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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versión On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.1 São João del-Rei ene./mar. 2021

 

Contribuições da Psicologia Social Comunitária para a área de álcool e outras drogas

 

Contributions of Community Social Psychology to Policies and Actions in the Alcohol and Other Drugs' Area

 

Contribuciones de la Psicología Social Comunitaria para las políticas y acciones en el área de alcohol y otras drogas

 

 

Amata Xavier MedeirosI; Pedro Henrique Antunes da CostaII; Telmo Mota RonzaniIII; Fernando Santana de PaivaIV

IPsicóloga e mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
IIPsicólogo, mestre e doutor em Psicologia. Professor da Universidade de Brasília (UnB)
IIIPsicólogo. Pós-Doutorado em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo (USP) e UConn Health Center. Doutor em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Mestre em Psicologia Social Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista de Produtividade CNPq 1D. Membro do CA CNPq Psicologia
IVPsicólogo. Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Docente do curso de graduação e pós-graduação do Departamento de Psicologia da UFJF. Coordenador e pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre Sujeitos, Política e Direitos Humanos (Nupsid)

 

 


RESUMO

O presente trabalho é uma revisão narrativa de literatura que objetivou apresentar as contribuições da Psicologia Social Comunitária (PSC) para a temática do uso de álcool e outras drogas. Para isso foi traçado um histórico sobre o desenvolvimento das políticas e instrumentos normativos que regulamentam a área de álcool e outras drogas, bem como sobre a constituição da PSC no contexto latino-americano e brasileiro e, posteriormente, um paralelo entre o desenvolvimento desses dois campos. A partir dessa interface, resultam-se algumas categorias de reflexão e intervenção que conformam a PSC e vertentes relacionadas, como a Psicologia Social Crítica e a Psicologia da Libertação, sendo elas: a) práxis; b) o fenômeno das drogas como expressão da questão social; c) concepção sujeito-sociedade; d) a relação com a comunidade e as implicações teórico-metodológicas para a ação profissional na área; e) a conscientização como objetivo; f) a ética na PSC.

Palavras-chave: Psicologia Social Comunitária. Álcool e outras drogas. Políticas públicas.


ABSTRACT

This paper is a narrative review of literature that aimed to present the contributions of Community Social Psychology (PSC) to the theme of alcohol and other drug use. For that, a history was drawn up on the development of policies and normative instruments that regulate the area of alcohol and other drugs, as well as on the constitution of the PSC in the Latin American and Brazilian context and, later, a parallel between the development of these two fields . From this interface, some categories of reflection and intervention are formed that conform the PSC and related aspects, such as Critical Social Psychology and the Psychology of Liberation, being: a) praxis; b) the phenomenon of drugs as an expression of the social question; c) subject-society conception; d) the relationship with the community and the theoretical-methodological implications for professional action in the area; e) awareness as an objective; f) ethics in PSC.

Keywords: Community Social Psychology. Alcohol and other drugs. Public policy.


RESUMEN

El presente trabajo es una revisión narrativa de literatura que objetivó presentar las contribuciones de la Psicología Social Comunitaria (PSC) a la temática del uso de alcohol y otras drogas. Para ello se trazó un historial sobre el desarrollo de las políticas e instrumentos normativos que regulan el área de alcohol y otras drogas, así como sobre la constitución de la PSC en el contexto latinoamericano y brasileño y, posteriormente, un paralelo entre el desarrollo de estos dos campos. A partir de esa interfaz, resultan algunas categorías de reflexión e intervención que conforman la PSC y vertientes relacionadas, como la Psicología Social Crítica y la Psicología de la Liberación, siendo ellas: a) praxis; b) el fenómeno de las drogas como expresión de la cuestión social; c) concepción sujeto-sociedad; d) la relación con la comunidad y las implicaciones teórico-metodológicas para la acción profesional en el área; e) la concientización como objetivo; f) la ética en la PSC.

Palabras clave: Psicología Social Comunitaria. Alcohol y otras drogas. Políticas públicas.


 

 

Introdução

A Psicologia Social e Comunitária (PSC) é, desde sua gênese, uma disciplina interdisciplinar, a qual se constitui a partir das contribuições de campos de saber cujo objeto de análise e/ou intervenção é a relação sujeito-sociedade, isto é, compreende o homem sempre em imbricada relação com a comunidade (Montero, 1984). Dessa forma, seria possível superar a fragmentação que atualmente se observa na análise de diversos fenômenos sociais, por exemplo, o uso de drogas. Além disso, parte-se de uma concepção de ser humano como ser ativo nos processos individuais e sociais, capaz de se transformar ao passo que é capaz de propor mudanças em sua realidade (Goes, 2015). Essa concepção de ser humano contribui para a superação das visões hegemônicas do usuário de drogas, propondo que ele é um ser cuja autonomia deve ser potencializada. Por fim, a própria produção de conhecimento no campo da PSC, a qual nega a neutralidade e distanciamento entre pesquisador e objeto de estudo, contribui para compreensões mais próximas da realidade social, uma vez que dela se aproxima e participa, a fim de entendê-la e transformá-la (Campos, 2015).

É importante salientar que consideramos a PSC na atualidade como um campo de conhecimentos e práticas marcado pela pluralidade teórica e metodológica e, portanto, sendo passível de apresentar diferentes perspectivas de leituras e ações profissionais (Gonçalves & Portugal, 2016). Nesse sentido, não sendo possível abarcar toda a complexidade da área, focalizaremos as possíveis contribuições de uma tradição da Psicologia Comunitária latino-americana, em especial os aportes teóricos e epistemológicos da Psicologia Social da Libertação e da Psicologia Sócio-Histórica (Martín-Baró, 1998; Campos, 2015). O uso de drogas se configura como um fenômeno histórico, presente em diferentes culturas e com variadas finalidades. O uso abusivo de drogas, sejam consideradas lícitas, sejam consideradas ilícitas, vem se conformando ao longo das décadas como um problema social e de saúde pública mundial, o que o torna alvo da elaboração de políticas públicas, exigindo variadas respostas por parte da sociedade. Embora seja um fenômeno complexo e multifacetado, as análises e intervenções acerca da problemática mostram-se insuficientes, tornando necessários estudos e reflexões que entendam os fundamentos que subsidiam as ações no campo (Souza & Kantorski, 2007).

Uma vez que o uso de drogas está associado às condições de vida de determinada população, estando estas inseridas em um determinado modo de produção e reprodução da vida, sob pano de fundo as expressões da questão social1, são necessárias ações intersetoriais, compreensivas e contextualizadas. Tais ações devem levar em conta a complexidade dos determinantes sociais, atrelado ao uso abusivo e ao comércio ilícito, e principalmente os efeitos danosos para o segmento pauperizado da população. Nesse sentido, acredita-se que a PSC pode configurar-se como uma perspectiva teórico-prática capaz de abarcar essa complexidade, uma vez que pode contemplar, em suas análises, as condições concretas de conformação societárias, bem como de identidade, práticas e modos de vida, construídas pelos seres humanos (Campos, 2015; Lane, 2015). Observa-se que grande parte dos modelos vigentes que embasam a concepção e a atuação profissional, no que diz respeito ao uso e aos usuários de drogas, são fundamentados por concepções biomédicas, vieses estigmatizantes, moralizantes e naturalizantes. Mesmo deparando com algumas visões sobre o tema de caráter progressista, de maneira geral, estas se baseiam na perspectiva liberal, que reforça um ideário individualista e sem a preocupação com os aspectos sociais vinculados ao consumo, bem como a própria produção e comercialização das drogas. Nota-se também uma escassez de trabalhos que proponham outros modelos teórico-práticos capazes de abordar a problemática para além dessas concepções vigentes (Costa & Paiva, 2016). Assim, tomamos a PSC como um campo de conhecimentos e práticas que podem contribuir na forma de conceber e abordar a temática do uso de drogas entre diferentes sujeitos e grupos sociais, considerando a realidade concreta na qual se inscrevem e se conformam a relação entre sujeito e drogas, configurando-se assim como uma alternativa de ação nesse campo.

O desenvolvimento das políticas e da atuação no campo de álcool e outras drogas

No Brasil, as primeiras intervenções mais específicas por parte do Estado de abordagem à temática do uso de álcool e outras drogas se deram a partir de 1920. Até então, o que se percebe é uma negligência estatal em relação à questão e seus problemas associados, não havendo qualquer regulamentação oficial no país (Machado & Boarini 2013). A inércia do governo fez com que dispositivos de caráter privado/não governamental, tais como as Comunidades Terapêuticas, a Liga Antialcoólica de São Paulo, a Liga Brasileira de Higiene Mental, entre outros, fossem criados. Tais dispositivos construíram-se baseados em concepções predominantemente moralistas e, em alguns casos, higienistas (Machado & Miranda, 2007).

As intervenções públicas baseadas em uma cultura proibicionista e criminalizatória, importada da propaganda ideológica dos Estados Unidos de guerra às drogas, eram provenientes dos campos da justiça e da segurança pública, que consideram o usuário criminoso, moralmente incorreto e desviante (Machado & Boarini, 2013). Essa racionalidade fundamenta-se numa sociedade livre das drogas, na repressão à oferta e ao consumo e a punição em relação ao uso, produção e comércio. As medidas para viabilizar tal punição davam-se, com reflexos diretos na atualidade, essencialmente, por meio do isolamento social em prisões, com reforço posterior do Estado das práticas asilares existentes em sanatórios e, mais tarde, em hospitais psiquiátricos (Machado & Miranda, 2007).

A partir da década de 1970, esse modelo também passou a ser influenciado pelo saber médico-psiquiátrico e psicológico, que passou a legitimar, por meio do conhecimento técnico, o controle do usuário de drogas. Agora, além de criminoso, o usuário também era visto como doente. Esse modelo de ênfase na doença contribuiu para que os hospitais psiquiátricos ganhassem ainda mais força, passando a serem os principais instrumentos de punição dos usuários, tendo como princípio a salvação e a reabilitação criminal do viciado (Machado & Mirando, 2007). Deve-se destacar que tais instituições não tinham o cuidado como seu principal objetivo, mas sim práticas tutelares, punitivas e marginalizantes. A problemática continuou fora da esfera da saúde pública, e isso se confirma pela n. Lei 3.368 de 1976, a qual fala pela primeira vez em tratamento, porém de maneira periférica e facultativa aos municípios.

Até então, o ideário dominante, além dos modelos morais viabilizados pela criminalização e psiquiatrização, era o da abstinência. A abstinência é o objetivo central da perspectiva conhecida como de "alta exigência", em que nenhum tipo de padrão de consumo é aceitável, o que dificulta demasiadamente o acesso a esse tipo de tratamento (Alves, 2009). Porém, aliado a diversos movimentos sociais, à Reforma Psiquiátrica, à Reforma Sanitária e à consequente consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), começam a surgir, mesmo que de maneira incipiente, concepções mais ampliadas sobre o cuidado voltado para usuários de drogas.

Concomitante a isso e à percepção da falência da "guerra às drogas", a redução de danos (RD) surge como uma nova perspectiva de atenção aos usuários de drogas, enfocando as consequências e os efeitos de maneira realista e contextualizada (Mota & Ronzani, 2013). Além disso, a RD chamou a atenção para a realidade assistencial dos usuários, que era conformada por dificuldades de acesso e de acolhimento, estigmatização e repulsa pelos dispositivos, além de falta de referenciais teórico-práticos para os profissionais da saúde (Machado & Miranda, 2007). A Criação do Conselho Nacional de Entorpecentes favoreceu a abordagem do tema por uma perspectiva de prevenção, tratamento e pesquisa, indo além da repressão. Logo, o que se pode observar é um composto de práticas e perspectivas, às vezes contraditórias, mas que acabam sendo combinadas em determinadas intervenções, por exemplo: repressão e redução de danos, penalização e tratamento, abordagem da saúde e da segurança etc. (Machado & Miranda, 2007; Bastos, 2015).

No fim da década de 1990 e início dos anos 2000, são formuladas as primeiras políticas públicas sobre drogas a encampar a perspectiva de saúde pública como um dos eixos de concepção e ação sobre o tema. A prevenção e a assistência aos usuários tomam lugar nesses instrumentos e as drogas lícitas, assim como as ilícitas, também aparecem como problemas de saúde da população. Como referência desses instrumentos temos a Política Nacional sobre Drogas (Pnad), criada em 2002 e reformulada em 2005, em que um dos principais pontos é a diferenciação entre o usuário, o dependente, o traficante e a pessoa em uso indevido. Outro avanço dessa política foi o fato de a prevenção ter sido colocada como uma ação prioritária, tanto pelo seu baixo custo quanto pela sua chance de maior efetividade (Mota &Ronzani, 2013).

A Política de Atenção Integral aos Usuários de Drogas (Paiuad) - criada em sintonia com os princípios dos SUS, da Reforma Psiquiátrica e de uma lógica ampliada de redução de danos, formulada em 2004 - e a promulgação da Lei n. 11.343 de 2006, que apesar de enfocar ações relacionadas à repressão e ao tráfico, retomam as ações do campo da saúde colocadas em outras políticas fazendo distinção, ainda que subjetiva, entre usuário e dependente (Brasil, 2004). Tanto a Pnad quanto a Paiuad postularam a necessidade do trabalho intersetorial na abordagem do uso de drogas, considerando dispositivos de outros setores e da própria comunidade.

Nesse contínuo de mudanças, em 2011 é promulgada a Portaria n. 3.088, que institui a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), no modelo das Redes de Atenção à Saúde (RAS), articulada com os princípios do SUS. A Raps é destinada às pessoas com transtornos mentais e problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas (Portaria n. 3.088, 2011). A atenção aos usuários de drogas passa a ser organizada a partir de redes integradas, intersetoriais, conformando-se em uma perspectiva horizontal, e não mais hierárquica, entre os pontos de atenção. Esse modelo se propõe a organizar ações e serviços, contemplando diferentes níveis de atenção a fim de propiciar um continuum de cuidado integral, baseado nas necessidades da população, com ações de prevenção e promoção da saúde, tratamento e reabilitação/reinserção social (Portaria n. 3.088, 2011; Costa, Colugnati & Ronzani, 2015).

Contudo, apesar desses avanços, observa-se um cenário de antagonismos e embates, em grande parte entre as perspectivas de viés repressivo e criminal com a abordagem ao tema pelo viés de saúde, ancorada na redução de danos, atreladas à própria complexidade do tema. Em um estudo realizado por Schneider (2010), destaca-se que mesmo no âmbito do cuidado ainda há uma concepção vigente sobre drogas marcada principalmente por uma noção de doença de cunho biológico, com a abstinência sendo o único resultado positivo, com os motivos para o uso decorrendo da estrutura de personalidade do indivíduo ou por falta de caráter deste, ancorada em preceitos morais e religiosos (Schneider, 2010).

Psicologia Social Comunitária no Brasil: delimitando o campo

A crise da Psicologia como complexo de saber e práticas, sobretudo da Psicologia Social individualizante, e o questionamento das concepções vigentes na saúde, mais especificamente da saúde mental, pautado na psiquiatrização e no modelo hospitalocêntrico, faz surgir novas perspectivas teóricas e de trabalho. Começa a aparecer então, em meados de 1960, a expressão "Psicologia Comunitária" em vários países, como nos Estados Unidos, onde a ênfase recaiu na saúde mental comunitária, com a criação dos centros comunitários de saúde mental (Lane, 2015).

Em contrapartida, na América Latina, o que conhecemos hoje por PSC surgiu em um contexto de extrema violência, injustiça social e perda dos direitos básicos, marcados por governos ditatoriais e inúmeras formas de opressão e desigualdades sociais. Novas formas de abordar as problemáticas da população eram exigidas e o compromisso social dos chamados intelectuais na década de 1960 era questionado. Aliado a isso, certa inquietação começou a acontecer por parte dos próprios psicólogos referente a suas práticas elitistas, supostamente neutras, objetivas e reservadas às minorias. Esse era o retrato dos fazeres da Psicologia, uma profissão de práticas majoritariamente individualistas, subjetivistas e baseadas na importação acrítica de um modelo hegemônico de Psicologia Social estadunidense e europeia, individualizante e pouco coerente com a realidade das maiorias populares (Freitas, 2015). É importante destacar que na América Latina o desenvolvimento desse campo aconteceu de forma particular devido às fortes influências da Teologia e Psicologia da Libertação, da Sociologia Crítica de Fals Borda, da já citada Educação Popular de Paulo Freire e das teses de origens marxistas (Lacerda Jr., 2010).

Foi nesse cenário que psicólogos e psicólogas se movimentaram em direção às comunidades, mesmo que sem muito preparo teórico. Em meados da década de 1960 e início dos anos 1970, surge a chamada Psicologia na Comunidade, caracterizada pela saída da Psicologia dos seus espaços tradicionais: consultórios, organizações, instituições educacionais e pela sua inserção nas comunidades. Alguns exemplos das novas práticas são os projetos baseados na Metodologia da Educação Popular de Paulo Freire (Freire, 1979), as mobilizações e reuniões que colocavam em pauta os deficit da Educação, da saúde e de outros recursos nas favelas e bairros populares. Concomitantemente, estouravam greves e movimentações sociais que colocavam em pauta a repressão e o descaso do Estado com a classe trabalhadora. Os profissionais se inserem nesses contextos com vistas a contribuir na organização das reivindicações políticas, além das necessidades básicas da população, empregando metodologias e conhecimentos de variados campos. O psicólogo trabalhava de forma clandestina, não remunerada, tendo muitas vezes outro emprego formal, além do realizado na comunidade (Freitas, 2015).

Nas décadas seguintes, 1980 e 1990, observa-se a chamada Psicologia da Comunidade, denominação cunhada também por Freitas (2015). Essas décadas foram caracterizadas por uma preocupação com a especificidade e a clandestinidade da área. Houve uma expansão da perspectiva de atuação dos psicólogos nas comunidades e a via de acesso às comunidades agora era as instituições das políticas públicas, como os postos de saúde, prisões, entre outros serviços, a partir do processo de reabertura democrática e da criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, agora a inserção na comunidade se dá pelas instituições de saúde formalizadas, tendo como foco a prestação de assistência. A saúde, a democratização do acesso e o atendimento das demandas solicitadas por meio desses serviços passam a ser fatores centrais no cotidiano do trabalho psicológico, porém as metodologias e os fundamentos para esse trabalho são os mais variados possíveis (Freitas, 2007; Lane 2015)

O termo Psicologia Social Comunitária, que representa uma disciplina teórico-prática, já utilizado na década de 1980, tem como fundamentação uma Psicologia Social crítica se conformando como um amadurecimento na própria área, a qual traz como alguns de seus preceitos fundamentais a transformação social, por meio da formação de consciência crítica e o fortalecimento da participação social. A PSC lança mão de uma perspectiva sócio-histórica para entender os fenômenos da sociedade e de uma abordagem dialética entre sujeito-sociedade (Freitas, 2015).

A partir dessa compreensão dos sujeitos e de suas multideterminações com a sociedade, o compromisso com a transformação social leva em consideração o enfrentamento e superação de uma realidade concreta, que tem como ponto nodal a problemática da questão social e suas expressões (Lacerda Jr., 2010; Lane, 2015).

Dessa forma, o campo da PSC tem lidado com as expressões da questão social, seja intervindo em elementos da desigualdade e injustiça social, seja na garantia de direitos básicos, seja na prevenção e promoção da saúde da população. Sendo assim, propostas de transformação social que visam superar as desigualdades sociais, como as da PSC, devem levar em consideração o caráter histórico dessas problemáticas, ancoradas no seio do nosso modelo de configuração da sociedade capitalista (Lacerda Jr., 2010).

Logo, uma atuação que nasce da crítica ao papel da Psicologia e Psicologia Social e do contexto sócio-histórico, sem uma preocupação inicial com os fundamentos das ações e a partir da necessidade de deselitizar a Psicologia, passa, com a PSC, por um processo de maior fundamentação e sistematização teórico-conceitual, com vistas à transformação social.

Traçando paralelos

Após percorrer o desenvolvimento tanto das políticas e intervenções na área de drogas quanto da PSC, é possível realizar um paralelo entre elas, traçando aspectos comuns. Primeiramente, num cenário que aliava negligência estatal com visões e abordagens essencialmente criminalizantes sobre o uso de drogas, observou-se a necessidade de agir sobre a questão, seja por motivações ideológicas, sociais, de saúde, seja por motivações assistencialistas/caritativas que partiram de exercícios individuais ou de instituições não governamentais. Surgem, assim, ações pontuais e, em grande parte, clandestinas, sem a preocupação de configurar um arcabouço teórico-conceitual, devido ao contexto ditatorial brasileiro, da moralização e marginalidade do tema, influenciadas pelo viés proibicionista (Machado & Boarini, 2013)

Da mesma forma, inicia-se o movimento de psicólogos em direção à atuação na comunidade, também por meio de ações isoladas, clandestinas, aliadas à necessidade de se intervir sobre as questões que assolavam a população. Essas ações estavam motivadas por uma crítica à Psicologia dominante, individualista, elitista, com visão a-histórica dos sujeitos e da realidade e distante das maiorias populares e suas necessidades. Referente à assistência aos usuários de drogas, assim como na Psicologia na Comunidade, observa-se a premência de se aproximar da comunidade e das pessoas com problemas relacionados ao uso de drogas, mas com uma insuficiência de preparo teórico-metodológico. Muitas ações na área foram - e ainda são - encapadas pela lógica filantrópica e caridosa, as quais dependiam de esforços individuais dos cidadãos mais favorecidos e esclarecidos ou de organizações não governamentais em ofertar cuidados aos mais pobres e necessitados, entre os quais se incluíam os usuários de drogas (Santos, 2009). Essas práticas mantinham, reforçavam e ainda fomentam uma lógica de Estado negligente e desresponsabilizado, no que diz respeito à garantia de direitos e condições de vida da população por meio das políticas sociais.

Num segundo momento, pautado pelo processo de redemocratização do país e pelas novas configurações societárias, com as reformas Sanitária e Psiquiátrica, com o advento do SUS e a influência dos movimentos sociais e da lógica de Redução de Danos, a atuação na área das drogas passa a encontrar respaldo e lócus institucionais, mesmo que ainda incipientes: as políticas públicas de saúde e a oferta assistencial aos usuários de drogas. Esse respaldo institucional, juntamente com a visão de saúde pública sobre a temática e os questionamentos sobre a perspectiva proibicionista, fazem com que se comece a perceber que somente a abordagem da temática não é suficiente, muito menos pela criminalização. Assim, constata-se um cenário muito semelhante ao que foi chamado de Psicologia da Comunidade, em que o trabalho do psicólogo se expande para as populações, deixando de ser clandestino, mas, ainda, sem muita delimitação e aprofundamento teórico-metodológico. Esses profissionais adentram o campo da saúde e, mais tarde, da assistência social, com metodologias de intervenção importadas de sua atuação clínica tradicional (Freitas, 2015).

No decorrer do desenvolvimento das ações na área de drogas, assim como no desenvolvimento da PSC, surge a necessidade de maior fundamentação e construção de arcabouços teórico-conceituais contextualizados e abrangentes que não considerem mais os sujeitos que usam drogas - a partir de prismas individualistas ou reduzidos à esfera do biológico e/ou psicológico - desviantes e muito menos sujeitos passivos no contexto de vida e processo de cuidado. Na Psicologia, emerge a necessidade de aportes que parem de atribuir ao sujeito um suposto fracasso, que pare de servir a uma ideologia de enquadramento ou ajuste social em que o problema recai sobre o "desviante" (Lacerda, 2010). Assim, é imperativo que se lance mão de perspectivas interdisciplinares que não fragmentem a relação sujeito e sociedade, mas que compreendam o uso de drogas como mais um dos elementos participantes dessa relação, que não pode ser entendida descolada ou isolada. Também é importante que outras expressões da questão social sejam abordadas para a compreensão do que atualmente chamamos de "problemas das drogas" ou "questão das drogas", tais como pobreza, relações raciais, de gênero etc., pois todos estes se encontram circunscritos e são conformados, por meio de multideterminações, à configuração societária.

A partir desse panorama histórico do desenvolvimento das políticas e ações na área de drogas, bem como dos paralelos com o desenvolvimento da PSC no Brasil, podemos extrair alguns questionamentos: como fugir das atuais concepções sobre o uso de álcool e outras drogas, em que o usuário, a família continuam sendo culpabilizados e descolados de sua realidade social? Será que a redução de danos, por mais que represente um avanço na abordagem ao tema, é uma real mudança de paradigma na abordagem da temática ou apenas uma reforma dentro do modelo predominante (Schneider, 2010)? Que alternativas temos para, de fato, integrar fatores biológicos, psicológicos e sociais, em uma perspectiva antirreducionista e abrangente? Como lançar mão de uma perspectiva que integre realmente o sujeito a partir do prisma da autonomia e como ator participativo do seu próprio cuidado?

A partir desses processos e seus paralelos (sintetizados e ilustrados na Figura 1), serão apresentadas e discutidas algumas contribuições da PSC para a abordagem do uso de álcool e outras drogas, considerando a dialética entre sujeito e sociedade, em um esforço de contextualização histórica e social dos problemas associados ao uso de álcool e outras drogas atualmente. Para isso, serão trabalhadas algumas das principais categorias de análise e intervenção da PSC e suas potencialidades para uma compreensão e atuação mais abrangente e contextualizada acerca dessa temática.

Contribuições da Psicologia Social Comunitária para a área de álcool e outras drogas

A partir do paralelo apresentado sobre os processos de desenvolvimento da PSC e das políticas e atuação na área de álcool e outras drogas, assentamos as possíveis interfaces entre ambas, deixando aberto um caminho para a apresentação das possibilidades de contribuição dessa disciplina para a área. Nesse sentido, trabalharemos com as seguintes categorias: a) práxis; b) o fenômeno das drogas como expressão da questão social; c) concepção sujeito-sociedade; d) a relação com a comunidade e as implicações teórico-metodológicas para a ação profissional na área; e) a conscientização como objetivo; f) a ética na PSC.

Inicialmente, abordaremos o conceito de práxis, uma categoria fundamental para a compreensão do ser humano e realidade, com a necessidade de sua apropriação no cotidiano dos psicólogos sociocomunitários e outros profissionais. Segundo Paulo Freire, pode-se entender a práxis como unidade entre teoria e prática, como a dialética entre ação e reflexão, em que um processo não deve ser dissociado do outro (Freire, 1979; Ximenes & Barros, 2009). Para Ximenes e Barros (2009, p. 3), ela pode ser aplicada a partir de uma análise crítica dos saberes e das práticas e também:

[...] a problematização que perpassa a práxis do psicólogo comunitário permite que acontecimentos, relações e conexões por vezes naturalizadas no cotidiano possam ser submetidos a exercícios críticos, tecendo possibilidades outras de composição de sentidos, de interações sociais e de modos de vida.

Tomando a concepção de práxis como um elemento norteador, entendem-se as categorias apresentadas de maneira integrada, e não fragmentadas de acordo com suas supostas naturezas teóricas ou práticas. Assim, os aportes serão trabalhados indissociavelmente, acreditando na dialética entre ação e reflexão, teoria e prática, e da própria ação humana que modifica e dá sentido à realidade, ao passo que também dá sentido e constitui o próprio ser humano. Parte-se da realidade e volta-se para ela, em um movimento circular e contínuo de reelaborar, refletir e transformar os desafios que ela nos coloca, e também sobre como abordar os fenômenos que dela advêm e, ao mesmo tempo, a conformam.

A partir da importância colocada anteriormente de compreender os fenômenos sociais como construções sócio-históricas, propõe-se adentrar em uma concepção ampliada sobre as drogas e as relações que os sujeitos estabelecem com elas. Isso se faz pertinente justamente pela necessidade de se entender o uso de drogas não como uma "questão" autônoma, que não se inicia ou que termina em si mesma, mas que deve ser compreendida a partir de seu contexto social, econômico e político, isto é, do modelo de sociedade vigente e suas condições imanentes, como a questão social e suas diversas manifestações, assim como as multideterminações existentes entre fatores individuais e coletivos, concretos e subjetivos (Costa, 2016).

Sendo esse modelo societário balizado pela lógica de produção capitalista, cabe a nós compreender seus impactos nos modos de vida e sociabilidade, sendo a sua principal reverberação a desigualdade social. E é exatamente nesse contexto que gostaríamos de repensar o uso de drogas. Nesse cenário, porque o uso de drogas deve ser entendido conjuntamente a outras problemáticas resultantes dessa configuração social, como o desemprego estrutural, a falta ou a existência de moradia precária, o acesso limitado às políticas sociais e às condições de pobreza e miséria vivenciadas por grande parte da população mundial e brasileira (Lacerda, Jr, 2010). Atrelados a esses fatores, apresentam uma série de determinantes da formação dos sujeitos, tais como, classe social, gênero e raça, que se configuram como mediadores político-institucionais na relação sujeito-sociedade, devendo ser considerados quando se busca uma compreensão ampliada dos fatores relacionados à realidade e, portanto, ao uso de drogas (Lacerda, Jr, 2010).

Outra tarefa importante é sinalizar a visão de ser humano que é adotada no presente trabalho. É necessário destacar que aqui, em consenso com a crítica à Psicologia tradicional, não se trabalha a partir de uma dicotomia entre indivíduo e grupo ou indivíduo e sociedade. Coloca-se essa ressalva justamente por abordar uma concepção de ser humano histórico-social fundamentado em uma lógica dialética da relação indivíduo e sociedade, na qual um é produto e, ao mesmo tempo, produtor do outro (Lane, 2012). A partir da PSC, toma-se uma visão de ser humano integral que, na sua concepção, extrapola abordagens biomédicas ou organicistas e individualizadas do psiquismo, mas aliadas a diversos campos do conhecimento na busca de uma compreensão holística. Apoia-se na perspectiva do ser humano como produto e produtor não só da sua história pessoal, mas também da história social do seu grupo, por entender que sua atividade e a atividade do grupo estão em uma constante dialética (Lane, 2012).

Ademais, apesar de o setor saúde ser constantemente citado quando se refere ao uso de drogas, considerando a complexidade dos fatores associados desse fenômeno e das suas influências multivariadas, acredita-se que "drogas" não deve ser um assunto restrito a esse setor, tampouco ao setor da justiça e da segurança pública, como tradicionalmente é feito. É importante ressaltar a necessidade de envolver diferentes campos de conhecimento, tanto no que diz respeito à compreensão do uso de drogas quanto da concepção de homem. As fronteiras dessas disciplinas devem ser permeáveis para que consigam alcançar um conhecimento profundo da existência material e concreta do indivíduo, da sociedade, que de onde advém a temática sobre drogas.

Nos instrumentos normativos que regulamentam a área de drogas, é apontada a importância do trabalho interdisciplinar e intersetorial, porém esses apontamentos são negligenciados na própria Raps, quando são citados apenas os dispositivos da saúde nos níveis de atenção propostos aos usuários. É importante destacar que além dos dispositivos do SUS na rede de atenção aos usuários de drogas, devem ser considerados os serviços do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e outros setores, como a Educação, esporte, lazer e cultura. Os recursos comunitários, como os grupos de ajuda mútua, as associações de bairro e outras entidades socioassistenciais, também são significativos na complementação dessa rede, mas sem desconsiderar a responsabilidade do Estado na abordagem integral do fenômeno, de acordo com as necessidades populacionais (Costa, Colugnati & Ronzani, 2015).

Adentrando na rede de atenção aos usuários de drogas, um dos componentes dessa rede são os profissionais, pois sabe-se que muitas vezes eles se colocam como mediadores entre o poder público e a comunidade, como executores das tarefas burocráticas que os programas do governo exigem. No entanto, seu papel não se restringe meramente à oferta de práticas assistenciais. Seu papel tem um caráter político, na medida que subsidia a luta e a noção de direitos e cidadania, espaços de diálogo com a comunidade, considerando todos os saberes e potencialidades que esta possui (Nasciutti, 1996). Esses profissionais se conformam como atores perpassados por compromissos ético-políticos, um vez que também tomam conhecimento do contexto de injustiça social e norteiam suas práticas, em conjunto com a comunidade, no combate dessas desigualdades, conscientizando e buscando agir nas relações de dominação e opressão existentes, com vistas à transformação social. Portanto, sua dimensão ético-política é potencializada quando se questionam para quem suas práticas e seus conhecimentos se destinam e a quem beneficiam, bem como quando se indagam sobre os impactos concretos que suas práticas têm gerado (Martín-Baró, 1996).

Muitas vezes, profissionais das políticas públicas estão na comunidade, via instituição, mediando o que é da ordem do social e da ordem do individual. Pode-se entender a comunidade a partir da conjunção entre espaços, pessoas, instituições e atividades, juntamente com suas valorações, formas de pensar e agir no mundo, aspectos subjetivos etc., em unidades de vida em comum e de ação coletiva (Nasciutti, 1996), compreendendo que há algo em comum nessa comunidade, mas que não homogeneíza as pessoas que ali estão e suas relações. As instituições apresentam-se como possibilidades para a atuação profissional, uma vez que esses espaços reproduzem as relações de poder que se estabelecem na comunidade, contribuindo para que possamos compreendê-la e transformá-la. Contudo, o trabalho é com a comunidade (os usuários, seus contextos de vida, redes sociais etc.), sendo essas instituições vias de acesso a esses sujeitos, com a identidade profissional e atuação devendo ir além das práticas assistenciais e do que é instituído.

Como aponta Montero, em consonância com Freitas, a comunidade apresenta-se como o lócus potencial de intervenção e transformação, considerada como protagonista na construção do conhecimento, na avaliação das suas necessidades e na decisão das ações a serem tomadas. Os profissionais das políticas públicas podem se configurar como facilitadores desse processo, por meio de uma relação dialógica, flexível e de fortalecimento dessa comunidade (Freitas, 2015). Logo, a partir da PSC, se opõe a qualquer forma de "paternalismo, autoritarismo ou intervencionismo" (Montero, 1984, p 12), ao localizar na comunidade as condições da análise e transformação da sua realidade, questionando posturas tradicionais tanto da Psicologia quanto do tratamento aos usuários de drogas, no qual esses eram considerados passivos e receptores das intervenções.

Nesse movimento, um dos principais nortes da PSC é a conscientização, que, segundo Martín-Baró (1996, p. 9), "constitui-se no horizonte primordial do que fazer psicológico", não sendo tarefa específica da e limitada à Psicologia, mas essencial à sua prática. A noção de conscientização empregada deriva de Paulo Freire e de seus trabalhos de Educação libertadora com os sujeitos e grupos oprimidos latino-americanos, implementando práticas de alfabetização relacionadas com o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre o mundo e a maneira como se inseriam nele. Para Freire (1979, p. 17), conscientização "[...] é o olhar mais crítico possível da realidade, que a 'des-vela' para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante". A conscientização pode ser, então, entendida como uma postura ética para a PSC, compreendendo que não se tem outra opção para a emancipação do povo latino-americano a não ser uma tomada de consciência crítica a respeito da realidade em que se inserem e a conformam, juntamente com a transformação dessas bases materiais concretas, incentivando a participação popular e a autonomia dos sujeitos e fortalecendo as relações comunitárias (Martín-Baró, 1996).

Vale ressaltar que, para Martin-Baró (1996), a conscientização por si só não leva à mudança. Porém, no momento em que ela se localiza em um contexto de injustiça social, faz-se necessário desenvolver uma consciência crítica a respeito das raízes da alienação social para que se rompa com o sistema concreto e ideológico que a mantém. Assim, é possível abandonar uma mecânica reprodutora das relações de dominação-submissão, desenvolvendo uma memória histórica e criando um projeto ou horizonte coletivo (Martín-Baró, 1996). Nesse momento, cabe-nos questionar: o papel do psicólogo ou de qualquer outro profissional que trabalhe com pessoas que fazem uso de drogas deve objetivar apenas que esse uso seja cessado? Ou compreender o significado desse uso para os sujeitos, não se constituindo aprioristicamente como algo negativo, de modo que, se necessário, seja possível se ancorar na redução dos danos? Sinaliza-se também, a necessidade de modificarmos nossos modelos que se ancoram nas drogas, de forma simplória e essencialmente negativa, moralista e estigmatizante. Em que medida a práxis dos psicólogos e demais profissionais tem corroborado para manter essa lógica de alienação, opressão e dominação no momento em que se furta de trabalhar com tais categorias e foca nas substâncias?

Esses questionamentos conduzem a outra categoria fundamental para a PSC: a ética. Aqui, ética não se reduz a um conjunto de comportamentos e condutas postulados pelo código de ética. Entende-se a ética como um horizonte, um percurso que vai se construindo a partir de reflexões e ações sobre o próprio homem e a sociedade, subsidiando a práxis.

Dessa forma, tratamos de uma ética da libertação, portanto, não se deve centrar nas drogas, mas nos sujeitos e seus contextos de vida, sendo fundamental que o horizonte da Psicologia esteja em consonância com um horizonte ético (Goes, Ximenes & Moura, 2015). Esse horizonte ético deve estar pautado na transformação social e emancipação do homem e da sociedade humana. Para Martín-Baró (2015), o horizonte ético da Psicologia estaria imbricado em subsidiar um desenvolvimento coletivo dos sujeitos, contrapondo à atual estrutura que só permite o desenvolvimento de indivíduos isolados ou grupos homeostáticos, sustentáculos do desenvolvimento capitalista. Assim, os esforços da PSC e de outros profissionais que foquem apenas o indivíduo ou as drogas fugiriam desse horizonte ético e carecem de modificações (Martín-Baró, 2015).

É a partir das categorias supracitadas, que se constituem inter-relacionados, que se caminha em uma direção ética, orientando-se para o fortalecimento das comunidades, a partir de suas próprias condições de existência. Sendo assim, a comunidade torna-se norteadora e lócus das ações, pois é necessário que se compreenda como os determinantes sociais, valores e costumes se expressam e se materializam a partir de contextos socioculturais em um determinado território ou comunidade (Costa, Laport & Paiva, 2015).

Dessa forma, as necessidades sociocomunitárias e, por conseguinte, dos sujeitos extrapolam o cuidado ou a oferta de assistência à saúde ou os fatores relacionados ao uso de drogas, devendo-se questionar então práticas meramente assistencialistas ou paternalistas. Sendo assim, um trabalho que tenha a ética como horizonte - ou um horizonte ético, conjuntamente com as outras categorias explicitadas - deve considerar os contextos e modos de vida da população.

Por fim, a partir dessas contribuições da PSC para a área de álcool e outras drogas, acredita-se que possam ser construídas propostas teórico-conceituais, metodológicas e interventivas mais comprometidas com as exigências e necessidades concretas vivenciadas pela população brasileira. Considera-se também que, para além da abordagem do uso de drogas, sejam objetivadas e subsidiadas relações mais equânimes e participativas que propiciem o desenvolvimento de uma consciência crítica e o exercício da cidadania, que busquem enfrentar as relações de desigualdade que são fortalecidas pelos processos de dominação e opressão, assumindo assim o compromisso ético-político.

 

Considerações finais

A presente discussão indica a necessidade de esforços na tentativa de avançar e aprofundar as reflexões aqui delineadas, concomitantemente a progressos nas intervenções na área. Trata-se de um debate imprescindível, justamente pelas demandas e necessidades emergentes na sociedade, na qual aportes teóricos e práticos mais contextualizados com a realidade social devem ser implementados. As intervenções sobre o fenômeno das drogas que suplantem lógicas repressivas e criminalizantes são consideravelmente recentes, o que requer que novas maneiras de se abordar a temática sejam (re)pensadas, evidenciando que há, ainda, um longo percurso a ser percorrido para que ela seja compreendida e abordada de forma mais coerente e efetiva, considerando todas as dimensões que contribuem para esse fenômeno.

Certamente, outras contribuições da PSC poderiam ser abordadas, porém acredita-se que as categorias que foram trabalhadas no presente estudo sejam significativas na expressão dos aportes teórico-práticos que têm guiado a área nas últimas décadas no contexto brasileiro. Essas contribuições se propuseram a embasar um corpo de ações para o campo de álcool e outras drogas, desde a concepção sobre o fenômeno do uso até a formulação e planejamento de políticas e intervenções na área. Sendo assim, é de suma importância que mais estudos sejam desenvolvidos encampando esses pressupostos, seja em nível de gestão e planejamento de ações, sejam com relatos de experiências que retratem as práticas profissionais.

É importante destacar que a PSC se conformou a partir da influência de várias outras disciplinas, como a Sociologia, a Antropologia e a Educação Popular. No entanto, com a consolidação e o fortalecimento do campo a partir de referenciais próprios, acredita-se que as contribuições não se limitam apenas a psicólogos, mas a todos os profissionais da saúde e de outros campos que trabalhem com a temática.

Nesse sentido, a PSC e sua práxis não se constituem descoladas da realidade e, portanto, dos meios que a conformam e que dela resultam. Dessa forma, suas ferramentas encontram-se localizadas nessa própria realidade, seus sujeitos, processos grupais e comunidades. Apesar de não ser ela por si só que irá fomentar a resolução de problemas tão complexos e de ordem estrutural, quanto mais intricado é esse contexto societário e as temáticas que dele advêm e se constituem, como o uso de drogas, mais complexas e abrangentes devem ser suas tentativas de resposta, como postulamos a partir da PSC.

 

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Recebido em: 1º/5/2018
Aprovado em: 1º/3/2021

 

 

1 Expressão que surgiu após os impactos da industrialização na instauração do capitalismo, que abarcou o fenômeno do pauperismo. O pauperismo é entendido como a extrema miséria, que cresce à medida que a produção de riquezas também cresce, podendo ter mais de uma expressão, sendo essas sempre ligadas à sua gênese. Devido à desigualdade, ao desemprego, à fome, acredita-se que, visto a necessidade de se entender essas expressões para além das tradicionais, o uso de drogas, inserido nesse modelo societário, se conforme como uma das expressões da questão social. É importante adentrar nesse conceito, pois, segundo Netto (2001), trabalharão com a questão social aqueles que estiverem interessados em se apropriar da realidade social. Sendo assim, faz-se mais que necessário o entendimento dos fenômenos relacionados ao uso de drogas à luz da questão social, em consonância com o que foi colocado no trabalho sobre uma busca de entender os fenômenos a partir de uma visão ampliada e contextualizada.

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