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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.3 São João del-Rei July/Sept. 2020

 

O Polo de Estudos Gestálticos como espaço de tecitura entre ensino, pesquisa e extensão: uma Psicologia que se faz no feminino

 

The Pole of Gestaltic Studies as a Weaving Space that Binds Teaching, Research and Extension: Doing Psychology in a Feminine Way

 

El Polo de los Estudios Gestálticos como espacio de tejido entre enseñanza, investigación y extensión: una Psicología que se realiza en el femenino

 

 

Deborah da Silva de SouzaI; Raissa da Costa SilvaII; Nicole Velloso de OliveiraIII; Angélica dos Santos SiqueiraIV; Eleonôra Torres PrestreloV; Beatriz Zanini de Britto SilvaVI; Beatriz Schmidbauer PennaVII; Monique Lima dos Santos BezerraVIII

IDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS/Uerj). Mestra em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS/Uerj). Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). E-mail: deborah_de_souza@yahoo.com.br
IIGraduanda em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Estagiária bolsista do Projeto de Extensão "GAPsi - Grupos de Apoio Psicológico". E-mail: raissacosta2509@gmail.com
IIIGraduanda em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Estagiária não bolsista do Projeto de Extensão "GAPsi - Grupos de Apoio Psicológico". E-mail: vellosonicole@gmail.com
IVGraduanda em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Estagiária bolsista do projeto de extensão "COMtextos: Arte e Livre Expressão na Abordagem Gestáltica". E-mail: angelicasoulmusic@gmail.com
VProfessora Assistente e Supervisora de Estágio Especializado em Gestalt-Terapia no Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestra em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do Programa de Extensão "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas" e dos Projetos de Extensão "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas contemporâneas" e "GAPsi- Grupos de Apoio Psicológico"
VIGraduanda em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ex-estagiária não bolsista do Projeto de Extensão "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas". E-mail: btrz.zanini@gmail.com
VIIGraduanda em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Estagiária não bolsista do Projeto de Extensão "COMtextos: Arte e Livre Expressão na Abordagem Gestáltica". E-mail: pennabeatriz26@gmail.com
VIIIGraduanda em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ex-estagiária bolsista do Projeto de Extensão "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas". E-mail: limamoniquesb@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste artigo, temos o intuito de apresentar o Polo de Estudos Gestálticos, grupo de estudos que se faz constituído por três projetos de extensão, "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas", "GAPsi - Grupos de Apoio Psicológico", "COMtextos: Arte e Livre Expressão na Abordagem Gestáltica" e pelo projeto de pesquisa "Versões do Sofrimento Psíquico Construídas por Jovens na Contemporaneidade: Articulações entre a Teoria Ator-Rede e a Clínica Gestáltica". Valendo-nos da metáfora da tecitura, vamos tecer juntas esse espaço que chamamos de Polo, onde cada um dos nossos fazeres é representado por um tipo de linha, costurando-os entre ensino, pesquisa e extensão, a partir de uma Psicologia que se faz no feminino. Apoiadas em Annemarie Mol, Laura Perls, Fritz Perls, Paulo Freire, entre outras(os), além das nossas experiências, propomos aqui, artesanalmente, construir um modo coletivo de resistir aos padrões rígidos da academia, por meio de um fazer cuidadoso, situado, implicado e sensível.

Palavras-chave: Ciência no feminino. Abordagem gestáltica. Ensino. Pesquisa. Extensão.


ABSTRACT

In this article, we intend to present the Pole of Gestaltic Studies, a study group made up of three extension projects, "Gestaltic Laboratory: Contemporary Configurations and Practices", "GAPsi - Psychological Support Groups", "COMtextos: Art and Free Expression in the Gestaltic Approach" and the research project "Versions of Psychic Suffering Built by Young People in Contemporary Times: Articulations between the Actor-Network Theory and the Gestaltic Clinic". Drawing on the metaphor of weaving, we will weave together this space we call the Pole, where each of our doings is represented by a kind of thread, weaving them between teaching, research and extension on a Psychology that is done in the feminine. Supported by Annemarie Mol, Laura Perls, Fritz Perls, Paulo Freire, among others, in addition to our experiences, we propose here to build a collective way of resisting the rigid standards of the academy, from a process careful, situated, implicated and sensitive.

Keywords: Science in the feminine. Gestaltic approach. Teaching. Search. Extension.


RESUMEN

En este artículo, tenemos la intención de presentar el Polo de los Estudios Gestálticos, un grupo de estudio compuesto por tres proyectos de extensión, "Laboratorio Gestáltico: Configuraciones y Prácticas Contemporáneas", "GAPsi - Grupos de Apoyo Psicológico", "COMtextos: Arte y Expresión Libre en el Enfoque de la Gestalt" y el proyecto de investigación "Versiones del Sufrimiento Psíquico Construido por los Jóvenes en los Tiempos Contemporáneos: Articulaciones entre la Teoría del Actor-Red y la Clínica Gestáltica". Basándonos en la metáfora del tejido, tejamos juntos este espacio que llamamos Polo, donde cada uno de nuestros actos está representado por una especie de hilo, entretejiéndolos entre la enseñanza, la investigación y la extensión desde una Psicología que se realiza en lo femenino. Con el apoyo de Annemarie Mol, Laura Perls, Fritz Perls, Paulo Freire, entre otros, además de nuestras experiencias, proponemos aquí construir una forma colectiva de resistir los rígidos estándares de la academia, a través de una acción cuidadosa, situada e implicada y sensible.

Palabras-clave: Ciencia en el femenino. Enfoque de la Gestalt. Enseñanza. Investigación. Extensión.


 

 

Introdução

O Polo de Estudos Gestálticos1 é um grupo de estudos constituído por um programa de extensão denominado "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas", formado por três projetos de extensão, um que leva o mesmo nome, o denominado "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas", o "GAPsi - Grupos de Apoio Psicológico", o "COMtextos: Arte e Livre Expressão na Abordagem Gestáltica", e por um projeto de pesquisa intitulado "Versões do Sofrimento Psíquico Construídas por Jovens na Contemporaneidade: Articulações entre a Teoria Ator-Rede e a Clínica Gestáltica", todos vinculados ao Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IP/Uerj), e norteados, sobretudo, por uma orientação teórico-metodológica gestáltica. Com essa raiz comum, acreditamos serem mais potente os estudos e encontros que permeiam a nossa atuação acontecerem de forma conjunta e não mais isolada em pequenas equipes.

Tal junção possibilitou - e possibilita - trocas de conhecimentos nas práticas realizadas, criando, assim, um espaço de tecitura que se dá a partir da costura entre o aporte teórico e o compartilhamento das experiências particulares de cada projeto. Para abrir espaço para a feitura dessa rede, reunimo-nos quinzenalmente, estagiárias e coordenadoras dos projetos, para a discussão de textos e reflexões acerca de nosso fazer, com o intuito de irmos afinando os pontos, as tramas, tanto na construção do pensamento quanto das relações do grupo no que denominamos de "Polo de Estudos Gestálticos", um lugar de encontro e afetações na produção de fazeres. Valendo-nos da metáfora com a ação de tecer, o Polo2 seria como o tear, um dispositivo no qual entrelaçamos as linhas de atuação dentro e fora da Universidade. Nesse sentido, vamos formando uma trama construída por várias mãos, a partir da qual pensamos uma forma potente de unir ensino, pesquisa e extensão, que não se prenda a um fazer rígido, mas um fazer artesanal, tal qual a arte da tecelagem. Um fazer que foge à produção em série e reflete o trabalho de criação cotidiana do seu artesão, um fazer constante, um fazer que se faz no caminho, no processo, não podendo ser definido a priori.

Posto isso, iremos iniciar a tecitura do nosso trabalho puxando a linha do programa de extensão "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas", composto pelo projeto que carrega o mesmo nome,3 tendo como coordenadora a professora Eleonôra Torres Prestrelo e como vice-coordenadora a professora Laura Cristina de Toledo Quadros, sendo o primeiro dos projetos de extensão na área. Tal projeto tem como proposição trazer para o espaço acadêmico fenômenos contemporâneos presentes em nosso cotidiano, tais como a medicalização da vida, o crescimento do número de suicídios, entre tantos outros, e pensá-los sob uma abordagem gestáltica. Pensamos que nem sempre a academia está vinculada aos fenômenos cotidianos, ao que está sendo produzido nas relações sociais e não se constituíram, ainda, em grandes demandas para as quais a universidade orienta suas pesquisas. São os acontecimentos diários que permeiam nossas ações e que nos "fazem fazer" (Latour, Rifiotis, Petry & Segata, 2015),4 produzindo efeitos no rastro dos diversos modos de existência presentes no mundo em que vivemos. Nesse fazer orientado pela abordagem gestáltica, organizamos eventos de cunho teórico vivencial que proporcionam a elaboração de um conhecimento vivo, que passa por aquilo que nos toca, um conhecimento produzido com o outro e não sobre o outro (Moraes, 2010). Dessa forma,

Incluir o outro como detentor de um saber implica em deslocar o cientista de uma posição de poder para o lugar daquele que formula suas questões a partir de uma experiência vivida onde o pesquisador e o pesquisado são afetados mutuamente e, dessa forma, participam igualmente do conhecimento que vai sendo ali constituído. (Moraes, 2010, como citado em Prestrelo & Quadros, 2011, p. 179)

O projeto surgiu a partir da demanda das(os) alunas(os) da graduação do Instituto de Psicologia/Uerj em obter mais aproximação com a abordagem gestáltica, ainda representada de forma escassa na grade da graduação. Diante de um histórico de valorização do conhecimento teórico na Universidade, o projeto visa estabelecer uma conexão sensível entre o conhecimento produzido na academia e os fenômenos contemporâneos, a partir de uma apreensão do mundo por meio do sentir. Assim, o Laboratório Gestáltico contribui para a formação das(os) futuras(os) psicólogas(os) no caminho do resgate de uma sensibilidade ativa, pensando temas que se destacam como figura em nosso cotidiano, aproximando-nos de uma "vida vivida". Com ações abertas ao público, sempre em um movimento de troca com a comunidade, promove uma ponte entre o espaço acadêmico e o mundo, estabelecendo um processo de co-construção do conhecimento.

É uma proposição do programa valorizar o conhecimento elaborado por meio do contato com "aquilo que nos passa", priorizando então atividades que sejam em formato de oficinas, rodas de conversas e ações que alcancem mais apuradamente a dimensão sensível na elaboração do conhecimento.

Sem dúvida, há um saber sensível [grifo do autor], inelutável, primitivo, fundador de todos os demais conhecimentos, por mais abstratos que estes sejam; um saber direto, corporal, anterior às representações simbólicas que permitem os nossos processos de raciocínio e reflexão. E será para essa sabedoria primordial que deveremos voltar a atenção se quisermos refletir acerca das bases sobre as quais repousam todo e qualquer processo educacional, por mais especializado que ele se mostre. (Duarte Jr., 2000, p. 14).

Desse modo, alinhado aos princípios norteadores da abordagem gestáltica, nosso trabalho se desenvolve resistindo aos modelos estabelecidos no padrão acadêmico tradicional, criando conexões e fazendo redes. Pensamos no Laboratório Gestáltico como uma linha de lã, composta por vários fios. No trabalho com a lã, podem-se utilizar os fios juntos, separados, ou uni-los a outros fios. Pensamos esse projeto como um fazer que começou e foi se tecendo em outras tramas, fortificando-se, unindo-se a outros fios e trajetos, formulando paisagens diversas.

Continuando a nossa tecitura, apresentaremos outro projeto que se fez como efeito das tramas tecidas: o "GAPsi - Grupos de Apoio Psicológico", um projeto de extensão que, atualmente, se propõe a acolher a comunidade discente da Uerj, tanto da graduação como da pós-graduação, dos diversos cursos, desde a sua entrada na Universidade até os demais períodos, sendo coordenado pela professora Eleonôra Torres Prestrelo. Arraigada em um modelo de educação tradicional, a Universidade muitas vezes se configura como um espaço de produção de invisibilidades e cobranças excessivas. Considerando os efeitos disso sobre as(os) alunas(os), tal projeto foi pensado para oferecer acolhimento, sobretudo, àquilo que é chamado de sofrimento difuso, o qual apresenta inúmeros sintomas, como queixas somáticas inespecíficas, nervosismo, mal-estar e insônia (Fonseca, Guimarães &Vasconcelos, 2008).

O GAPsi5 utiliza como orientação teórico-metodológica a abordagem gestáltica de trabalho em grupo e, quando realiza rodas de cuidado com grandes grupos (como na semana de calouros e eventos de Psicologia), se apoia na metodologia da Terapia Comunitária, a qual foi desenvolvida por Adalberto Barreto (2005) para o trabalho com grandes grupos em situação de sofrimento. Esse projeto também representa, no Instituto de Psicologia da Uerj, uma das poucas possibilidades de estágio em trabalho com grupos, prática tão importante, inclusive, para a formação de profissionais que vão atuar na rede pública de saúde. Nosso projeto acredita que o cuidar se faz com o outro, nunca está dado a priori, e que é diferente das práticas individuais. No grupo acolhemos cada um que chega à nossa sala com a sua experiência de vida, cada pessoa fala por si e exercita a escuta do outro, dando-se conta de nossa condição de interdependência. O objetivo dos grupos não é psicoterapêutico, mas de criação de redes de apoio e cuidado solidárias e de suporte coletivo, em uma ação preventiva de adoecimento e de promoção de saúde. Assim sendo, afirmamos nossas ações em seu caráter ético-político: povoar o mundo com práticas de cuidado que se façam em resposta ao que aparece. Um fazer que nos remete à maciez das linhas de algodão, agradável ao toque, que pode aquecer as mãos da tecelã e que, nessa trama, faz uma malha que chama ao acolhimento e ao sentir os sentidos. Uma linha de algodão é firme, resistente, indicada para tecer tecidos com a mesma composição, o que nos evoca a um fazer como esse que se desdobra na Uerj, para alunas(os) também da Uerj.

Continuando a composição de nossa tessitura, apresentamos o projeto de extensão "COMtextos: Arte e Livre Expressão na Abordagem Gestáltica", coordenado pela professora Laura Cristina de Toledo Quadros. O COMtextos6 tem como proposta fundamental desenvolver um espaço de livre expressão por meio de recursos artísticos, permitindo o resgate da sensibilidade, uma compreensão ampliada de si mesmo, bem como a reconfiguração do sofrimento e de enfrentamentos cotidianos ao compor com a comunidade um trabalho que vai ao encontro de propiciar movimentos de cuidado, mesmo em contextos desafiadores. Nesse sentido, apoiamo-nos na abordagem gestáltica e utilizamos recursos artísticos, tais como literatura, poesia, música, pintura, dança, escultura, entre outros, com o intuito de propor um espaço onde a palavra seja reconfigurada e recriada, ampliando as possibilidades de autocompreensão. Destarte, ao utilizarmos elementos artísticos como forma de expressão, pretendemos re-unir, no sentido gestáltico, os vários aspectos que perpassam o nosso viver. Segundo Rhyne (2000), na experiência de contato com a arte, ampliamos nossa compreensão de como nos percebemos e também de como percebemos o mundo.

Nosso projeto, ao longo de quase cinco anos, vem trabalhando com populações consideradas excluídas, marginalizadas. Com isso, já realizamos oficinas, por exemplo, com: meninas adolescentes em situação de risco e em processo de reinserção familiar e social, acolhidas na Casa Viva das Meninas; populações em situação de rua usuárias de crack e outras drogas; crianças de 2 a 14 anos acolhidas em uma Unidade de Reinserção Social no Rio de Janeiro; educadores sociais também de uma Unidade de Reinserção Social no Rio de Janeiro; e crianças de uma escola pública do Rio de Janeiro. Percebemos com essas experiências uma relação construída a partir do entrelaçar entre arte, ciência, aprendizagem, Psicologia, vida, crianças, adolescentes e adultos que acompanhamos e a equipe extensionista. Uma aventura ao desconhecido que nos espera a cada oficina que realizamos e as descobertas por intermédio de histórias de resistência que transbordam pelas mãos, pelas palavras e pelos gestos afetivos do que é produzido em cada atividade, em cada encontro.

Desse modo, trazemos para o COMtextos a linha matizada, que tem em sua proposta fundamental o entrelaçar de diversas cores e nuances, e com a surpresa de como uma produção com essa linha irá se desdobrar. Assim, a linha matizada, como também o COMtextos, constrói por meio da arte do tecer, do fazer com diferentes recursos de tons, o transbordamento de cores de um trabalho vivo, que começa de uma forma, se transforma em cada entrelaçar, em cada ação que se propõe, e possibilita o encontro com a criatividade e com a possibilidade de acolher outras formas de ser, sentir, transbordar e afirmar potências de vida.

Por último, fechamos a introdução da nossa tecitura apresentando o projeto de pesquisa "Versões do Sofrimento Psíquico Construídas por Jovens na Contemporaneidade: Articulações entre a Teoria Ator-Rede e a Clínica Gestáltica". Coordenado pela professora Laura Cristina de Toledo Quadros, o projeto tem como proposta investigar com jovens no Rio de Janeiro a noção de sofrimento a partir das experiências vividas por eles, considerando como elas são reconhecidas, narradas e nomeadas, colhendo versões do sofrimento construídas pela própria compreensão daqueles que o vivenciam e como elas são compartilhadas. Para isso, busca construir um espaço de acolhimento a jovens de 18 a 27 anos, por meio de grupos semanais, com duração de uma hora e meia de atendimento psicoterápico, no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Tal projeto de pesquisa iniciou-se em 2014 a partir de um grupo misto, aberto a mulheres e homens, e permaneceu por algum tempo nesse formato, tendo como recorte apenas a idade. Contudo, a partir de demandas que surgiram no SPA da Uerj em 2017, a proposta do grupo foi reestruturada para acolher apenas mulheres. Com isso, seguimos esse formato de atendimento a grupos de jovens mulheres até o presente momento (2019.2).

O projeto de pesquisa se fundamenta teórica e metodologicamente na abordagem gestáltica e na Teoria Ator-Rede (TAR), reconhecendo a relevância de acompanhar e descrever as práticas no fluxo dos acontecimentos a partir de um fazer situado, implicado e afetado, com o intuito de desdobrarmos um saber local, marcado (Haraway, 1995). Com isso, abordamos esse tema também o considerando um fenômeno em rede. Logo, não nos referimos a uma realidade individualizada e interiorizada, mas sim às configurações que envolvem a pessoa em relação ao mundo que a afeta - e no qual ela também interfere numa relação de mutualidade - e como esse processo dialógico se manifesta. Assim, nosso campo de interesse com essa pesquisa é de acompanhar como se dão as experiências cotidianas dessas jovens que nos chegam ao SPA, bem como identificar o modo que elas reconhecem o que lhes imprimem dor e sofrimento existencial. Com isso, trazemos aqui a linha de seda para compor esse tecer, pois esse é um tipo de linha que, apesar de fina e flexível, é forte e constrói um trabalho que não deixa buracos, arrematando diferentes tipos de tecido, e criando firmeza e resistência num fazer. Seguimos então a pista da linha de seda ao afirmarmos o grupo como um espaço de compartilhamento, de expressão e reconfiguração de forma mais flexível do sofrimento, de construção de uma rede de suporte firme, do apoiar e ser apoiada, ao afirmar a vida e seguir resistindo, por intermédio de encontros que preenchem buracos nos vazios que muitas vezes nos deparamos na contemporaneidade.

Inspiradas por Quadros (2015) ao nos apresentar o "pesquisar como prática artesanal" e desdobrar que uma pesquisa está sujeita a um fazer não linear, em que cada campo convoca peculiaridades e ações diferenciadas em um trabalho manual, feito um a um, apresentamos os projetos que compõem o Polo, a partir de diferentes linhas, de lã, de algodão, matizada e de seda, que são convocadas como metáforas ao pensarmos nossas práticas, que se tornam plurais com narrativas que se encontram e que dizem sobre as experiências em cada fazer. Ações de pesquisa, ensino e extensão que transbordam linhas, com diferentes cores, texturas, pontos, movimentos e possibilidades. As linhas dos projetos vão tecendo nossos encontros quinzenais no Polo Gestáltico, elas seguem trajetos, voltam pontos, desfazem casas, entrelaçam-se com outras linhas, arrematam e constroem uma rede de sustentação e afirmação dos nossos trabalhos.

Posto isso, nos apoiamos para a construção do presente artigo numa rede de autores(as) como: Fritz Perls e Laura Perls - sua esposa -, muitas vezes não mencionada na história da abordagem e que retomamos em nossos estudos por a entendermos como personagem central na criação dessa forma de apreensão do viver que se desdobra numa abordagem clínica, a Gestalt-Terapia e outras práticas gestálticas, que nos apoiam em nossos projetos; o educador Paulo Freire, nosso mestre da extensão, com o qual conversamos nos projetos citados e ações de extensão universitária na instituição a qual estamos vinculadas; Annemarie Mol, filósofa cuja proposição de cuidar faz sentido para nós e se coaduna com a proposição de relação da Abordagem Gestáltica; as professoras e coordenadoras dos projetos Eleonôra Torres Prestrelo e Laura Cristina de Toledo Quadros, pesquisadoras que conectam um saber que se faz em rede, não destituído de afetações; e de outros autores(as) que nos inspiram a seguir em nossos projetos a partir de um fazer sensível, de um fazer no feminino.

 

Nossos aportes teóricos: tecendo um espaço coletivo de ampliação do conhecimento

Fritz Perls e Laura Perls

Aprender é descobrir que algo é possível.

(Fritz Perls, 1978)7

Um Gestalt-terapeuta não usa técnicas; auto-aplica-se na e para a situação com qualquer habilidade profissional e experiência de vida que acumulou e integrou.

(Laura Perls, 1976)8

O Polo Gestáltico se configura num campo onde, com o contato que estabelecemos entre nós como um único grupo e do suporte das coordenadoras, torna-se possível construir coletivamente uma sustentação teórico-metodológica para o desenvolvimento de cada projeto. Nesse espaço, podemos experimentar os limites entre os projetos e, por outro lado, também tecê-los numa trama sensível, criativa, gestáltica. O Polo preenche o vazio que um fazer individual e solitário cria. Ao estimular o exercício de pensar cada projeto como parte de um fazer maior e coletivo, torna-se possível encontrar um lugar seguro de apoio, em que podemos desfazer e refazer nossas práticas, numa construção contínua e conjunta. Dessa forma, o Polo constitui-se em um espaço de trocas de informações, experiências, ideias e afetos entre os projetos, onde o conhecimento se faz vivo.

É interessante apontar que nesse espaço seguimos, cada uma com seu aporte de vivências e conhecimentos, o fluxo do campo e da experiência. A partir disso é que buscamos autoras(es) para nos alimentar e, desse modo, nosso aporte teórico vai tomando forma. Nosso modo de construir nossos saberes é o que constitui a singularidade e, ao mesmo tempo, a multiplicidade desse espaço e de cada projeto e, assim, vamos reafirmando nosso lugar na academia.

Construir um saber a partir da experiência é um movimento revolucionário e difícil de se manter dentro das linhas duras da academia, onde, em sua maioria, os saberes enrijecidos e descontextualizados da vida cotidiana são meramente reproduzidos. Dessa forma, podemos pensar que nós estamos sempre em processo de adaptação em nosso percurso e desenvolvimento acadêmico, no qual estamos em busca de um equilíbrio para resistir (F. Perls, 1973). Não cabe a nós endurecermos para cabermos nos moldes acadêmicos restritos, nem cabe à academia se desestruturar de tal maneira que só caiba esse modo de pensar. Em vez disso, seguimos o fluxo homeostático para seguir em relação no meio, num fazer centrado naquilo que se está fazendo, no aqui e no agora, respeitando seu entrelaçamento no campo. Assim como coloca Prestrelo (2012), consideramos o nosso lugar na academia como um ato político de constituição e reafirmação de um espaço necessário e fundamental para um novo olhar para a educação, para as relações e para o mundo. Nesse sentido, seguimos o rastro do que afirma Laura Perls (2004) ao dizer que se fizermos um trabalho que favorece o pensamento crítico, que estimula as pessoas a pensarem e agirem em liberdade, nós fazemos um trabalho político.

Vale ressaltar que não pretendemos aqui fazer uma dicotomia entre experiência e teoria, nem pesar o valor de cada uma, mas propor, exatamente, que ambas estão presentes e se conectam em nosso fazer. A experiência inspira a teoria e a teoria inspira a experiência, de forma que não há início nem fim nessa relação. Assim como na metáfora da tecitura, no Polo não vemos o início e o fim dos projetos, pois uma linha de algodão se entrelaça com uma linha matizada que faz um nó na linha de lã, que é envolvida pela linha de seda, criando um tecido híbrido e único em que não se percebe os limites de cada linha, apenas o diagrama final que foi desenhado em rede.

Paulo Freire

Só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido e é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existenciais concretas.

(Freire, 1983)9

Nesse sentido, temos em Paulo Freire - renomado educador brasileiro e defensor ferrenho das atividades de extensão - uma linha que, entre outras, também tece o nosso fazer. O Polo de Estudos Gestálticos aposta na construção de um conhecimento que parte da experiência, ou seja, não se firma em conteúdos rígidos dados a priori, mas sim naquilo que surge a partir dos encontros. Freire (1996) chama atenção ao fato de que não há docência sem discência, pois elas coexistem. Dessa forma, acreditamos em um processo de aprendizagem que se dá cotidianamente e que acontece de um modo dialógico entre as componentes do grupo.

Diante do trabalho de troca e compartilhamento de fazeres exercidos no Polo, fica evidente o quanto o processo de ensinar (assim como o de aprender) se dá no movimento de estabelecer contato com o outro (Prestrelo, 2012). É no relacionar-se que construímos conhecimento e desenvolvemos processos de aprendizagem.

Dessa forma, nosso movimento na academia se caracteriza como ato político, uma vez que as transformações desencadeadas pela construção coletiva de conhecimento se desdobra na vida, no âmbito das relações entre as pessoas (Prestrelo, 2012). É nesse sentido que, especialmente, com práticas da extensão, a criação de conhecimento transcende a experiência particular, atravessa os muros da universidade se alimentando e alimentando a comunidade, nela atuando como potencial transformador da sociedade em que vivemos.

A Pedagogia de Paulo Freire afirma a importância de um caráter ético na constituição dos saberes, e isso é fundamental quando pensamos em algo que se forma na e para a Psicologia, a qual lida, sobretudo, com pessoas. Nosso trabalho, assim como o de Freire, valoriza a ética e o pensamento crítico no seu desenvolvimento e inclui o outro nessa construção. Sem amarras a padrões preestabelecidos pelas mais diferentes áreas, nós buscamos conciliar teoria e prática de uma forma que elas não se configurem como opostas e dicotômicas: acreditamos no encontro. Inclusive naquele que é dado à primeira vista como divergente.

Transformar o olhar para o mundo por meio das trocas que são estabelecidas nos encontros do Polo é o caminho que tomamos no exercício da formação vivencial. Aprender sobre o relacionar-se no próprio experimentar das relações, num manejo de costurar as vivências, atentando-se comprometidamente com as experiências ali compartilhadas.

Conhecer, na dimensão humana que aqui nos interessa, qualquer que seja o nível em que se dê, não é o ato através do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe, dócil e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá ou impõe. O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer-se assim, percebe o 'como' de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato. (Freire, 1983, p. 16).

Sendo assim, por valorizarmos a experiência do vivido tal como ela aparece na construção do conhecimento, procuramos manter viva a conexão entre os projetos e as linhas que neles se costuram. O resultado disso é que a cada reunião saímos com uma reflexão a mais, com algo que até o momento não havia aparecido como figura, mas que - a partir da troca - fez sentido e nos afeta.

Annemarie Mol

Bons estudos de caso inspiram teoria.

(Mol, 2008)10

Em nossos encontros quinzenais no Polo de Estudos Gestálticos, ao compartilharmos os relatos de experiências de trabalho por intermédio dos projetos, percebemos que o cuidado circula num ir e vir, a partir de escutas atentas, presenças sensíveis, compartilhamentos e falas afetadas que são convocadas em cada situação vivenciada por nós e que levamos ao grupo. Trazemos para o espaço do Polo as mazelas, os desafios, bem como as potencialidades dos nossos cotidianos nos projetos. Tal compartilhamento forma uma rede de afetações por meio de conexões e engajamentos entre nós que segue na construção de uma autonomia possível de ser levada para além da nossa sala de encontro. Autonomia que nos acompanha em nossos fazeres de uma forma mais cuidadosa em sua dimensão política, ao podermos afirmar os nossos trabalhos dentro e fora dos muros da Universidade.

Essa autonomia, afirmada como necessária por Mol (2008) no seu livro The Logic of Care - A lógica do cuidado -, se constitui não por uma vontade própria ou escolha de cada participante, de cada projeto de forma individual, mas que se desdobra no coletivo e circula por meio de uma lógica do cuidado na relação dialógica da rede de encontro de todas nós. Entendemos e afirmamos as potencialidades que cada grupo/projeto tem individualmente, mas entendemos que o cuidado fluido, compartilhado pelo Polo, possibilita a construção de um lugar que nos fortalece e nos movimenta em nossas ações, num entrelaçar de práticas, o que reverbera e transborda nas nossas ações de cuidar em outros espaços com nossos projetos.

Quinzenalmente, fazemos leituras conjuntas de textos que apoiam os nossos estudos e práticas, porém, como nos coloca Mol (2008, p. 11, tradução nossa), "Bons estudos de caso inspiram teoria [...]",11 e com isso as nossas ações são convocadas todo o tempo no entrelaçar entre o que a teoria, os autores nos dizem e o que é vivido por nós por meio dos atores incluídos em nossas atuações. Assim, tecemos nossas práticas, dia após dia, linhas entrelaçadas a outras linhas, na experiência de cada projeto, nos fios que cada experiência nos apresenta, circulando e se encontrando num fazer conjunto. Desse modo, não apresentamos o cuidado aqui apenas como um elemento conceitual, mas como uma ação em si, na construção de um potente espaço sensível de nos cuidar dentro da academia, um tempo para olharmos para nós e nos sustentarmos como alunas, professoras, psicólogas, pesquisadoras e encontrar outras possibilidades de cuidado em nossos trabalhos.

Compreender que com os projetos, bem como por meio de nós e de todas(os) que foram afetadas(os) por eles se fazem redes que constroem outras realidades, é extremamente potente na própria prática e nas trocas que ocorrem nos estudos do Polo. É um espaço onde a(o) estagiária(o) se sente dentro de uma lógica de cuidado que não a(o) isola, pelo contrário, agrega a um fazer e pensar coletivo, expande seu campo experiencial, sua sensibilidade e sua leitura de mundo. É possível ainda se perceber como parte dos outros projetos, enriquecendo o próprio campo de atuação e, para além disso, nos convocando a um contato vivo, sensível, aquele momento coletivo, no qual nos damos conta de nosso próprio corpo nessa tecitura.

Tomando o que Mol (2005) nos apresenta em sua obra The Body Multiple: Ontology in Medical Practice - O corpo múltiplo: ontologia na prática médica -, é possível compreender que tipo de conexão nos perpassa, somos um corpo múltiplo, que abarca tudo que torna possível o fazer acontecer, desde estagiários(as), profissionais colaboradoras(es), supervisoras, bem como todos os aspectos que configuram a existência desse espaço não humano, tais como o prédio da Universidade, a sala que ocupamos, as cadeiras em círculo, o computador, os livros, os pôsteres que utilizamos para apresentar os nossos projetos em eventos científicos que ficam distribuídos pela sala, etc., tudo isso colabora pra fazer a realidade do Polo. Há um campo de afetações em que o próprio ambiente nos convoca a um nós amplificado, afetamos e somos afetados por essa realidade construída em redes diversas, que une teoria e prática, e desfaz tal dicotomia, na medida em que, enquanto falamos, trocamos reflexões, tornamos ativa a experiência do aqui e agora.

 

A experiência do Polo Gestáltico como campo de construção de uma prática encarnada, situada, de um fazer no feminino

No escrito "A ciência no feminino" (1989), de Isabelle Stengers, a autora nos apresenta Barbara McClintock, uma citogeneticista estadunidense, doutora em botânica e vencedora do prêmio Nobel de Medicina de 1983. Barbara McClintock é uma mulher fazendo ciência, pioneira no fazer ciência no feminino e teve como objeto de estudo células de milho no campo da embriologia. A partir do estudo com o milho, Barbara nos apresentou uma forma de fazer ciência que foge dos moldes tradicionais de fazer pesquisa. "E assim, se dedicando cuidadosamente a conhecer e se interessar pelo milho com o qual lidava, desenvolvia uma proposta de pesquisar com lentidão, com atenção e cuidado, o que a diferenciava e até mesmo distanciava dos seus colegas, homens cientistas." (Lomba, 2016, p. 138).

Vivendo em uma época que fazer ciência era vista como uma atividade masculina, Barbara via seus colegas, bem menos reconhecidos profissionalmente do que ela própria, encontrarem um espaço de colocações, enquanto ela se deparava com portas fechadas. Com isso, ela se deu conta de que sua dificuldade provinha do fato de ser mulher. Diferentemente do modo de fazer ciência predominante, cujo princípio é a rapidez, a generalização, na visão de Stengers (1989), McClintock era um caçador solitário. O caçador solitário espera o seu tempo, evita acelerações e precipitações e sabe melhor que ninguém do que sua presa é capaz de fazer. Em sua maioria, os caçadores caçam em matilha. "A arte da solidão, a afirmação da singularidade, a aceitação da marginalidade que deixa tantos cientistas literalmente loucos, ela as aprendeu para tornar-se mulher de ciência, para conquistar aquilo que lhe teria sido dado naturalmente se fosse um homem." (Stengers, 1989, p. 8).

Em sua forma de fazer pesquisa, Barbara McClintock se mostrava disponível a ouvir o que o campo, ou melhor, o que o milho tinha a lhe dizer. Uma forma de fazer pesquisa mais paciente em aprender as boas questões a fazer, ao milho, ao campo, pois

O tipo de inteligibilidade procurada e alcançada por McClintock não permite fazer a economia do objeto, reluzi-lo àquilo que ele permitiu compreender, mas contar a história do seu devir, compreender, como em toda história, a que sujeições deve sua possibilidade, como agem as circunstâncias, que grau de liberdade permitem explorar. (Stengers, 1989, p. 7)

O campo nos coloca interrogações, constrói problemas e nos apresenta a possibilidade de, com ele, produzir uma história desse encontro e, antes de tudo, deixar o campo falar e perceber que histórias ele tem a nos relatar. "Assim, trabalhar com o campo, abre espaço para o que o campo pode dizer e potencializa novos conhecimentos constituídos numa ação coletivizada." (Quadros, 2015, p. 1196). Aprendendo com isso, que boas questões que poderia fazer "Uma ciência no feminino deixa o material (no caso o milho) falar, quer dizer, não coloca a pergunta de partida, mas deixa que o material traga os problemas." (Conti & Silveira, 2016, p. 57).

Desse modo, o próprio objeto de estudo, mesmo sendo um milho, é capaz de reagir e a pesquisa toma o aspecto de uma conversa. Em sua forma de pesquisar, Barbara estava disponível a se afetar ao que o milho poderia lhe dizer em sua singularidade. Uma forma de fazer ciência mais devagar, com presença, cuidado, respeito, disponibilidade, interesse e afetação ao deixar que o campo se mostre, fale com você (Souza, 2019). Nesse sentido, permearemos, a partir de agora, o texto com alguns relatos das autoras, mulheres fazendo ciência no Polo, como modo de afirmarmos nosso lugar nos projetos, na academia, na vida.

No início da graduação eu estava ávida por conhecer mais da abordagem gestáltica, queria muito participar de algum projeto que a tivesse como base... Confesso que minhas expectativas estavam lá em cima! O acolhimento que pude receber - e oferecer - estando no GAPsi, tecendo com a linha de algodão, superou tudo o que eu havia imaginado. Posso dizer com gratidão que o Polo faz com que, a cada encontro, eu me torne uma tecelã mais afinada... mais afinada porque tenho como agulha o cuidado que perpassa todos os fios, indistintamente. (Raissa, uma das tecelãs dos fios de algodão)

Seguimos o fazer ciência no feminino na composição das narrativas que aqui são apresentadas, com nossa experiência vivenciando o Polo de Estudos Gestálticos, para nos apoiar na construção deste texto, com as linhas que estamos escrevendo, seguindo, fazendo, resistindo.

Vivenciar o Polo fez eu me movimentar entre graduação e pós-graduação, encontrar um lugar que foi essencial para me fazer insistir, resistir e apostar num projeto de pesquisa de atendimento clínico a mulheres, mesmo no meio de uma crise na Uerj. De modo que vi um trabalho crescer e eu pude entender como é belo me constituir terapeuta e fazer pesquisa, além de ter um espaço em que eu era acolhida por mulheres que demonstravam gestos de afeto e cuidado ao compartilharem histórias da academia e da vida, então, eu me fortalecia. Foi assim que eu virei uma das tecelãs de uma linha, desatei alguns nós, teci caminhos e segui com firmeza na certeza que eu não estava sozinha. (Deborah, uma das tecelãs dos fios de seda)

Nada é mais vivo que a experiência de se deixar sentir, de ser guiada pelo campo, não se enrijecendo diante da aridez de certos momentos da vida. No Polo trabalhamos com essa proposta. O cotidiano é tão corrido, muitas vezes a pressa de tudo e de todas(os) nos atinge de forma avassaladora, podendo nos fazer cair em uma armadilha sutil, presas em um certo loop no tempo, com idas e vindas sempre no mesmo campo.

Durante boa parte da minha vida fiz teatro, e gostava disso. No ensino médio, mudei de colégio e me afastei do teatro, fui consumida pela lógica do vestibular e quase me afastei da arte. Encontrei na poesia a forma de estar em contato com a arte. Escolhi fazer psicologia por algo que até hoje, no sexto período não sei explicar, mas havia algo de artístico nessa escolha, eu gostava de ouvir histórias, me interessava por elas. Entrei na faculdade e o academicismo novamente cumpria o papel de me afastar do que, a minha vida inteira, me fez sentir eu mesma. A arte. No final do meu terceiro período, recebi o convite para participar de um projeto que levava no nome "arte e livre expressão". Esse projeto me reconectou com a arte e me deu a oportunidade de conhecer colegas de equipe que respiravam e transbordavam arte. O mesmo projeto me levou ao Polo, onde eu percebi que talvez eu não precisasse saber exatamente o que me fez escolher psicologia, mas que meu fazer dentro da universidade podia se construir pouco a pouco, regado de muita arte. (Bia Penna, uma das tecelãs dos fios de linha matizada).

Nesse sentido, o cuidado e a sensibilidade que se encontra em nossas práticas - como aposta de saúde - permite a expansão da experiência acadêmica das estagiárias, distantes de um fazer regido pelo estudo do tradicional e do dicotômico, o que possibilita um escape por meio de uma abertura para outros perpassamentos no nosso campo experiencial.

A minha experiência no Polo Gestáltico foi de conexão, tudo que busquei no projeto teve liga na experiência do grupo. A contribuição de cada projeto, cada olhar compôs a vivência de trocas nesse espaço, firmado pelo fazer feminino, que foi campo fértil para a construção de um saber gestáltico experiencial, dinâmico e transformador. (Monique, uma das tecelãs dos fios de lã).

O Polo surgiu nessa expansão e, quando pensamos nos textos que lemos, nas trocas que fizemos, bem como nos eventos que idealizamos, ali, sentadas em roda, olhando-nos cara a cara, afinando-nos e criando uma espécie de homeostase coletiva, vemos como o contato se faz rico em cada encontro, e as fronteiras vão se diluindo para nos fazer um corpo vivo, com suas partes funcionalmente heterogêneas; no entanto, como uma mente una, como se em cada uma de nossas linhas existissem veias e artérias nos ligando, num mesmo ritmo de compasso cardíaco, respirando juntas. Falamos, com isso, de uma sincronia rítmica que torna dinâmica e viva cada reunião do Polo.

O Polo foi a mão estendida que me ajudou a levantar em um dos momentos mais difíceis da minha vida. Foi um local onde eu pude falar com franqueza da minha tristeza, da minha dor e ser acolhida e confortada pelos mais diversos abraços. No Polo me senti livre para ser quem eu sou e dizer o que eu queria dizer, senti que tinha voz e que o que eu dizia era valorizado e escutado por todas. Algo raro no espaço acadêmico. Para mim, o Polo foi além de um espaço de estudo e troca de saberes, foi um espaço de cuidado, afeto e, sobretudo, amor. (Beatriz Zanini, outra das tecelãs dos fios de lã)

Somos parte de um todo, mas somos ao mesmo tempo o próprio todo, que se reconfigura a cada novo olhar, tendo a experiência sempre atualizada, em nossa mente e corpo. Como dimensionar a experiência de estar (e ser) o próprio Polo? Cada linha cruzada compõe nossa tecitura, conduzindo-nos, como o milho fez com Barbara McClintock, e ela reagiu a essa convocação sensivelmente aberta, e sem pressa.

Para mim fazer parte desse projeto e do Polo significou um respiro em meio ao caos emocional que eu vivia por conta da greve de 2017. O Polo foi a materialização de resistência que eu tanto ouvia dos colegas, professores e movimentos organizados da Uerj. O projeto, naquele momento, significou acolhimento. Naquele espaço pude compartilhar meus sentimentos de impotência e solidão com outras pessoas, e assim me senti cuidada. É assim que vejo o Polo: um espaço em que podemos cuidar do nosso fazer e implicação nos projetos, um espaço em que estudamos para encorpar nossas práticas, e cuidar delas também. Entrar na sala e me deparar com tantas mulheres juntas me traz um sentimento de acolhimento e penso: 'não estou sozinha', e assim vamos juntas, percorrendo o caminho da formação profissional em psicologia, em um fazer resistente e potente. (Nicole, outra das tecelãs dos fios de algodão)

Diante disso, aprendemos durante nosso percurso que a inquietude pode caminhar com a paciência. Talvez isso soasse controverso se estivéssemos preocupadas com uma lógica rígida das coisas, mas não estamos. Com calma, procuramos costurar nossa colcha de fazeres gestálticos, os quais a todo o momento nos deslocam e inquietam, provocando novas ideias, novos questionamentos.

Para mim, o Polo é vivo e a gente não fala desse lugar, não fala sobre, fala com. Quando estou lá, penso no que o Polo está conversando comigo, me abro pra ser afetada e acredito que o afeto é como uma dança, e me deixo conduzir. Há uma parceria entre nós, e penso ser a coisa mais fantástica desse frequente encontro, eu deixo e levo algo, para mim, para o COMtextos, para a vida. É difícil falar sobre a experiência de estar ali e de ser o próprio Polo, e sou porque estou no acorde que compõe essa harmonia, e o maestro é o fenômeno que surge dali, nos conduzindo, nos convocando sensivelmente. (Angél, outra das tecelãs dos fios de linha matizada)

Como mulheres, fomos ensinadas culturalmente que sempre deveríamos estar competindo com as demais. A união dos projetos no Polo quebra a ideia individualista de "cada uma por si" e nos convida a cruzar linhas em forma de experiências, costurando juntas. Somos sustentadas por uma rede de suporte que se formou - e se forma a cada dia - em nossos encontros.

 

Considerações finais - Efeitos do Polo de Estudos Gestálticos: tecendo caminhos possíveis de resistência na academia numa Psicologia que se faz no feminino

Na última sala à esquerda, no último corredor, do último bloco, do antepenúltimo andar de uma selva de pedras cinzenta e imensa, diversa e potente, lá dentro nós nos fazemos resistentes. Resistimos na contramão de um fluxo de pensamento normatizador, enrijecido, masculino. Resistimos às linhas duras da ciência, resistimos sendo linhas de algodão, matizada, de lã e de seda. Resistimos aos individualismos da academia sendo muitas e sendo juntas, unidas numa única colcha colorida, heterogênea, única, pois seguimos Gloria Anzaldúa (2000) quando nos relata que escreve para reescrever as histórias mal-escritas sobre ela, sobre nós, escreve ainda para se tornar mais íntima com ela mesma, para se descobrir, se preservar, se construir e alcançar autonomia, pois como é difícil para nós pensar que podemos escolher e nos tornar escritoras, pesquisadora, e, além disso, sentir e acreditar que podemos. Assim, tomamos tais rastros nos afirmando juntas na constituição de um fazer no feminino, numa (re)existência diária sendo parte da comunidade da Uerj, numa recalcitrância cotidiana em nossas práticas nos apoiando em um modo de fazer ciência não moderna. Com isso, o Polo se faz resistência, (re)afirmando um fazer na academia que se dá no entrelaçamento entre pesquisa, ensino e extensão. Assim, o Polo de Estudos Gestálticos é conexão, posto que nós somos o cruzamento de suas linhas; é vida, porque pulsamos juntas; e é feminino, pois se tece por mãos de mulheres sensíveis que se abriram à arte dos detalhes, compondo um todo para além da soma de suas partes.

 

Referências

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Recebido em: 9/11/2019
Aceito em: 29/7/2020

 

 

1 O Polo de Estudos Gestálticos é coordenado pelas professoras Eleonôra Torres Prestrelo e Laura Cristina de Toledo Quadros. No presente momento (2019.2) participam dele: as(o) alunas(o) de graduação Angélica dos Santos Siqueira, Beatriz Schmidbauer Penna, Beatriz Zanini de Britto Silva, Daniela Gomes Reis Sá, Elaine Andrade Lopes, Gabriella Pacífico Silva, Júlia Leite Cavalcante, Leandro Gonçalves de Mendonça, Monique Lima dos Santos Bezerra, Nicole Velloso de Oliveira, Raissa da Costa Silva, Roberta Cristina Sampaio de Jesus e a aluna de pós-graduação Deborah da Silva de Souza. Vale ressaltar que há uma renovação anual desse grupo diante da renovação do corpo de estagiárias(os) dos projetos.
2 A partir desse momento, nos referiremos, em certos trechos do texto, ao "Polo de Estudos Gestálticos" pelas formas que é habitualmente nominado na Universidade: "Polo" ou "Polo Gestáltico".
3 A partir de agora, nos referiremos ao "Laboratório Gestáltico: Configurações e Práticas Contemporâneas" no texto por sua designação inicial e pelo qual é mais comumente conhecido no interior da Universidade: "Laboratório Gestáltico".
4 "Faz fazer" (Latour et al., 2015), uma duplicação que a língua francesa preserva que remete ao que nos faz agir. Uma indicação contrária à noção de causalidade, pois desconstrói qualquer noção de domínio na relação sujeito-objeto e vice-versa, trazendo a simetria para o campo das relações (Prestrelo, 2017).
5 A partir desse momento, iremos nos referir ao projeto "GAPsi - Grupos de Apoio Psicológico" por sua designação inicial e pelo qual é mais comumente conhecido no interior da Universidade: "GAPsi".
6 A partir desse momento, iremos nos referir ao projeto "COMtextos: Arte e Livre Expressão na Abordagem Gestáltica" pela forma que é habitualmente nominado na Universidade: "COMtextos".
7 Perls, F. (1978). A abordagem gestáltica e a testemunha ocular da terapia. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
8 Perls, L. (1976). Comentários sobre os novos rumos. In E. W. Smith. (Org.). The Growing Edge of Gestalt Therapy. New York: Brunner/Mazel.
9 Freire, P. (1983). Comunicação ou Extensão?. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
10 Mol, A. (2008). The Logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. London: Routledge.
11 No original: "Good case studies inspire theory." (Mol, 2008).

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