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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2021

 

Subjetividade e espaço: análises com Michel Foucault

 

Subjectivity and Space: Analysis with Michel Foucault

 

Subjetividad y espacio: análisis con Michel Foucault

 

 

Diego Henrique da Silva TrujilloI; Flávia Cristina Silveira LemosII; Leandro Passarinho Reis JúniorIII; Paulo de Tarso Ribeiro de OliveiraIV

IPsicólogo graduado pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Psicologia Social pela UFPA
IIPsicóloga graduada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutora em História pela Unesp. Profa. Associada II de Psicologia Social da UFPA. Bolsista de produtividade em pesquisa PQ2 CNPq
IIIPsicólogo. Doutor e mestre em Educação. Prof. adjunto II de Psicologia da Educação da Universidade Federal do Pará (UFPA)
IVPsicólogo. Doutor e mestre em Saúde Coletiva pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp-Fiocruz). Professor associado III de Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA)

 

 


RESUMO

O artigo é um ensaio sobre o conceito de espaço e o de subjetividade nos trabalhos de Michel Foucault, articulando Psicologia, História e Filosofia, sendo um dos objetivos é analisar como o espaço foi abordado ao longo do trabalho de Foucault. Um ponto relevante é a interrogação sobre espaço como objeto exclusivo da Geografia ou de qualquer outro saber e da problemática das estratégias de poder no espaço e na criação de modos de viver, sentir e pensar. Os mecanismos de controle são acionados e se dirigem aos corpos, visando estabelecer e traçar limites nas relações móveis das forças no campo da formação da subjetividade assujeitada. Busca-se concluir o artigo com uma análise inquietante da importância do conceito de espaço e propõe-se a ruptura das fronteiras disciplinares para operar uma analítica do poder, saber e subjetividade no jogo estratégico dos poderes e dos discursos, em arquivos e por meio das instituições.

Palavras-chave: Subjetividade. Espaço. Foucault. Psicologia. História.


ABSTRACT

The article is an essay on the concept of space and that of subjectivity in the works of Michel Foucault, articulating Psychology, History and Philosophy. One of the objectives is to analyze how the space was approached, throughout the work of Foucault. A relevant point is the question about space as the exclusive object of Geography or any other knowledge and the problematic of strategies of power in space and the creation of ways of living, feeling and thinking. The control mechanisms are activated and directed to the bodies, aiming to establish and draw limits in the mobile relations of the forces in the field of subjectivity formation. The paper seeks to conclude the article with a disturbing analysis of the importance of the concept of space and proposes the rupture of the disciplinary boundaries to operate an analytic of power, knowledge and subjectivity in the strategic game of powers and discourses, in archives and through institutions.

Keywords: Subjectivity. Space. Foucault. Psychology. History.


RESUMEN

El artículo es un ensayo sobre el concepto de espacio y el de subjetividad en los trabajos de Michel Foucault, articulando Psicología, Historia y Filosofía. Uno de los objetivos es analizar cómo el espacio fue abordado, a lo largo del trabajo de Foucault. Un punto relevante es la interrogación sobre espacio como objeto exclusivo de la Geografía o de cualquier otro saber y de la problemática de las estrategias de poder en el espacio y en la creación de modos de vivir, sentir y pensar. Los mecanismos de control son accionados y se dirigen a los cuerpos, buscando establecer y trazar límites en las relaciones móviles de las fuerzas en el campo de la formación de la subjetividad asujetada. Se busca concluir el artículo con un análisis inquietante de la importancia del concepto de espacio y se propone la ruptura de las fronteras disciplinares para operar una analítica del poder, saber y subjetividad en el juego estratégico de los poderes y de los discursos, en archivos y por medio instituciones.

Palabras clave: Subjetividad. El espacio. Foucault. Psicología. Historia.


 

 

Introdução

Atentando-se para sobre a questão do conceito de espaço e subjetividade nos trabalhos de Foucault, é que no presente trabalho busca-se trabalhar com a noção de espaço como operador de análise nas diferentes formas em que o pensamento de Foucault apresentou nas obras que tratam do poder disciplinar. Sendo assim, será empreendida uma tentativa de compreensão das diferentes formas que o filósofo efetuou em suas produções que tratam acerca da relação entre verdade, espaço, poder e processos de subjetivação por meio de ferramentas metodológicas que o filósofo utilizara em suas pesquisas históricas sobre poder e assujeitamento. Na entrevista concedida ao jornal francês Hérodote, intitulada "Sobre a Geografia", presente no livro Microfísica do Poder (1979), Foucault assinalou que a Geografia devia estar bem no centro das coisas de que se ocupava. O entrevistador (o geógrafo Yves Lacoste) ressaltou que ele se referia frequentemente a historiadores como: Lucien Febvre, Braudel e Le Roy Ladurie. Historiadores esses que tentavam dialogar com a Geografia e instaurar uma espécie de geo-história ou uma antropogeografia.

O entrevistador apontou que até então os estudos de Foucault tinham um cuidado rigoroso com a periodização e que suas pesquisas tinham um caráter deliberadamente histórico ou arqueológico, o que privilegiava o fator temporal em seus trabalhos, mas que contrastavam com o caráter indefinido e de relativas indeterminações das localizações. Em seguida, apontou que, mesmo com a falta de precisão espacial em suas pesquisas, metáforas espaciais eram constantemente utilizadas. Essas metáforas espaciais às quais Yves Lacoste fez referência são noções largamente utilizadas pela Geografia, tais como: território, domínio, solo, horizonte, arquipélago, geopolítica, região, paisagem. Foucault aponta que, por exemplo, as noções de território e de domínio são noções jurídico-políticas; a noção de solo é histórico-geológica; região é noção fiscal, administrativa e militar; horizonte é noção pictórica, mas também estratégica. Depois de o entrevistador enfatizar que a noção de "região" dos geógrafos é a mesma que a "região" militar (que vem de regere, comandar; e província vem de território vencido, vincere), que o campo remete ao campo de batalha, Foucault explana que foi muito reprovado por tais obsessões espaciais, e que de fato elas o obcecaram. Porém ele acreditava que por meio delas ele descobrira o que procurava: as relações que podem existir entre saber e poder.

Desde o momento em que se pode analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de deslocamento, de transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber funciona como um poder e reproduz os seus efeitos. Existe uma administração do saber, uma política do saber, relações de poder que passam pelo saber e que naturalmente, quando se quer descrevê-las, remetem àquelas formas de dominação a que se referem noções como campo, posição, região, território. E o termo político-estratégico indica como o militar e o administrativo efetivamente se inscrevem em um solo ou em formas de discurso. Quem encarasse a análise dos discursos somente em termos de continuidade temporal seria necessariamente levado a analisá-la e encará-la como a transformação interna de uma consciência individual. Construiria ainda uma grande consciência coletiva no interior da qual se passariam as coisas. (Foucault, 1979b, p. 90).

Percebe-se então nos estudos históricos que Foucault empreendera uma forma de analisar os discursos, não por intermédio de uma busca de sentidos implícitos à formação dos saberes, mas de buscar, nestes, diferentes estratégias que possibilitaram suas constituições como produtores de verdade. O uso de metáforas espaciais nas pesquisas de Foucault sobre os discursos nos mostra uma das vertentes espaciais em suas obras.

Ainda na entrevista, foi ressaltado que em Vigiar e Punir (1975) ele foi além das metáforas espaciais em relação ao discurso, na medida em que tratou também de instituições em termos de arquitetura, de figuras espaciais. Falou sobre uma rede de micropoderes descentralizada, coordenação transversal de instituições e tecnologias. Por outro lado, há a institucionalização de hospitais, escolas, casas de correção em torno do aparelho do Estado e também uma polícia centralizada, exercendo uma vigilância permanente, capaz de tornar tudo visível à condição de se tornar ela própria invisível. Lemos (2012), sobre essa questão, diz que Foucault passou a utilizar como ferramenta de análise da sociedade a planta da arquitetura do panóptico, o qual além de ser utilizado nas prisões também foi utilizado para controlar os corpos e populações preventivamente em outros equipamentos parajudiciários de caráter disciplinar individual e de gestão da vida de determinados segmentos da população. Tal tecnologia era entendida como um modelo ideal para propiciar máxima visibilidade e articulação de informações e de diversas estratégias relacionadas a saberes e poderes. Sobre a utilização do panoptismo como tecnologia de controle dos corpos e do espaço, a autora escreve:

Dessa maneira, o panóptico era uma tecnologia utilizada para gerir a população no âmbito das migrações e de seus supostos perigos; no fluxo nas estradas; para regular a urbanização nas cidades e nas moradias; fazer circular os produtos pelos rios e mares; ao administrar um território; tornar um local alvo de investimento para capitalizá-lo; ao desfazer as aglomerações indesejadas; para impedir a circulação considerada arriscada; com o objetivo de controlar as relações entre o campo e a cidade; com vistas a distribuir as dissimetrias; com estratégias para estabelecer uma geometria da cidade e favorecer a higiene pública com fins de garantia do consumo; diminuir os perigos de uma circulação desordenada e urbanizar o meio como a metáfora de um organismo funcional, constituindo regras para o aumento ou diminuição do número de habitantes por espaço. (Lemos, 2012, p. 141).

Portanto, uma outra vertente espacial nas pesquisas de Foucault - dessa vez acerca da descrição de uma tecnologia que, mediante determinada organização estratégica, poderia não só gerir a localização e o fluxo de pessoas, mas também produzir e transmitir informações sobre as populações para fins de controle, bem como para evitar possíveis revoltas e epidemias. Em uma entrevista concedida a Paul Rabinow para a revista Skyline em 1982, intitulada "Espaço, Saber e Poder", Foucault aponta que no século XVIII assiste-se ao desenvolvimento de uma reflexão sobre Arquitetura em função de objetivos e técnicas de governo das sociedades. Diz ainda que naquele mesmo século começa a aparecer uma Literatura política sobre como deve ser a ordem de uma sociedade, o que deve ser uma cidade, tendo em conta as exigências de manutenção da ordem, a fim de que também se evitem epidemias, revoltas, permitindo uma vida familiar, decente e moral. Não é que antes do século XVIII não houvesse algum debate acerca da relação entre Arquitetura e política, mas Foucault (1982) observa que a partir desse século todos os tratados que consideram a política como arte de governar homens incluem, necessariamente, um ou mais capítulos sobre urbanismo, equipamentos coletivos, higiene e Arquitetura privada. A respeito dessa questão da Arquitetura e do espaço como objetos essenciais para os homens políticos, Foucault (1982, p. 4), assevera que:

Bom, penso que terá a ver com um conjunto de fenômenos - por exemplo: o problema da cidade e a ideia, claramente formulada no início do século XVII, de que o governo de um grande Estado, como a França, deve pensar o seu território segundo o modelo da cidade. A cidade deixa de ser compreendida como um lugar privilegiado, uma exceção num território de campos, florestas e estradas. As cidades deixam de ser ilhas que escapavam à lei comum. Pelo contrário, com os problemas que levantavam e as formas particulares que desenvolveram, as cidades passam a servir de modelo para uma racionalidade governamental que se aplicará ao território no seu conjunto.

Portanto, toda uma série de utopias ou projetos de governo de território que partem da ideia de que o Estado é uma grande cidade, que seria então o modelo de onde se produziriam as regras que se aplicariam ao Estado - e dentro do território deveria se aplicar um programa de racionalidade governamental denominado "polícia", sendo esta um sistema de regulamentação da conduta geral dos indivíduos para que tudo fosse controlado, até que as coisas se sustentassem por elas mesmas, sem a necessidade de nenhuma intervenção. (Foucault, 1982, p.4.). Percebeu-se então no século XVIII, a partir da questão do liberalismo, que uma racionalidade que visasse governar todos os segmentos da sociedade em todas suas minúcias não fazia sentido. A ideia de sociedade mudou essa visão. Uma noção diferente que deveria ser levada em consideração para se pensar a gestão do território, pois a sociedade apresentava uma realidade complexa e independente com leis próprias e mecanismos de reação, regulamentações específicas e desordem possível. Portanto, uma noção incompatível com a racionalidade de intervenção policial, fazendo-se necessário inclusive refletir sobre suas características específicas, suas constantes e suas variáveis (Foucault, 1982, p. 5).

A partir daí, surgem toda uma espécie de saberes e de práticas colocando problemas de ordem social como fundamentais para o governo das populações e das questões espaciais que lhes perpassavam. Tanto médicos como militares foram administradores do espaço coletivo, agindo por meio de racionalidades da Economia, da política, da Geografia, da Estatística e da História. Em nome de uma defesa social e de uma gestão do território, higienizavam a cidade em função de cuidadosas circulações, fazendo a liberdade funcionar nos limites de práticas de segurança (Lemos, 2012, p. 141). A autora destaca ainda que Foucault abordou tanto em Vigiar e Punir (1975) quanto em Segurança, Território e População (1977-1978) os três modelos analíticos de funcionamento dos mecanismos de repartição dos corpos no espaço:

O primeiro, realizado pela soberania jurídica, é o modelo da lepra, em que se separavam leprosos de não leprosos por meio de uma exclusão social. O segundo, realizado pela disciplina, é o modelo da quarentena ou de gestão da peste, a qual permitia quadricular a cidade e regular a circulação com estratégias de vigilância. O terceiro, realizado pelas técnicas de segurança e de tratamento do aleatório, é o modelo do governo da varíola, embasado no cálculo probabilístico dos acontecimentos (Lemos, 2012, p. 142). Por conseguinte, diferentes formas de gestão dos corpos no espaço que, mesmo provenientes de outro período histórico, funcionam ainda na atualidade. Em relação, por exemplo, à medicalização da cidade, Foucault (1979c, p. 47) diz que

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica.

Esse trecho, que faz parte do texto "O Nascimento da Medicina Social", questiona a ideia de que a Medicina se tornou social no século XIX por questões de caráter produtivista em função do aumento populacional em algumas cidades europeias. Ele mostra que, ao exemplo da Alemanha, a Medicina, mesmo no século XVIII, já cumpria um papel de gestão dos corpos para o Estado. Naquele mesmo século, na França, Medicina e Química se articularam em torno do esquadrinhamento da cidade a fim de evitar epidemias pelo método da quarentena.

Foucault destaca, porém, que o modelo inglês de medicalização (Medicina dos pobres), englobou os outros dois modelos, mas que apresentava como novidade a articulação entre tratamento médico e assistência social, obrigando não só que os pobres para obter ajuda do Estado tivessem que se submeter ao tratamento médico, mas também que fossem separados dos ricos por limites estabelecidos dentro da própria cidade. Já a questão do sistema prisional, tratada por Foucault em Vigiar e Punir, trata também acerca da tecnologia disciplinar, que não utiliza apenas da clausura num determinado espaço como assujeitamento dos corpos, mas que lhes individualizam numa localização que os distribuem e lhes fazem circular numa rede de relações (Foucault, 1999, p. 123-125, apud Lemos, 2012, p. 144). A disciplina é a técnica de poder que fabrica os indivíduos ao utilizar como plataforma uma anatomia política do corpo. A distribuição e repartição superficial dos corpos em um espaço determinado os tornam úteis e dóceis; mas pela docilização e otimização dos corpos visa-se à constituição de um incorporal, de uma subjetividade docilizada (Candiotto, 2012, p. 20).

A análise do poder disciplinar possibilita pensar numa sociedade governamentalizada à normalidade subjetivada por intermédio de diferentes espaços (escolares, hospitalares etc.), em um sistema atual de repartição das multiplicidades em espaços vizinhos, judiciários e adjacentes a esses a fim de problematizar as práticas divisórias e seus efeitos políticos, econômicos, sociais, subjetivos e históricos (Lemos, 2012, p.144). No curso "Segurança, Território e População" (1977-1978), Foucault diz que nos mecanismos de poder de soberania, os disciplinares e os biopolíticos encontram-se respectivamente nestas tarefas: o primeiro na gestão de um território submetido ao soberano; o segundo objetivando o controle cotidiano dos corpos de forma minuciosa, em relação à distribuição destes no espaço; e o terceiro gerindo a população em nome da vida com objetivos de segurança (Lemos, 2012, p. 144).

Ora, as relações de poder são exercidas intramuros e extramuros, acontecendo sempre em algum espaço, por isso, os mecanismos disciplinares e biopolíticos governam populações e corpos em um lugar específico, regulando os processos de circulação como gestão das multiplicidades. "Portanto, afinal, a soberania, a disciplina, como também, é claro, a segurança só podem lidar com multiplicidades. Por outro lado, os problemas de espaço são igualmente comuns a todas as três" (Foucault, 2008, pp. 16-17, apud Lemos, 2012, p. 145). Há ainda uma outra reflexão acerca do espaço que merece ser destacada na obra de Foucault. No texto "Heterotopias: de espaços outros" (1984), o filósofo diz que a própria noção de espaço tem a sua história, e que mais do que problemas de ordem histórica lidamos atualmente com problemáticas de caráter espacial. Para ele, continuamos a enfrentar um processo de dessacralização do espaço - o qual se iniciou com Galileu ao estabelecer um espaço infinito, o espaço de extensão, que se opôs ao espaço finito e de localização da idade média (Foucault, 1984, p. 3).

Essa dessacralização diz respeito à vida governada por uma série de oposições que não podemos tocar e que a instituição e a prática não ousaram violar: oposição entre o espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço funcional, entre o espaço do lazer e o espaço do trabalho. E em todas essas oposições reside oculta ainda a ideia do sagrado (Foucault, 1984, p. 2). Foucault (1984, p. 3) fala da importância de se pensar a vivência no espaço da perspectiva "do fora":

O espaço no qual vivemos, que nos conduz para fora de nós mesmos, no qual a erosão de nossas vidas, nosso tempo e nossa história acontecem, o espaço que agarra e nos ataca, é também em si mesmo um espaço heterogêneo. Em outras palavras, nós não vivemos em uma espécie de vazio dentro do qual poderíamos colocar indivíduos e coisas. Nós não vivemos dentro de um vazio que poderia ser colorido com diferentes gradações de luz, vivemos dentro de um conjunto de relações que definem lugares, que são irredutíveis uns aos outros e certamente não sobrepostos uns aos outros.

Depois de um breve percurso acerca das inquietações que Foucault introduzira nas discussões sobre o poder, percebe-se que ele nunca esteve alheio ao considerar o espaço como uma questão fundamental para uma abordagem filosófica. Pensar historicamente a utilização do espaço como categoria que excede a disciplina geográfica, colocando-o no cerne das relações de poder, é de suma importância quando se busca compreender que o processo de subjetivação é envolvido por variados discursos, capturas do corpo por mecanismos que permeiam politicamente os espaços, seja quando eles são perpassados por apreciações de normalidade, seja quando tecnologias são utilizadas para uma docilização em proveito de um utilitarismo para fins produtivos. É nesse entremeio que o presente trabalho se propõe investigar e explorar de que forma Foucault abordou o espaço em suas obras sobre o poder disciplinar (1973-1979) e de que forma ele o relacionou à subjetividade, ou melhor, ao processo de assujeitamento que os mecanismos disciplinares fazem funcionar na sociedade.

 

Arqueologia, genealogia e espaço

Na entrevista "O Olho do Poder", em Microfísica do Poder (1979d), Foucault disse que, quando estava estudando sobre as origens da Medicina clínica, ele havia pensado em realizar um estudo sobre a Arquitetura hospitalar na segunda metade do século XVIII, época da grande movimento de reforma das instituições médicas. Ele queria saber como o olhar médico havia se institucionalizado, como ele havia se inscrito efetivamente no espaço social, como a nova forma hospitalar era ao mesmo tempo efeito e o suporte de um novo tipo de olhar. Ao examinar os diferentes projetos arquitetônicos elaborados depois do segundo incêndio do Hôtel-Dieu, em 1772, ele percebera a importância de questões relacionadas com o problema da visibilidade total dos corpos, dos indivíduos e das coisas para um olhar centralizado. No caso do hospital, tratava-se de evitar problemas relacionados ao contato, aos contágios, às proximidades e aos amontoamentos, garantindo a ventilação e a circulação do ar - e ao mesmo tempo dividir o espaço e deixá-lo aberto, assegurar uma vigilância que fosse ao mesmo tempo global e individualizante, separando cuidadosamente os indivíduos que deviam ser vigiados. Foucault disse acreditar por muito tempo que a preocupação com a distribuição dos indivíduos em função de um ordenamento espacial fosse um problema da Medicina, mas ao estudar documentos relacionados à penalidade, ele percebeu que na primeira metade do século XIX (época da reforma das prisões) que a maioria dos textos relacionados ao tema fazia referência ao projeto panóptico de Jeremy Bentham.

O filósofo diz ainda que a questão da visibilidade por um ponto central já era colocado por escolas militares. Ele dá como exemplo os dormitórios da Escola Militar de Paris de 1751, na qual cada aluno se situava em uma cela envidraçada onde ele podia ser visto durante a noite sem ter nenhum contato com seus colegas, nem mesmo com os empregados. Foucault diz que o irmão de Bentham, ao visitar essa Escola Militar, teve a ideia do panopticon. A ideia do panopticon poderia ser anterior a Bentham, mas foi ele que a formulou, a batizou, e diz Foucault ainda que a própria palavra panopticon foi fundamental. Bentham dizia que sua invenção era o "Ovo de Colombo" - ideia que médicos, penalistas, industriais e educadores procuravam para resolver seus problemas relacionados à vigilância.

Ainda na mesma entrevista, Foucault diz que no fim do século XVIII a Arquitetura começa a se especializar e a se articular com problemas da população, da saúde, do urbanismo. Se antes as construções giravam em torno apenas da força soberana, divina, a partir desse período elas começaram a levar em consideração o espaço como motor para alcançar objetivos econômico-políticos. Objetivos que podem ser encontrados também na própria forma em que os espaços das moradias começaram a ser administrados. Se antes o espaço interno da casa não passava de um espaço indiferenciado, posteriormente foi tornando-se específico e funcional: lugar para comer, lugar para os pais dormirem, lugar para as crianças dormirem, ou seja, uma administração moral da vida dentro do espaço familiar. A respeito desse tema, Foucault (1979d, p. 116) diz que

seria preciso fazer uma "história dos espaços" - que seria ao mesmo tempo uma "história dos poderes" - que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica até as pequenas táticas do habitat, da arquitetura institucional, da sala de aula ou da organização hospitalar, passando pelas implantações econômico-políticas.

Observa-se, principalmente a partir do século XVIII, a partir de questões suscitadas pela população, a necessidade de gerência desta por uma administração espacial, a qual foi se especializando em torno não só das mais variadas instituições, mas como no próprio interior da vida familiar. É como se o poder, a partir dessa óptica espacial, fosse a dimensão que procura atingir o indivíduo em todos os lugares em que poderia ocupar na sociedade. Até mesmo a preocupação histórica com o espaço, diz Foucault (1979d), foi muito negligenciada, pois era compreendido apenas em sua forma de natureza, ou pertencendo à Geografia física, algo "pré-histórico". O que importava era apenas o espaço entendido como substrato ou a partir de suas fronteiras, entretanto, o filósofo aponta que é necessário que se pense a fixação espacial como uma forma político-econômica, a qual merece ser estudada detalhadamente.

Foucault situa ainda tal negligência do estudo do espaço no fim do século XVIII, quando a Física teórica e experimental destituía a Filosofia de falar sobre questões do mundo, do cosmos, do espaço finito ou infinito. Diz ainda que esse duplo assenhoramento do espaço por uma tecnologia política e por uma prática científica lançou a Filosofia numa problemática acerca do tempo. E que a partir de Kant, filósofos como Hegel, Bergson e Heidegger utilizavam a Filosofia para pensar sobre o tempo e, por outro lado, desmereciam o estudo do espaço, visto que seria algo da ordem do morto, do imóvel, do inerte. Para Foucault, Bentham é o complemento de Rousseau, pois tanto este quanto outros pensadores da Revolução Francesa sonhavam com uma sociedade transparente, ao mesmo tempo visível e legível em cada uma de suas partes; "que não haja nela zonas obscuras, zonas reguladas pelos privilégios do poder real, pelas prerrogativas de tal ou tal corpo ou pela desordem; que cada um, do lugar que ocupa, possa ver o conjunto da sociedade, que os corações se comuniquem uns com os outros, que os olhares não encontrem mais obstáculos, que a opinião reine, a de cada um sobre cada um" (Foucault, 1979d, p. 118).

Em suma, os acontecimentos da Revolução Francesa colocavam em jogo alguns dos preceitos do poder soberano, pois este, com seu excesso de demonstração de poder, deixava falhas, lacunas a respeito do governo das populações, que agora se tornavam problemáticas, e isso por várias razões. Quando os pensadores revolucionários do século XVIII indagavam-se acerca de uma nova justiça, a qual deveria ser a instância de julgamento, designaram que esta seria a "opinião". Portanto, sonhavam com uma sociedade em que a opinião fosse aquilo que impediriam os homens de fazer o mal, e, para tanto, os espaços obscuros, que dificultam o acesso e os olhares, deveriam ser iluminados não só por um poder central (como o panóptico designa), mas por tudo e por todos. Como Foucault (1979d, p. 280) diz na entrevista, "lirismo de Rousseau, obsessão de Bentham".

Ao lado dessas utopias acerca de um modelo de sociedade, cuja visibilidade seria fundamental para garantir a justa relação entre os homens, as disciplinas com suas tecnologias fundamentaram a utilização dos espaços e de suas redes de comunicação como uma das principais formas de gerir a acumulação dos corpos. Muitos saberes sobre esses corpos foram construídos a partir das diversas estratégias que se organizaram em torno de acontecimentos econômicos, políticos, históricos e sociais. A dominação se torna uma regra, o espaço um campo de possibilidade e a disciplina um instrumento. A fim de problematizar o espaço nos estudos históricos de Foucault sobre as relações entre saber, poder e subjetivação, é necessário observá-lo por uma óptica não restrita, disciplinada, sujeita, portanto, a um escopo teórico-metodológico, por exemplo da Geografia. Colocar, destarte, a noção de espacialidade em suspensão para que se obtenha uma criticidade do pensamento em proveito de um trabalho filosófico que pode contribuir para problematizar práticas da Psicologia, da Medicina, da Psiquiatra, da Educação, da própria Geografia, entre outras ciências. Em seu curso inicial no Collège de France, proferido em 1970, Foucault fala dos vários mecanismos discursivos de controle, entre os quais no presente trabalho se destaca "as disciplinas". Não confundi-las, no entanto, com as disciplinas que se objetivará neste estudo (disciplina como tecnologia de controle do corpo), mas disciplina no seguinte caso:

[...] um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pôde servir-se dele, sem que seu sentido ou sua validade estejam ligados a quem sucedeu seu inventor. (Foucault, 2013, p. 28).

Entender, assim, que a disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Trata-se então de desdisciplinarizar o conceito de espaço, de maneira que ele seja problematizado historicamente e ampliado em sua dimensão de saber para que se possa aprofundar estudos referentes em torno das relações espaciais em seus diversos perpassamentos políticos.

Espaço corpo-controle

Na entrevista "Poder-Corpo" (1979g), Foucault afirma que no século XVII o corpo do rei não era uma metáfora, mas uma realidade política, na qual sua presença física era necessária ao funcionamento da monarquia. Entretanto, no decorrer do século XIX, é o corpo da sociedade que se torna o novo princípio, visto que será necessário protegê-lo de uma forma quase médica. Ele diz ainda que em lugar dos rituais referentes à integridade do corpo do monarca, ao corpo social serão aplicadas receitas terapêuticas, como a eliminação dos doentes, o controle dos contagiosos e a exclusão dos delinquentes. Diz-se então sobre uma materialidade do poder que passa a ser exercida sobre os corpos. Foucault assevera, sobretudo, que o poder penetrou no corpo e que se encontra exposto no próprio corpo, de maneira que a relação entre o poder e o corpo é da ordem da batalha, da estratégia de uma luta. O poder pode recuar, deslocar-se, investir-se em outros lugares. A fim de exemplificar esse jogo de forças em torno do corpo, o filósofo fala da preocupação com a masturbação no século XVIII. Diante de um medo sobre a masturbação dos jovens, começou-se a se vigiar e controlar os corpos das crianças. Todavia, uma vez que a questão da sexualidade começava a se tornar um objeto de preocupação e análise, produzia-se ao mesmo tempo a intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo.

Partindo dessa premissa de que se pode localizar desde há tempos uma tentativa de captura e controle do corpo por variadas instâncias de poder e discursos de verdade, é que Foucault critica a noção de que as sociedades burguesas e capitalistas teriam negado a realidade do corpo em proveito da alma, da consciência, da idealidade, e isso porque para ele não existe nada mais material, mais físico e corporal do que o poder manifestando-se em seu exercício. Destarte, uma crítica às formas tradicionais de análises marxistas sobre o poder, e também sobre análise de paramarxistas sobre o poder, pois ao citar o pensamento de Marcuse sobre o poder repressivo, Foucault diz que o sociólogo alemão compreendia que o poder só teria a função de reprimir, censurar, excluir, impedir, recalcar (como se fosse um grande superego). Para o filósofo francês, o que torna o poder realmente forte é o fato de ele produzir efeitos positivos em nível do desejo e em nível do saber, pois só foi possível constituir um saber sobre o corpo por meio de um conjunto de disciplinas militares e escolares. Além disso, a partir de um poder sobre o corpo, é que foi possível um saber fisiológico e orgânico.

Foucault ressalta ainda que a noção de poder repressivo que se localiza no Estado é perigosa, porque ignora os processos disciplinares de saber e poder que perpassaram e continuam a perpassar o corpo, de maneira que se fazem necessárias análises que versem sobre a série de ofensivas e contraofensivas, de efeitos e contraefeitos do poder para que se possa chegar ao tão complexo estado atual de forças e ao perfil contemporâneo da batalha. Enfim, para que se possa analisar a lógica das estratégias que se opõem umas às outras. "É pelo estudo dos mecanismos que penetram nos corpos, nos gestos, nos comportamentos, que é preciso construir a arqueologia das ciências humanas" (Foucault, 1979g, p. 86).

Um dos papeis fundamentais dos estudos de Foucault sobre o funcionamento do poder em sua micropolítica, em sua sutileza, ao longo de todo o campo social, é justamente fazer uma demonstração da diferença entre o poder de soberania e o poder disciplinar, sobre o qual ele demonstrou, com diversas fontes históricas, descontinuidades e continuidades dessa modalidade de exercício de um poder docilizador, utilitarista, que produz saber, crucial para o desenvolvimento de várias ciências humanas e do aparelho de produção capitalista, tal qual a atualização no tempo presente de seu processo de sujeição durante toda a vida dos indivíduos.

Para uma melhor compreensão dessa diferença do manejo do corpo na soberania e no desenvolvimento do poder disciplinar, uma breve explanação sobre a relação do soberano com o corpo, e de como alguns instrumentos, tecnologias e mecanismos disciplinares vêm a configurar o que algumas ciências, em especial a Psicologia, elencaram como objeto, por meio de uma série de desdobramentos de saber-poder, a dimensão psíquica do indivíduo. A relação de soberania, característica da Idade Média, que perpassou com suas diferenças a Idade Moderna até os dias atuais, se distingue de uma relação de poder disciplinar, que utiliza o corpo de uma maneira mais detalhada, mais minuciosa. O poder na soberania, como Foucault aponta no curso "O Poder Psiquiátrico" (2012), vincula soberano e súdito segundo um par de relações assimétricas, as quais podem ser visualizadas justamente na forma em que o corpo era posto à prova do poder real durante o ritual supliciante. Ainda no referido curso, Foucault ressalta que a soberania sempre traz consigo a marca de uma anterioridade fundadora, e isso implica na assimetria de uma relação que consiste num juramento de fidelidade, num ato de submissão, um ato firmado entre o soberano que concede privilégios, uma ajuda, uma proteção etc., e alguém que, em compensação, se empenha, ou tem de haver algo com nascimentos, direitos de sangue (Foucault, 2012, p. 53). Além disso, a soberania é reatualizada por gestos, sinais, hábitos, obrigações de cumprimento, sinais de respeito, insígnias, brasões etc., que, no entanto, configura frágeis relações de poder sempre passíveis de ruptura. E é justamente nesse aspecto frágil da relação que se faz necessário um suplemento ou uma ameaça de violência, a qual se pode evidenciar na tortura do ritual do suplício. Importante ressaltar também que as relações de caráter soberano não se dirigem às multiplicidades humanas, ou seja, às características singulares dos indivíduos, pois é uma relação que tem como objeto uma terra, uma estrada, um instrumento de produção (um moinho, por exemplo), os usuários - as pessoas que passam por um pedágio, uma estrada, caem sob a relação de soberania (Foucault, 2012, p. 55). O filósofo francês, ao falar dessa espécie de distanciamento do poder soberano em relação a uma especificidade do corpo, isto é, de um indivíduo, mostra que o que ele chamou de função-sujeito se desloca e circula acima e abaixo das singularidades somáticas, ou seja, é essa característica da soberania que deixa margem para que os corpos circulem, desloquem-se, apoiem-se aqui ou ali, fujam. Nesse caso, a questão da multiplicidade de corpos é a que faz referência à continuidade do corpo do rei, isto é, a necessidade da existência física, material do corpo soberano, o qual se encontra no topo, no qual todas as relações convergirão para.

O indivíduo como "efeito" do panóptico

Se de um lado a soberania se direciona especialmente aos produtos pelo sistema de coleta-despesa, outra modalidade de poder que surge em localizações dispersas, e que visam à apropriação do corpo e do tempo em sua totalidade, entra em ação: a disciplina. Foucault explicita essa diferença na questão na disciplinarização do exército no século XVIII. O filósofo utiliza como exemplo a Guerra dos Trinta Anos, que ocorreu no século XVII, na qual não havia exércitos disciplinados, apenas uma perpétua passagem da vagabundagem ao exército, o qual era formado por grupos de pessoas que iam lutar pela possibilidade de saque de comida e até pela ocupação dos locais que se conseguia encontrar.

Quando a disciplina passa a ser utilizada em espaços militares, vai haver um confisco geral do corpo, do tempo, da vida. E Foucault crê que todo sistema disciplinar ocupa-se do tempo, da vida e do corpo do indivíduo. O controle do corpo é fundamental na lógica do poder disciplinar. Em vez de se manifestar apenas no corpo mediante uma violência que marca simbolicamente alguém torturado pelo suplício, ou quando multiplicidade somática se refere apenas à necessidade de se assegurar a continuidade da anterioridade fundadora materializada no corpo do rei, o poder disciplinar opera pelo exercício progressivo dos detalhes corporais, almeja um crescimento, um aperfeiçoamento das habilidades, que visa a um fim determinado ou a um estado ótimo, por meio de procedimentos de vigilâncias constantes e de brandas punições, as quais permitem que o poder disciplinar atue antes mesmo que um ato considerado desviante possa vir a se tornar realidade.

Para Foucault, no poder disciplinar o caráter de vigilância e visibilidade contínuas também se realiza por meio de escritas, de registros, de tudo o que o indivíduo faz. É o que ele chama de princípio de onivisibilidade da disciplina, a qual passou a ser utilizada em oficinas, escolas, no exército, em registros policiais. Ele diz ainda que a relação da escrita com o corpo tem por efeito uma individualização esquemática e centralizada. Essa é a função panóptica no poder disciplinar, a qual "organiza uma polaridade genética do tempo; procede a uma individualização centralizada que tem por suporte e por instrumento a escrita; enfim, implica uma ação punitiva e contínua sobre as virtualidades do comportamento, que projeta atrás do próprio corpo algo como uma psiquê" (Foucault, 2012, p. 65).

Depois de explicar sobre o caráter isotópico dos sistemas disciplinares, ou seja, pela possibilidade de os elementos na disciplina serem intercambiáveis mediante o desempenho ou por um desvio da norma, Foucault fala que existem pontos-limite na disciplina, o que quer dizer que haverá situações em que um corpo será considerado desviante, um resíduo, inclassificável perante os padrões impostos por uma disciplina. O militar que deserta, a criança que não acompanha o processo considerado normal pelo padrão de aprendizagem, o delinquente que escapa da disciplina policial são todos considerados elementos residuais no sistema disciplinar ao qual estão submetidos, porém, Foucault assevera que o doente mental é aquele inassimilável por todas as disciplinas, sejam elas escolares, militares, sejam policiais etc., e por ser considerado o mais residual de que todos os outros, será necessário a implementação de sistemas disciplinares residuais para dar conta dele.

Foucault (2012) então conclui que o maior efeito do poder disciplinar é o de remanejar em profundidade as relações entre a singularidade somática, o sujeito e o indivíduo, pois, ao contrário do poder soberano, no topo dos sistemas disciplinares, a função individual desaparece, já que no primeiro caso o corpo que se torna objeto do assujeitamento é passível de classificação, registro e vigilância contínua pelos espaços responsáveis por sua captura. O filósofo discute que a função-sujeito vem a se superpor e a se ajustar exatamente à singularidade somática, o que significa que o poder disciplinar é individualizante pelo fato de que, a partir dessa relação, o corpo é assujeitado. Ele é individualizante, pois assegura a função-sujeito à singularidade somática por meio de um sistema de vigilância escrita ou pelo panoptismo de caráter pangráfico, responsável por projetar um núcleo de virtualidades, ou uma psiquê sobre um determinado indivíduo, para sintetizar essa discussão sobre a relação entre o poder político dos sistemas disciplinares e a fabricação de indivíduos.

Observa-se na descrição desse processo a forma como os corpos, a partir da difusão dos sistemas disciplinares com sua capacidade de assujeitamento, puderam ser "subjetivizados", exatamente porque a função-sujeito presente nessa modalidade de poder garante a psicologização do corpo mediante procedimentos normalizadores, os quais fazem emergir uma virtualidade que se poderia chamar então de psiquismo. Ainda sobre o detalhamento do corpo pela disciplina, pela minúcia, por suas constantes e por vezes imperceptíveis punições, Foucault, em Vigiar e Punir (2014), estabelece que tais coerções e correções dos corpos pelos aparelhos disciplinares foram fundamentais para outro exercício de penalidade na modernidade, isto é, as reformas penais funcionando sob ópticas que se baseiam na virtualidade, na normalização, no entendimento de que o exercício de poder sobre o corpo é que permite atingir a alma dos indivíduos.

No início do livro Vigiar e Punir (2014), Foucault descreve com detalhes o caso do parricida Damiens no século XVIII, o qual foi condenado à morte mediante um ritual de suplício público. Essa forma de castigar corresponde a uma produção diferenciada de sofrimentos por intermédio de um ritual que manifestava no corpo do supliciado a manifestação do poder soberano. Nessa perspectiva, como aponta Foucault (2014), há de se compreender o suplício em sua forma-ritual como um procedimento judiciário no qual se busca não só a verdade, que pode ser obtida com a confissão durante a tortura, mas também como uma maneira de mostrar ao supliciado e ao público um exemplo do que seria o inferno, além de expurgar o pecado causado pelo crime cometido. Crime esse que, além de sua vítima imediata, ataca o soberano, o qual representa Deus. A violência utilizada contra o corpo do criminoso não tinha como função estabelecer a justiça, mas reativar o poder real.

E mesmo diante de uma prática punitiva característica da supremacia do poder real, outros discursos eram postos em discussão no mesmo período. Discursos esses que traçavam projetos de reformas, novas teorias da lei e do crime, e novas justificações morais ou políticas do direito de punir. A repressão penal não seria voltada objetivamente ao corpo. A execução das penas deixava de ser um papel da justiça. A punição vai deixando o campo da percepção quase diária e entrando cada vez mais no da percepção abstrata. Portanto, a certeza da punição é que deveria desviar o homem do crime e não o suplício que demonstra publicamente a falta cometida, a qual também deveria servir também como um exemplo aos espectadores. "É a própria condenação que marcará o delinquente com sinal negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentença" (Foucault, 2014, p. 15).

Nessa nova modalidade de punição, na qual se separava, de um lado, a função de julgamento da justiça, e de outro, a execução da pena (cuja função seria a de corrigir, reeducar, curar o criminoso), o corpo submetido às sanções penais será perpassado por um aspecto distinto de outrora. Como mencionado, a função de execução das penas, que não visava à dor corporal, por ser um caráter reformador, ortopédico, será garantida por psiquiatras, psicólogos, médicos, pedagogos, sem deixar de mencionar o uso de psicofármacos responsáveis por aliviar ou suprimir a dor mediante o cumprimento da pena. Faz parte também dessa racionalidade o uso da guilhotina como forma de promover uma morte instantânea, livrando o autor do crime das sensações dolorosas da pena capital. Já no século XIX, quando os suplícios desaparecem quase por completo, o poder sobre o corpo vai se manifestar de outra forma, uma vez que a pena toma como objeto a perda de um bem ou de um direito. Desde o século XVIII, diversos teóricos estabeleciam que a punição deveria ser dirigida à alma, e uma vez que a punição incidia sobre o corpo, ela deveria atingir sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições.

Como dito anteriormente, em volta das discussões que se realizavam no século XVII em relação ao crime, filósofos como Beccaria e Rousseau pensavam-no como um dano à sociedade, portanto, o criminoso deveria de alguma forma reparar esse dano. Foucault, em "A Verdade e as Formas Jurídicas" (2013), sobre tal questão, mostra-nos que a penalidade naquele período começa a se configurar de uma forma diferente do que pretendiam tais filósofos. A forma penal que foi adotada girava em torno de uma reforma psicológica dos indivíduos que transgrediram a lei. Ou seja, "toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade, ou não, com a lei, mas sobre o que podem fazer, o que são capazes de fazer, o que estão sujeitos a fazer, o que estão na iminência de fazer" (Foucault, 2013, p. 86).

 

Considerações finais

Nessa nova sociedade punitiva que começa a se esboçar, todo um aparato tecnológico e institucional começa a se desenvolver paralelamente à lei. Um conjunto de poderes e saberes responsáveis por controlar e evitar que problemas relacionados a transgressões, desvios, da população ou de um indivíduo, venha a se tornar uma injustiça contra a sociedade. Para tanto, não só é estabelecido o aparelho policial, com suas redes de instituições de vigilância e correção (de um lado a polícia na vigilância e de outro saberes psicológicos, psiquiátricos, médicos e pedagógicos para a correção), mas também uma série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência: escola, hospital, asilo etc.

Pode-se dizer então que essa rede de instituições de vigilância e de correção que perpassa toda a sociedade tem como alvo principal as virtualidades de um indivíduo, seja impedindo-o de realizar transgressões, seja agindo para que ele não volte a cometê-las. Essa sociedade, a que Foucault chama de sociedade disciplinar, vive na idade da ortopedia social, pois essa virtualidade a que se fez referência caminha conjuntamente com determinadas formas de controle, visto que a lei por si só não é capaz de evitar problemas relacionados à multiplicidade das aglomerações de indivíduos nos espaços, principalmente nos espaços urbanos. O controle social que perpassa constantemente a todos encontrará no modelo do Panopticon a sua via necessária de realização. A vigilância proveniente desse modelo coage incessantemente os corpos por seus mecanismos de observação ininterrupta, a qual poderá ser exercida por aqueles responsáveis pela administração de determinados espaços e saberes, médicos, psiquiatras, profissionais da Pedagogia, ou os que são responsáveis por espaços prisionais, entre outros. Todos esses agentes que com suas práticas tentam colocar o indivíduo com suas virtualidades na esfera da norma, ou seja, daquilo que é considerado normal na sociedade.

Portanto, pode-se dizer que na sociedade em que vivemos o poder disciplinar, por intermédio de todos os espaços em seu domínio, configura um verdadeiro controle do corpo em todas as etapas da vida, em todos os momentos. Os mecanismos de vigilância, coercitivos, de registros acompanham os corpos cotidianamente, e aqueles corpos cujas virtualidades desviem da norma, do esperado, poderão ser sujeitos a ações e mecanismos que têm como função colocá-los de volta a ela. Para tanto, uma série de estratégias, de políticas medicalizantes, psicologizantes, ressocializantes, muitas vezes higienistas, entram em cena. E estas podem surgir nos mais diversos espaços, escolares, hospitalares, prisionais, em meio aberto, nos próprios lares. Efeitos disciplinares-normalizadores de um paradoxo entre liberdade e assujeitamento que encontramos frequentemente nos dias atuais.

 

Referências

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Recebido em: 16/7/2018
Aprovado em: 3/2/2021

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