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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.3 São João del-Rei jul./set. 2020

 

Pesquisando a dor do outro: os efeitos políticos de uma escrita situada

 

Researching the Pain of the Other: The Political Effects of a Situated Writing

 

Investigando el sufrimiento de otro: los efectos políticos de una escritura situada

 

 

Sofia Ricardo Favero

Psicóloga. Mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante da Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis (AMOSERTRANS)

 

 


RESUMO

O presente artigo aborda como as políticas identitárias têm agido nos modos de pesquisar a dor alheia, tendo em vista que dão indícios de presumir que os sujeitos devem falar apenas sobre aquilo que os atinge. Se por um lado existe potência em uma escrita vivida, é mister mostrar, em paralelo, os benefícios de uma aliança com os que são identificados como "de fora" daquela realidade. Para tanto, devem-se repensar algumas estratégias metodológicas oriundas do feminismo para enquadrá-las, havendo a necessidade de não apenas declarar o lugar de onde se fala, mas sua repercussão em uma lógica de determinada pesquisa, situando como e quando "ser quem se é" produziu algum efeito no campo.

Palavras-chaves: Pesquisa. Metodologia. Saberes situados. Ética.


ABSTRACT

This article discusses how identity politics have acted in the ways of researching the pain of others, given that they give evidence to assume that subjects should talk only about what affects them. If, on the one hand, there is power in a lived writing, it intends to show, in parallel, the benefits of an alliance with those who are identified as "outside" that reality. To this end, it rethinks some methodological strategies derived from feminism to fit them in the face of the need not only to declare where they speak, but their repercussion within the logic of a given research, situating how and when "to be who one is" produced some effect in the field.

Keywords: Research. Methodology. Situated knowledge. Ethic.


RESUMEN

Este artículo analiza cómo las políticas de identidad han actuado en las formas de investigar el dolor de los demás, dado que dan evidencia para suponer que los sujetos deberían hablar solo sobre lo que les afecta. Si, por un lado, hay poder en una escritura vivida, tiene la intención de mostrar, en paralelo, los beneficios de una alianza con aquellos que están identificados como "externos" a esa realidad. Con este fin, reconsidera algunas estrategias metodológicas derivadas del feminismo para encararlas frente a la necesidad no solo de declarar dónde hablan, sino de su repercusión dentro de la lógica de una investigación dada, situando cómo y cuándo "ser quién es" ha tenido algún efecto en el campo.

Palabras clave: Investigación. Metodología. Conocimiento situado. Ética.


 

 

Introdução

Pesquisar é um desafio. Trata-se de estar em movimento. Não é que atualmente seja mais difícil fazer uma pesquisa, em comparação há uma ou duas décadas. Sãos os desafios do agora, todavia, que anunciam a necessidade de outras provocações metodológicas. Se antes se acreditava que "pesquisa" era sinônimo de neutralidade, ou até mesmo objetividade, como aponta Donna Haraway (1995) em seu "Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial", os feminismos passaram a oferecer respostas interessantes a essa postura. Não mais por meio de uma pretensa ideia de distância entre quem pesquisa e quem é pesquisado, mas a partir de uma escrita identificada, situada ou localizada, que diz de onde veio.

Em uma perspectiva harawayiana (1995), o que está em jogo quando se cobra "neutralidade" das mulheres pesquisadoras diz respeito a um entendimento de texto que é apontado como inflamado, enviesado ou emocional. Ao invés de fornecer respostas que atendam às exigências de um projeto científico fundamentado na imparcialidade, a autora aposta no contrário. Deve-se, assim, considerar o projeto de ciência dito imparcial como localizado, mesmo que para isso seja preciso utilizar o "gume feminista" (Haraway, 1995, p. 37) como estratégia de aprendizado. Ainda assim, Haraway (1995) permanece tendo esperanças na parcialidade, pois considera útil aprender com os corpos, com uma pesquisa corporificada, que reconhece as tecnologias semióticas como dignas de um endereço.

Endereçar, mais especificamente, é dizer que não há inocência em uma pesquisa. Quem pesquisa, tem uma história. Tem um objetivo. Aparece entre os parágrafos, pois não é possível sair ileso em um texto. O que faz com que toda investigação científica seja localizada - aqui, situada e localizada serão palavras com um sentido análogo. Além disso, quem escreve, o faz para alguém. Para ilustrar como se dá essa conversa, Virginie Despentes (2016, p. 7) declara no início do seu conhecido livro Teoria King Kong: "escrevo a partir da feiura e para as feias, as caminhoneiras, as frígidas, as mal comidas, as incomíveis, as histéricas, as taradas, todas excluídas do grande mercado da boa moça". Pode-se notar como uma gramática feminista se constitui em prática, ou seja, como algo que aparece, que não tem vergonha de constranger.

Brevemente, acredito, seria mais prudente falar "pesquisando" e não "pesquisar" - contrariando a forma com que iniciei o texto. Pesquisando, no gerúndio, tampouco deve ser apenas uma forma nominal de colocar o verbo, mas um requisito básico para situar o "processo" como eixo de interesse, não meramente como algo a ser superado. Essa questão foi abordada por uma Haraway (2016) mais atual, que, em Staying with the Trouble, colocou a celeuma no centro da discussão. Dito de outro modo, permanecer com a encrenca foi a maneira que a autora encontrou de admitir o "problema" como um veículo interessante para produção de conhecimento, mas também como uma postura ética diante de uma possível não resolutividade das coisas. O que significa descartar as saídas fáceis e abrir mão do reducionismo, pensando, assim, em como usufruir estrategicamente da querela, em termos políticos, tomando-a em sua complexidade.

Não é pequena a complexidade de uma pesquisa preocupada com o lugar de quem a escreve, seja porque o tema se refira ao grupo do qual faz parte, seja em razão de não saber onde se situar diante da dor do outro, quando acredita que sua escrita vem de "fora". Aqui, constitui-se determinada ideia de "nós" e "eles". Susan Sontag (2003), preocupada em responder o que esse "nós" quer dizer, propõe que tal categoria não deve ser tomada de antemão. Segundo a autora, não há nada garantido no "nós" - embora estivesse se referindo aos sujeitos a quem eram dirigidas determinadas fotografias em contextos de guerras, aqui a categoria surge para pensar aqueles a que muitos estudos críticos (em termos raciais, coloniais, sexuais, de gênero, etc.) se destinaram. Quem seriam tais espectadores? Não para pensar que escrever uma monografia, dissertação ou tese é o mesmo que ser testemunha de algo, uma posição talvez entendida como passiva, mas para propor que se faça alguma coisa com aquilo que se presencia.

Diferente de Despentes (2016), então, escrevo este artigo para os cisgêneros, para os brancos, para os ricos ou de classe média alta, para os ocidentais, como também para os que não têm deficiência, física ou psicológica, para os que são magros, altos e masculinos, para os sulistas e sudestinos, para os que nunca tiveram de refletir sobre a própria condição, mas que chegaram a esse questionamento por meio da academia. Como fazer uma pesquisa para falar de algo que, aparentemente, não diz respeito a mim? De quais maneiras eu, um sujeito "identificado" como hegemônico, consigo fazer boas perguntas com a forma que apreendo o mundo? Escrevo, então, para propor algumas pistas, algumas saídas, algumas fugas. Nascer no sul, entretanto, não é uma garantia de salvaguarda em relação a ninguém, mas foi a gramática que encontrei para tornar materializável a presente discussão. O mesmo se aplica aos outros marcadores. Nada está dado.

Nesse sentido, aqui se desdobram determinadas impressões sobre os caminhos possíveis para que uma aliança ética seja instaurada no decorrer de um estudo, não mais a partir da culpabilização daquele que escreve, mas por meio de uma estratégia articulatória que se dá na prática. Se, antes, a escrita parcial emergia em oposição a uma tradição acadêmica hegemônica, agora se pensa a parcialidade não apenas como uma forma de denúncia, mas como um compromisso epistêmico com o estudo. Em um primeiro momento, irei trabalhar a partir das narrativas pessoais, pensando-as como um modo potente de enxergar e abordar os paradigmas. Em seguida, discorrerei sobre as armadilhas de um posicionamento superficial e prematuro ao longo do texto. Por fim, traçarei um resgate a alguns instrumentos metodológicos do feminismo para contextualizá-los diante desse novo uso.

 

Prazer, esta sou eu?

Sou psicóloga, travesti, branca e nordestina. Esses marcadores não estão necessariamente em ordem, mas, se eu tivesse parado aqui, talvez já tivesse cumprido a exigência daquilo que muitos situam como "lugar de fala" - em um uso curioso do conceito proposto pela filósofa Djamila Ribeiro (2017). Todavia, a noção de que declarar os fatores que compõem uma identidade é o bastante para que se alcance certa responsabilidade "ética" é um descompromisso com a própria pesquisa. Dizer que sou trans, embora, sim, meus temas de interesse acadêmico perpassem o gênero e a sexualidade, não informa muita coisa. Pelo contrário, a afirmação "sou trans", quando jogada de qualquer forma, pode deteriorar a metodologia do presente trabalho, pois subentende que a transexualidade, isolada de reflexão, justifica alguma coisa.

De todo modo, gostaria de fornecer alguns truques e conexões. Para tanto, será necessário que eu recorra a uma cena que marcou meu processo de formação em Psicologia. Por certo, a Psicologia não foi apenas uma profissão ou uma graduação que escolhi, mas um meio de subjetivação. Com isso em mente, alerto: a cena a que me refiro se encontra permitida não como uma ilustração de sofrimento, dificuldade, obstáculo. Mais do que isso, baseia-se em uma compreensão impulsionada por Patrícia Hill Collins (2016), ao afirmar as biografias como meios de produção científica, colocando em discussão o potencial criativo das outsiders within - estrangeiras de dentro. Embora estivesse pensando a realidade das mulheres negras, utilizo-a como recurso de defesa das perspectivas privilegiadas que partem das posições tidas como marginais.

A cena em questão se refere a um dos estágios curriculares. Na ênfase em políticas-públicas, fui alocada em um campo conhecido como Serviço de Atenção Especializada (SAE). Em tal espaço, também existia um Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), onde circulei por volta de quatro meses. Por morar em uma cidade pequena, ainda mais se considerarmos que as comunidades LGBTs seriam tão menores quanto, acabava encontrando diversas pessoas conhecidas indo fazer testes de sorologia para HIV. As semanas passavam, mas, manhã depois de manhã, permanecia encontrando colegas, às vezes amigas, travestis e mulheres trans, no campo. Como eu não estava na posição de usuária, algumas não falavam comigo, ou falavam, mas com uma aparente vergonha, tendo em vista que ali estavam em jogo suas dinâmicas sexuais, ainda mais em público.

"O que tá fazendo aqui, mulher?" - eu ouvia de colegas. As mesmas que tinham me visto dias antes, em algum outro contexto, até mesmo na casa de amigas em comum, em reuniões de coletivos ou alguma associação, mas que se surpreendiam quando me viam no campo, acompanhada da psicóloga que me supervisionava. Estou estagiando, mulher - costumava ser a resposta padrão. A conversa geralmente não se desenvolvia muito. Eu tampouco queria gerar mais constrangimento. Ainda que o serviço obedecesse as orientações do Ministério da Saúde (Brasil, online), que trabalha com a ideia de população-chave (em outras palavras, os grupos identificados como epidemiológicos, entre os quais se situam as travestis, mulheres trans e homens gays), não suspeitava que tais encontros se tornariam tão frequentes. Até mesmo a supervisora em questão havia se surpreendido com a periodicidade deles, pois era algo que agia em nosso cotidiano.

Bom, diversas experiências se desdobraram a partir daí. Um exemplo disso é que começamos, na Psicologia, a fazer alguns atendimentos aos usuários, mas alguns desses atendimentos não davam para ser feitos por mim, pelo motivo supracitado: eu conhecia a pessoa que seria atendida. Embora a proposta central do estágio se destinasse a atuar mais na sala de espera do que na atuação de uma psicoterapia individual, ambas foram feitas em paralelo a supervisões. De qualquer forma, esse empecilho, o de não poder atender porque conhecia a(o) usuária(o), era compartilhado pela psicóloga. Disse-me que já havia recebido pessoas conhecidas, pois vivíamos em uma cidade de poucos habitantes, mas não na periodicidade que estava acontecendo comigo. Ela, uma mulher cis. Eu, uma travesti.

Convém destacar que o contato prévio com quem eu deixava de atender havia se dado pelo fato de compartilharmos a marca da travestilidade. Ou seja, não era minimamente o caso de encontrar vizinhos ou pessoas que estudaram comigo na época da escola, tratava-se de recepcionar um grupo do qual eu fazia parte de maneira constitutiva. Eu era travesti. Eu era a travesti matriculada em uma graduação de Psicologia, cenário, naquele momento, mais singular do que plural. E a forma como isso se operacionalizava gerava a necessidade de lermos, juntas, os nomes de quem seria atendido ao longo do dia, para que eu pudesse identificar de antemão se conhecia alguém. Ainda assim, houve momentos em que algum nome não me soava familiar, mas que na hora de chamar a pessoa, ou de recebê-la, notava que nos conhecíamos. Em momentos assim, recorria à supervisora para que interviesse e atendesse em meu lugar.

A experiência em um SAE mostrou-se difícil para mim. Às vezes pensava que talvez tivesse aproveitado mais caso "viesse" de fora, de outra cidade, outro estado. Que integrar o perfil e o círculo de pessoas atendidas gerou alguns impedimentos, embora certamente também tivesse feito emergir dados que provavelmente não seriam obtidos de outra forma. Tal como a forasteira de dentro (Collins, 2016), estar "lá" e "cá" me permitia ter acesso a questões e problemáticas bastante específicas, por exemplo, os funcionários que não estavam habituados ao núcleo da Psicologia e, às vezes, me entendiam como usuária do campo, não como alguém que estava ali trabalhando, exercendo uma formação e construindo um saber. Travestis acadêmicas causam surpresa?

Esse exercício de escrevivência, como propôs Conceição Evaristo (2006), trata-se de uma senha pela qual se acessa o mundo. O texto se torna, assim, uma forma de agência. Nesse sentido, minhas idas e vindas a campo, condensadas nesse breve recorte, são úteis para mostrar como minhas identidades (profissional, racial, regional e de gênero) criaram uma articulação específica com o campo. Essa articulação fronteiriça - ora psicóloga travesti, ora travesti psicóloga - referiu-se àquilo que Gloria Anzaldúa (2005) denominou de consciência mestiça, quando se pensa a constituição do sujeito como simultânea, embora dinâmica. Ainda assim, falar sobre os percursos traçados no SAE não remete a um entendimento antecipatório de minha entrada e de meu convívio.

Dito de outro jeito, meu "lugar de fala" não me garantia nenhuma análise sobre os entraves de um campo despreparado para lidar com a atuação de uma Psicologia correlatada à travestilidade. Somente por meio de sua superação é que pude estranhar o campo, pois dizer "sou trans" não certificava nenhuma articulação posterior disso com o local de minhas observações e intervenções, mas essa é uma perspectiva que irei retomar adiante. Por ora, é preciso manter em mente como se ultrapassa uma apresentação burocrática "essa é quem sou" e se lança em direção a uma postura dialógica com o campo: "ser quem sou" em um "contexto específico" fez com que chegássemos até aqui, mas também impediu de chegar ali.

 

Tecnologias interpelativas e as travecagens semióticas

"Por que deveria tentar justificar o que escrevo? Preciso justificar o ser chicana, ser mulher? Você poderia também me pedir para tentar justificar por que estou viva?" - com estas perguntas, Anzaldúa (2000, p. 232) introduz uma série de reflexões ao longo do seu texto destinado às mulheres escritoras do terceiro mundo. Com a devida liberdade de reproduzir um de seus questionamentos, por que tem sido pensado que se colocar em um texto é o mesmo que justificar seu interesse em um campo? Evidentemente que tais justificativas podem vir a compor uma seção introdutória, metodológica, entre outras. Escrevo porque tive experiência. Escrevo porque observei. Escrevo porque minha tia era assim ou porque desejo colaborar na criação de outros mundos.

Contudo, uma escrita justificada em demasiado, conforme as suspeitas de Anzaldúa (2000) apontavam, pode acabar se encerrando em si mesma. Para além de pensar as razões que motivam o interesse em um campo, é preciso que pensemos as repercussões. Não para encarar que um âmbito não diz nada sobre o outro, pois certamente têm conexões, mas para refletir sobre a importância que se dá aos motivos em detrimento dos efeitos. Em outras palavras, não pesquiso transexualidade porque sou trans. Mas a forma que pesquiso transexualidade, sendo trans, produz resultados bastante característicos, uma vez que estes se originam de uma perspectiva corporificada (Haraway, 1995). Embora pareça, aqui, que há uma defesa epistemológica de que as pesquisas sobre populações ditas vulneráveis sejam feitas pelos próprios sujeitos vulnerabilizados, o que se constrói, na verdade, é uma ideia de que toda e qualquer pesquisa advém de um corpo.

Transpondo esse exemplo, na tentativa de evitar algum mal-entendido, seria o equivalente a dizer: "não pesquiso transexualidade porque sou cis, mas a forma que pesquiso sobre transexualidade, como cisgênero, reverbera em minha pesquisa". Fazer esse deslocamento implica em deixar para trás uma noção insuficiente de "lugar de fala" e ter como destino tanto aprender com os corpos (Haraway, 1995) quanto como reconhecer as posições operativas (Collins, 2016) como pontos de vista privilegiados. Por esse ângulo, o presente artigo se comunica com um campo metodológico feminista que produz tensões criativas em um texto, mas não para se apresentar no começo e depois fingir que não precisa mais articular esse dado - os marcadores da diferença - com a pesquisa. E, sim, para que seja superada a ideia de que para posicionar o lugar de onde se fala basta se apresentar de maneira burocrática. A metodologia não precisa ser um cumprimento de trâmites, ela pode ser uma história potente, desafiadora e criativa.

Mas acerca de quais marcadores devo falar, uma vez que pertenço aos centros? Ou a alguns centros, pelos menos... No que diz respeito aos diferentes fatores que compõem a identidade de um sujeito, Avtar Brah (2006) teceu uma série de contribuições. A autora nos traz que pensar a necessidade de uma postura ética é um elemento que considera as políticas identitárias como interconectadas, fazendo-nos exercer uma "contínua interrogação do essencialismo em todas as suas variedades" (Brah, 2006, p. 376). Não significa pensar, então, que o gênero é apenas o feminino, que a sexualidade é apenas homoerótica ou que um lugar racialmente marcado é apenas o da negritude, mas que todos têm gênero, sexualidade, raça, mobilidade, entre outros fatores. Todavia, isso não é dito para estipular uma pretensa noção de somatório de pertencimentos, conforme alertou Conceição Nogueira (2017), pois se trata de vislumbrar uma acepção totalitária de sujeito, não meramente fragmentada.

Em contrapartida, em vez de recorrer justamente às ferramentas que parecem impossibilitar uma pesquisa direcionada para a realidade do outro, poderíamos, aqui, debater sobre as contribuições hegelianas (2002), segundo as quais falar sobre alguém é falar sobre si, entendendo que sua satisfação se dá por meio da troca com esse outro que detém a condição de espelho. Contudo, embora a tradição fenomenológica possa ser bastante útil para produzir reflexões sobre as relações que se estabelecem em campo, foram justamente nas estratégias feministas - que podem advir do método fenomenológico - voltadas a uma escrita parcial que encontramos a potência descritiva sobre uma realidade que, a princípio, não pertence a quem pesquisa.

Pensando em como articular o "eu" com a pesquisa, a escritora e puta feminista Monique Prada (2018, p. 68) declara que "precisamos poder pensar sobre nossas vidas, nossas questões, nossa comunidade" em consonância com determinada tradição epistemológica que busca rebater as tecnologias semióticas (Haraway, 1995) vigentes. A fé irônica, a que se referiu uma Donna Haraway (2000) cada vez mais identificada com um campo direcionado às humanidades científicas, tem a ver com as contradições que não são solucionadas. E que também não estão em busca de soluções. Existem ambiguidades, paradoxos e problemas que não se resolvem. Assim como a questão do lugar de fala, por exemplo, por que nos interessaríamos em solucioná-la?

De fato, talvez a maneira mais interessante de amarrar as narrativas pessoais, identificadas como um "eu" da pesquisa, seja considerando-as como um problema. Problema, aqui, todavia, não adquire o sentido de defeito, mas de uma adversidade necessária, sem a qual não seria possível produzir determinadas reflexões sobre um campo ou um tema. Dessa forma, propõe-se que se reatualize um ponto de vista feminista (Bairros, 2005), para que ele não diga respeito somente às populações identificadas como vulneráveis, mas que responda ao chamado daqueles que estão interessados em compreender quais são os efeitos que procedem de suas posicionalidades. Diferente de analisar o que faço com o campo ou o que o campo faz comigo, pede-se, assim, que se parta do princípio que essa tensão é sempre dialética, relacional. Não interfiro porque sou trans, tampouco sou interferida devido a isso. Mas o contexto em que o campo está situado se soma a mim, gerando acoplagens bastante específicas que devem ser analisadas sem a priori.

De maneira sintetizada, o que o "lugar de fala" tem de diferente dos "saberes situados" ou das outsiders - embora se utilize das autoras como referencial bibliográfico - é que ele presume uma certa posição de espectador. Algo que é, de certo modo, refletido no obstáculo listado anteriormente. Não é porque sou de determinada forma que os dados foram interpretados de certo jeito, é em razão de ter encontrado uma brecha analítica que se abriram os encaixes entre o "eu" e o "campo". O que quer dizer isso? Quer dizer que não se observa algo meramente porque é quem se é. Tampouco afirmar que "quem se é" diz algo sobre aquilo que se observa. Corro o risco de estar soando repetitiva, mas a pretensão é que as noções de saberes - localizados (Haraway, 1995) ou das forasteiras de dentro (Collins, 2016) - produzem compromissos mais progressivos com uma pesquisa, e menos essencializados.

Ora, se o sujeito acredita que basta se apresentar rapidamente para fazer com que sua presença tenha alguma lógica no decorrer de um estudo, ele estaria assumindo o "lugar de fala" como uma estratégia reduzida a si mesma. Entretanto, caso perceba a emergência ética de expor as circunstâncias que se desdobram a partir do momento que decide iniciar uma pesquisa, evitaria, então, ausentar-se lá pelas tantas. Resgatando a cena que trouxe ao longo do artigo, caso algum estudante cisgênero da minha época da graduação tivesse estado naquele SAE em meu lugar, ele possivelmente não teria se deparado com as questões que o campo produziu em contato com a travestilidade, mas uma travestilidade que não estava ali para ser atendida. Sem embargo, não significa menosprezar a importância de uma autoafirmação textual, mas significa, sim, considerar que fazer isso não é o mesmo que operar por meio de uma escrita parcial.

 

Tornar-se "eu" é se tornar fragmentado

O que define a escolha por essa ou aquela estratégia metodológica é, sobretudo, suas concepções de sujeito. Em "O que é lugar de fala?" (Ribeiro, 2017), são delineadas algumas pistas sobre o que a autora entende por sujeito, por indivíduo, pessoa. Ainda assim, trata-se de uma obra recente e bastante pontual, diferente da extensa produção de Judith Butler, escritora estadunidense conhecida por seus trabalhos na área dos estudos críticos e de gênero há pelo menos três décadas. Por esse ângulo, não se trata de comparar obras de autoras com trajetórias e posicionalidades diferentes, mas de buscar entender de onde partem suas análises, sobre quais noções de sujeito estão fundamentados seus escritos.

De modo geral, Ribeiro (2017) circunscreve "aquele que fala" a partir de três componentes: representatividade, privilégio e a possibilidade de se tornar sujeito. As disputas por "representatividade" envolvem ter pessoas tidas como vulnerabilizadas em locais de poder. O conceito de "privilégio" é tributário a um campo digital, no qual as discussões têm se baseado em apontar os benefícios que uns têm e outros não. Em alguns blogs virtuais, como é o caso do portal "Escreva Lola, Escreva" (Aronovich, 2013), podemos encontrar vestígios desse hábito de lidar com a ideia de que alguns são privilegiados em comparação a outros. Por fim, o "tornar-se sujeito" - que é o elemento que mais diz sobre um procedimento analítico.

Representatividade, em "Problemas de gênero" (Butler, 2010) não é compreendida como um produtivo por vir feminista. Logo no primeiro capítulo, a autora elabora uma discussão sobre o sujeito político do feminismo, que estaria, supostamente, reunido na categoria "mulher". E pensa os limites que se impõem ao considerar "mulher" como uma esfera representativa em termos de disputa coletiva, tendo em vista que, ao estabelecer seus contornos, também se decreta quem fica de fora. Excluir e incluir são processos que caminham juntos, nessa perspectiva. Classificar a mulheridade, ou defendê-la conforme um limiar coletivo, pode fazer inclusive com que sejam (des)racializadas ou (des)sexualizadas as demandas e mobilizações feministas. De certa forma, Butler (2010) considera a representação como uma ambiguidade, algo a ser evitado, afirmando que "talvez, paradoxalmente, a ideia de 'representação' só venha realmente a fazer sentido para o feminismo quando o sujeito 'mulheres' não for presumido em parte alguma" (Butler, 2010, pp. 23-24).

Em segundo lugar, "privilégio" não é um termo que tem o mesmo sentido na produção butleriana, que depois de uma transição do "gênero" para a "ética" passou a estar voltada à compreensão da precariedade como uma teoria do ser. A autora classifica como "precária" a ontologia social da vida. É a condição sobre a qual todos nós estaríamos submetidos. Em "Corpos em aliança e a política das ruas", Butler (2018) afirma a precariedade como esse movimento de exposição compartilhada ao risco, sendo necessário constituir uma estrutura de apoio que consiga sustentar a vida. Existe uma lacuna entre o que se entende por "privilégio" a partir do momento que não se entende o "privilegiado" como alguém que está alheio, pois nenhum corpo é possível sem os outros (Butler, 2018). Não se pensa, então, uma reflexão sobre os próprios privilégios, embora o sujeito ribeiriano não envolva nenhuma concepção de "rever os privilégios" ou então "abrir mão dos privilégios" - perspectiva encarada pela autora como problemática (Ribeiro, 2017). Entretanto, pensa-se, sim, em uma perspectiva na qual opera essa condição ontológica capaz de precarizar a vida, que o foco se direciona à proposição de alianças.

Tornar-se sujeito tampouco é algo que tem o mesmo significado para ambas as autoras. Em "Relatar a si mesmo", Butler (2015) discorre sobre a questão da experiência, fundamental na exposição de um "lugar de fala". Segundo um ponto de vista butleriano (2015), falar sobre algo do prisma da memória não se trata de uma mera contação de história, pelo contrário, já que ao narrar também se está produzindo alguma coisa com esse passado. A experiência é vista, assim, não como uma reprodução fiel a um evento que aconteceu, mas uma fabricação constante. Relatar é performar, pois nunca é possível deter, no sentido de ter, a própria narrativa. Isso porque, em Butler (2015), o sujeito não é dono da totalidade do "eu" e precisa ser desapossado de si mesmo, em decorrência de sua própria fragmentação. Diferentemente, Ribeiro (2017) entende o relato como um modo de se tornar sujeito, de se autorizar, mas a óptica butleriana (2015) não permite a autoridade na narrativa, uma vez que ela se constitui na prática, sendo sempre diferente, atualizada, afetada pelas condições sociais, culturais, históricas. E pelo próprio "lugar de fala".

Não é que os "privilégios" (dos brancos, cisgêneros, masculinos, heterossexuais, entre outros) deixem de encontrar relevância nas produções da filósofa estadunidense. O ponto é que tais aspectos dão indícios de nos convocar a uma estratégia política voltada para o indivíduo, gerando uma forma específica de desamparo político, uma vez que aparenta fortificar determinados lugares sociais ("nós" e "eles") para uma pesquisa, por exemplo. Pensando os fios que são costurados por essa dualidade, Gayatri Spivak (1985), em seu conhecido texto "Pode o subalterno falar", traz uma densa provocação sobre a voz dos identificados como subalternos. A resposta que a autora dá à pergunta que intitula o trabalho é que sim, pode-se falar, mas são as condições de escuta que não se viabilizam. Em sua perspectiva, é necessário produzir formas de evitar a subalternização epistêmica que impõe mudez a determinados sujeitos, o que não necessariamente quer dizer produzir "mais voz".

Quando Spivak (1985) pergunta se o subalterno pode falar, essa indagação não pode ser tomada no seu sentido literal, pois é evidente que podem falar. Todavia, é o ato de ser ouvido que não ocorre. Essa postura reconhece que não basta somente providenciar meios para que o subalterno seja escutado, mas ir contra a própria subalternização como um processo sistêmico. Em outros termos, não se deve produzir subalternização alguma, sendo essa uma demanda que desdobra o conceito de "lugar de fala" e seus objetivos comumente voltados à representação, visibilidade e protagonismo. É sobre isso que falamos quando pensamos em uma produção científica que se utiliza das narrativas pessoais como meios para gerar conhecimento? Certamente, representar, visibilizar e protagonizar podem aparecer até mesmo aqui, no presente artigo, mas se recusam a ser o local de encontro das mobilizações que amparam uma escrita acadêmica situada.

As discussões sobre "lugar de fala" não se esgotam em apenas uma intelectual. No feminismo, diversas autoras estiveram interessadas em discutir a questão da "experiência". Joan Scott (1999) se propôs a pensar as formas de visibilizar aquilo que os sujeitos passam, considerando a experiência não mais como algo que se detém, mas como constitutiva. Nesse sentido, repensar a autoridade do que é vivido não é uma prerrogativa nova para os feminismos, pois, desde uma perspectiva scottiana (1999), disputas por uma análise histórica têm sido empreendidas, balançando o lugar de verdade que a vivência tinha - não para abandoná-la, tendo em vista que a autora pensava a experiência "não como a origem nossa explicação, mas aquilo que queremos explicar" (Scott, 1999, p. 20). Era pretendido, naquele momento, refletir sobre o processo de criação do sujeito, compreendo-o como inexistente em primeiro lugar, algo que faz com que a busca por "tornar-se sujeito" parta de outra base do conhecimento.

Embora o "tornar-se sujeito" remeta também às condições de agência, ao mesmo tempo, ele é inteiramente compreensível, tendo em vista que, no Brasil, os grupos tidos como minorias (como seria o caso das populações negras, das mulheres, das LGBTs, entre outras) estiveram, de modo histórico, assujeitados por uma norma. Ou seja, são questões bem mais complexas do que aparentam ser. Dessa maneira, não seria com facilidade que a sentença "o sujeito não existe" poderia ser declarada - ainda que, para Butler (2015), o sujeito seja um fragmento que nunca assume uma gestão totalitária de si próprio. Aqui, contornam-se as demarcações sobre o que está sendo feito com a "experiência" por meio de um trajeto traçado de acordo com o nexo de uma teoria.

Continuando com o cenário brasileiro, Sueli Carneiro (2003) destaca-se por suas produções voltadas à racialização do feminismo, do movimento de mulheres, dos movimentos sociais. Assim como Lélia Gonzalez (1982), que elaborou uma série de estudos pioneiros sobre os lugares ocupados pelas mulheres negras. Em outras palavras, a questão de "onde se fala" não é exatamente uma novidade nem para uma dinâmica feminista nem para a academia. Entretanto, tem sido a partir das produções mais contemporâneas, como a que foi discutida nesta seção, que as pesquisas "identitariamente guiadas" estão encontrando repouso.

 

Entre "nós" e "eles": caminhando para um fim

Parte da ansiedade que justifica a tensão sentida por aqueles que querem pesquisar realidades tidas, em um primeiro momento, como "alheias" deriva da recente noção de que as políticas identitárias precisam funcionar com alguma coerência. Negros falam sobre racismo. Trans falam sobre transfobia. Gays falam sobre homofobia. Pessoas com deficiência falam sobre capacitismo, etc. Tais disputas já foram amplamente discutidas por Guacira Louro (2001), ao desenvolver sólidas críticas aos entendimentos dicotômicos que endereçavam a homossexualidade como opositiva à heterossexualidade, e vice-versa.

Nesse cenário, não há muita abertura, mas o que Louro (2001) propõe é justamente a possibilidade de encontrar brechas. Atuar na fronteira. Afinal, o que é esse "nós" de que se fala tanto? Esse contingente não deve ser tomado como uma obviedade. Se existe uma série de esforços para que grupos minoritários não sejam vistos como "blocos" ou a partir de uma história única, tais empenhos devem ser utilizados em conjunto na categoria "eles". Uma vez que o "nós" deixa de ser uma garantia, o "eles" também necessita deixar de ser autoevidente. Não se trata de ignorar a discrepância entre pesquisadores negros e brancos, cis e trans, héteros e gays, mas de pensar, nesse sentido, que tanto o "nós" quanto o "eles" deixam alguém de fora em algum momento. Alguns não conseguem ser parte da categoria "nós" e outros não dão conta de integrar o campo "eles" - onde, então, seriam capazes de aparecer?

Com a atuação nas brechas em mente, Butler (2018) aposta estrategicamente em uma política do deslocamento, segundo a qual o contato com o outro permitiria a ação conjunta. A autora traz: "[...] eu sou, como um corpo, e não apenas para mim mesma, e nem mesmo primariamente para mim mesma, mas me encontro, se me encontrar de todo, constituída e desalojada pela perspectiva dos outros" (Butler, 2018, p. 86). Tal ação a que se refere acontece em um espaço que não estaria, aqui, nem entre o "nós" nem entre o "eles", mas no próprio entre. De acordo com a autora, o "entre" é uma metáfora espacial de uma relação capaz de, ao mesmo tempo, vincular e diferenciar.

Muito além de pensar uma pretensa consciência democrática, como se os sujeitos pesquisantes e pesquisados estivessem desde sempre na horizontal, segundo as relações de poder acadêmicas, o que se desenvolve é uma crítica a respeito da capacidade de aprender nas bordas, nas margens e nos limiares. Não para afirmar, talvez ingenuamente, que um pesquisador, uma vez situado em seu campo e em seu texto, passará a estar em pé de igualdade com os sujeitos de sua pesquisa. É menos a respeito de uma pretensa simetria e mais sobre uma preocupação ética, que deixa de ser expressa em "culpa" ou "receio" quanto ao uso dos dados.

Se, em meu caso, falar sobre como a pesquisa é perpassada por uma intelectualidade travesti envolve o risco de estabelecer uma indesejada coerência, "por ser trans, logo, estuda sobre questões trans". No caso de pessoas cis, por exemplo, essa posicionalidade ao longo de um texto pode ser entendida como um constrangimento. Por que se interessa pelo tema, sendo cis? - indagação que poderia ser levantada, mas que raramente seria feita a uma estudiosa travesti, tendo em vista que o tema parece se ligar à identidade, produzindo alguma inteligibilidade (Butler, 2010). Ainda assim, é preciso que estranhemos tal ligação. É preciso que não seja comprado de antemão o que surge como insuspeito, tratando-se de um procedimento imprescindível para uma investigação preocupada com o lugar de quem a conduz.

Poderíamos pensar, portanto, em uma metodologia do hiato? Em uma lacuna metodológica que permita a ruptura dos vícios identitários, partindo para horizontes práticos e teóricos nos quais os marcadores da diferença (Brah, 2006) são articulados e não engessados? Romper a suposta coerência entre "ser quem se é" e "pesquisar o que se pesquisa" não é um movimento útil apenas para os que são considerados como "fora" de uma realidade, mas também aos que estão "dentro" de dada população, uma vez que essa aparente incoerência é capaz de desestabilizar normativas essencializantes. Criar fissuras, assim, na ideia que as pessoas devem pesquisar aquilo que as afetam em níveis subjetivos, identitários e sociais (como se fosse possível pesquisar um tema que não fosse fruto de alguma afetação) pode ser interessante para desnaturalizar a predileção por um tema dentro da academia.

Por esse ângulo, não se propõe pensar a posicionalidade dos saberes apenas a partir das outsiders, mas também dos insiders. Se a condição de "estrangeira" é potente em termos epistemológicos, a posição dos moradores, residentes ou "habitantes" poderia ser também? Falar desde um lugar politicamente identificado como normativo precisa ser uma dinâmica apta a estabelecer articulações constantes. Atualmente, a compreensão sobre "lugar de fala" tem se restringindo a um certo: agora que já disse de onde falo, posso voltar à minha pesquisa?

Apesar de tal apresentação ser importante, ela não sustenta, por si só, uma reflexão sobre os efeitos de uma operação metodológica localizada. Dessa forma, é preciso superar a lógica do confessionário, ou aquilo que Didier Fassin (2003) chamou de política do relato, pois ela é capaz de enfraquecer teoricamente um trabalho. Quais são os impactos do "eu" naquilo que pesquiso? Como o "eu" me permitiu ir até o campo? De que maneira pude acessar, circular e dialogar a partir desse "eu"? Muito mais do que identificar "quem é aquele que escreve", o fundamento de uma escrita posicionada se desloca para seus encontros. Assim, o "eu" não detém tanta relevância, mas as trocas que são estabelecidas com ele passam a ser organizadas em centralidade.

O que pode uma pesquisa que se dá no "entre" talvez seja a saída para uma proposta de estudo preocupada em parcializar o próprio texto. Por esse ângulo, é na colisão entre o "nós" e o "eles" que é possível superar os vícios de uma declaração biográfica esvaziada, partindo, então, para um além em que há uma persistente análise sobre o contato de si com o outro. Não é satisfatório se identificar como inserido em um marcador tido como hegemônico, pois aparecer não é um movimento necessariamente morfológico, como apontava Butler (2018) ao pensar as negociações de uma assembleia. O que permite que as condições de aparecimento sejam materializadas talvez seja, justamente, a possibilidade de agir no hiato.

Pesquisar a dor do outro diante dessa proposta não quer dizer homogeneizar-se, significa, em contrapartida, estranhar-se. E colocar a si mesmo em suspenso para poder enxergar uma dinâmica que já foi familiarizada, pois esteve dada desde um primeiro momento. O que se sugere é produzir abstinências que sejam capazes de observar o que só se mostra à normatividade, mas que, devido a uma constância, passava como habitual.

Qual é o perfil dos sujeitos que conseguem pesquisar com famílias sobre sexualidade? Em campos escolares afetados por setores conservadores, pesquisadores gays teriam o mesmo acesso às narrativas das crianças que pesquisadores heterossexuais? Uma pesquisadora travesti teria seus projetos avaliados com alguma desconfiança em campos ambulatoriais voltados ao atendimento da população trans?

Algumas questões que desenovelam a figura do saber, que se distanciam de uma suposta neutralidade e que colocam em circulação outras discussões sobre pesquisa, método e epistemologia. As pistas deixadas por um estudo implicado com a dor do outro nos dizem da necessidade de se arriscar diante do desconhecido, mas que, ao fazer isso, sejam repensadas as próprias formações da identidade. Não há nada opaco em relação a si mesmo. Todavia, permitir que um campo nos "desfaça" é um gesto que convoca à construção de outras éticas, que dão indícios de desfazer a unidade que nos condensa, pois o "nós" não existe, tampouco o "eles".

Uma escrita situada, consequentemente, é uma escrita que se dá nos intervalos. No espaço artificial do "entre" é que se torna possível emergir uma política que reconhece os efeitos dos atores e atrizes em cena. Superar a lógica pastoral em que os marcadores devem ser confessados acarreta pensar o "eu" como um efeito, não como uma essência, uma natureza.

Esse é, sobretudo, um convite à blasfêmia (Haraway, 2000), uma aposta pela seriedade em relação aos fatos. Mas também aos feitos, conforme apontava Bruno Latour (2002). E qual seria o lugar mais apropriado - se não por meio do "entre" - para denunciar a fabricação do "nós" e do "eles"? Situar-se em um texto não poderia, então, ser apenas uma forma restrita de dizer sobre a formação acadêmica ou acerca de uma disciplina pedagógica, mas de sancionar uma metodologia que é feita de encontros.

 

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Recebido em: 3/10/2019
Aceito em: 21/5/2020

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