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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

EDITORIAL

 

Psicossociologia desde a América Latina

 

 

Beatriz Akemi TakeitiI; Samira Lima da CostaII; Catalina Revollo PardoIII; Claudia Tovar GuerraIV; Claudia MirandaV

IDoutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, Professora do Programa de Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social - EICOS e do Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, UFRJ. E-mail: biatakeiti@medicina.ufrj.br
IIDoutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social EICOS do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-doutorado em Antropologia Social, UnB, Professora do Programa de Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social - EICOS e do Departamento de Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, UFRJ. E-mail: biasamira@medicina.ufrj.br
IIIDoutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social EICOS do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-doutoranda CAPES-PNPD do mesmo programa e Professora Substituta do Departamento de Psicologia FAFICH-UFMG. E-mail:carevollo@gmail.com
IVDoctora en Ciencias Sociales y Humanas, investigadora del Grupo Lazos Sociales y Culturas de paz y profesora de la Facultad de Psicología de la Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá. E-mail: claudia.tovar@javeriana.edu.co
VPós-doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social EICOS do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro(EICOS); Professora do Programa de Pós-graduação em Educação (UNIRIO). E-mail:mirandaunirio@gmail.com

 

 

Em 2019, por meio dos grupos de pesquisa "Laboratório de Memórias e Ocupações: rastros sensíveis" e "Diaspotics", ambos do Programa EICOS de Pós Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Instituto de Psicologia - UFRJ, Brasil), juntamente com o Programa de Doctorado en Ciencias Sociales y Humanas (Pontificia Universidad Javeriana, Bogotá, Colômbia), organizamos o Dossiê "Psicologia e epistemologias contra-hegemônicas", na Revista Fractal, Universidade Federal Fluminense (UFF), no Brasil. Tínhamos o objetivo de reunir produções acerca das muitas psicologias que se vinham construindo no campo do enfrentamento às hegemonias epistêmicas, fomentando assim uma rede de colaboração e visibilização destas muitas psicologias geopoliticamente posicionadas.

Naquele momento, as contribuições que recebemos foram muitas, e identificamos a necessidade de discutir mais detalhadamente o campo não só da psicologia, mas da psicossociologia, este lugar do entre, como campo de proposição, produção e sistematização de conhecimento, mas também enquanto lugar de resistência de epistemologias plurais. Desta compreensão surgiu o presente dossiê, organizado pelos mesmos grupos de pesquisa do Programa EICOS (UFRJ), agora unidos ao Grupo Lazos Sociales y Culturas de Paz (Pontificia Universidad Javeriana, Bogotá, Colômbia) e ao Programa de Pós-Graduação em Educação (UNIRIO).

As muitas marcas que os países latinoamericanos produziram mutuamente ao longo da história, também em contínuo risco de apagamento, recebem destaque no presente dossiê. Ainda que muitas escolas e muitas trajetórias da psicossociologia possam ser narradas, nos interessa aqui olhar com atenção e detalhamento aquilo que se vem produzindo nas últimas décadas, especificamente na América Latina, buscando nesta história recente, os rastros de um futuro possível. Neste sentido, este dossiê se situa radicalmente no lugar de busca e produção narrativa destas psicossociologias, geopoliticamente localizadas, aterradas em solo latinoamericano.

Com a experiência global da pandemia do COVID-19 e do isolamento físico (social), vivemos um momento que nos tem colocado diante de inúmeras perguntas e questionamentos, mas também de muitas possibilidades para o presente e para o futuro.

Agravando o desenho imposto pela situação da pandemia, vivemos no Brasil e em outros países da América Latina um difícil momento histórico e político para a ciência, no qual há o risco de retrocessos nos recentes avanços duramente conquistados no campo da produção de conhecimento em direção a um horizonte pluri-epistêmico. Este cenário de incertezas e mudanças nos convoca a pensar que mundo queremos, como o construiremos e que conhecimentos e epistemologias apoiam essa tomada de posição. E nesta mesma trilha, nos convida também a pensarmos que psicossociologia podemos produzir. Em perspectiva, é preciso ressituar as psicossociologias que se têm construído e produzido em territórios latinoamericanos, e a que se propõem.

A psicossociologia surge na Europa inspirada em estudos da psicologia social, com uma perspectiva psicanalítica e desenvolvimentista e, também influenciada pelos estudos sociológicos de dinâmicas grupais. Embora na América Latina a psicossociologia tenha inicialmente seguido os rastros daquela de origem européia, destacadamente a francesa (e posteriormente também a estadunidense), há que se apontar a relevância da psicologia social crítica neste contexto que floresce com a crise da psicologia social e a Reforma Psiquiátrica nos anos de 1960' e 1970', historicamente constituída na América Latina como Psicologia Sócio-Histórica, com Silvia Lane (PUC/SP), e como Psicologia Comunitária Latino-americana, tendo como referência Martín Baró e Maritza Monteiro. Este levante contou fortemente com o diálogo produzido por outros movimentos críticos da época, como a Pedagogia Crítica de Paulo Freire e a Pesquisa Ação-Participante de Orlando Fals Borda, delineando nitidamente a psicossociologia como um campo interdisciplinar de conhecimento.

Nas últimas décadas, a psicossociologia vem se constituindo e se consolidando a partir de produções próprias, enquanto campo de conhecimento inter e transdisciplinar dentro da grande área das Ciências Sociais e Humanas, voltado para a composição de saberes e tecnologias que venham ao encontro dos problemas contextualizados e localizados na experiência dos países latinoamericanos, tanto em sua diversidade cultural e geopolítica, quanto em suas confluências enquanto povos colonizados. Neste sentido, também assume o estudo das relações coloniais desde uma perspectiva contra hegemônica. Interrogar a psicossociologia nos exige movimentações contra hegemônicas.

Assim, os artigos aqui apresentados reúnem propostas ancoradas em idiossincrasias da experiência de estratos invisibilizados, em nossa região, o que favorece a localização de outras pistas sobre como renovarmos o compromisso com a diversidade latino-americana. Neste sentido, compõem este dossiê trabalhos que refletem sobre a psicossociologia enquanto ciência e prática de intervenção em suas múltiplas possibilidades, pautados na experiência viva daquilo que se tem produzido hoje enquanto América Latina.

O artigo das autoras Ana Maria Jacó Vilela e Marcela Alves de Abreu intitulado "Dos primeiros passos da Psicossociologia no Brasil: o Setor de Psicologia Social da UFMG", apresenta uma pesquisa histórica de análise documental e entrevistas sobre os processos do grupo do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais no período 1964-1994, tempos de repressão política que não silenciou o debate crítico e contribuiu para a institucionalização e fortalecimento da Psicologia Social Crítica no Brasil. A contribuição do artigo "Violência estrutural e marcas ditatoriais: análise psicossocial a partir de narrativas periféricas", apresentado por Beatriz Oliveira Besen e Soraia Ansara analisa a permanência de marcas ditatoriais pós-transição democrática no Brasil a partir de narrativas de dois estudos psicossociais realizados em Heliópolis - periferia urbana da cidade São Paulo, trabalhando com os conceitos de violência, trauma psicossocial e memória histórica de Ignacio Martín-Baró.

Em "O resgate da memória histórica como estratégia de desconstrução do racismo", Danielle Cabral Araújo, Vanessa Alice de Moura e Bruna Suruagy do Amaral Dantas problematizam a experiência profissional desenvolvida a partir de práticas grupais envolvendo crianças e, privilegiando o resgate da memória histórica da cultura negra. Em "Dormindo com a inimiga: imaginário machista em tempos de Covid-19", as autoras, Débora Ortolan Fernandes de Oliveira, Tomiris Forner Barcelos, Cristiane Helena Dias Simões e Tânia Maria José Aiello-Vaisberg se ancoram nos desafios impostos pela Covid-19 e na Psicologia Psicanalítica Concreta para entender imaginários coletivos machistas sobre relacionamentos conjugais heterossexuais de mulheres. Rodrigo Maciel Ramos apresenta uma pesquisa etnográfica intitulada "A ancestralidade: construção e aquisição de identidades africanas no Brasil realizadas a partir da cultura do Candomblé" que se constitui em um estudo de caso de dois adeptos do Candomblé, e localiza inadequações das teorias de identidade.

No artigo "Pichon-Rivière: uma "psicossociologia latino-americana" para os tempos de hoje" as autoras Marta Maria Okamoto, Emília Estivalet Broide e Maria Cristina Gonçalves Vicentin revisitam a proposta das Teorias e Técnicas Operativas de Grupo deste autor, reconhecendo sua emergência no contexto sociopolítico latinoamericano de violências políticas e autoritarismos e sua pertinência como práxis psicossociológica, com potência de intervenção nestes tempos sombrios. Já o texto "Exclusão sociodigital e desproteção de crianças, adolescentes e famílias em tempos de crise" as autoras Acileide Cristiane Fernandes Coelho e Maria Inês Gandolfo Conceição fazem uma análise psicossociológica das atuações da rede de proteção a crianças, adolescentes e suas famílias em contexto de desproteção social, vulnerabilidade relacional e exclusão sociodigital em tempos de Covid-19. Pedro Henrique Antunes da Costa e Kíssila Teixeira Mendes propõe no artigo "A miséria da Psicologia Brasileira: subordinação ao capital e colonização-dependência" uma crítica à Psicologia brasileira diante de sua consolidação e desenvolvimento, se ancorando em análises de Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo, na tradição da Psicologia a partir de Martín-Baró sobre o caráter colonizado-dependente da Psicologia Latino-Americana.

O/as autores/as Daniel Renaud Camargo, Bárbara Pelacani, Renata da Silva Faria, Claudia Miranda e Samira Lima da Costa propõe o artigo "Psicossociologia com comunidades: abordagens sentipensantes como emergência na América Latina" ensaiando perspectivas teóricas e conceituais a respeito dos percursos latino-americanos feitos por Maritza Montero, Maria Inácia D'Ávila Neto, Ignacio Martín-Baró, Paulo Freire e Orlando Fals Borda, vislumbrando uma psicossociologia "com comunidades" e não apenas "de comunidades". Já o artigo "Debates transdisciplinares en la Psicología Social Latinoamericana: apuntes para saldar la oposición entre lo crítico y lo propio" de María Juliana Flórez questiona esta oposição, com base nos debates sobre o pós-desenvolvimento, os seres não humanos, as lutas comunais e anticoloniais contra o racismo. . No artigo "Impactos da (des)territorialização nos processos de subjetivação: experiências migratórias de refugiadas venezuelanas em Bogotá" das autoras Núbia Vale Rodrigues, Isabela Saraiva de Queiroz, Aida Milena Cabrera Lozano as análises centram-se nos impactos nos processos de subjetivação de mulheres venezuelanas que, em meio ao forte fluxo migratório recente, se veem diante de um processo de (des)territorialização.

No texto "Tropifagia: uma experiência de Psicossociologia do sul tropical", Aline Carvalho e Thiago Pondé propõem como metodologia psicossocial os intercâmbios culturais mediados pelo sensível processo de criação artística. No texto "La psicosociología como dispositivo epistémico para la cultura de paz: notas sobre experiencias latinoamericanas - Brasil y Colômbia" as autoras Catalina Revollo Pardo, Beatriz Akemi Takeiti, Claudia Tovar Guerra e Jean Vitor Alves Fontes nos introduzem à reflexão sobre a construção da paz em processos de base comunitária, como recurso de resistência e re-existência em territórios marcados pela violência e vulnerabilidade. Já as autoras Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro e Mariana de Castro Moreira sugerem em seu texto "Conhecer, intervir, partilhar: pistas para a pesquisa psicossocial na construção de outros mundos possíveis" dessubstancializar a noção de psicossocial e, a partir daí, avançar na proposição de uma pesquisa situada, aterrada, trazendo contribuições do campo CTS (ciência-tecnologia-sociedade) para o pensamento psicossocial latino-americano.

O presente Dossiê responde à necessidade e aos novos desafios que partem da afirmação de uma existência de conhecimentos que têm, em alguns casos, se (re)inventado e, em outros, se consolidando diante do contexto social, histórico e político na América Latina.

Objetiva-se, com isso, questionar, na psicossociologia, o cânone do saber euro centrado, produtor de rígidas fronteiras disciplinares definidas por um suposto "centro", continuamente marginalizador do que vem a ser (pelo dito centro) considerado periférico.

As Editoras.

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