção de interdependência

Trabalhar com a inclusão na sua dimensão coletiva, como vimos no jogo-do-nó exigiu alongar-nos, exercitar-nos. Nesse exercício, faremos uma caminhada com Sunaura Taylor e Judith Butler, registrada no documentário Examined Life (2009). Nesta, Sunaura, que nasceu com artrogripose, diz que essa experiência afeta a sua vida em todas as situações. No entanto, ressalta ser a deficiência a própria repressão social sofrida pelas pessoas com deficiência, que está nas limitadas opções de habitação, de oportunidades de carreira, na aversão culturalmente construída às pessoas com deficiência, pois a deficiência relaciona-se aos efeitos incapacitantes da sociedade. Sunaura conta que quando conheceu o Modelo Social da Deficiência tentou sair e pedir um café sozinha. Ela diz ter se sentado horas no parque tentando criar coragem para fazer isso. "De certo modo, é um protesto político para mim entrar e pedir um café, e demandar ajuda... apenas, porque, na minha opinião, ajuda é algo que todos nós precisamos" (4h39min a 6h43min). Ressalta, apontando à Butler, que ainda que todos nós precisemos de ajuda, que sejamos todos nós interdependentes em todo tipo de situação, isso é algo menosprezado em nossa sociedade.

O conceito de interdependência é um ponto fundamental instaurado pelo Modelo Feminista nos Estudos da Deficiência. Ele emerge, especialmente, a partir das considerações tecidas por Eva Kittay, mulher, filósofa e mãe de uma filha deficiente intelectual. Kittay (2011) relata que foi depois do nascimento da filha que ela passou a perceber os vínculos de dependência que regem a vida das pessoas. Ao contar sobre a filha, diz ser ela uma jovem radiante, com muita disposição. Acrescenta que a filha adora o que ela diz serem as melhores coisas que a vida tem a oferecer: "música, banho, boa comida, pessoas, atenção e amor"4 (Kittay, 2011, p. 52, tradução nossa). E que é incapaz de discursar, de ler e escrever, e que não consegue andar sem assistência. Declara que a filha, para fazer qualquer coisa, dependerá de outra pessoa.

E, embora Kittay comece a perceber as relações de dependência por meio da relação mãe-filha, os vínculos de dependência não se restringem à relação familiar ou às pessoas deficientes intelectuais. Kittay (apud Diniz, 2003, p. 5) afirmará que "são exatamente esses vínculos de dependência por onde se estruturam as relações humanas, pois a dependência é algo inescapável da história de vida de todas as pessoas". E que "todos somos filhos de uma mãe", "e, nesse sentido, todos nós somos constituídos de relações, somos seres relacionais, somos em relação..." (Gaiguer, 2018, p. 62).

Judith Butler: O que eu sinto é que, o que está em jogo aqui é realmente repensar o humano como uma posição de interdependência. E eu penso, sabe, quando você entra na cafeteria, certo? Se eu posso voltar nesse momento um pouco, e você pede o café, ou você, certamente, até pede alguma ajuda com o café, você está basicamente colocando a questão: Vivemos ou não vivemos em um mundo no qual nós ajudamos uns aos outros? [...] Ajudamos ou não ajudamos cada um com necessidades básicas? E há necessidades básicas para serem decididas como uma questão social. E não apenas minha questão pessoal, individual ou sua questão pessoal, individual. Então, quero dizer, há um desafio ao individualismo que acontece no momento em que você pede a ajuda de alguém com o seu copo de café. [...] E espero que, pessoas vão tomar isso e dizer: "Sim, eu também vivo nesse mundo"... no qual eu entendo que nós precisamos uns dos outros a fim de atender às nossas necessidades básicas. Entende? E eu quero organizar um mundo social, político, na base desse reconhecimento. (Butler & Taylor, 2009, 12h49min a 14h08min)

Trabalhar com a noção de interdependência complexifica a dimensão coletiva. Impulsiona-nos a reflexionar como estamos construindo esse fazer coletivo, fundamental para fortalecer práticas inclusivistas. Butler e Taylor (2009), ao afirmar a interdependência e, com efeito, as práticas de cuidado, questiona os processos de individualização, hegemônicos em nosso tempo, e nos implica a analisar como estamos tecendo nossas relações mútuas de cuidado.

Nesse contexto, alerta-nos Diniz (2003, p. 6) que

Erroneamente se supõe que o vínculo estabelecido pelo cuidado seja temporário em nossas vidas: o cuidado não é um princípio somente acionado em situações de crise da vida, como a doença, por exemplo. O cuidado e a interdependência são princípios que estruturam nossa vida coletiva, e, ainda hoje, são considerados valores femininos e, por isso, pouco valorizados. Nesse momento, o principal desafio das feministas é mostrar que é possível um projeto de justiça que considere o cuidado em situações de extrema desigualdade de poder. A base para essa reconfiguração do modelo social da deficiência deve se basear no reconhecimento das vulnerabilidades das relações de dependência e seu impacto sobre nossas obrigações morais e, por fim, nas repercussões dessas obrigações morais em nosso sistema político e social.

Assim, a luta travada pelo Modelo Feminista é mostrar a possibilidade de um projeto de justiça e de inclusão que considere o cuidado, especialmente nas situações de extrema desigualdade de poder. Kittay (2011) nos explica ainda que, nas teorias dominantes de justiça e de bem-estar social, a dignidade está atrelada à independência do outro. E, seguindo essa lógica, as pessoas que dependem de maneira mais evidente dos cuidados do outro, "quando os indivíduos se encontram dependentes de outros (como muitas pessoas com deficiência) para o autocuidado, segurança econômica e proteção" (Kittay, 2011, p. 50, tradução nossa),5 veem essa dignidade ameaçada.

Kittay (2011) traz duas definições distintas de dependência, opondo dependência à independência, e dependência ao isolamento. A primeira definição afina-se com a concepção clássica de dependência, acentuando-a como aspecto negativo ao opô-la à independência, esta sim a ser buscada. É dessa conceituação que estamos nos distanciando.

Para o modelo feminista, dependência, em um sentido positivo, aproxima-se do que conceitua a segunda definição apresentada, que opõe dependência ao isolamento. Ou seja, se não dependemos de ninguém é porque estamos isolados e não porque somos autossuficientes, posto que, para tal modelo, a interdependência é intrínseca à vida humana. "Quando reconhecemos como a dependência do outro nos salva do isolamento e nos fornece conexões, isso faz a vida valer a pena. Assim, podemos iniciar o processo de abraçar as dependências necessárias." (Kittay, 2011, p. 57, tradução nossa).6

Eva Kittay, portanto, retorce a concepção de uma vida digna como uma vida independente para uma vida digna como uma vida de cuidados mútuos, recíprocos.

É possível perspectivar que a reivindicação feita pelos primeiros ativistas deficientes, os quais integram o Modelo Social da deficiência, já nos aponta essa constituição interdependente pois eles transladam a deficiência da posição individualizada em um corpo, em um indivíduo, para a deficiência como uma construção político-social. Isto é, uma construção que envolve inúmeras forças: econômicas; políticas; sociais; afetivas; pedagógicas; entre outras. Desse modo, a principal luta gira em torno da transformação das barreiras deficientizantes da sociedade, para que, assim, as pessoas deficientes possam ter os mesmos direitos e as mesmas condições de acessibilidade que as pessoas não deficientes. Concepção presente no Estatuto da Deficiência: "Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas." (Lei n. 13.146, cap. I, art. 2º).

Contudo, de acordo com o Modelo Feminista, o modelo social da deficiência "não foi um movimento capaz de provocar as estruturas morais mais profundas das sociedades" (Diniz, 2003, p. 4), pois se acreditava que retirando as barreiras deficientizantes os indivíduos deficientes poderiam produzir de modo independente. O Modelo Social afirma o "princípio da igualdade pela independência" (Diniz, 2003, p. 4), isto é, embora a dimensão coletiva apareça na pauta do modelo social no momento de desconstruir as barreiras sociais direcionadas às pessoas deficientes, ela desaparece no modo de gerir a continuação de uma vida e as autoras feministas dirão que a gestão de nossas vidas se dá de modo interdependente.

É em contraposição a esse pensamento que as teóricas feministas dos Estudos da Deficiência criam o princípio da "igualdade pela interdependência" e, ao apontar a interdependência como condição basal da vida humana, considerarão nociva a exaltação da independência como objetivo a ser alcançado, argumentando, então, que algumas pessoas deficientes não poderão, em momentos mais básicos da vida, almejar uma vida independente do outro; e, para essas pessoas, as possibilidades a serem reivindicadas versam com uma ética baseada na interdependência, na coletivização da vida.

Kittay (2011) nos recorda que as lutas travadas pelo Modelo Social da deficiência não tocavam no ponto da dependência e do cuidado, pois a luta instaurada pelos movimentos das pessoas deficientes, entre eles o Modelo Social, em meados da década de 1970, é uma reivindicação por independência diante da situação em que se encontravam de exclusão e cerceamento de seu direito pelo próprio corpo e pela própria vida (Gavério, 2015). Mello (2016, p. 3274) postula que um dos maiores empecilhos enfrentados pela pessoa deficiente é a "capacidade de ser e fazer que é reiteradamente negada às pessoas com deficiência em diversas esferas da vida social". E, entre as capacidades negadas, tem-se a crença na impossibilidade de os próprios sujeitos deficientes participarem da produção de conhecimento referente ao universo da deficiência.

Em razão desse contexto social, trazer o tema da interdependência e do cuidado para a discussão dos Estudos da Deficiência não é sem embate, pois muitas pessoas deficientes temiam que, ao afirmarem o princípio da interdependência e das práticas de cuidado, estivessem recolocando "os deficientes para o espaço da subalternidade, reservado àquelas que precisavam da atenção de outras pessoas para as atividades mais simples da vida diária" (Diniz, 2003, p. 5), reforçando uma visão da pessoa deficiente como digna de pena e incapaz de assumir responsabilidades sobre sua vida. Contudo, é nesse nó que a luta feminista elucida um processo revolucionário.

Como Kittay (2011) destaca no ponto anterior, a interdependência entre as pessoas é ponto fundante e nos alerta que, na prática, o que ocorre, ao desqualificarmos ou nos afastarmos das relações de cuidado e dependência, é que nos afastamos da compreensão e análise de como essas práticas estão sendo experienciadas. O que tem como efeito processos e práticas de cuidado invisibilizadas, impedindo-nos de aferir se tais práticas de cuidado se configuram como práticas caritativas e silenciadoras de alguma parte ou de ambas, que é justamente o que o Modelo Feminista da Deficiência pretende combater. Posto que as relações de interdependência e de cuidado são um ponto central na vida dos indivíduos, Kittay (2011) associará as práticas de cuidado com as práticas inclusivas, tão importantes para a problematização das práticas na educação. Nesse sentido, elabora uma pergunta: "uma ética de cuidado pode ser relevante para o desenvolvimento de uma ética de inclusão que as pessoas com deficiência queiram abraçar?" (Kittay, 2011, p. 52, tradução nossa).7

Apreciando a discussão anterior, trata-se, portanto, de exercitar uma prática de cuidado que, ao acessar a dimensão interdependente da vida, cultiva relações que salvaguardam o direito do indivíduo de gerir sua vida no limite de suas possibilidades.

 

Como trabalhar a interdependência nas práticas inclusivas?

A partir das contribuições apontadas, torna-se interessante percorrer a noção de coletivo, em sua relação com a interdependência, seus efeitos e suas implicações, em relação ao que vem acontecendo nos cotidianos escolares.

No primeiro encontro formativo de 2018 uma professora regente, professora do AEE e gestora na SEME - funções que se desdobram em três turnos de trabalho - conta de uma atividade que havia proposto em sala de aula: um ditado de 5 palavras. Contudo, uma estudante, recusou-se a fazê-la. A professora, por achar importante seguiu solicitando-a que fizesse o dever. Porém, a postura da estudante não mudava. E diante de mais um pedido da professora a estudante lhe faz também um pedido: "você é minha amiga, por que não me ajuda?" A professora senta ao seu lado e desse modo a estudante faz a atividade. (Diários de Pesquisa, Formação, 2018)

A solicitação de ajuda feita pela estudante ressalta a dimensão do cuidado nas práticas inclusivas. Compreendendo que o verbo ajudar é relaciona-se discursivamente com o verbo cuidar, na direção da interdependência, podemos nos perguntar: como seria pensar a inclusão pela via da interdependência? Nesse caso, a inclusão é uma operação paradoxal porque se inclui o que nunca esteve separado de nós. Se, basilarmente, somos seres sempre interdependentes, a inclusão ganha consistência quando acolhe e acessa essa experiência desde sempre presente, mas nem por isso vivível, por causa dos modos como nossas sociedades atuais organizam a vida de forma intensamente individualizada e focada na independência.

Uma professora regente conta sobre a experiência que considera positiva da dança circular que realizaram em sua escola. Diz que na aula do professor de Educação Física, as(os) professoras(es) regentes e as(os) professoras(es) do atendimento especializado propuseram às(aos) estudantes fazer uma dança circular. Quando a proposta foi feita, 80% dos estudantes que toparam participar eram da Educação Especial, os outros estudantes se retiraram da atividade, alegando não participarem de dança de roda.

Momento que estremece a proposta inicial... continuariam a atividade sem os estudantes que não eram da educação inclusiva? Eles decidem continuar e começam a dança.

A professora do atendimento especializado complementa que as(os) estudantes estavam dançando muito animados e um pedido começa a ganhar força: tocar um samba. Outro momento de desestabilização. Alguns professores ficaram receosos com a ideia e perderam o controle, mas decidiram acolher o pedido. Elas afirmam que não deixaram que essa preocupação as impedisse de atender aos pedidos das(os) estudantes que já dançavam e seguiam pedindo para tocar samba. Após o pedido ser atendido, todos dançaram e cantaram juntos. (Diário de Pesquisa, Formação, 2019)

A prática inclusiva contada pela professora nos aproxima de um movimento que não compreende as desestabilizações como sinal de que algo está dando errado, e sim que os acontecimentos demandam movimentação e reposicionamento: criação de novas práticas e outras táticas inclusivas, ou melhor, inclusivistas. Chamamos de direção inclusivista os movimentos que acolhem não apenas o sujeito dito da inclusão, mas que amplia o gesto inclusivo, gerando uma experiência de acolhida dos acontecimentos, dos problemas, de todos os atores envolvidos, dos percalços, das indagações, das vozes dissonantes, de uma diferença gestada no encontro (Abreu, 2019). Nesse movimento, o que se inclui não é algo de fora para dentro, o deficiente para dentro da escola, mas é essa noção de que haja um dentro que seja "a" escola que se rompe, fazendo transitar a escola e a deficiência aos encontros, à conexão, à experimentação que dissolve a rigidez dos muros.

A memória citada também nos encaminha à importância das práticas coletivas. Como vimos a partir de inúmeros interlocutores e especialmente a partir dos Estudos da Deficiência, estes apontam um modo de pensar a inclusão muito diverso da perspectiva adaptacionista e/ou individualizante, apontando uma direção de inclusão dessa dimensão coletiva que transforma a todas(os). A dança circular só foi possível porque vários atores da história toparam participar dessa atividade e se disponibilizaram à mudança de ritmo da escola, como também do gênero musical, solicitada pelas(os) estudantes.

Diante dessas circunstâncias, com as quais nos confrontamos na pesquisa, afirma-se que construir uma Educação Inclusiva não pode ser se satisfazer apenas com a presença de estudantes deficientes nos espaços regulares, gesto conciliador, que parece em si tudo resolver, pela única disposição de integrar, em permitir que o outro, historicamente excluído, faça agora parte. Incluir versa com um cotidiano e com espaços que se transformam com a chegada de estudantes, que conforma uma operação que possibilita a acolhida de diferentes questões, sujeitos, cores, territórios, histórias, acontecimentos, objetos, tecnologias, movimentos. É, ainda e sobretudo, construir práticas de trabalho que não se configurem a partir de diretrizes normalizadoras, mas, sim, que favoreçam as diferentes formas de existir e compor os espaços na instituição escola. Em uma Educação Inclusivista, o que nela se inclui é exatamente a possibilidade de que não seja mais a mesma. É forjar, criar uma mudança especialmente na forma de compreender o como fazer Educação. Entoar a criação de mudanças na forma de compreender a educação nos leva a práticas inventivas; inventar algo a partir do que emerge no encontro, nas tensões. "A invenção é processo trabalhoso, que exige disponibilização e mergulho neste plano de conexões e encontros." (Barros et al., 2014, pp. 13-14).

Compreender a invenção, tão importante nos processos inclusivistas, que sustentam as tensões disparadoras de diferenças, nos reforça os planos das conexões e composições, trazendo ainda um desafio: atentar-nos a nossas práticas de trabalho, a nossas práticas de cuidado diante dos processos de diferenciação, que são constituintes da vida coletiva.

Em conformidade com Jesus (2012, p. 208), "Acreditamos que, se quisermos uma escola inclusiva, precisamos pensar com o outro, precisamos de um constante e longo processo de reflexão-ação-crítica dos profissionais que fazem o ato educativo acontecer", o que aponta para a importância de uma disponibilidade de estudantes e profissionais para a construção de redes, de acessar, vivenciar e fortalecer a dimensão interdependente, oportunizando reinvenção e transformação no encontro com o outro. Como no jogo-do-nó, que para se desenrolar ou viver outros arranjos, exige-se reposicionamentos entre todos os participantes. Dialogando com Kaufman (2016), em interlocução com Haraway, é "preciso reconhecer todos os membros, animados e inanimados, que fazem o nó de uma vida particular" (Haraway apud Kauffman, 2016, p. 63).

 

Considerações finais

Nesse texto, sinalizamos algumas direções de trabalho que fomos considerando interessantes para discutir o processo de construção de uma Educação Inclusivista. Questões acessadas, especialmente, com a prática de trabalho de professoras(es) a partir da Formação Continuada e da interlocução com o Modelo Feminista e suas contribuições, a partir da noção de interdependência, para os Estudos da Deficiência. Analisamos que o encontro da deficiência com a educação regular tensiona a maneira como algumas práticas escolares se desenham, o que propicia momentos de desestabilização em determinados padrões de ensino, e inquietações em profissionais que estão trabalhando nesse cenário. Ponderamos que uma das principais dificuldades presentes nos discursos das professoras era a de construir práticas inclusivas em parceria com outros integrantes do sistema educacional.

Sustentamos então que essas novas maneiras de pensar o saber-fazer inclusivo apostam em práticas inclusivistas, que acessam e cultivam a dimensão coletiva que nos é constituinte e que buscamos complexificar a partir da via da interdependência. Via exigente quanto a ampliar-se coletivamente, para encontrarmos táticas entre tempos distintos, que só podem ser construídas na convivência. Apontamos que acessar e cultivar nossa condição basilar interdependente em um contexto inclusivo é torcer a noção de dependência como algo a ser evitado e aproximar os vínculos de dependência e de cuidado como valorosos para uma educação inclusiva. Mas, para isso, precisamos tatear como construímos as nossas relações de dependência e de cuidados mútuos. Afirmam-se práticas de cuidado que visam construir caminhos possíveis entre pessoas que irão construir saberes juntos. É um construir junto, em ajudas mútuas, entre pessoas que têm vidas vividas, que sabem muitas coisas, que também não sabem tantas outras. Mas, juntas, podem fazer emergir novas possibilidades para a educação e para o viver em nossas sociedades atuais.

Por fim, apostamos que ao fortalecer nossas práticas interdependentes, cultivando a ética do cuidado, as práticas inclusivistas na educação regular e na existência de uma vida se tornam mais possíveis.

 

Referências

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Recebido em: 31/10/2019
Aceito em: 27/7/2020

 

 

1 Este artigo é um desdobramento da dissertação de mestrado da autora ABREU, G. V. (2019). Conversas entre Educação e Deficiência: por uma política da interdependência nos cotidianos escolares. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo.
2 Para aprofundamento, indicamos os trabalhos das professoras Rosângela Gavioli Prieto, da Universidade de São Paulo, e Denise Meyrelles de Jesus, vinculada ao Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo.
3 Utilizamos o conceito "pessoa deficiente", em afinidade com a terminologia utilizada por Debora Diniz (2009; 2007) a partir de Mike Oliver, que realizam uma subversão da palavra deficiência. Não há eufemização de uma história de repressão e nem das dificuldades enfrentadas por essas pessoas. Há, sim, a deficiência afirmada como outra forma de viver. No entanto, entendemos que o uso de uma terminologia é sempre provisório, contingenciado situadamente pelos debates históricos.
4 "music, bathing, good food, people, attention, and love".
5 "when individuals
nd themselves dependent on others (as many people with disabilities do) for self-care, economic security, and safety, the dignity which comes with autonomy appears threatened".
6 "When we acknowledge how dependence on another saves us from isolation and provides the connections to another that makes life worthwhile, we can start the process of embracing needed dependencies".
7 "Given that people with disabilities are attempting to cast off the perception of the disabled individual as hapless, in need of "looking after," and are working to retrieve independence in the face of practices and persons who reinforce and heighten the sense of dependence, can care be recuperated as a valued and valuable concept? More speci
cally, can an ethic of care be relevant to the development of an ethic of inclusion that persons with disability may want to embrace?"

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