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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

Violência estrutural e marcas ditatoriais: análise psicossocial a partir de narrativas periféricas

 

Structural Violence and Dictatorial Marks: Psychosocial Analysis from Peripheral Narratives

 

Violencia estructural y huellas dictatoriales: análisis psicosocial desde narrativas periféricas

 

 

Beatriz Oliveira BesenI; Soraia AnsaraII

IDoutoranda no ProMuSPP EACH-USP/SP; Mestre em Estado, Gobierno y Políticas Públicas na FLACSO/BR. Graduada e mestra em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: bia_besen@hotmail.com
IIDoutora em Psicologia Social. Professora do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política (EACH-USP/SP) e do Curso de Especialização em POT da Universidade Mackenzie. E-mail: soraiansara@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a permanência de marcas ditatoriais pós-transição democrática no Brasil a partir de narrativas obtidas em dois estudos psicossociais realizados em Heliópolis - periferia urbana da cidade São Paulo. O primeiro focou a construção e elaboração das memórias de violências do/no Estado de nove jovens moradores, enquanto o segundo reconstruiu as memórias sobre as violações aos direitos humanos de um grupo de mães de adolescentes em medida socioeducativa e de técnicos dos serviços que os acompanham. A partir dos conceitos de violência, trauma psicossocial e memória histórica de Ignacio Martín-Baró, apresenta-se uma análise da persistência das marcas ditatoriais na sociedade brasileira, que atingem, sobretudo, a população jovem negra e periférica sob a forma do genocídio, exclusão, suspeita e violência sistemática dos agentes de Estado.

Palavras-chave: Memória política. Violência. Trauma psicossocial. Racismo. Marcas ditatoriais.


ABSTRACT

This article aims to analyze the permanence of dictatorial marks after the democratic transition in Brazil from narratives obtained in two psychosocial studies carried out in Heliópolis - urban outskirts of the city of São Paulo. The first focused on the construction and elaboration of the memories of State violence of nine young residents, while the second reconstructed the memories about the human rights violations of a group of adolescent's mothers in correctional measures and technicians from the services that accompany them. Based on the concepts of violence, psychosocial trauma and historical memory rescued from Ignacio Martín-Baró, an analysis of the persistence of dictatorial marks in Brazilian society is presented, which mainly affects the young black and peripheral population in the form of genocide, exclusion, suspicion and systematic violence by State agents.

Keywords: Political memory. Violence. Psychosocial trauma. Racism. Dictatorial marks.


RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo analizar la permanencia de huellas dictatoriales después de la transición democrática en Brasil desde las narrativas obtenidas en dos estudios psicosociales realizados en Heliópolis - periferia urbana de la ciudad de São Paulo. El primero se centró en la construcción y elaboración de los recuerdos de violencia en / del Estado de nueve jóvenes residentes, mientras que el segundo reconstruyó los recuerdos sobre las violaciones de los derechos humanos de un grupo de madres de adolescentes que cumplen medidas socioeducativas y técnicos de los servicios que los acompañan. Desde los conceptos de violencia, trauma psicosocial y memoria histórica de Ignacio Martín-Baró, se presenta un análisis de la persistencia de huellas dictatoriales en la sociedad brasileña que afecta, sobre todo, a la población joven negra y periférica en la forma de genocidio, exclusión, sospecha y violencia sistemática por parte de agentes estatales.

Palabras clave: Memoria política. Violencia. Trauma psicosocial. Racismo. Huellas dictatoriales.


 

 

Introdução

"O mundo é diferente da ponte para cá", já diziam os Racionais MC's acerca da realidade da periferia paulistana. O trecho refere-se à ponte que cruza a marginal na zona sul da cidade, mas se aplica também ao Viaduto Almirante Delamare e à Ponte do Sacomã, que adentram a Estrada das Lágrimas e a Avenida Delamare, demarcando as extremidades da Cidade Nova Heliópolis.

Nesse bairro da periferia urbana, também localizado na zona sul da cidade de São Paulo, foram realizados dois estudos psicossociais durante os anos de 2014 a 2018. Esses estudos ocorreram em períodos diferentes e cada um teve seus objetivos específicos, no contexto em que foram realizados. Um deles, realizado em 2014, reconstruiu as memórias sobre as violações aos direitos humanos de um grupo de mães de adolescentes em medida socioeducativa e dos técnicos do Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade - PSC (Ansara, 2014a); o outro, realizado no período de 2016 a 2018, focou a construção e elaboração das memórias de violências do/no Estado de nove jovens moradores do território (Oliveira, 20191).

Ambos os estudos partiram de referenciais da Psicologia Política e da Psicologia Social Comunitária (Montero, 2004) e se constituíram como pesquisas-ação-participantes (Fals Borda, 1981) - metodologia coletiva e participativa que busca o fortalecimento comunitário, partindo da premissa de que os sujeitos da pesquisa devem estar presentes em todo o processo de investigação/ação. Dessa forma, as duas pesquisas envolveram um compromisso ético-político que exigiu trabalho diligente de acompanhamento e de conhecimento da dinâmica de organização das comunidades investigadas (Ansara, 2014a).

As pesquisadoras se conheceram no ano de 2018, em uma mesa-redonda sobre Memórias e Resistências da ditadura militar e da atualidade no bairro, no Centro Educacional Unificado (CEU) de Heliópolis, onde compartilharam suas reflexões e resultados. As semelhanças das questões abordadas em torno da violência suscitaram o interesse de empreender uma análise que aprofundasse o tema da persistência das marcas ditatoriais, a partir dos pressupostos teóricos de Ignacio Martín-Baró (1989, 1998, 2003, 2004) acerca da violência estrutural, do trauma psicossocial e da memória histórica. Tal análise é aqui apresentada e enfatiza os elementos presentes nas memórias construídas e reveladas nos dois estudos que indicam a presença de abuso de poder, autoritarismo e violência praticada por agentes do Estado.

Os achados dessas pesquisas mostram-se extremamente atuais e revelam uma realidade que vem se agravando no Brasil, nos últimos quatro anos, com o aumento de homicídio de jovens negros e de bairros periféricos, como evidenciado pelo Atlas da Violência 2019 (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [Ipea] & Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2019).

Desde março de 2020, acompanhamos um aprofundamento dos traços autoritários do atual governo federal brasileiro, seguido de um negacionismo quanto à realidade e gravidade da atual pandemia de covid-19. Mesmo diante da quarentena exigida pelas autoridades de saúde, a violência contra os jovens nas periferias seguiu ocorrendo com formatos cruéis - um exemplo foi o assassinato de João Pedro,2 menino de 14 anos morto em uma violenta ação policial dentro de sua casa no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro. Ações como esta têm se repetido frequentemente neste período de isolamento social e, lamentavelmente, conforme dados publicados no Diário Oficial do Estado de São Paulo, de 30 de maio de 2020, o número de mortes provocadas por ações de policiais militares em serviço aumentou 43,6% em relação ao mesmo mês do ano anterior.

No atual cenário de polarização política no Brasil, em que discursos de ódio e intolerância em relação às minorias e à igualdade de direitos são disseminados entre a população, torna-se urgente retomarmos e reforçarmos os estudos e as contribuições de Ignacio Martín-Baró (1968/2015) sobre a importância da construção da memória histórica e de uma análise realista do caráter de violência permanente em que se encontram os países latino-americanos.

Como afirma Martín-Baró (1968/2015, p. 452),

a injustiça institucionalizada e a desordem legalizada - na qual somente uma ínfima minoria pode ser verdadeiramente humana, enquanto grandes massas de seres humanos se debatem na mais infame miséria - não admitem dúvidas ou demora. Em nossa sociedade, existe uma violência permanente, amparada por uma legislação injustificável.

O autor denuncia a violência presente na situação de desigualdade, de fome e miséria que condena as classes menos favorecidas e grupos minoritários à exclusão social, às práticas autoritárias e à injustiça social na América Latina. Tal violência pode ser percebida na insuficiência e precariedade de políticas públicas, na negação de direitos básicos e, de maneira mais ostensiva, na violência policial amparada pela ineficiência e parcialidade jurídicas.

Fundamentado no realismo crítico, Martín-Baró propõe a reconstrução da memória histórica como possibilidade de "descobrir seletivamente os elementos do passado que foram eficazes para defender os interesses das classes exploradas e que se tornam úteis para os objetivos de luta e conscientização" (Fals Borda, citado por Martín-Baró, 1998, p. 301).

Na reconstrução da memória histórica, entra em jogo o processo de conscientização que rompe com a naturalização da violência por parte do Estado, o que supõe a desideologização da vida cotidiana. Isso significa, como sugere Martín-Baró (1998), desmascarar o senso comum que justifica o sistema explorador e opressor e desconstruir a rede de crenças e representações sociais, que ao longo dos séculos foram dadas como boas e encobriram falácias teóricas sustentadas em valores que defendem o predomínio natural de uns sobre os outros.

O trabalho de reconstrução da memória dos grupos que sofrem violência é uma possibilidade concreta de interrogar o passado e o presente a partir das múltiplas versões e discursos sobre as experiências vividas por esses sujeitos privados dos seus direitos. Para tanto, faz-se necessário reconhecer

[...] que há uma memória oficial hegemônica e uma memória coletiva daqueles que estão situados abaixo na pirâmide social, uma memória a partir dos centros de poder e uma memória a partir dos oprimidos, uma memória intelectual hegemônica e uma memória de saberes historicamente subalternos. Dessa forma, podemos considerar que o posicionamento, a localização e a memória são centros relevantes do debate político e intelectual contemporâneo. Em última instância, isso significa desenvolver também um debate crítico em torno da diversidade e das contradições das experiências vividas, dos poderes de representação social e das lutas por reconhecimento. (Sherer-Warren, 2010, p. 22).

O artigo, que ora apresentamos, tem como base as memórias e narrativas obtidas nos dois estudos psicossociais realizados em Heliópolis e pretende contribuir com esse debate crítico e atual em torno da violência e da memória coletiva construída pela população da periferia urbana de São Paulo. Para tanto, tem como objetivo analisar a permanência de marcas ditatoriais pós-transição democrática no Brasil a partir de narrativas e memórias de jovens, famílias e profissionais que cotidianamente sofrem ou entram em contato com a violência.

Iniciamos apresentando as contribuições da Psicologia da Libertação de Martín-Baró (1989, 1998, 2003, 2004) e os conceitos de violência, trauma psicossocial e memória histórica, a partir de sua perspectiva dialética e crítica; na segunda seção, destacamos as marcas ditatoriais na América Latina e, particularmente, na sociedade brasileira que atingem, sobretudo, a população jovem, negra e periférica (Adorno, 1994; Caldeira, 2000; Gagnebin, 2010; Sherer-Warren, 2010; Kehl, 2010; Gaborit, 2011; Santos & Chauí, 2013); em seguida, fazemos uma breve descrição dos dois estudos, analisando, a partir das memórias e narrativas dos jovens e das mães de adolescentes, a persistência da violência, suspeita e abusos de poder pós-transição democrática.

 

Violência e trauma psicossocial a partir de Ignacio Martín-Baró

Ignacio Martín-Baró nasceu na Espanha e se juntou à Companhia de Jesus, que o designou a trabalhar em El Salvador, na América Central. Quando inicia seus estudos em Psicologia na década de 1960 (após os estudos em Filosofia e Teologia), percebe que há uma tradição no interior da Psicologia Social de copiar modelos americanos, os quais se amparavam em uma visão funcionalista e sistêmica, que apontavam uma suposta homogeneidade e integração societal. Martín-Baró se dá conta de que essa suposta harmonia é algo muito distante do que se observava no cotidiano dos países colonizados do centro e sul do continente americano. Durante as décadas de 1960 a 1980, esses países viviam sob repressão e guerras, em meio a sociedades extremamente marcadas pela desigualdade social.

Martín-Baró é uma das principais referências da luta pela construção de uma Psicologia para e pelos povos colonizados, voltando suas preocupações à libertação dos homens de sua situação de opressão. Para ele, "a conscientização levaria as pessoas a recuperar a memória histórica, a assumir o mais autêntico de seu passado, a depurar o mais genuíno de seu presente e a projetar tudo isso em um projeto pessoal e nacional" (Martín-Baró, 1998, p. 171, tradução nossa). Nesse sentido, propôs uma Psicologia Social que teve como ponto de partida o conhecimento da realidade latino-americana, que incorporou o estudo e análise da violência estrutural e simbólica (que são centrais nos dois estudos analisados neste artigo); contribuiu para a desideologização dos elementos que legitimam e justificam a realidade de violência e opressão e estabeleceu como compromisso central a transformação social.

A preocupação com a desideologização também tem relação com a maneira como as sociedades institucionalizam suas memórias, encobrindo aspectos que evidenciam a desigualdade social e a persistente repressão das minorias. A violência e o conflito muitas vezes ficam mascarados nas memórias hegemônicas, contadas somente pelos "vencedores" ou por aqueles que monopolizavam e seguem monopolizando os meios de registro e disseminação de informações.

Nesse sentido, um dos grandes objetivos da Psicologia da Libertação de Martín-Baró é a recuperação da memória histórica, que implica na desideologização da experiência cotidiana e da própria Psicologia por meio do reconhecimento das relações de opressão e da elaboração dos traumas psicossociais decorrentes da violência praticada no território latino-americano. Na construção da Psicologia da Libertação, o autor assume uma posição sócio-histórica que considera um novo sujeito que deveria reconhecer sua condição de oprimido, analisar criticamente a realidade em seu entorno e lutar contra a condição de opressão vigente. Essa perspectiva não reformula apenas a práxis social, ela produz uma inversão de referencial epistemológico, pois implica considerar a necessidade de "desalienação" da própria ciência psicológica. Dessa maneira, a Psicologia deve tornar-se: "por necessidade uma psicologia política, [...] e que, portanto, contribua para construir um novo sujeito histórico como requisito de uma nova identidade psicossocial das maiorias até hoje dominadas" (Martín-Baró, 1998, p. 341, tradução nossa).

O psicólogo social, portanto, tem um compromisso ético e político: ou reproduz as estruturas sociais dominantes ou adota uma atitude de resistência e contestação diante da situação de opressão das sociedades latino-americanas. Sua tarefa é contribuir com a desconstrução da ideologia dominante, ou seja, desideologizar a realidade cotidiana: "que consiste em desmontar os discursos ideológicos, capazes de justificar o sistema social e legitimar condutas como a passividade, a resignação e o fatalismo" (Ansara, 2012, p. 98).

A discussão de Martín-Baró sobre a violência e o trauma psicossocial está circunscrita no contexto da guerra civil em El Salvador (1981 a 1992), realidade de extrema violência e violação dos direitos humanos. Assim, os efeitos da violência estrutural são analisados por ele em várias publicações (1985/2004, 1989, 1998, 2003), nas quais ele denuncia a situação de repressão política em que vivia a população salvadorenha. Para o autor, a violência estrutural no interior da sociedade capitalista seria a base de todas as demais formas de violência.

A violência estrutural não se reduz à distribuição inadequada dos recursos disponíveis que impede a satisfação das necessidades básicas da maioria; além disso, a violência estrutural exige o ordenamento da desigualdade opressiva por meio de uma legislação que ampara os mecanismos de distribuição social da riqueza e que produz uma forca coercitiva que obriga a maioria respeitar tais mecanismos. [...]. Posto que a ordem social é produto e reflexo do domínio de uma classe social sobre as outras, a conclusão mais importante é também a mais óbvia: a violência está presente na própria ordem social e, portanto, não é arbitrário falar de violência estrutural. (Martín-Baró, 1985/2012, p. 406, tradução nossa)

Está estabelecida uma sociedade cujos direitos humanos mais fundamentais são estrutural e sistematicamente negados; nesse sentido, o uso da força e da coerção é parte constitutiva das instituições sociais, originando todos os demais tipos de violência. Para Martín-Baró, as raízes das violências estão nas condições estruturais de injustiça e desigualdade. A violência institucional seria derivada da primeira, e se expressaria em estruturas hierárquicas; nessa modalidade de violência se incluiria a repressão efetivada pelo Estado por meio de seus agentes, a qual se dirige, potencialmente, contra "inimigos" que perturbam a estrutura social produtora de injustiça e desigualdade. O autor analisa em profundidade a violência estatal no contexto da Guerra Civil em El Salvador, apontando que tal violência funciona como meio de justificar e legitimar a violência estrutural e ocorre sob a forma de terrorismo, presente principalmente nos governos ditatoriais, mas não exclusivo destes. "O terrorismo é o uso sistemático da violência para conquistar um objetivo por meio do terror e é uma das principais estratégias de governos ditatoriais que buscam se manter no poder" (Martín-Baró, 1985/2012, p. 422).

O terrorismo político e a internalização do medo provocam a polarização social, a mentira institucionalizada e a militarização da vida social, levando a rupturas no tecido social e à cristalização de um trauma psicossocial: "Na medida em que o ordenamento interiorizado das exigências sociais apropriadas requer a submissão das pessoas a uma ordem repressiva que as aliena e desumaniza, o processo de socialização constitui um mecanismo de violência institucional" (Martín-Baró, 1985/2004, p. 408, tradução nossa).

Para Martín-Baró (1989), o trauma psicossocial está diretamente relacionado ao processo de desumanização produzido pelas formas de exploração e acumulação, que tem na guerra sua expressão mais afrontosa. Por isso, ele não separa o trauma vivenciado pelo sujeito da realidade social em que ele está inserido. Em sua definição de trauma psicossocial, enfatiza "o caráter essencialmente dialético da ferida causada pela vivência prolongada de uma guerra civil como a de El Salvador" (Martín-Baró, 1989, p. 101, tradução nossa). Nessa perspectiva, a ferida é gerada pelas condições de opressão impostas pelas situações-limite provocadas pela guerra. O trauma psicossocial tem, portanto, dois aspectos a serem considerados: "a) a ferida que afeta as pessoas foi produzida socialmente; b) sua natureza se alimenta e se mantém em relação ao indivíduo e à sociedade, por meio de diversas mediações institucionais, grupais e, inclusive, individuais, que têm óbvias e importantes consequências na hora de determinar o que deve ser feito para superar esses traumas" (Martín-Baró, 1989, p. 102, tradução nossa).

Essa compreensão relacional e dialética do trauma psicossocial evidencia os aspectos de desumanização que caracterizam as práticas de violência institucionalizada identificadas na análise dos dois estudos. Além disso, o reconhecimento de que esses traumas são produzidos social e estruturalmente contribuíram para que ambas as pesquisas tivessem um compromisso ético com a reparação do tecido social, rompido e desgastado pela violência.

Com base nessas proposições, recorremos à construção da memória política como possibilidade de elaboração do trauma psicossocial, por meio do compromisso em conhecer o passado de repressão e resistência, denunciar as formas de violência social e ampliar o "diálogo, possibilitando a proposição de ações e estratégias de resistência em favor dos direitos humanos" (Ansara, 2014b, p. 9). Apresentamos a seguir outras análises que contribuíram para os estudos, indicando especificidades da realidade brasileira e de suas marcas ditatoriais.

 

A persistência das marcas ditatoriais no Brasil

Os países da América Latina, para além dos processos relativos à colonização e ao capitalismo dependente (Fernandes, 2009), tiveram longos períodos de governos ditatoriais que culminaram em um número ainda incalculável de mortos e desaparecidos. De 1964 a 1985, o Brasil esteve submetido a uma ditadura militar que deixou marcas profundas na sociedade brasileira. A legitimidade atribuída às instituições estatais para matar, torturar e fazer desaparecer é uma marca histórica que diversos autores (Coimbra, 1995; Teles, 2005; Teles & Safatle, 2010) apontam como determinante para a compreensão da fragilidade da transição e construção democrática (Oliveira, 2019).

O processo de transição democrática no Brasil teve traços de acordos orquestrados pela elite brasileira. Tratava-se daquilo que Florestan Fernandes (1982) denominava de liberalização outorgada ou autorreforma do regime militar, que conduziu o país de "volta à democracia", sem disputa, sem luta, sem revolução, ou seja, mantendo as coisas como estavam, mas com uma aparente orientação democrática. Nesse sentido, a transição à democracia, com a "abertura política", foi resultado de um "consenso nacional" que aspirava ao desmonte da ditadura sem qualquer tipo de rupturas ou conflitos profundos no interior da própria burguesia (Fernandes, 1982). Não fosse essa abertura "lenta, gradual e segura", a supremacia militar estaria seriamente comprometida, já que, como aponta o autor, se abriria espaço para as classes populares lutarem pela tomada do poder.

A "abertura política" foi amplamente apoiada pela classe média e por aqueles que defendiam o regime, o que permitiu espaços para a elaboração da Constituição de 1988, mas que teve como mote uma reconciliação extorquida. O processo de anistia não acabou com as atrocidades dos governos militares e propôs um apaziguamento entre militares e opositores ao regime militar, operando como uma política de esquecimento, pois, além de garantir a impunidade dos envolvidos em crimes de tortura, desaparecimentos e mortes, também gerou o silenciamento das vítimas e familiares por diversos anos.

Gagnebin (2010) aponta como a anistia, desde a Grécia Antiga, era apresentada como um processo de não lembrar para seguir, ou seja, um acordo de reconciliação com o passado para seguir em frente e restabelecer a paz cívica e a vida comum. Trata-se de um processo de apaziguamento, de pacificação da história, tal como aquele evidenciado por Galeano (1976/2010) em "As veias Abertas da América Latina", em relação a todo o passado da colonização latino-americana. A memória oficial é institucionalizada e o passar do tempo lhe dá a aparência de verdade:

[...] a história oficial, com o peso que lhe confere o uso do poder e o sequestro ao qual este submete o imaginário social, indica que fatos transcorreram, quem atuou, com que motivações e como devem ocorrer as coisas no futuro, em virtude das justificativas apresentadas para o consumo popular. [...] Mais ainda, busca desvirtuar ou aniquilar esses interesses mediante dois processos inter-relacionados: o esquecimento e a suspeita. (Gaborit, 2011, p. 259).

O Estado é capaz de produzir e bloquear narrativas acerca de acontecimentos passados e presentes, pacificando-os com a omissão de seu aspecto conflituoso. O direito ao esquecimento só é real diante da efetivação do direito à memória e à verdade. A continuidade da violência e a violação dos direitos humanos são resultado das políticas de esquecimento e da ineficácia do Estado em solucionar os atos de violação aos direitos humanos que ocorreram durante a ditadura militar (Ansara, 2012). Maria Rita Kehl (2010, p. 126) aponta a tendência a repetições diante de um trauma silenciado.

Não há reação mais nefasta diante de um trauma social do que a política do silêncio e do esquecimento, que empurra para fora dos limites da simbolização as piores passagens da história de uma sociedade. Se o trauma, por sua própria definição de real não simbolizado, produz efeitos sintomáticos de repetição, as tentativas de esquecer os eventos traumáticos coletivos resultam em sintoma social. Quando uma sociedade não consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático, esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras.

A literatura que aborda o trauma político e psicossocial gerados pelos regimes ditatoriais tem enfatizado as violações sistemáticas dos direitos humanos nas últimas décadas na América Latina e revelam que estas continuam a ser praticadas em contextos democráticos (Lira, 1993). No caso brasileiro, como aponta Ansara (2012), os legados da ditadura militar ainda permanecem na sociedade, sobretudo porque a estrutura policial continua igual à do período militar. As duas pesquisas realizadas em Heliópolis evidenciaram que a polícia continua utilizando práticas violentas contra a população e agindo com preconceito contra negros e pobres, considerados quase sempre como "suspeitos". O uso de torturas e espancamentos por policiais, além do abuso da autoridade policial com ameaças, constrangimentos e agressões físicas, é recorrente, sobretudo nas periferias.

Diante de alguns corpos considerados desviantes (Caldeira, 2000), exerce-se uma violência indiscriminada que perpassa tempos coloniais, ditatoriais e democráticos. O Estado e suas instituições utilizam técnicas de controle e extermínio contra aqueles que já são os que mais sofrem com as outras formas de exclusão: "Principais vítimas da violência urbana, alvos prediletos dos homicidas e dos excessos policiais, os jovens negros lideram o ranking dos que vivem em famílias consideradas pobres e dos que recebem os salários mais baixos do mercado" (Bento & Beghin, 2005, p. 194). O Atlas da Violência confirma a determinação racial nas mortes violentas.

No Atlas da Violência 2019, verificamos a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, já apontado em outras edições. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (definidos aqui como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE, utilizada também pelo SIM), sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, para cada individuo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos. (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA] & Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2019, p. 49).

A impunidade dos agentes do Estado quando atuam sobre os corpos, violando-os de diversas maneiras - desde revistas, agressões, até assassinatos, extermínios e desaparecimentos -, é uma realidade observada e comprovada nos dois estudos. Os períodos ditatoriais caracterizam tempos em que a violação dos corpos toma outras formas que tornam a tortura um meio legítimo de ação do Estado, mas tem caráter de exceção principalmente porque neles todas as classes se tornam sujeitas à violência estatal. Os estudos que apresentamos a seguir retratam uma continuidade na violência e nos abusos de poder dos agentes de Estado pós-transição democrática.

 

Marcas ditatoriais: memórias e narrativas periféricas

Nesta seção, trataremos de discorrer sobre as marcas ditatoriais identificadas nas memórias e narrativas reveladas nas duas pesquisas. Para tanto, faremos uma breve caracterização do território e dessas pesquisas sobre as quais desenvolvemos nossa análise.

Heliópolis está localizado no sudeste da cidade de São Paulo e é um território cuja história é marcada pela presença de vulnerabilidades sociais e violação de direitos, ao mesmo tempo em que é palco de diversas conquistas e de experiências de solidariedade. Segundo a Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo, o bairro cresceu rapidamente, tornando-se uma das maiores favelas da cidade (Sehab, 2016).3 Ao mesmo tempo, desde a década de 1980, as lutas por melhores condições de vida marcam a história de Heliópolis. A população local vivenciou um processo intenso de urbanização e participou do desenvolvimento de uma trajetória exemplar de organização social, na qual a mobilização promovida pelas organizações comunitárias locais rendeu frutos e a reinvindicação por projetos de intervenção urbana, cultural e educacional foi direcionada ao poder público (Oliveira, 2019).

As lutas e a articulação entre os movimentos sociais, Organizações não Governamentais e poder público têm despertado o interesse de muitos pesquisadores em realizarem seus estudos no território em parceria com a União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis em Região (Unas), figura central para a realização dos dois estudos aqui analisados.

Embora os relatos acentuem a violência de Estado, tomamos o cuidado de não estigmatizar o território ou ocultar o que há de mais potente e inspirador em Heliópolis: suas lutas em defesa dos direitos humanos. Por isso, ressaltamos que nesse território há várias ações de resistência, uma intensa produção de cultura, um projeto exemplar de educação democrática e uma organização, que é referência para todo o Brasil, em desenvolvimento comunitário, além de um Centro Educacional Unificado, cuja gestão é referência em articulação comunitária em toda a cidade de São Paulo.

Neste artigo, tratamos de analisar parte dos aspectos comuns aos dois estudos que descrevemos a seguir. Os recortes aqui selecionados consideram narrativas e relatos das duas pesquisas que evidenciam experiências de violência do/no Estado.

Na primeira pesquisa, Memória política e direitos humanos: resistência e luta de grupos oprimidos contra a violência do Estado, realizada em 2014, Ansara (2014a) estabeleceu uma relação entre memória política e direitos humanos, a partir das memórias e narrativas de mães de adolescentes em medida socioeducativa e dos profissionais do Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). A pesquisa-ação-participante baseou-se nos estudos prévios acerca da memória política (Ansara, 2009, 2012) e envolveu dois grupos focais4 com 12 pessoas, um com as mães dos jovens e outro com os profissionais5 do serviço, nos quais os participantes descreviam situações de violação dos direitos humanos vivenciadas por eles. Segundo Ansara (2014a), o estudo trouxe à luz as vivências de violações e revelou a violência política praticada pelo Estado, sobretudo em regiões periféricas da cidade. Durante o trabalho com esses grupos de mulheres e profissionais, buscou-se criar condições para que emergissem as denúncias e as resistências, abrindo espaço para elaboração e formulação de ações futuras que fortalecessem a participação política dos sujeitos envolvidos na pesquisa.

A segunda pesquisa, A sua memória agora é a minha memória: a construção da memória política e o re-estabelecimento do reconhecimento recíproco (Oliveira, 2019), foi realizada no período de 2016 a 2018, quando a pesquisadora ocupava um cargo comissionado de coordenação no CEU Heliópolis gerido pela Prefeitura de São Paulo. A pesquisa-ação-participante foi feita no projeto "Memórias e resistências: a ditadura na quebrada", que envolvia uma parceria entre a União dos Núcleos e Associações de Moradores de Heliópolis e Região (Unas), o Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), o coletivo "Margens Clínicas" e o CEU Heliópolis Profa. Arlete Persoli. Tal projeto envolveu a formação de oito jovens moradores do território no campo dos direitos humanos, tendo como matriz central o resgate, compartilhamento e construção da memória política dos moradores, movimentos sociais e anistiados políticos da ditadura civil-militar brasileira. Os jovens, que atuavam como pesquisadores da memória local, recebiam uma remuneração mensal e tinham encontros e atividades de pesquisa semanais. Além de realizar entrevistas, eles apresentavam seus materiais e achados de pesquisa em atividades como cine-debates e conversas públicas realizadas no CEU Heliópolis.

Os registros da pesquisa-ação-participante envolveram as concepções e relatos dos jovens sobre violências, direitos humanos, conflitos, política, cotidiano, lazer e amizades, mas aqui apresentamos apenas algumas narrativas que retratam a constância de abusos de poder e violência dos agentes do Estado. Os primeiros encontros entre os jovens e os coordenadores do projeto foram feitos de modo a apresentar o contexto da ditadura militar no Brasil a partir de filmes, livros e pesquisas on-line. Ao lerem e discutirem o material coletado, os jovens imediatamente apontaram a semelhança com a violência da polícia no presente.

Oliveira (2019, p. 70) apresenta o relato de Lucas,6 feito em um encontro em 2016, no início do projeto. Ele descreve o espaço onde é realizado o baile funk semanalmente em Heliópolis: "No wifi é o inferno, tem tropa de choque, bala de borracha. Primeira vez que fui nem consegui dormir. Eles preferem chegar e dar tiro". Ou seja, no espaço das ruas em que se vive o lazer semanal dos jovens da comunidade, a ação recorrente é de violência extrema.

Luis, outro jovem pesquisador do projeto, relatou no mesmo encontro a abordagem policial que viveu com um amigo apenas por estar escutando funk nas ruas de Heliópolis: "Meu primeiro enquadro, eu ainda não tava acostumado. Eu aprendi depois. Chutou as duas, quase abri um espacate [ri]. Sim, Sr. Não, Sr. Tinha sangue nos olhos, disse que ia me ensinar a posição certa" (Oliveira, 2019, p. 71).

Tal relato revela que há um aprendizado envolvido na vivência cotidiana da violência; uma adaptação necessária do jovem a essa realidade. As narrativas que emergiram no início do projeto evidenciavam que essa adaptação deveria vir da parte do jovem periférico, pois não se apresentava dúvidas em relação à coerência da ação policial. A brutalidade não gerava mais surpresa ou espanto. Isso se revelou, por exemplo, na risada de Luis ao descrever a cena da abordagem policial. Esse mesmo jovem, já nos primeiros encontros, relatou um episódio em que foi abordado por policiais durante o trabalho de um técnico de telefones em sua casa. Ele, jovem negro, foi violentamente revistado na busca de alguma droga, enquanto o técnico, de raça branca, foi apenas interrogado. Quando o técnico acabou revelando que tinha drogas em seu carro, os policiais tentaram implantar mais drogas - que traziam consigo - na cena para levar o jovem e o técnico presos por tráfico. Por interferência da irmã e da mãe do rapaz, a prisão injusta não aconteceu.

Maria, no terceiro encontro do projeto, lançou a pergunta: "será que o único lugar que tem para a juventude é a Febem?", e descreveu a história de um primo que foi morto com mais de 30 tiros na porta de sua casa. Já Lucas, nos encontros finais do projeto, acabou revelando que seu melhor amigo foi assassinado pela polícia em um bairro próximo. Descreveu que muitas famílias vizinhas foram abandonando Heliópolis conforme viam seus jovens sendo assassinados; outras ficavam, mas deixavam de falar sobre o assunto; esquecer parecia condição para seguir em frente. Ainda naquele momento, o jovem afirmou não saber o que realmente havia acontecido com o amigo, pois a história dada pela polícia e reproduzida em casa era de que ele havia tentado roubar um carro de polícia e por isso havia sido morto.

No estudo de Ansara (2014a), também emergiram uma série de relatos sobre a manipulação das informações acerca dos assassinatos cometidos pela Política Militar. No diálogo do grupo focal, uma das mães relata um assassinato ocorrido no bairro:

M6: Essa história contaram errado. Disseram que ele saiu com as mãos pra cima e o policial atirou nele na porta do carro. O carro tava parado. Ele abriu pra entrar, e tava ele e mais outro. Ele não fugiu. Ergueu a mão.

Na porta da Igreja mataram esse menino.

S: Ele já tinha respondido à abordagem.

M: E era um menino tão bom, mas andava com gente errada.

M: Mas ele não roubou o carro.

M6: O policial já́ tava de campanha. Tava esperando a pessoa que ia pegar o carro.

M4: Quase tudo, tá tendo muito assassinato no bairro. Ele ergueu a mão e o policial atirou nele.

M6: Teve uma senhora que gravou, tirou foto.

M3: Isso mesmo, tá na internet essas imagens. (Ansara, 2014a, p. 57).

Os relatos retratam a legitimação dos assassinatos cometidos pela polícia (que se constitui legalmente como homicídio por auto de resistência),7 a qual se consolida também por meio das barreiras para o acesso às informações. As narrativas de vítimas e familiares são colocadas em um lugar de suspeita, diante da intenção de esquecimento e apagamento dos crimes. Tal mecanismo opera de modo semelhante nos crimes de Estado antes e depois de 1985.

As marcas ditatoriais persistem, principalmente, em relação à manutenção da formação e comportamento da Polícia Militar, que viola os direitos individuais de milhares de moradores da periferia. As ações violentas tomam outra proporção em diferentes espaços e corpos da cidade. Isso tem conexão direta com o que Martín-Baró (1984) apresenta em relação aos efeitos da guerra e a quem são as principais vítimas:

[...] A guerra não afeta, direta ou indiretamente, da mesma maneira os diversos setores que compõem nossa sociedade. Aqueles que, dia após dia, morrem nas frentes de batalha pertencem, em sua maioria, aos setores mais humildes de nossa sociedade, principal fonte do discriminatório recrutamento militar. (Martín-Baró, 1984, p. 509, tradução nossa).

A desagregação do tecido social se reflete nas diferenças existentes em relação ao corpo e à privacidade daqueles que moram nas periferias. A invasão e a intencionalidade da ação policial são marcas constantes no cotidiano desses jovens e de suas famílias. Chama atenção a necessidade dos policiais militares de agir e discursar de modo violento em todos os tipos de abordagens realizadas nas periferias urbanas. Os relatos reforçam que os pobres e negros são as vítimas potenciais da violência.

[...] habitam predominantemente áreas de múltiplas carências sociais nas quais são elevados os conflitos que resultam com muita frequência em desfechos fatais e compreendem majoritariamente pessoas pertencentes aos grupos desprovidos de proteção e de direitos humanos, sobretudo dos direitos econômico-sociais; são objetos de múltiplas formas de discriminação - social, religiosa, étnica, cultural etc. - o que os torna alvo preferencial das agências de contenção dos crimes e da violência. (Adorno, 1994, p. 6).

Não por acaso, como assinala Adorno (1994, p. 6), vários estudos no Brasil confirmam que os pobres pertencem às "classes criminalizáveis", sobre as quais "recaem as suspeitas dos crimes e os rigores do controle social e das agências encarregadas de reprimir a violência". Mesmo os diálogos e ações do cotidiano que não acabam em prisão, morte ou agressão, funcionam de modo a estabelecer lugares de opressão. O uso ostensivo da força, da coerção e da intimidação tem relação com a estrutura e a formação da Polícia Militar brasileira (Caldeira, 2000). Os estudos destacam a entrada de ideologias como a guerra ao crime e às drogas, além da militarização como agravadoras da violência ilegal.

As consequências dessas ideologias foram muito bem analisadas por Martín-Baró (1988): a polarização social, a institucionalização da mentira e a generalização da violência. "A violência é, pois, uma modalidade de relação entre homens ou grupos de homens, na qual uma das partes nega à outra algum aspecto de sua realidade humana (de seus direitos como ser humano), criando com isso uma situação de injustiça" (Martín-Baró 1968/2015, p. 418, tradução nossa). É possível apontar que a violência policial tem origem em sua estrutura institucional, no entanto, incide de forma a desumanizar aqueles que são da mesma raça e classe, esgarçando de maneira brutal o tecido social, do qual os mesmos policiais fazem parte.

No diálogo a seguir, entre mães que participaram dos grupos focais, vemos como a violência extrapola os adolescentes e atinge a família como um todo.

M4: Na minha casa aconteceu um caso. A gente não correu atrás porque a gente não sabia o número da viatura. Eu, ele [filho] tava no portão de casa, a polícia chegou, abordou ele e entrou dentro de casa. Tava tudo revirado. A polícia revirou tudo. Também não achou nada. [...] mas eles [os policiais] não tinham o direito de entrar na minha casa. [...]

M3: Pegam os meninos e jogam na parede. "Senhora é uma abordagem". Ah, e abordagem é assim? Chega chutando, metendo o pé́ e jogando na parede? [...] Aqui ninguém é bandido! Ele [o filho] acorda 4 horas da manhã porque trabalha na padaria. Ah, faça o favor! Vocês estão em lugar errado! (Ansara, 2014a, p. 58).

Percebe-se, no diálogo, a invasão, a violação dos espaços privados e a suspeita. Do lugar de suspeita vem a necessidade, daqueles que são ameaçados e invadidos, de se defenderem utilizando significantes como "pai de família", "trabalhador", entre outros, para se oporem ao "bandido", que seria aquele que pode e deve ser violado. Isso coincide com o que Martín-Baró (2003) aponta como um dos efeitos psicossociais da violência; a polarização social que se caracteriza como uma ruptura e oposição entre grupos rivais que se dividem entre "eles" e "nós" e entre os "bons" e "maus". O mesmo se dá com relação às distintas classes sociais. A população pobre e periférica é caracterizada negativamente como "classe perigosa", violenta e suspeita. Outro diálogo retrata o tratamento nas delegacias.

[...] o caso do meu filho, eu não fui atendida na delegacia como um ser humano, como uma pessoa honesta. Porque o meu filho errou eu sou tratada como ele foi tratado, é o que eles falam, seu filho é bandido, você é mãe de bandido. Eu acho que isso não é coisa pra eles chegar e falar. Eu como mãe eu não vou falar pro meu filho roubar, eu ensino o que é certo, o que é direito, que é com honestidade, é trabalhando que a gente consegue as coisas da gente, tem que ter paciência! [...] Aí a gente chega na delegacia e a gente é tratada como lixo! [...] Do jeito que ela falou pra mim parece que foi, assim que eu entendi, né? Não tem educação pra falar com a gente, não respeita, fala cada coisa assim que você̂ fica, Nossa!. E a gente tem que ficar calada, esperar a boa vontade deles. Nossa! Eu fui perguntar pra, acho que era carcereira, uma senhora que tava lá, [...] o que é que tinha acontecido, ela mandou eu calar a boca porque ela não fala com família de ladrão. Como se eu fosse também (M3) (Ansara, 2014a, p. 54, grifos nossos).

A população da periferia, os pobres e negros são estigmatizados e colocados no lugar de "perigosos", "bandidos" e "inimigos", o que acentua e justifica as ações violentas e abusos de autoridade. Segundo Martín-Baró (2003), o estereótipo do "inimigo" pode desempenhar um papel significativo no desenvolvimento do conflito, na medida em que contribui para justificar aquelas ações que, de outra maneira, seriam consideradas ética e politicamente inaceitáveis.

Os profissionais que atendem os adolescentes denunciam as violações sofridas e as dificuldades que os jovens em medidas socioeducativas enfrentam, sobretudo em função do preconceito que existe por parte da sociedade, da escola e da polícia. O serviço, que tem como finalidade romper com a espiral da violência e reintegrar o jovem na participação em sociedade, acaba sendo prejudicado por outros atores estatais que estigmatizam os meninos e destroem alguns de seus documentos. Essa violência tem aspecto também simbólico: os documentos são uma das poucas comprovações de pertencimento institucional. Uma das técnicas diz:

[...] O que os meninos relatam constantemente é que eles são abordados sempre de uma maneira muito constante, não é uma coisa que acontece, uma vez por ano, uma vez por mês, é constante, praticamente diariamente. [...] Os meninos se queixam muito [...] A gente tem uma carteirinha de frequência para conseguir manter os meninos minimamente organizados, então eles (os policiais) rasgam a carteirinha, tem relatos que rasgaram o RG, documento pessoal, rasgaram, quebraram o vale-transporte. [...] Ontem fizeram ele engolir a carteirinha, mastigar e engolir! (Melissa - profissional - nome fictício) (Ansara, 2014a, p. 67).

As ações policiais são marcadas por uma extrema brutalidade e uma constante violação dos corpos. Caldeira (2000) aponta como alguns corpos se tornam incircunscritos: corpos violáveis, para os quais não existe o privado e nem a proteção de direitos. As experiências de enquadro, revistas e a brutalidade dos assassinatos (que envolvem dezenas de tiros) revelam o apagamento desse limite e proteção ao corpo.

O corpo é concebido como um lócus de punição, justiça e exemplo no Brasil. Nos corpos dos dominados - crianças, mulheres, negros, pobres ou supostos criminosos -, aqueles em posição de autoridade marcam seu poder procurando, por meio da inflição da dor, purificar as almas de suas vítimas, corrigir seu caráter, melhorar seu comportamento e produzir submissão. [...] Por um lado, o corpo incircunscrito não tem barreiras claras de separação ou evitação, é um corpo permeável, aberto à intervenção, no qual as manipulações de outros não são consideradas problemáticas. Por outro lado, o corpo incircunscrito é desprotegido por direitos individuais e, na verdade, resulta historicamente da sua ausência. No Brasil, onde o sistema é publicamente desacreditado, o corpo (e a pessoa) em geral não é protegido por um conjunto de direitos que o circunscreveriam, no sentido de estabelecer barreiras e limites à interferência ou abuso de outros. (Caldeira, 2000, p. 370).

E nesse apagamento de limites se instaura uma ambiguidade notável em relação à visibilidade e à invisibilidade desses jovens. Se, por um lado, suas existências e seus corpos são marcados pela invisibilidade diante de certas instituições estatais e de grupos das elites; por outro, a visibilidade em alguns espaços e instituições parece apenas garantir que seus corpos possam ser violados. O que seria melhor: passar continuamente despercebido ou ser continuamente percebido como ameaça e como corpo violável?

 

Considerações finais

Os estudos realizados em Heliópolis, apoiados nas análises sobre violência apresentadas, nos revelam que nos territórios periféricos a violência e a violação dos direitos são cotidianas e não cessam, mesmo em contextos democráticos. As classes menos favorecidas e grupos minoritários continuam sujeitos à exclusão social, às práticas autoritárias, bem como à insuficiência das políticas públicas e à própria negação de seus direitos sociais (Santos & Chauí, 2013).

A memória de situações de violência vivenciadas e narradas pelos jovens, mães de adolescentes em medida socioeducativa e técnicos expressam a permanência das marcas ditatoriais e denunciam a violação aos direitos humanos praticada por agentes do Estado. A narração e compartilhamento de tais memórias com o grupo se apresentou, para alguns dos jovens e mães, como um motor de engajamento nas ações de defesa dos direitos humanos e da promoção de cultura de paz já previamente articuladas no bairro.

A perspectiva crítica de Ignacio Martín-Baró, que fundamentou esta análise, é um desafio aos estudos psicossociais nas universidades e comunidades, e sua urgência e coragem de combater e questionar o sistema vigente deve servir de inspiração aos pesquisadores. A compreensão de mecanismos como a polarização social e a institucionalização da mentira, que sustentam a violência estrutural, colabora para que os sujeitos não sintam que estão neles as causas da violência; não são os atributos de cor, raça, classe social, idade, lugar de residência que devem permitir que seus corpos e vidas sejam violados.

É estarrecedor que, mesmo diante da pandemia de covid-19, as piores violações do Estado recaiam sobre a periferia, ferindo a dignidade da vida e da morte. É urgente, portanto, lutar e atuar na construção da memória para que o passado e presente de violações sistemáticas aos direitos humanos e de genocídio da juventude negra e periférica não sejam ignorados ou esquecidos.

 

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Recebido em: 14/7/2020
Aprovado em: 12/5/2021

 

 

1 Atualmente, a autora é citada como Besen, mas na publicação ainda consta Oliveira.
2 O assassinato ocorreu em 18 de maio de 2020.
3 A Secretaria de Habitação produziu um estudo de caso no ano de 2016, para aplicação de um projeto-piloto de desenvolvimento sustentável. As autoras tiveram acesso ao documento físico durante o tempo de pesquisa.
4 Todos os sujeitos que participaram da pesquisa - conforme informado nos procedimentos éticos do relatório de pesquisa de Ansara (2014a) - assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e autorizaram o uso de suas falas exclusivamente para fins acadêmicos, mantendo o sigilo de suas identidades.
5 Todos os profissionais residiam em Heliópolis.
6 Conforme descrito por Oliveira (2019, 2020), a pesquisa da qual extraímos as narrativas não revela as identidades dos jovens, sendo utilizados nomes fictícios e seguidos os procedimentos éticos de pesquisa.
7 "Homicídio por auto de resistência" é a classificação, nos registros policiais, dada às mortes de civis em confronto com as forças policiais. Essa categorização implica entender que aquela morte teria ocorrido porque o sujeito morto teria entrado em confronto com os policiais e que, assim, os policiais teriam agido em legítima defesa. Trata-se, portanto, da classificação que é aplicada nos Registros de Ocorrência nas Delegacias da Polícia Judiciária, tendo por informantes e testemunhas os próprios policiais que participaram do confronto (Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) presidida por Lindbergh Farias sobre o Assassinato de Jovens em 2016).

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