SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número1Editorial 16(1)A atuação do Assistente Social na alta hospitalar do Hospital Universitário Regional dos Campos Gerais no contexto da humanização e integralidade em saúde índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2021

 

A atuação do psicólogo no contexto do SUS: repensando práticas

 

The Performance of the Psychologist in the SUS Context: Rethinking Practices

 

La actuación del psicólogo en el contexto del SUS: repensando prácticas

 

 

Crystiane França Silva Castro

Graduanda no curso de Psicologia no Centro Universitário Tiradentes (Unit-AL)

 

 


RESUMO

O artigo problematiza a atuação do psicólogo no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir do entendimento de princípios norteadores do SUS e das práticas integrativas da Política Nacional de Humanização, considera-se suscitar a interação do saber acadêmico a saberes e práticas locais. Argumenta-se que a procura por soluções conectadas às distintas realidades encontradas no SUS deve tomar parte da prática do psicólogo, orientada para a transformação social. O tema é tratado sob uma perspectiva crítica, mobilizando visões teóricas com vistas ao rendimento analítico.

Palavras-chave: Humanização. Saúde. Psicologia.


ABSTRACT

The article problematizes the performance of the psychologist within the scope of the Unified Health System (SUS). Based on the understanding of guiding principles of the SUS and the integrative practices of the National Humanization Policy, it is considered to raise the interaction of academic knowledge with local knowledge and practices. It is argued that the search for solutions connected to the different realities found in SUS should be part of the psychologist's practice, oriented toward social transformation. The subject is treated from a critical perspective, mobilizing theoretical views with a intent to analytical performance.

Keywords: Humanization. Health. Psychology.


RESUMEN

El artículo problematiza la actuación del psicólogo en el ámbito del Sistema Único de Salud (SUS). A partir del entendimiento de principios orientadores del SUS y de las prácticas integrativas de la Política Nacional de Humanización, se considera suscitar la interacción del saber académico a saberes y prácticas locales. Se argumenta que la búsqueda de soluciones conectadas a las distintas realidades encontradas en el SUS debe tomar parte de la práctica del psicólogo, orientada a la transformación social. El tema es tratado desde una perspectiva crítica, movilizando perspectivas teóricas con vistas al rendimiento analítico.

Palabras clave: Humanización. Salud. Psicología.


 

 

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) é uma das maiores conquistas sociais consagradas na Constituição Federal de 1988, embora os avanços na saúde pública apontem desafios ainda a serem superados. Constituído por um conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta, o SUS tem o mérito de atuar a favor da democratização nas ações e nos serviços, que deixam de ser restritos e passam a ser universais e, por conseguinte, deixam de ser centralizados.

Entre os princípios do SUS, a integralidade está presente tanto nas discussões quanto nas práticas na área da saúde e relaciona-se à compreensão do ser humano de maneira integral, antepondo-se ao entendimento parcial. Se melhor dito: o sistema de saúde deve estar preparado para a escuta ativa do usuário, conhecendo o contexto social no qual está inserido e, nesse compasso, passa a atender as suas demandas e necessidades.

O princípio da integralidade permite pensar a implantação de ações em saúde que incorporam as práticas integrativas da Política Nacional de Humanização, as quais demandam dos profissionais da saúde pública a realização de atividades interdisciplinares, de modo a efetivar o princípio da integralidade em seu cotidiano. Em particular, a aplicação desse princípio procura, de modo geral, assegurar a atenção em saúde integral à população como estratégia de ampliação do direito e cidadania das pessoas.

O acolhimento da demanda recebida nas unidades de saúde requer não apenas a adoção de discursos e práticas que visam à transdisciplinaridade, quando da interlocução com outros campos de saber, mas também busca compreender o escopo tangível de cada localidade, atenta-se para a importância do reconhecimento das narrativas individuais produzidas nos processos de saúde/doença e, em alguma medida, procura estabelecer uma relação horizontal com a comunidade. Tendo essas disposições por referência, ao profissional de Psicologia caberia alinhar o esquema de seu campo de formação a outras formas de cuidado inerentes, de modo que a atuação seja advertida para o trabalho com grupos historicamente constituídos. Assim, o argumento procede para a elaboração de formas de atuação que não estejam dissociadas do aspecto político que permeia o fazer da Psicologia, assim como o do SUS. Para tanto, importa atentar-se para a existência de modalidades de enunciação, entendida como o alargamento que ultrapassa marcas formais linguísticas em direção a manifestações enunciativas individuais (Benveniste, 2006), por um lado, e a humanização no cotidiano dos serviços de saúde, por outro. O caráter integrador nos processos discursivos é um ponto importante que acompanha a discussão, uma vez que pautar a diversidade nos processos de construção de novas formas de cuidado implica em vê-las como potencial social transformador.

 

Notas históricas

Nos períodos colonial (1500-1822) e imperial (1822-1889), o brasileiro não tinha, de fato, uma política pública de saúde. As ações tinham basicamente o intuito de minimizar as ocorrências de epidemias e doenças endêmicas, de forma a não impactar a economia e o comércio internacional, uma vez que atingiam parte da mão de obra local, diminuindo a produção. As medidas adotadas se restringiam aos centros urbanos - como Rio de Janeiro, Recife e Ouro Preto - e estavam relacionadas à infraestrutura, urbanização, saneamento e controle de epidemias que pudessem afetar a produção ou prejudicar a imagem do Brasil perante seus parceiros comerciais. Era grande a procura pela medicina popular entre a população de baixa renda, já que não havia muitos médicos atuantes em território nacional, além do fato de que eles atendiam apenas poucas famílias (Aguiar, 2015).

A organização da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1829, torna-se um marco para a Medicina Social no Brasil, iniciando um extenso programa que inclui ações educacionais e reguladoras, tais como Educação Física para crianças, assim como procura também normatizar farmácias e a assistência prestada em hospitais (Nunes, 2000). As ideias da referida Sociedade contribuíram para um ordenamento social, uma vez que atentavam para os aspectos ambientais e sociais que geravam e perpetuavam doenças na população. Da mesma forma, contribuíram para a naturalização o discurso médico sobre a cidade, diagnosticando e buscando soluções para os males da cidade, tal como se fosse um organismo adoecido.

Os médicos, depois de espacializar a doença, depois de localizar os ambientes insalubres (hospitais, prisões, matadouros, cemitérios, quartéis, barcos, instalações portuárias, casa do pobre etc.), isolam no sistema urbano as regiões a "medicalizar" de urgência e que devem constituir pontos de aplicação de um exercício do poder médico. Elaboram também medidas de tipo higiênico-social que possam contribuir para a melhoria da saúde e das condições de existência da população. Propõem o ordenamento do espaço urbano e a intervenção no meio doentio. Ou seja, fazem propostas de "medicalização" da cidade. Medicalizar a cidade, higienizar, significa controlar, intervir nos ambientes suscetíveis de prejudicar a saúde. (Costa, 2002, p. 68).

Ao longo da assim chamada República Velha (1889-1930), a situação da saúde pública teve poucos avanços; as condições de saneamento básico ainda eram deficientes e as medidas tomadas visavam a evitar que a produtividade dos setores da economia agrária e a política de imigração fossem afetadas. Foi adotada como medida de combate às epidemias urbanas e rurais a campanha sanitária, a qual foi inspirada em um modelo militar que impunha ações como a vacinação compulsória, o que viria a gerar mais tarde a Revolta da Vacina.1 A partir de 1920, tem início a Previdência Social para determinadas categorias de trabalhadores, tais como ferroviários e portuários. O segmento da população que não contribuía para o sistema previdenciário era atendido por hospitais filantrópicos ou pelos curandeiros populares (Aguiar, 2015). Segundo Paim (2009), o nascimento do sistema público de saúde ocorreu por três vias, sendo elas a saúde pública, a Medicina Previdenciária e a Medicina do Trabalho, que, como subsistemas, além de atender a diferentes demandas, eram buscados em paralelo com os sistemas liberal e popular.

A organização dos serviços de saúde no Brasil antes do SUS vivia em mundos separados: de um lado, as ações voltadas para a prevenção, o ambiente e a coletividade, conhecidas como saúde pública; de outro, a saúde do trabalhador, inserida no Ministério do Trabalho; e, ainda, as ações curativas e individuais, integrando a medicina previdenciária e as modalidades de assistência médica liberal, filantrópica e, progressivamente, empresarial. (Paim, 2009, p. 31).

O acesso à saúde, mesmo garantido a determinado segmento do operariado, por meio dos fundos previdenciários, ainda tinha a contribuição previdenciária como condicionante para sua utilização, excluindo de sua tutela grande parte da população. A noção de saúde pública, por sua vez, se restringia a ações pontuais e normativas, visando a manter as cidades livres de epidemias que enfraquecessem o comércio local ou de exportação. Todas as ações do sistema oficial de saúde estavam, portanto, atreladas aos possíveis impactos que doenças ligadas ao modo de trabalho e também às enfermidades de contágio poderiam causar na economia, restando à parcela majoritária da população buscar outros modos de assistência não oficiais (Aguiar, 2015).

Em 1953, o então Ministério da Educação e Saúde é desmembrado com a promulgação da Lei n. 1.920, que institui os Ministérios da Saúde e Ministério da Educação e Cultura. A partir de então, as campanhas sanitárias foram centralizadas em órgãos ou serviços, a exemplo das campanhas de combate à lepra, à tuberculose e à febre amarela. As atividades pertinentes ao Departamento Nacional de Saúde (DNS) foram absorvidas pelo Ministério da Saúde, porém sem acréscimo de infraestrutura que permitisse ampliar o alcance de ação do departamento, que já era deficiente. Destaca-se a atuação do Instituto Oswaldo Cruz, na produção de vacinas e pesquisas em saúde, e da Escola Nacional de Saúde Pública, na formação e aprimoramento de profissionais de saúde.

No período após o golpe militar de 1964, houve uma ampliação do sistema de saúde predominantemente privado nos centros urbanos, estendida aos trabalhadores rurais. Ainda assim, apesar do crescente número de instituições destinadas ao serviço de saúde, o acesso à saúde não se democratizava de fato.

A reforma do setor de saúde no Brasil estava na contramão das reformas difundidas naquela época no resto do mundo, que questionavam a manutenção do estado de bem-estar social. A proposta brasileira, que começou a tomar forma em meados da década de 1970, estruturou-se durante a luta pela redemocratização. Um amplo movimento social cresceu no país, reunindo iniciativas de diversos setores da sociedade - desde os movimentos de base até a população de classe média e os sindicatos, em alguns casos associados aos partidos políticos de esquerda, ilegais na época. A concepção política e ideológica do movimento pela reforma sanitária brasileira defendia a saúde não como uma questão exclusivamente biológica a ser resolvida pelos serviços médicos, mas sim como uma questão social e política a ser abordada no espaço público. (Paim, Travassos, Almeida, Bahia, & Macinko, 2011, p. 18).

O sistema de saúde brasileiro, até então, era ineficaz sob diversos aspectos: era restrito e excludente, concentrava-se na eliminação de doenças ou sintomas, era centralizador, inadequado em relação às demandas locais e mal distribuído. Em 1979, foi elaborada a primeira proposta para criação do Sistema Único de Saúde (SUS) - e mais tarde, a partir de debates encampados por associações, como a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) e do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), essa proposta viria a ser incorporada à Constituição Federal, momento em que a saúde passa a ser de fato um direito social (Paim, 2009). A criação do SUS foi, portanto, fruto de mobilização social.

A partir desse breve histórico, pode-se perceber a mudança de concepção sobre saúde e ações nesse campo. Os temas foram tratados durante muito tempo superficialmente, com foco na localização e eliminação de sintomas, de forma autoritária e vertical, sem considerar os aspectos socioeconômicos que impactam nas condições de vida e saúde da população. A partir da década de 1970, ganha força o discurso da democratização do acesso à saúde, oriundo dos debates sociais que evidenciavam as mudanças profundas necessárias para a garantia de um acesso à saúde, que está expressa na forma dos princípios da universalidade, equidade e integralidade. É também nesse momento que passa a haver a busca pela descentralização como uma forma de aproximação e convite à população local para construir em conjunto com o poder público intervenções adequadas às necessidades locais.

Com a implantação do SUS, no entanto, outros questionamentos e reivindicações foram suscitados. A seguir, veremos como demandas em relação ao acolhimento e direcionamento passaram a fazer parte da saúde pública.

 

O SUS e o princípio da integralidade

Com a implantação do SUS, foi possível a participação popular na gestão da saúde, pactuada por meio das diretrizes descritas no art. 198 da Constituição Federal de 1988. São princípios norteadores do SUS: a universalidade, a equidade e a integralidade, e suas diretrizes são a descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (Ministério da Saúde, 2000).

O princípio da universalidade, em relação ao modo de assistência de saúde anterior à Constituição Federal de 1988, retira o condicionante do acesso à saúde apenas dos contribuintes de fundos previdenciários, garantindo assistência a todos os cidadãos. O princípio da equidade, por sua vez, reconhece que as diferenças presentes na sociedade civil são importantes fatores para que se estabeleça uma relação equânime entre as pessoas (Barros & Sousa, 2016) e evoca a redução das diferenças regionais e sociais por meio de políticas que promovam uma melhora nas condições de saúde da população (Ministério da Saúde, 2000).

Já o princípio da integralidade tem nuances que merecem destaque nessa discussão. Esse princípio, que provém da Medicina Integral, teve origem nos Estados Unidos, como crítica à formação e à prática médica de fragmentar o indivíduo e reduzi-lo a um conjunto de sintomas. No Brasil, essa noção de integralidade influenciou o movimento sanitário e, depois da década de 1970, indicou os limites a serem superados em relação às práticas médicas e a reprodução do pensamento anátomo-patológico nas escolas médicas (Mattos, 2001).

A integralidade na Constituição Federal brasileira aparece como uma via de articulação de atividades preventivas e assistenciais. O movimento da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) se inicia em meados da década de 1970, a partir das discussões sobre democratização da saúde, tendo como marco a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 1985. Nesse movimento, que fomentou os debates que culminaram na formação do SUS, a integralidade é percebida como uma noção polissêmica que, embora parta de diferentes leituras e sentidos, aglutina em seu entorno críticas semelhantes.

Num aspecto prático, o princípio da integralidade pode orientar recursos técnicos como tratamentos e ações preventivas, o que significa dizer que a ação integral viabiliza a produção do cuidado. A ideia de uma ação integral garante visibilidade a outros aspectos que não só os biológicos, visto que as necessidades em saúde não se restringem ao bem-estar físico do indivíduo. Além disso, em se tratando das ações de saúde no âmbito do SUS, a demanda pode ser recepcionada e tratada não apenas no consultório médico e a partir da relação médico-paciente, visto que todos os profissionais de saúde podem operar o princípio da integralidade (Mattos, 2001) produzindo cuidado.

O cuidado, num sentido político, refere-se às ações que emancipam o indivíduo por meio da conscientização dos seus problemas, conferindo a ele lugar fundamental nas decisões que serão tomadas acerca de seu próprio processo de saúde e doença (Ballarin, Ferigato, & Carvalho, 2010). Cuidado e integralidade são, assim, noções indissociáveis, que concretizam os "valores emancipatórios em tecnologias a serem operadas no cotidiano das práticas de saúde" (Ayres, 2009, p. 12). São, em outras palavras, formas de buscar nas interações, ou encontros, nas palavras de Paim (2006), os elementos que produzem sentido para as práticas em saúde, principalmente no âmbito local, conferindo dinamismo na produção do cuidado.

O princípio da universalidade nos impulsiona a construir o acesso para todos, o da equidade nos exige pactuar com todos o que cada um necessita, mas a integralidade nos desafia a saber e fazer o "quê" e "como" pode ser realizado em saúde para responder universalmente às necessidades de cada um. (Ayres, 2009, p. 14).

O princípio da integralidade também pode apontar o modo de organização do trabalho da equipe de saúde, de modo a contemplar a demanda espontânea e as necessidades percebidas no contato com a população local, tanto as que atingem todo o grupo populacional quanto às necessidades de determinada parcela (Mattos, 2001). Nesse contexto de organização do trabalho, é importante ressaltar a questão da transdisciplinaridade.

 

A Política Nacional de Humanização e as práticas integrativas

A Política Nacional de Humanização (PNH) foi criada em 2003 com o objetivo "pôr em prática os princípios do SUS no cotidiano dos serviços de saúde, produzindo mudanças nos modos de gerir e cuidar", por meio da interação entre gestores, trabalhadores e usuários (Ministério da Saúde, 2010). Humanizar, nesse contexto, tem o sentido de inserir a diversidade nos processos de construção de novas formas de cuidado, feita de modo compartilhado e dialogado entre os três atores, todos corresponsáveis pela execução do programa. A humanização, de acordo com o marco teórico da Política de Humanização, diz respeito à troca de saberes e à possibilidade de gerar transformação não só para a realidade local, mas para os próprios atores envolvidos, visto que o contato entre eles provoca mudanças no outro e em si mesmos (Ministério da Saúde, 2010).

Buscando conhecer mais sobre as experiências desenvolvidas na rede pública estadual e municipal, o Ministério da Saúde realizou em 2004 um diagnóstico das práticas complementares de saúde, resultando na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNpic) no SUS (Ministério da Saúde, 2015). Segundo o documento, a institucionalização das práticas complementares inicia-se em 1980, mas somente em 2004 foram criados grupos de trabalho multi-institucionais, a fim de conhecer, apoiar e implementar experiências na esfera da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), acupuntura, homeopatia, fitoterapia, Medicina Antroposófica e termalismo/crenoterapia, com o intuito de ampliar a oferta de ações de saúde. Em janeiro de 2017, com a Portaria n. 145/2017, novas práticas foram incorporadas à PNpic: arteterapia, meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia e Reiki (Ministério da Saúde, 2015). Em março de 2018, o rol de práticas é atualizado pela Portaria n. 702/2018 e passa a totalizar 29 modalidades terapêuticas.

A PNpic conta com canais como a Rede Nacional de Atores Sociais em PICs (RedePics) e a Comunidade de Práticas, ambas presentes também no ambiente virtual. Nessa última, são ofertados cursos gratuitos na modalidade de Ensino a Distância de Introdução à MTC, antroposofia e uso de plantas medicinais para agentes comunitários de saúde, além de fóruns, divulgação de notícias de redes de Atenção Básica, eventos e relatos de experiências. A RedePics, criada durante o II Encontro de Práticas Integrativas e Complementares do Nordeste, tem um grupo no Facebook em que são compartilhadas notícias de eventos e práticas dos atores, além de uma plataforma na qual cursos introdutórios são oferecidos para agentes de saúde e para a comunidade. No site da rede, é possível visualizar os grupos de pesquisas do CNPq com temas relacionados à PNpic, em áreas como Ciências da Saúde; entre os 57 grupos listados, 20 são de universidades federais localizadas na região Nordeste.

 

A integralidade e a atuação do psicólogo no SUS

Um dos pilares do SUS, como visto anteriormente, é o princípio da integralidade. A noção de atenção integral insere nas práticas de saúde a necessidade de diálogo entre campos de saber, para compreender os indivíduos sob outros aspectos que não apenas o biológico e, assim, identificar a necessidade de intervenção de outros profissionais e terapêuticas na produção do cuidado. Indo um pouco além, a partir da integralidade, o perfil de equipe mais afim a essa noção é o transdisciplinar, visto que a transdisciplinaridade evoca uma ação construída por sujeitos que não apenas buscam o diálogo, mas a integração dos saberes das diferentes disciplinas envolvidas.

A Psicologia é uma disciplina que não se restringe ao campo da saúde; ela transita em outras áreas, como a das ciências humanas, fato que amplia a compreensão e as possibilidades de atuação do psicólogo na saúde pública. Existe, no entanto, desde a década de 1980, uma forte crítica em relação às práticas desenvolvidas por psicólogos no âmbito da saúde, baseadas na clássica atividade de clínica tradicional, como a psicoterapia ou psicodiagnóstico. Esse fato deriva da manutenção de um currículo acadêmico tecnicista, que não prepara o futuro profissional para trabalhos em grupos e com grupos. Segundo Romagnoli (2006, p. 12), "A clínica aprendida nos cursos universitários ainda é uma clínica individual, sendo desconhecida ou desprivilegiada a atuação com grupo, criando sérios problemas, principalmente na saúde pública, que como vimos, é um campo que exige novas metodologias".

É necessário buscar soluções práticas e plausíveis para as múltiplas realidades encontradas, em especial, no trabalho no SUS. Vê-se, então, o espraiamento de um campo de questões: qual o nível legítimo da interpretação? Como integrar o saber acadêmico aos diversos saberes e práticas locais? Deve-se buscar a construção de uma saúde pública que atenda adequadamente à sua demanda ou, por outro lado, apenas adaptar à realidade os conceitos aprendidos durante a formação profissional?

Ao optar por essa última via, corre-se o risco de perder o vínculo com a multiplicidade da realidade, nos aproximando assim da construção de ações que não só rompem com a visão integral do sujeito como permitem justificar práticas que podem se tornar perversas. Além disso, torna-se um posicionamento pouco produtivo, por se pretender estar fora da discussão, fora da categoria em questão (psicólogos), uma crítica a "eles", e não a "nós".

Um dos argumentos diz respeito à tentativa de despolitização das práticas dos psicólogos e seu desdobramento mais nocivo: recortar o indivíduo do contexto em que está inserido para relacionar-se com uma espécie de tipo ideal, como se social e individual devessem ser tratados em separado por diferentes instrumentos de análise (Benevides, 2005). Essa dissociação interfere no compromisso ético-político do psicólogo na construção do SUS. Que tipo de engajamento pode ser estabelecido pelo profissional da Psicologia se ele percebe a realidade e o indivíduo como algo fragmentado? A partir disso, como esse profissional atuará em uma política que requer a construção de intervenções em conjunto com a população, sem reproduzir a lógica da prática clínica?

Na pesquisa feita com psicólogos que trabalham na rede básica de saúde das cidades de Natal e Teresina, Magda Dimenstein (2001) procura identificar o compromisso social do psicólogo que trabalha no SUS. A pesquisadora nota a reconstrução da subjetividade do psicólogo, que precisa se perceber e se permitir ser flexível o suficiente para se reinventar em resposta às demandas que surgem diariamente, sem com isso perder sua identidade profissional. Como afirma Benevides (2005, p. 23), "o processo de inventar-se é imediatamente invenção do mundo e vice-versa". É no processo de interação com o mundo que nos constituímos como atores e construímos nossas percepções acerca de nós mesmos e do universo que nos cerca.

No processo constante de construção e desconstrução de ideias, de conhecimento e de afirmação de si e do outro, surgem possibilidades de atuação, seus limites e espaços do campo ainda não explorados. É um contínuo refazer, não de forma aleatória e responsiva, mas orientada pelo desejo genuíno de afirmação da existência, a fim de possibilitar uma ação humanizada e humanizante. Ocorre também o desejo de rompimento com uma relação sujeito-objeto, mecanizada e repetitiva, que não se adequa às especificidades da população atendida. Isso igualmente serve para a relação da Psicologia com outros campos de saber, como será discutido adiante.

 

Considerações finais

A questão da identidade do profissional de Psicologia na saúde pública é algo que parece perpassar toda a discussão acerca do seu posicionamento na construção do atendimento prestado à população e mesmo do SUS. Ao reconhecer sua identidade - e, portanto, seu lugar no sistema -, posicionar-se profissionalmente implica em reconhecer também a própria responsabilidade pela cogestão do SUS e, assim, um posicionamento político diante da realidade. Percebe-se, assim, que a prática do psicólogo orientada para a transformação da realidade se articula fortemente com a atuação política quando apresenta o princípio ético da inseparabilidade: não há como se falar em cuidado sem discutir a gestão desse cuidado (Benevides, 2005).

Em relação ao significado do compromisso social, a percepção dos profissionais está muito ligada ao cumprimento de regras e aos atendimentos individuais, aos moldes do modelo clínico. Ater-se à psicoterapia expressa uma estratégia de conferir identidade ao trabalho do psicólogo, que também faz parte de uma certa disputa de poder com os psiquiatras, uma vez que eles utilizam a escuta para a prescrição farmacológica (Dimenstein, 2001). A escolha de uma atividade clássica da Psicologia, ao que parece, está também vinculada a interesses de uma categoria de afirmar-se perante os outros profissionais de saúde, demarcando seu lugar nesse campo, mesmo que se fechando em suas próprias práticas.

Essa atitude perde de vista o princípio da transversalidade, assim como o da integralidade. Ao não buscar a interação com outros campos de saber, não só deixa de haver intervenções que melhor atendam à população, mas perde-se também a oportunidade de cada vez mais construir-se como um campo de saber. Da mesma forma, é uma demarcação de seu lugar hierárquico em relação ao usuário do SUS, uma vez que também diz respeito ao reconhecimento da sociedade, do seu lugar como profissional da área de saúde. Cabe questionar o tipo de cuidado que se produz nessa relação.

A postura acrítica dos psicólogos em relação a si e aos papéis que desempenham (e podem desempenhar) oferece apenas, em se tratando especificamente aqui do serviço de saúde pública, velhas práticas para novos contextos e, ainda, defasadas formas de se pensar uma realidade dinâmica, a qual se tenta encaixar em modelos teóricos que não dão conta de compreendê-la. Dessa forma, a Psicologia opta por ser um instrumento que tenta explicar uma realidade sem se comunicar de fato com ela, limitando sua visão e, consequentemente, as possibilidades de criar em conjunto com a população a que atende soluções efetivas para as suas demandas.

Ultrapassar esse limite requer pensar processos que sejam capazes de transgredir as representações tradicionais e por vezes equivocadas; e essa capacidade, baseada na articulação dos signos, observa histórias e identidades reais. Além de intervir no processo de significação e interpelar a lógica e os topoi do conhecimento em voga, na maioria das vezes datado, abrem-se os olhos e ouvidos para discursos que foram elaborados em espaços de representação não equivalentes àqueles dominantes e homogêneos.

Os profissionais da Psicologia devem estar cada vez mais atentos ao fato de que os critérios de competência do saber podem ser variados e diferenciar-se dos habituais. Para que os profissionais de Psicologia possam atuar com os princípios da transversalidade e integralidade do sistema de saúde pública, é preciso reinscrever suas práticas no dinamismo da realidade que lhe dá sentido. Ou seja, uma atuação transversal e integradora voltada para uma apreensão dos condicionantes sociais que dão conta, nas palavras de Michel Foucault (2008, p. 24), "ou das formas ou do gêneros que opõem, umas às outras, ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção etc.". É preciso pôr em questão as sínteses acabadas da regularidade do discurso e admitir a distinção dos grandes tipos de discurso.

Finalmente, compreende-se que é fundamental avançarmos nessa discussão aliando o tema ao debate do projeto ético-político da profissão, refletindo os limites e as possibilidades da atuação profissional.

 

Referências

Aguiar, Z. N. (2015). Antecedentes e históricos do Sistema Único de Saúde: breve história da política de saúde no Brasil. In Z. N. SUS: Sistema Único de Saúde - antecedentes, percurso, perspectivas e desafios (pp. 15-40). São Paulo: Martinari.         [ Links ]

Ayres, J. R. de C. M. (2009). Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde e Sociedade, São Paulo, 18(2), 11-23.         [ Links ]

Ballarin, M. L. G. S., Ferigato, S. H., & Carvalho, F. (2010). Os diferentes sentidos do cuidado: considerações sobre a atenção em saúde mental. O Mundo da Saúde, 34(4), 444-50.         [ Links ]

Barros, F. P. C., Sousa, M. F. (2019). Equidade: seus conceitos, significações e implicações para o SUS. Saúde e Sociedade, 28(2), 6-10.         [ Links ]

Benevides, R. (2005). A Psicologia e o Sistema Único de Saúde: quais interfaces?. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, 17(2), 21-25.         [ Links ]

Beneviste, E. (2006). O aparelho formal de enunciação. In E. Beneviste. Problemas de Linguística Geral II. Campinas, SP: Pontes Editora.         [ Links ]

Costa, M. C. L. (2002). A cidade e o pensamento médico: uma leitura do espaço urbano. Mercator, 1(2), 61-69.         [ Links ]

Dimenstein, M. (2001). O psicólogo e o compromisso social no contexto da saúde coletiva. Psicologia em Estudo, Maringá, 6(2), 57-63.         [ Links ]

Foucault, M. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Mattos, R. A. (2001). Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In R. Pinheiro & R. A. Mattos (Orgs.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde (pp. 39-64). Rio de Janeiro: Uerj/IMS: Abrasco.         [ Links ]

Ministério da Saúde. 2010. Cadernos HumanizaSUS. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Ministério da saúde. (2015). Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: atitude de ampliação de acesso (2a ed.). Brasília: Ministério da saúde.         [ Links ]

Ministério da Saúde. (2000). Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília: Ministério da Saúde.         [ Links ]

Nunes, E. D. (2000). Sobre a história da saúde pública: ideias e autores. Ciência e saúde coletiva, Rio de Janeiro, 5(2), 251-264.         [ Links ]

Paim, J. S. (2009). O que é o SUS [online]. Rio de Janeiro: Fiocruz (Coleção Temas em Saúde). Recuperado de http:http://www.livrosinterativoseditora.fiocruz.br/sus/.         [ Links ]

Paim, J., Travassos, C., Almeida, C., Bahia, L., & Macinko, J. (2011). O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. Saúde no Brasil, Salvador, 1. doi: 10.1016/S0140- 6736(11)60433-9, doi: 10.1016/S0140- 6736(11)60354-1, DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60318-8, DOI:10.1016/S0140- 6736(11)60326-7 e doi:10.1016/S0140- 6736(11)60437-6.         [ Links ]

Romagnoli, R. C. (2006). A formação dos psicólogos e a saúde pública. Pesquisas e Práticas psicossociais, São João del-Rey, 1(2). Recuperado de https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistalapip/RobertaRomagnoli.pdf.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 25/4/2018
Aprovado em: 6/8/2020

 

 

1 A Revolta da Vacina foi uma reação popular ocorrida no período de 10 a 16 de novembro de 1904 na cidade do Rio de Janeiro, motivada pela regulamentação da lei que decretava obrigatoriedade de vacinação contra a varíola em todo o território brasileiro. A população, já insatisfeita com as desapropriações e demolições de moradias, além das ações das brigadas sanitaristas, como remoção de doentes e inspeção residenciais com apoio da força policial, se manifestou contra as medidas, o que resultou num conflito reprimido com forte ação da polícia. Depois do episódio, a vacinação passou a ser opcional (Aguiar, 2015; Carvalho apud Paim, 2006).

Creative Commons License