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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.3 São João del-Rei jul./set. 2020

 

Compostagens do sensível: entre o chapéu e os pés, invenção de mundos

 

Compositing of Sensitive: Between the Hat and the Feet, the Invention of Worlds

 

Compostaje de lo sensible: entre el sombrero y los pies, invención de mundos

 

 

Angela Carneiro

Psicóloga. Compositivista. Doutora pelo Programa de Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

 

 


RESUMO

Ao considerar a vida como um valor, o que pode o feminino? Diante dessa questão, se tomarmos a realidade como um campo de forças, as forças do feminino assumem uma posição política, de luta e manutenção da vida, ao acolher a diversidade. A pergunta se desdobra para a clínica, para a pesquisa e para os modos de existir. Mas não há como abordar a questão sem questionar o neoliberalismo que domina o mundo atual. Entretanto, nele, o feminino transborda quando, como potência, afirma a vida como um valor. Daí, são propostas experimentações, aqui denominadas de "compostagem do sensível", uma ferramenta para pensar a produção de conhecimento instigada pelo feminino, acompanhar os processos de subjetivação e experimentar outras linguagens. Nesse enfoque, é apresentada uma oficina com mulheres estudantes de Psicologia.

Palavras-chaves: Psicologia. Metodologia. Feminino. Compostagem do sensível.


ABSTRACT

When taking life as a value, how far can the feminism go? To answer this question, reality viewed as a field of forces, the forces of the feminism, by adopting diversity, take on a political position, of struggle for the maintenance of life. The question unfolds to clinic, research and existence modes. As a background, prior to discuss this issue, one have to question neoliberalism that prevails in today's world. However, feminism goes beyond. As a power, it reassures life as a value. From this standpoint, a proposal for new approaches is put forward, a tool to follow the processes of subjectivity and to experience other languages, here named "compositing of sensitive". Using this tool, a workshop with women, Psychology students, is here described and its results discussed.

Keywords: Psychology. Methodology. Feminism. Compositing of sensitive.


RESUMEN

Al considerar la vida como un valor, ¿qué puede hacer lo femenino? Ante este problema, si tomamos la realidad como un campo de fuerzas, las fuerzas de lo femenino asumen una posición política de lucha y mantenimiento de la vida al abrazar la diversidad. La pregunta se desarrolla a la clínica, a la investigación y a las formas de existir. Pero no hay forma de abordar la cuestión sin cuestionar el neoliberalismo que domina el mundo de hoy. Sin embargo, en ella lo femenino se desborda cuando, como potencia, afirma la vida como un valor. Por lo tanto, se proponen experimentos, aquí denominados "compostaje de lo sensible", una herramienta para pensar en la producción de conocimiento instigado por lo femenino y seguir los procesos de subjetivación y experimentación con otras lenguajes. En este enfoque, se presenta un taller con mujeres, estudiantes de psicología.

Palavras clave: Psicología. Metodología. Femenino. Compostaje de los sensibles.


 

 

Introdução

Ao fazer da vida um valor, o que pode o feminino? Se tomamos a realidade como um campo de forças, as forças do feminino assumem uma posição política, de luta e manutenção da vida. De qualquer vida? Não, da vida enquanto expansão de mundo, o que significa gestar o que não é espelho, acolher as diferenças, cuidar no miúdo dos dias, modos de convivência regidos por uma lógica horizontal, em uma rede de palavras e gestos de partilha. Aceitar que a vida se inscreve no frágil fio do limite com a morte. A qualquer hora, não mais. Logo, se não podemos tudo, podemos intensamente muito.

Nos dias atuais, como a pergunta sobre se a vida como um valor se desdobra em nossa clínica, nos nossos campos de pesquisa e modos de existir?

Diante das atrocidades do mundo em que vivemos, de todo tipo de violência, dos discursos de ódio, em que tudo se resolve eliminando o outro, a vida se banaliza em números e imagens nas mídias. Duas ou três coisas que nos arrancam a alma: os dados da Organização Mundial de Saúde,1 que apontam o suicídio como a segunda causa de morte de crianças e jovens entre 12 e 18 anos nos Estados Unidos, enquanto no Brasil é a terceira causa de morte de jovens entre 15 e 19 anos; o atraso e a restrita ajuda humanitária que chegou à África, em Moçambique, Malauí e Zimbábue, na passagem do ciclone Idai (abril de 2019);2 a morte do rio Doce, com o desmoronamento da barragem em Mariana, Minas Gerais, e a lenta morte dos que sobreviveram, fauna, flora e comunidades ribeirinhas.3

Poderia argumentar que essa questão ficaria restrita a determinados territórios que são tradicionalmente quintais do mundo. Sim, é verdade. Mas, é verdade também que, em países de grandes recursos econômicos, o cenário também tem sido tenebroso: assassinatos em massa em escolas, ações terroristas sustentadas por uma indústria armamentista fortíssima, restrições a políticas públicas de saúde, de migração e de educação. Como também poderia falar dos acordos da indústria alimentícia, em que o uso de substâncias tóxicas contribui para o adoecimento e morte da população mundial.

Logo, o problema circula em muitas fronteiras. Evidentemente que tudo isso recai como uma carga imensamente maior em uma parcela da população que, em determinadas áreas do planeta, sustenta a bolha de privilégios de poucos. As vidas que não importam. E não importam porque, como nos diz Achille Mbembe (2016, p. 215), a contemporaneidade se articula em um campo de forças políticas em que a vida é submetida à morte. São as vidas que estão fora de um projeto de soberania e de autonomia, mas a serviço de uma "instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações". É o que chama de Necropolítica as práticas políticas do Estado sustentadas por um poder mortífero. Mbembe elabora esse conceito à luz do estado de exceção, do estado de terror, mas para mostrar a política de exceção que se torna a regra. Onde, para todos? Não. Em alguns territórios e para populações de negros, pobres, imigrantes, indígenas. É o que encontramos nas políticas de segurança, por exemplo nas favelas do Rio de Janeiro, com ações ilegítimas, violentas e de extermínio. Como também com as populações campesinas, indígenas e quilombolas. Por isso, a insistência em gritar "toda vida importa".

Se em algum momento do nosso percurso, como espécie, tomamos consciência da nossa fragilidade, da vida como um fiapo, rara, intensa e misteriosa, como diante da cena contemporânea pensar a questão da vida como um valor, diante de crianças e adolescentes cujas vidas vão se apagando junto com o desejo de futuro?

As conexões entre as necropolíticas e o neoliberalismo acentuam as desigualdades de oportunidades e pertencimentos. O capitalismo, o sistema que nos espreme, nos convoca a sermos usinas de produção contínua e consumidores desesperados, cuja relação com o mundo se resume a um extrativismo incessante. Assim, novos sentidos para a vida foram se produzindo.

Ao olharmos para os primórdios do capitalismo, observamos uma operação importante, que produziu um novo mundo: a vida na Terra, e não mais a vida depois da morte, torna-se um valor. O discurso hegemônico da Igreja Católica sustentava para os cristãos que a verdadeira vida estaria depois da morte. Viver significava aguardar resignadamente a redenção que a morte traria. Logo, o trabalho, as dores do parto, o sofrimento, o mal, faziam parte dessa espera. Mudar a perspectiva de que a vida na terra tinha valor foi fundamental e fez emergir um outro mundo. A vida passa a ser uma missão para honrar a Deus. Logo, o trabalho se torna um modo de servir a Deus. Quanto maior a produtividade, o crescimento social, a acumulação e o consumo, mais o crente dignificaria Deus. É o que mostra Max Weber (1985), com a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904-1906, 1920), que confrontou a ideologia cristã e abriu brechas para novos modos de organizar a sociedade em torno da lógica da produção, consumo e lucro.

O vínculo homem-natureza se transforma. A natureza deixa de ser um elemento de composição e passa a ser o território a ser explorado pelo homem.

Dominar a natureza pede conhecimento, tecnologia, força de trabalho e uma ideologia que sustente as crenças do dominador. É da atividade exploradora que a riqueza virá e, por conseguinte, a sua redenção. Essa é a história do capitalismo, que se mantém por sua contínua reinvenção, em uma constante regulação da sociedade. A vida se torna um produto regido pela lógica do consumo e do lucro. É o consumo que define os objetivos dos processos de produção, atribui valor às coisas e às pessoas e que gera as demandas que nos mantêm insaciáveis. Mais se consome, mais se produz, mais alguns lucram, mais se descarta, mais se produzem e capturam desejos, em um ciclo viciante. E a vida fica sistematicamente aprisionada nessa lógica, uma lógica que hierarquiza o trabalho e as diferenças.

Quando se mergulha no livro de Silvia Federici O calibã e a bruxa (2017), descobre-se quantas versões de mundo poderiam ter se criado se as escolhas tivessem sido outras. A autora tem como tese fundamental a de que uma das estratégias de implantação do capitalismo foi o enquadramento repressor sobre as mulheres, submetidas a uma política autoritária de governantes que, apoiados pela Igreja Católica, pela lei e pela moral patriarcal, tiveram seus corpos, sua autonomia, saberes e ofícios tomados. Com a divisão de trabalho imposta, são restritas à função doméstica e à maternidade, para garantir a qualidade e a quantidade da descendência como força de trabalho.

Federici apresenta uma pesquisa histórica rica e detalhada sobre como esse lugar da mulher se constrói pela violência, na apropriação dos corpos femininos, na destituição de saberes e no esvaziamento de espaços coletivos de criação solidária e compartilhada de modos de vida. Portanto, o que temos aqui é o apagamento de um modo de vida, de uma relação profunda e criativa com a terra, com outras mulheres, com os velhos e as crianças, de modos e ocupações de espaços coletivos, de produção de conhecimento, de cuidados, de uma ordem compartilhada, de forma partícipe e horizontal. Mulheres atuantes, que dominavam ofícios, como ferreiras, lavradoras, pedreiras, parteiras, curandeiras, ceramistas, e algum desses ofícios nos chegavam como exercidos exclusivamente pelos homens.

Para apagar o feminino como potência criadora e ter controle sobre a vida, o capitalismo precisou marcar o mal no corpo da mulher. E o fez com muita violência.

Federici argumenta que a figura da bruxa como marca do demônio é produzida nesse momento. Até então, as mulheres que tinham conhecimento das ervas, emplastros, rezas, rituais de cura, cuidados e sabedoria eram reconhecidas como bruxas e participavam da vida social. A partir dos séculos XVI e XVII, demoniza-se o feminino e apropria-se da relação da mulher com a natureza, com o que a bruxa ganha a marca da feitiçaria, da bestialidade e da irracionalidade.

Produz-se uma nova ordem, assentada no patriarcado, que tutela a mulher como ser incapaz e inferior, cujo corpo passa a ser controlado e passível de criminalização diante dos novos ditames.

O fato é que o projeto capitalista, em seu crescimento exponencial, cavou um fosso entre as gentes, a natureza e a vida. Por que o capitalismo nos faz sofrer?

Retrocedo um pouco e pergunto: de que somos feitos? Somos feitos de múltiplas linhas, sangue, carne, fluidos, energia, reações químicas, palavras, gestos. Somos desenhos de linhas abertas, incompletas, a se fazerem. Cotidianamente, entre o nascimento e a morte, uma vida. Uma vida que é um corpo. Um corpo que saiu de outro corpo. E essa é a nossa grande e profunda marca e condição de sobrevivência: nascemos de um outro. Levamos nove meses para nascer e, quando nascemos, ainda não estamos prontos. Estamos sempre por nos fazer. Somos feitos de um desamparo básico, e nos humanizamos em nossa fragilidade no encontro com o outro.

E quem é esse outro? O outro é o que vem nos contornar e deixar marcas, o que, ao chegar de um certo jeito, nos faz movimento. Pode ser um humano, mas não necessariamente. Um piano para um músico pode transformá-lo de maneira indelével; um animal de estimação pode recriar uma pessoa; uma luz, uma paisagem, uma música, uma cadeira de rodas, uma ponte pode transformar uma cidade; um rio pode sustentar a vida de uma comunidade, sem ele a vida deixa de existir. Um outro pode ser o que desvela o mais escondido da nossa violência.

Logo, diante da nossa condição de desamparo, existe um enorme medo, de o outro faltar, ou o outro se sobrepujar - em vez de um outro "com", encontramos um outro "sobre". Por isso o capitalismo, em sua roupagem, neoliberal e financista, nos faz sofrer tanto,pois constitui-se numa lógica de exploração, competição e imediatismo, na ruptura dos laços sociais, da supremacia de um modelo eurocêntrico, machista, branco, patriarcal, que aparta o que tem e o que não tem valor. O capitalismo espelha um narcisismo mortífero: existo, porque você não.

Diante do apagamento das diferenças, da imposição das tecnologias de controle, do mundo patriarcal, o feminino transborda quando, como potência, afirma a vida como valor. As histéricas, as sufragistas, as deficientes, as mulheres dos povos tradicionais, as trabalhadoras, as bruxas, as parteiras, as curandeiras, as artistas, as cientistas, as pesquisadoras, as trans, as revolucionárias, de diversos lugares, tempos e cores, guardam essa força pulsante. Toda vida importa, gritam as mulheres na rua. A vida como valor transborda na multiplicidade de combinações, de formas de saber e viver.

Mol (2008) nos inspira a pensar a vida em uma outra lógica, que não a do lucro, marcada por escolhas individualistas: a lógica do cuidado, da cooperação, do inventivo, do miúdo dos dias, do encontro com aquelas pessoas, naquele momento, em sintonia com o entorno.

Como acionar essas forças do feminino para afirmar a vida como um valor? O que nos cabe então? Ter um corpo poroso para que a vida atravesse? Como criar essas porosidades? Ser matéria sujeita às suas artimanhas?

Arrisco o reencantamento, qual seja, olhar de outra maneira que não seja só pela razão, no absoluto da ciência, mas um olhar em que haja espaço para o mistério, para o surpreendente, por que não?

Prigogine e Stengers (1997) enfatizam que a ciência, e a física em particular, tem uma responsabilidade sobre o desencantamento do mundo. A contemplação foi sendo reduzida à explicação. A existência é constrangida em uma caixa de teorias. Com isso, vamos dando as costas para o mundo e cada vez mais falando sobre ele. E perdendo os efeitos dos encantamentos do mundo sobre nós. Passamos a ser mediados pela linguagem, pela tela, pela cópia. Nosso corpo se torna raquítico e atrofiado de contatos. Ativar o feminino passa por esse com tato. Uma ciência no feminino, com os pés na terra e a alma na nuvem, uma aposta nos vínculos costurados por afetos, por saberes situados e compartilhados, que reverberem em uma Psicologia feita de intensidades e compromissos.

Para tanto, nos interessamos pela quantidade de vida que o corpo das coisas do mundo pode carregar. Como expandir a vida fazendo corpo no mundo e com o mundo?

É por onde gostaria de caminhar agora, ao trazer as experimentações que chamo de compostagem do sensível, uma ferramenta para pensar a produção de conhecimento instigada pelo feminino, atento ao singular, situada em um determinando tempo e lugar e à espera dos acontecimentos e novos vocabulários, inspirada nas ideias e afetos de Donna Haraway (1995).

 

Compostagem, o que é?

Somos parentes de tudo o que brota, cresce, amadurece, cansa, morre e renasce. Cada criança tem muitos pais, tios irmãos avós. Avós são os mortos e as montanhas. Filhos da terra e do sol, regados por chuvas fêmeas e chuvas machos, somos todos parentes das sementes, dos grãos, dos rios, das raposas que uivam anunciando como será o ano. As pedras são parentes das cobras e das lagartixas. O milho e o feijão, irmãos entre si, crescem juntos sem problemas. As batatas são filhas e mães de quem as planta, pois quem cria é criado. Tudo é sagrado e nós também o somos. Às vezes nós somos deuses e os deuses são, às vezes, umas pessoazinhas, assim dizem, assim sabem, os indígenas dos Andes. (Galeano, 2010, Parentela)

A compostagem é um evento poderoso de transformação do solo na terra. Conexões que ocorrem na floresta, entre o solo, as plantas, as árvores, que se renovam quando galhos, folhas, frutos caem e misturam-se pela ação da umidade, do sol, dos animais, do homem. Um processo de decomposição da matéria orgânica em novas composições com o sol, o ar, os fungos, bactérias e aceleradores de decomposição, como as minhocas. Ou seja, são os processos de criação e produção de vida entre seres.4

Assim, aprendemos que 52%5 do que é jogado fora é matéria orgânica, não é lixo, mas poderosa matéria que pode ser transformada em adubo, rico em possibilidades e usos. A compostagem que a natureza nos ensina é utilizada para acelerar ou repetir esse processo de renovação do solo. Produz o húmus, um composto orgânico rico em nitrogênio, fósforo, potássio, cálcio, sais minerais que alimentam e renovam o solo. A rede que se forma como resultado desses processos de mistura é sustentada por um trabalho contínuo. Na maior parte das vezes, o homem trabalha na contramão. Em vez de compor com a natureza, tem o vício de gastar toda sua energia para subjugá-la. Isso é tão impressionante que Yuval N. Harari (2012) mostra os efeitos destrutivos da ocupação do mundo pelos nossos ancestrais. Relata que já há 45 mil anos o Homo Sapiens povoava a Austrália, ao custo de uma significativa extinção da fauna, o que se repetiu há 16 mil anos na futura América. Mais próximo de nós, em 1986, dá-se o desastre de Chernobyl, uma usina nuclear, na Rússia. Esse e mais muitos outros exemplos qualificam a nossa presença no planeta como predadora. Uma busca pela sobrevivência que insiste no extrativismo absoluto. E a questão ambiental que vivemos nos coloca frente a frente com um fato grave jamais pensado: a Terra se tornar um lugar inabitável para os seres humanos.6 Ou seja, nos desenvolvemos de forma totalmente contrária à sabedoria na qual a Terra funciona: relações de troca, cooperação e na preservação da diversidade. A compostagem trabalha na contramão da extração, do esgotamento do solo, da contaminação da água, da inviabilização de outras formas de vida, que dependem dos ciclos que acontecem daquela maneira, com aquelas combinações. A compostagem faz parte do saber e da memória da vida na Terra. Um trabalho em rede para sustentar as condições de renovação da terra e uma alternativa para um bem viver.7

 

Pés de gente

Como essas ideias foram ganhando corpo em meu percurso de vida? O impacto da transformação da terra pela compostagem se fez história em mim quando ao longo dos últimos 20 anos passei a frequentar Araras, na região serrana de Petrópolis. Um bairro incrustado na Mata Atlântica, com uma natureza exuberante, à sombra da Maria Comprida, o maior monólito do Brasil, com 1.926 metros de altitude. Uma região em que o tempo corre devagar e silencioso. No entanto, apesar de tanta riqueza de flora, fauna, recursos hídricos, nossa casa se erguia em um solo totalmente degradado por ter o terreno sido usado como pasto durante muitos anos. Como boa urbanoide, o espectro de verde, terra e pássaros era muito estreito no meu horizonte. À distância tudo era igual. Mas, a mão na terra, as conversas com as pessoas, as árvores, os pássaros, tudo pacientemente foi chegando e aos poucos vieram fazer morada em nós. Hoje posso dizer que, apesar de não ser uma árvore, tenho parentescos com os verdes, em um processo vagaroso de "trans form ação". Aos poucos, a terra foi mudando e nós também.

O resultado dessa relação de misturas com a terra: aprendi que não foi somente o solo que sofreu transformações. À medida que a compostagem foi se fazendo, nós nos compostamos também. Fomos virando outros. É mágico revolver a terra com as mãos, semear, regar, sentir o cheiro da chuva, o perfume das ervas, suas múltiplas artimanhas. Acompanhar a planta que se acomoda com mais sol, a que pede mais sombra, proteger das formigas, sofrer quando a praga mata uma aroeira, ter a alegria infinda de colher o primeiro aipim. Tudo é muito. Tudo ganha narrativas pelo corpo que se cava no entre mundos. Passamos a atravessar ciclos, a ser mudas e germinar. A ter períodos de água e seca. Novo pé de gente se enraíza e o mundo vira outro, pois um mundo emerge, como diz Bellacasa (2012).

E do impacto dessas vivências nasceu a curiosidade de investigar as transformações subjetivas que esses contatos podem causar. Trabalhar a ideia de uma compostagem do sensível. Uma ferramenta que tem como foco fazer nascer pés de gente ao acompanhar os processos de subjetivação de encontros potentes na experimentação de se misturar com os elementos de mundo, de fazer tempo, de fazer presenças ao afetar e ser afetado. Experimentar outras linguagens e afinar a escuta para as diferenças. Para quê? Para criar mundos. Quiçá mais bonitos, dignos e solidários, quem sabe? Uma aposta, diante das políticas de morte que se apresentam.

Mas, como isso acontece?

Experimentando no corpo a corpo usando a imaginação diante do que está posto, fazendo do brincar uma posição política para acontecimentos.8 Se brincar é fazer e fazer se faz com o corpo, pesquisar é usar o corpo para recolher o que afeta e o que nos afeta.

Essa ideia tem inspiração em Latour (1999), que pergunta: qual seria o antônimo de corpo? Diante de algumas sugestões, ele escolhe a palavra morto. Logo, corpo é vida, movimento. Cada corpo carrega um quinhão de vida. Como aumentar a quantidade de vida? Foi essa questão que se tornou o foco de alguns trabalhos que venho desenvolvendo.

Conto uma delas que aconteceu no Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas, coordenado pelas professoras Eleonôra Prestrelo e Laura Cristina de T. Quadros, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Trabalhamos com um pequeno grupo de 10 estudantes de Psicologia, formado por mulheres, na faixa dos 18 a 35 anos, sendo quatro mulheres negras e seis mulheres brancas.

 

Pés na terra

Queridas:

Pensei numa oficina chamada "Compostagens do Sensível". Um trabalho de misturas, ruminação, sustentação, digestão de afetos, ideias, lembranças, fazeres e experimentações. Um trabalho que nos minhoque e nos ponha em estado de processualidades. Trazer para a roda a importância dos afetos na produção de conhecimento, na pesquisa, na clínica, na escrita, como o que recolhemos do impacto de um encontro com o outro, seja que outro for. Mas, nessa direção, há uma condição. É porque temos um corpo que a vida passa em nós. Sem ele, somos lembrança, se alguém assim o quiser. E quanto maior a porosidade do corpo, maior a capacidade de afetar e ser afetado. Com isso, novas conexões, leituras e escritas de mundo. Diante das nossas histórias de formação haja trabalho de desarrumação! Nos desassossegos do corpo, anunciam o que está por vir. E por que isso nos interessa? Porque amplia o nosso repertório de experiências e quem sabe nos torna mais tolerantes e acurados em nossas escutas, para inventar mais vida em um mundo mais bonito, solidário e digno. Sempre, sempre uma aposta! Junto-me a vocês nessa aposta. O que acham? Se toparem, pensarei em uma hora e meia para criar uma boa provocação.

 

Semear

Meu coração agitado, batendo de desconhecidos, chega para a oficina. O grupo se conhece das aulas de Psicologia, eu só conheço uma aluna de uma outra atividade. Convido-as para formar uma roda. Tendo um cesto ao centro, peço a cada aluna do grupo que diga o nome e que escreva uma palavra que expresse o que gostaria de plantar no encontro entre nós. O que queremos é que ali misturadas, adubadas por nossos gestos e vozes, as palavras ganhem corpo. Uma aposta. No encontro, no imprevisível e na força da compostagem.9

Assim, começa nosso trabalho. A aposta que coisas possam acontecer entre nós. Uma aposta que reverbere no dia a dia do que as alunas e o aluno contam: no atendimento a um paciente, no dia a dia em uma escola, no trabalho com famílias no hospital. Estar ao lado.

 

Afiar a ferramenta, nossa enxada: o corpo

"Oh, meu corpo, faça sempre de mim um homem que questione"

Fanon

Afinal, que corpo é esse que nos faz no mundo? Ou com o mundo?

Estamos aqui porque temos um corpo. Esse corpo é que nos torna presença, nos leva para lá, para cá, nos joga no mundo. O que pode acontecer entre nós? O que podemos fazer acontecer aqui com nossos corpos? O quanto ele diz que estamos vivos. Um corpo disponível que entre o momento em que chegamos e o agora já tem uma história.

Então, vamos pensar aqui nosso corpo como nossa ferramenta, tal qual o jardineiro com sua pá que revolve a terra, fazendo buraco, plantando, mudando a paisagem e tendo fé em que dali algo vai nascer.

Convido uma participante a experimentar cenas corriqueiras para ver o que acontece com seus movimentos, a relação com o espaço, colegas: com os pés e as mãos amarradas, levar uma bolinha numa colher, ter os ouvidos tampados e carregar uma mochila pesada com pesos nas pernas. Com o corpo alterado, como fica um abraço, dançar, correr para pegar o ônibus? Estar com as mãos ocupadas, amarradas, ou livres nos fará abraçar de um jeito ou correr de outro. As cenas ficam engraçadas e geram muitas risadas. As participantes falam da tensão e contração do dia a dia, mas também do alívio quando o corpo relaxa.

Proponho acordar o corpo, deixá-lo mais confortável através da respiração. Respirar, mexer, soltar e por fim três vezes vamos até o chão e voltamos desvestindo o corpo. Deixar a cabeça pesar e largar tudo que possa estar dificultando estarmos juntos ali em atenção. Suspiros, bocejos, olhares nos empurram para outro momento.

Agora vamos olhar à nossa volta e estabelecer uma relação com os outros corpos. Como vamos juntas ocupar esse espaço? Como criar sintonias entre nós? Proponho o que chamo de uma partitura de nós. Uma brincadeira que nos dê um ritmo para estarmos juntas. No quadro, indicações do que fazer. Se aponto o número 1, palma, número 2, bater com o pé, número 3 rodar. E vamos misturando e criando ritmos.

1 = palma

2 = pé

3 = roda

1 1 1 1 2

1 2 1 2 3

1 3 3 1 2

Muito boa a receptividade à proposta. Variações do corpo: contraído pelo medo de errar, insistência em acertar, dificuldade de dar movimento, coordená-los, as lembranças das brincadeiras de crianças, uma outra intimidade com o corpo, a vontade de tentar novamente e principalmente o prazer de brincar.

Essas atividades nos mostram a capacidade que o corpo nos dá de ocuparmos o agora. A possibilidade de experimentar um encontro, inventar um espaço, habitar o tempo, viver o que não conhecemos e estabelecer uma sintonia com quem ali está. Ou seja, nos desorganizarmos e nos organizarmos de outra maneira e, principalmente, rimos. Nada como risadas para nos aproximar.

Assim como o pensamento se organiza, o corpo também. Não como duas coisas separadas. Estar ali no grupo nos fez tocados pela voz das pessoas, a luz do dia que entrava pela janela, as cores das paredes, o barulho e o frio do ar-condicionado. O corpo é tudo isso, como uma malha entrelaçada de vários elementos. Se o corpo se organiza e segue certos procedimentos, o pensamento também. O corpo não é somente um suporte. O corpo carrega nossa carga genética, nossa hereditariedade, mas a todo instante se deixa tomar pelo que o perpassa, como também marca o espaço. É o que experimentamos diante de objetos que se oferecem. Objetos que fazem presença, ocupam espaço, desafiam, pedem negociações. Ou seja, um objeto não é morto, passivo, ele tem um corpo que interfere. Não tem uma direção única, carrega uma complexidade de usos e sentidos que a qualquer momento pode ser acionado.10 Mais uma vez pressinto uma sutileza. Quando o objeto passa a ser um elemento, pois cria uma densidade na articulação. Por exemplo, em algum momento da oficina, apagamos a luz, fomos surpreendidas pela noite que havia chegado e o prédio se revelou todo iluminado por fora. A escuridão da sala e a luz do prédio criaram outro espaço, que colocou os corpos na sala de outra maneira. Mais leves, disponíveis para dançar e circular e porque não dizer encantados com o claro escuro. Logo, existem combinações que podem imprevisivelmente aparecer e que não estão dadas. Elas se compostam ali em ato e alteram as presenças.

Até aqui a ideia que nos conduz é: somos o corpo que habitamos e com ele fazemos mundos. E com isso nos perguntamos: como nos encorpamos e nos fazemos com o mundo?

 

Compostar, "ex peri em si ações"

Sentadas em roda, ao som da música Canto a Elegguá,11 peço que à medida que forem relaxando procurem identificar o centro do seu corpo, em torno do qual se acomodam naquele instante. Ao achá-lo, ficar ali, em descanso. Se houver algum incômodo, deixar a música massagear o corpo. Sentir o equilíbrio que ele proporciona. E aí ficar. Fazer tempo. Depois, com a música seguindo, vamos experimentar o limite do próprio equilíbrio e brincar com ele. Digo que podem ficar sentadas ou de pé, se assim o desejarem. Imaginar possibilidades e brincar com elas. Sair do eixo, voltar, balançar, estender até o limite, voltar e descansar.

Quando as palavras chegam, dizem de um reencontro com o corpo. Parece que na vida que se leva, de correria e compromissos, o corpo parece que some,fica quase como uma máquina, que leva, traz, faz isso, faz aquilo, mas dissociado. O que produz a sensação de que o corpo é uma coisa e o eu é outra. Dizem que foi bom dançar, despertar lembranças e ocupar o corpo; uma disse que estava com dor e resistiu aos movimentos, mas depois se deixou levar pela música e, quando viu, esqueceu; outra ficou aflita de fazer a tarefa de achar o centro, e, nervosa, perdeu muito tempo tentando racionalizar e que não deixou o centro achá-la. Se deu conta de que, quando fazia teatro, tinha uma relação diferente com o corpo, que estava mais flexível, e como sente falta de mexer com o corpo depois que entrou na faculdade e muitas coisas foram ficando de fora. Parece que hoje seu corpo carrega uma cabeça enorme todas riem. Outra falou do medo de errar, de não conseguir dançar e demorou a entrar na dança. Primeiro, olhou o que as outras faziam, e aí, em algum momento, passou a ouvir a música e foi muito bom olhar o seu corpo.

Em seguida, já encorpadas, coloco uma outra música,12 peço para apagar a luz e, ohhhh,levamos um susto.Surge a beleza da universidade à noite! Uma paisagem que se perde no dia a dia corrido. A música e o escuro fazem uma boa combinação. Vira uma brincadeira de ouvir a música e depois deixar as notas produzirem movimentos com o seu corpo. Tentar não controlar o movimento, mas seguir o movimento em sua continuidade. Se deixar conduzir.

O tom do grupo é mais leve, trocam as sensações e lembranças de ficarem mais soltas, e como percebem que o corpo pode estar de outras maneiras, menos duro, contraído e enrijecido. Que nos instantes um corpo aproxima, afasta, aperta, solta, contrai, relaxa e cotidianamente nos leva a uma aventura.

À medida que as participantes ocupam o espaço, corpos surgem na roda. No encontro com a música, a luz, a cadeira, depois o chão e, em roda, ganham novos modos de estar ali. Decompõem, fermentam, tornam-se outras. Como na compostagem da terra, transformam-se em outras combinações. Os ritmos cardíacos e respiratórios aceleram e desaceleraram; aproximações, afastamentos, lembranças desenham um novo espaço. Assim começamos de um jeito, mas coisas nos aconteceram e nos redesenharam.

Ou seja, por meio de ações e encontros, um corpo atualiza-se e toma uma posição. É muito interessante pensar o que pode um corpo (Latour, 2007), o que ele pode na clínica, na pesquisa, em uma sala de aula, em uma situação de emergência. O quanto ele pode fazer diferença dependendo de como habita um espaço. Ou seja, o corpo é relacional. Na oficina, o corpo aparece com a carga que cada um acumulou ao longo de sua vida, mas ele pode se compor e atualizar-se no encontro. Ele questiona, resiste, insiste. O modo como nos relacionamos no espaço fez surgir outros corpos. Quando, em roda, sentamos no chão, o estar ali foi outro. Logo, o modo como nos relacionamos com o espaço se deu por acordos que se fizeram e que produziram outros modos de estar juntos.

Então, o que é um corpo? Uma superfície de encontros? Uma matéria que marca e se deixa marcar pela vida que o perpassa? Quanto maior porosidade, mais passagens, mais capacidade de ocupar espaços, no jogo de decompor e recompor. O corpo é a fonte do encontro. Se estamos ali é porque somos esse corpo desenhado por muitos encontros. Escuto a jovem que carrega a gratidão por uma pessoa que a olhou amorosamente e isso a fez chegar à universidade; uma outra, por estar viva e querer abrir espaço para que tantas outras mulheres tenham garantido o direito de viver e estudar, porque, como sabemos, dependendo da cor e de onde se vem, os obstáculos são muitos.

Assim, com os pés, com a música, com um poema, com um abraço, fomos fazendo corpo, e os gestos alcançando lugares onde as palavras não chegam. Cheios de inesperados, o encantamento com a escuridão da noite e as luzes da universidade, a sensação de movimentos. Se sustentamos a ideia inicial de Latour do corpo como vivo, valorizar um corpo é valorizar a porção de vida que ele carrega e das intensidades que o tomam.

Nossa herança ocidental separa corpo e mente. Valoriza o pensamento e desvaloriza o corpo. Separa em gênero: o homem pensa, pois tem razão; a mulher sente, pois é coração. Estigmas que repetidos apartaram e apartam as mulheres. Só criando muito caso, e coletivamente se enredando, as mulheres desequilibram essas verdades tão repetidas, já nos alertam Despret e Stengers (2011). A racionalidade valoriza um tipo de pensamento: causal, não contraditório, previsível, racional. A questão é que as contradições habitam o corpo, a palavra pode até separar, mas o corpo junta e cria tensão. Quando a contradição nos toma, as certezas desestabilizam e surge o impermanente. É o que o corpo nos lembra a todo instante, a finitude. Porque, enquanto corpo, somos vivos, e ser vivo é carregar o agora, mas a qualquer hora, não mais.

 

Pés de palavras

"Sentadas em roda no chão distribuo um pedaço de argila. Peço que de olhos fechados brinquem com a argila e depois lembrem-se de um pedaço de suas histórias e marquem a argila, deem uma forma para que fique registrada uma parte dessa história. Marcar no corpo da argila uma história sua. Argila e palavras. Aos poucos, dos pedaços de argila surge um buraco, que vira um umbigo, o ponto de partida do encontro que uma participante terá com o pai que conheceu há pouco, apreensiva e cheia de expectativas de que esse buraquinho vire uma passagem de aproximações; uma outra participante apresenta uma onda que se multiplica como uma pedra jogada num lago, ondas de alegria de ter passado para a faculdade e a revolução que isso causou em sua vida. Mas, também o medo de não dar conta dos estudos, ou da própria universidade pública não se sustentar; por isso, valoriza as aulas, as atividades, sente que faz parte de uma rede que resiste e aposta. Outra aluna fala da saudade de coisas que abandonou, o violão, o canto, traz um envelope que carrega uma carta para ela mesma, para não esquecer do que é importante. Outra faz uma pipa para lembrar sempre de brincar em sua vida, sua dissertação resgata a importância do brincar como uma forma de manter a vida e habitar a cidade. Uma outra conta da briga com a argila, fechou os olhos e achou que fazia o que pensava, quando abriu os olhos novamente, a maior decepção. Saiu outra coisa, completamente diferente do que havia imaginado. Ficou legal, mas pensa que talvez seja esse o seu maior desafio: conversar com o imprevisível e fazer disso um caminho".

O que aprendemos aqui? Primeiro, o diálogo entre o corpo e a palavra. Pensar com o corpo e criar narrativas a partir da experiência de tocar e ser tocado pela argila, disforme, gelada, grudenta, inodora, cinza. Seguir o pensamento em suas conexões, em um estado de fronteira entre o eu e um outro. E ficar. Mas, como ficar de um jeito que seja interessante, que faça acontecer deslocamentos?

Brincando, pois como diz Donald Winnicott (1975, p. 75) brincar é condição de vida: "Brincar é algo além de imaginar e desejar, brincar é o fazer." Para ele, o que está em jogo no brincar é a busca da própria razão de existir. Em qualquer processo terapêutico, há uma pergunta que o perpassa o tempo inteiro: "Pelo que você vive? Qual é a sua motivação básica?" (Winnicott apud Winnicott et al., 1994, p. 161).

Uma boa pergunta para nós pesquisadores: pelo que você pesquisa? O que o implica nesse campo? Refletir sobre essa pergunta nos ajuda a avaliar o tamanho do brincar que nos compromete no campo de nossas atuações. A intensidade, a continuidade e o compromisso para sustentar um percurso que o tempo todo estará desafiando, exigindo novas formas. Ou seja, criar é estar em movimento. Logo, aproprio-me do brincar em Winnicott como uma condição de invenção de si e de mundo, no fazer, misturar e compor. Elementos heterogêneos se misturam, mas não se apagam, reinventam-se na tensão que sustentam entre si.

 

Colheita

O que aconteceu? O que aprendemos nesse encontro? Peço que peguem na cesta em que ficaram as palavras plantadas no início do encontro, uma palavra. E comentem o que a palavra tirada lhe traz de significado a partir do que foi vivido em grupo. As palavras ressurgem com outras camadas: misturar, cuidar, revolver, compostar, saber fazer e saber esperar, recolher, começar de novo, rede, conhecimento, prática.

Ao final, as palavras são tiradas da cesta e se enriquecem de outros usos e sentidos, na medida em que as participantes associam aos seus trabalhos e interesses. Por exemplo, quando refletem sobre a cidade como um espaço de encontros e aprendizagens, constatam que a cidade não é única, são muitas, e como seus corpos são marcados por ela. Outra aluna aponta o cuidado de uma escuta que não reproduza a violência, atenta para uma formação que inclua os afetos. Cada participante se misturou e se apropriou do encontro com múltiplas possibilidades de fazeres.

Também marco os processos que em mim ocorreram. Foi muito interessante chegar em um grupo desconhecido. A ansiedade foi se transformando na alegria de compartilhar, experimentar, descobrir. As chegadas do imprevisível.

O tempo de uma hora e meia mostrou que, apesar de minha apreensão se seria suficiente, com aquelas pessoas e naquele lugar, conseguimos dobrar o tempo e cuidar dos processos que ali surgiram. Também foi muito rico considerar que o que estava fora da programação produziu surpresas interessantes (apagar a luz, as conversas entre as atividades e não somente na avaliação final, a inclusão da argila, e não de um conto como havia pensado, uma aposta do uso do tato como forma de pensar e produzir conhecimento). Mudanças que aconteceram e que pediram uma atenta escuta aos processos que aconteciam.13

Por mais que se programe um trabalho, há um espaço que se oferece vazio, para em conjunto ser ocupado ou não. O importante é ficar sensível ao tempo de um processo e às suas particularidades. Nesse sentido, há uma ideia que chamo de "memória do agora", que acontece e se registra no tempo do acontecimento. Por exemplo, uma palavra, um gesto, um silêncio e um mal-estar podem ser sinais que pedem espaço no grupo. Ao se fazerem memória, podem voltar e serem usados para dar um sentido construído naquele grupo. Algo da ordem de um conhecimento situado. Ou seja, além de serem percebidos, não devem ser esquecidos. Se os percebermos, esses pequenos lampejos podem nos indicar desvios de rotas e possibilidades de encontros.

Considerar a compostagem do sensível como expressão do feminino tem sido uma ideia útil para pensar processos de produção de subjetividade, que por diferentes linguagens compõem e decompõem a vida, enquanto intensidade e multiplicidade de sentidos. São reflexões iniciais de um caminho que se vem fazendo.

Depois dessa travessia, retomo a questão inicial: ao fazer da vida um valor, o que pode o feminino compostar? Diante da necropolítica, que estrutura o Estado com uma política de morte, o quanto práticas políticas para a vida e de vida ganham uma urgência em nossos trabalhos? Reverberar essa pergunta é uma prática de re-existência.

O que pode o feminino compostar?

Pode imaginar outros mundos. Pode inventar combinações para sustentação e criação de novos laços. Outras versões em que nossos laços não sejam de opressão, e sim de solidariedade. Modos de convivência que deem mais densidade ao tempo e ao espaço. Pode dar mais porosidade ao corpo para que ele afete e se deixe afetar e nunca deixe de se interrogar. Por isso não perder a capacidade de criar caso com o que está posto e gerar rupturas, como pequenas mortes para outras formas de vida. Para tanto dar mais quantidade de vida ao corpo de si e do outro para expandir o mundo. Pode proliferar sentidos que ampliem nosso repertório de modos de vida, atento ao que está invisível, silencioso e frágil. Pode inventar novas sintaxes, vocabulários, linguagens, escritas que deixem ecoar no mundo o raro do singular. Pode afirmar a vida como mistério que escorre entre os dedos, nos perpassa, e deixa encantamentos, na constante luta de práticas de reexistências. Pode compostar outras formas de subjetividade que se componham com outras espécies, borrando as fronteiras entre cultura e natureza, humanos e não humanos. Entendendo como as árvores que, quanto maior a diversidade, maior a capacidade para suportar a seca, as pragas, pelo tanto de marcas experimentadas no tempo. Pode levar fé que a multiplicidade das formas, compostadas pelas misturas, possam fazer nascer pés de gente no encontro com o outro, mais potentes, solidários e diversos. Uma aposta, sempre!

 

Referências

Bellacasa, M. P. (2012). Nada vem sem o seu mundo: pensando com cuidado. The Sociological Review Publication, 60-62.

Davis, M., & Walbridge, D. (1982). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In M. Davis & D. Walbridge. Limite e espaço. Rio de Janeiro: Imago Editora.         [ Links ]

Despret, V., & Stengers, I. (2011). Les faiseuses d'histoires: ce que les femmes font à la pensée. Paris: La Découverte; Les Empêcheurs de Penseren Rond.         [ Links ]

Federici, S. (2017). Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante Editora.         [ Links ]

Galeano, E. (2010). De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: LPM Editores.         [ Links ]

Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, 5, 7-41.         [ Links ]

Harari, Y. N. (2018). Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&P.         [ Links ]

Ingold, T. (2015). Estar vivo: ensaios sobre movimentos, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Latour, B. (2007). Como falar do corpo?: a dimensão normativa dos estudos sobre a ciência. In B. Latour. Objetos impuros: experiências em estudos sociais da ciência (pp. 40-61). Porto: Afrontamento.         [ Links ]

Mbembe, A. (2016). Biopoder soberania estado de exceção política da morte. Arte & Ensaios Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, 32, 122-151.         [ Links ]

Mol, A. (2008). The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. London: Routledge.         [ Links ]

Weber, M. (1985). A ética protestante e o espírito do capitalismo (4a ed.). São Paulo: Pioneira.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1975a). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Prigogine, I., & Stengers, I. (1997). A nova aliança. Brasília: UNB.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 26/10/2019
Aceito em: 27/7/2020

 

 

1 Dados da Organização Pan-americana de Saúde e Organização Mundial de Saúde. Retirado em 15 outubro, 2019, de https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5671:folha-informativa-suicidio&Itemid=839.
2 Entrevista do escritor Mia Couto. Retirado em 15 outubro, 2019, de https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/tao-destruido-quanto-a-minha-cidade-diz-mia-couto-sobre-ciclone-em-mocambique/.
3 Reportagem com populações ribeirinhas do rio Doce. Retirado em 15 outubro, 2019, de https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2016/05/13/interna_gerais,762194/ribeirinhos-ao-longo-do-rio-doce-ainda-sofrem-efeitos-do-mar-de-lama.shtml.
4 "Compostagem é o nome do processo de decomposição de matéria orgânica (principalmente restos de frutas, verduras e legumes). O resultado desse processo é o adubo, que é usado para a fertilização do solo. A compostagem é realizada por micro-organismos e animais invertebrados, que, na presença de umidade e oxigênio, se alimentam dessa matéria e propiciam que seus elementos químicos e nutrientes voltem à terra. Esta técnica vem sendo utilizada há mais de cinco mil anos pelos chineses. Este processo enriquece a terra em nutrientes para plantas; evita queimadas que poluem o ar; melhora a estrutura do solo; melhora a drenagem, retém água nos solos arenosos e reduz a necessidade de usar herbicidas e pesticidas." Recuperado em 15 outubro, 2019, de https://cicloorganico.com.br/#.
5 Retirado em 15 outubro, 2019, de http://www.meioambiente.pr.gov.br/arquivos/File/cors/kit_res_5_organico.pdf.
6 O que já se anuncia em algumas regiões do planeta que vivem de forma dramática com muitos conflitos por conta da escassez da água. Recuperado em 15 outubro, 2019, de https://exame.abril.com.br/economia/10-paises-em-risco-extremo-de-secar/.
7 Bem viver é um conceito político, econômico e social que tem por referência a visão dos povos originários da América: Sumak Kawsai em quéchua; Suma Qamaña em aymara; Tekó Porã, em guarani. É hoje apresentado como uma alternativa para uma vida mais justa, ambientalmente sustentável, economicamente solidária, que deve ser buscada simultaneamente pelo Estado e pela sociedade (Raiz, movimento cidadanista, Recuperado de http://www.raiz.org.br/teko-pora; Acosta, 2016).
8 Discussão no artigo da autora, no prelo, "O lúdico na insustentável leveza da pesquisa".
9 Passo a usar uma nova notação para apresentar fragmentos do registro dos encontros realizados com um grupo de alunos de Psicologia.
10 Talvez aqui seja necessário inventar outros nomes, pois como a compostagem da terra nos ensina, não estamos falando de uma relação entre sujeito e objeto, mas de elementos que, em rede, tecem e inventam uma relação. A se pensar, parece-me um tema que precisa mais vagar.
11 Elleguá, música cantada à capela pelo grupo vocal feminino cubano Sexto Sentido.
12 Música Pra ela dançar, de Pedro Carneiro Silva, do álbum Água Verde.
13 A partir do tema que é proposto, faço uma programação de como encaminhar as questões. Nesse roteiro, seleciono alguns materiais. No entanto, sempre carrego uma mala com vários outros materiais que, dependendo dos acontecimentos, mudo na hora e proponho algo fora do planejado. Até hoje isso sempre acontece e acredito que é um bom sinal que seja assim. Os processos dos encontros têm uma gramática própria e é preciso ouvi-los porque são construções conjuntas.

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