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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

O resgate da memória histórica como estratégia de desconstrução do racismo

 

The Rescue of Historical Memory as a Strategy for the Deconstruction of Racism

 

El rescate de la memoria histórica como estrategia para la deconstrucción del racismo

 

 

Danielle Cabral AraujoI; Vanessa Alice de MouraII; Bruna Suruagy do Amaral DantasIII

IGraduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). E-mail: daniellecabral.a@gmail.com
IIGraduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). E-mail: vanessa.alice.moura@outlook.com
IIIProfessora de Psicologia Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Doutora e mestra pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: brunasuruagy@gmail.com

 

 


RESUMO

Crianças atingidas pelo racismo acabam por expressar a negação da identidade negra em virtude dos estigmas associados à negritude. A Psicologia Comunitária, utilizando como aporte teórico-metodológico a problematização e a conscientização, pode proporcionar a potencialização dos sujeitos por meio do resgate da memória histórica e da desconstrução dos estereótipos de inferioridade racial. O presente artigo apresenta uma experiência profissional de práticas grupais com crianças, cujo principal objetivo consistiu em propiciar o resgate da memória histórica da cultura negra por meio da contação de histórias, visando combater o racismo.

Palavras-chave: Racismo. Conscientização. Memória histórica.


ABSTRACT

Children affected by racism end up expressing the denial of black identity because of the stigmas associated with blackness. Community Psychology, using problematization and awareness as a theoretical-methodological contribution, can provide the potentiation of subjects through the rescue of historical memory and the deconstruction of racial inferiority stereotypes. This article presents a professional experience of group practices with children whose main objective was to propitiate the rescue of the historical memory of the black culture through the storytelling, aiming at fighting racism.

Keywords: Racism. Awareness. Historical memory.


RESUMEN

Los niños afectados por el racismo terminan expresando la negación de la identidad negra debido a los estigmas asociados con la negrura. La Psicología Comunitaria, utilizando la problematización y la concienciación como una contribución teórico-metodológica, puede proporcionar la potenciación de los sujetos mediante el rescate de la memoria histórica y la deconstrucción de los estereotipos de inferioridad racial. Este artículo presenta una experiencia profesional de prácticas de grupo con niños cuyo objetivo principal era propiciar el rescate de la memoria histórica de la cultura negra a través del relato de historias, con el fin de luchar contra el racismo.

Palabras clave: Racismo. Concienciación. Memoria histórica.


 

 

Introdução

O presente artigo apresenta um relato de experiência de estágio supervisionado em Psicologia Comunitária, realizado em um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA), localizado em Heliópolis, bairro da cidade de São Paulo que se encontra na região administrativa sudeste, no distrito do Sacomã. Com aproximadamente um milhão de metros quadrados, em Heliópolis vivem cerca de 200 mil habitantes, a maioria de origem nordestina. O bairro se constituiu a partir da resistência política e das lutas sociais de seus moradores, que reivindicaram inicialmente o direito à moradia, combatendo a violência dos grileiros e do próprio estado. Após a conquista do território, prosseguiu-se a luta pela garantia dos direitos fundamentais.

A fim de ampliar o acesso da população local às políticas públicas e proporcionar processos inclusivos, uma comissão de moradores fundou a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), Organização não Governamental cuja existência foi oficializada em 1984. Mediante a criação de diversos espaços, instituições e movimentos, essa entidade tem se empenhado para favorecer a expansão da cidadania ativa e assegurar o desenvolvimento social da região, transformando-a em um bairro educador (Gomes, 2020).

É necessário salientar que nossa intervenção no cotidiano da comunidade não sofreu nenhum tipo de resistência ou objeção de qualquer natureza. Contamos com apoio integral e total abertura da instituição, a qual viabilizou a realização do estágio e contribuiu para que a intervenção fosse coletivamente construída. Embora a desigualdade social que assola o país seja um grave problema que atinge o bairro e perpetua vulnerabilidades, existe nessa geografia de vivências, lutas e resistências a construção de uma rede de diálogos e a execução de ações comunitárias - criativas, éticas e reflexivas.

Conforme Montero (2004), a Psicologia Comunitária dedica-se à formação da consciência crítica, à participação popular e à consolidação dos vínculos comunitários, com vistas à transformação da realidade social, o que a comunidade já vem conquistando por meio de ações políticas articuladas. Nesse sentido, o estágio possibilitou a facilitação de processos psicossociais, a recuperação da memória histórica e a potencialização das virtudes populares (Martín-Baró, 1998), favorecendo a afirmação da identidade coletiva e a problematização de estruturas sociais injustas e desiguais. Desenvolveu-se em um dos 11 CCAs administrados pela Unas, os quais em conjunto beneficiam cerca de 1.560 crianças e adolescentes, na faixa etária de 6 a 14 anos e 11 meses de idade, que se encontram em situação de vulnerabilidade social (Unas, 2016).1 Segundo Soares (2010), os CCAs são equipamentos de educação informal, criados para acolher as crianças no contraturno escolar, uma vez que seus pais têm de trabalhar.

Por meio da participação das estagiárias no cotidiano da instituição, estabeleceu-se um vínculo de confiança com as educadoras e as crianças que lhes possibilitou expressar com tranquilidade as necessidades do equipamento. Foi possível perceber a negação da identidade negra em crianças de 5 a 7 anos em decorrência do racismo, bem como a dificuldade por parte da educadora de problematizar conflitos e sofrimentos relacionados ao tema. Cabe destacar que, em Psicologia Comunitária, não foram localizados no Brasil trabalhos com a faixa etária supracitada e, por isso, decidiu-se adotar a contação de história como ferramenta para uma comunicação lúdica e horizontal com as crianças.

O estágio viabilizou-se graças a uma parceria institucional entre a Universidade Presbiteriana Mackenzie e a Unas. A instituição autorizou a implementação do projeto de intervenção por meio da assinatura de um termo de compromisso de estágio. Todas as atividades ocorreram com a anuência do CCA e dos responsáveis pelas crianças, os quais estavam cientes das ações e concordaram com elas, pois a temática trabalhada estava de acordo com o projeto político-pedagógico da entidade, que visa à abordagem de temas transversais e atividades socioeducativas. Inclusive a proposta de trabalho interventivo foi desenhada coletivamente a partir da convivência e do constante diálogo com as educadoras e a coordenadora, que sugeriram abordar o racismo infantil por concebê-lo como uma estrutura social internalizada no psiquismo das crianças.

Após três meses de inserção no serviço e de convívio semanal com as crianças, as estagiárias compartilharam com a coordenadora e as educadoras a versão final do projeto de intervenção para ser apreciada e alterada, se necessário. Embora detalhado, o projeto poderia ser modificado no contato com os sujeitos participantes, tendo em vista sua natureza dinâmica. Depois da aprovação da proposta, teve início a ação participativa, que contou com o envolvimento e a participação das crianças, resultando na reformulação dos encontros a partir das novas demandas que emergiram nas atividades.

O racismo não ocorre porque as crianças em sua subjetividade o construíram; não se trata, portanto, de uma produção subjetiva, mas de um emaranhado de ideologias socialmente dominantes que reforça a desigualdade racial, fenômeno estrutural característico da sociedade brasileira (Eurico, 2020). Segundo Santiago (2014), desde muito cedo, crianças negras são atingidas pela ideologia do embranquecimento, que estabelece a superioridade branca, a homogeneização racial e a anulação da cultura negra (Fanon, 2008). O Brasil, em razão da longa história de escravidão da população negra, convive em seu cotidiano com um legado racista, que justifica os estereótipos, perpetua a segregação e naturaliza as violências. O preconceito racial, apesar de historicamente silenciado, é transmitido às crianças já na primeira infância em processos de socialização que depreciam o negro e geram intenso sofrimento psíquico. A criança negra, muitas vezes, só entra em contato com a história do seu povo sob a óptica da escravidão e de toda sorte de exploração e humilhação, representadas em novelas, filmes, livros escolares e sistemas de comunicação, o que torna a identidade negra uma carga pesada, uma condição de vida dolorosa, fadada ao esquecimento e à negação (Silva, 2018; Lima, 2005). O negro no Brasil está submetido a tantas formas de violência em seu cotidiano que tal realidade - pela repetição - passou a ser banal, comum e invisível. Os jovens negros são os mais expostos à violência letal em território brasileiro, tornando-os propensos à manifestação de transtornos psicológicos, como a depressão (IBGE, 2019), podendo levá-los ao suicídio (Silva, 2018). Pesquisa do IBGE (2019) revela que em 2017 a taxa de homicídios da população negra aumentou de 37,2 para 43,4 por 100 mil habitantes, enquanto da população não negra a taxa se manteve estável, de 15,3 para 16. Cerca de 60% da população encarcerada é negra (Brasil, 2015). Atualmente, em nosso país, o racismo mata corpos, mentes, subjetividades, desejos, projetos e sonhos, como o banzo matou no período escravocrata (Silva, 2018).

 

Fundamentação teórica

Paulo Freire (1970) argumenta que quanto mais se problematiza a relação dos educandos com o mundo, tanto mais eles se sentirão desafiados e instigados a responder ao desafio. Nesse processo, perceberão a existência de incoerências em suas conexões com a realidade e com os outros, alcançando, assim, uma compreensão crescentemente crítica. Novos desafios, novas repostas, mais compromisso, é assim que se dá o conhecimento que engaja (Freire, 1970).

A problematização se refere a um processo de análise crítica do mundo concreto, considerando o cotidiano, a cultura e a história. Conforme Freire (1970), problematizar é analisar a realidade criticamente, indagar o mundo, não aceitar as respostas prontas, questionar as relações estabelecidas por meio do diálogo. Montero (2004) desenvolveu o conceito de problematização elaborado por Paulo Freire e o integrou às metodologias do campo da Psicologia Comunitária. Em sua concepção, trata-se da desnaturalização dos acontecimentos psicossociais, que promove a mobilização da consciência e a formação do pensamento crítico. É um processo dialógico que revela as contradições dos fenômenos, denuncia seus interesses sociais e políticos e nega seu caráter supostamente essencial e natural, favorecendo o que Freire (1979) denominou de conscientização, processo por meio do qual a esfera do espontâneo é ultrapassada.

De acordo com Martín-Baró (2006), a tarefa primordial do psicólogo é a desideologização, que consiste na desconstrução dialética das ideologias dominantes com vistas a desencadear a conscientização e a desalienação dos sujeitos para que possam construir um saber crítico sobre si mesmos e sobre os outros. Desideologizar significa desnaturalizar condições opressoras consideradas legítimas, que impedem a transformação estrutural, propiciam o conformismo e geram imobilidade. Esse processo só se realizará com a participação ativa e crítica dos setores populares envolvidos, prestigiando a horizontalidade dos saberes múltiplos, sem que haja a predominância dos conhecimentos psicológicos. Para que sejam rompidas e desnaturalizadas estruturas ideológicas, Martín-Baró (2006) propõe superar o presentismo mediante o resgate da memória histórica das maiorias populares. As memórias do passado são produzidas por personagens anônimos que viveram os acontecimentos históricos, as quais são, portanto, testemunhas vivas da história (Bosi, 2003). Como argumenta Sá (2015), as memórias são espontâneas, plásticas e plurais, modificando-se conforme as experiências do presente. Segundo Benjamin (2012), há uma relação intrínseca entre memória, narrativa e experiência. O narrador (re)constrói a crônica do cotidiano a partir da memória da experiência vivida, apresentando versões do passado sujeitas a múltiplas interpretações por parte de quem as ouve. No campo da memória, manifestam-se por meio da oralidade de indivíduos negados pela história oficial (pobres, trabalhadores, mulheres, idosos, indígenas e negros), cujas vozes foram alijadas e cujas memórias ficaram marginalizadas (Bosi, 2003).

A recuperação da memória histórica possibilita o encontro com as raízes do passado, a formação da identidade coletiva, a compreensão do presente e a construção de alternativas para transformar a realidade. As pessoas socialmente vulneráveis, em razão da preocupação permanente com a própria sobrevivência e da consequente busca de meios para satisfazer suas necessidades prementes, acabam por aprisionar-se aos imperativos do presente e do cotidiano, aceitando a realidade sem objeções e habituando-se ao discurso dominante, naturalizante e a-histórico que nega os condicionantes sociais. Para Martín-Baró (2006), o trabalho do psicólogo consiste no reconhecimento das origens históricas determinantes do presente e no mapeamento do passado de lutas e resistências a fim de combater os estigmas deformadores da imagem social dos pobres e evidenciar as virtudes populares - tradições, religiosidade, folclore, cultura e outras ações - que permitem o fortalecimento de um povo.

A memória desconstrói clichês e lugares-comuns criados pela história oficial, reconfigurando identidades e produzindo novas versões do passado a partir de vivências cotidianas do presente. A criança negra, assim como seus pais, pouco aprendeu na escola sobre a história do seu povo, muitas vezes narrada com base em ideologias colonialistas e versões eurocêntricas, resultando na formação de caricaturas históricas, como o estereótipo do negro escravizado, submetido, indolente e passivo em oposição ao herói europeu, forte, corajoso e desbravador (Dias, 2014). Se a história reforça uma concepção negativa da população negra, cabe indagar: "[...] que orgulho tem a criança negra quando busca na memória a história do seu povo? Qual o papel do seu povo na história do Brasil? Como a família que coleciona a mesma memória administra as inquietações - ou o silêncio - dessa criança?" (Andrade, 2005, p. 120). Assim, uma estratégia eficaz no combate ao racismo é resgatar as memórias positivas do povo negro, o que promoverá processos de identificação e fortalecerá o pertencimento racial (Lopes, 1987). Foi por essa razão que o trabalho de contação de história abordou a vida dos heróis e heroínas negras que lutaram por liberdade.

A Psicologia Comunitária afirma as potencialidades dos membros da comunidade, desconstrói estigmas sociais e raciais, revitaliza a existência dos excluídos e estimula a formação de laços sociais, almejando, assim, fortalecer identidades e desenvolver capacidades (Montero, 2004). Cabe-lhe reconhecer as experiências subjetivas, coletivas e cotidianas dos moradores de determinado território, analisando os vínculos de cada um com o espaço, as formas de pertencimento e as identificações com a comunidade. Segundo Nasciutti (2007), a comunidade corresponde a um conjunto de sujeitos, ações, organizações e instituições, que se estabelecem socialmente e se mantêm por vinculações sociais, afetivas, normativas e simbólicas. As instituições, por sua vez, são uma via de acesso à comunidade, uma espécie de mediação entre o contexto comunitário e os sujeitos que o compõem. Como estruturas sociais, têm um sistema de regras, um código de conduta, uma organização intrínseca e papéis sociais definidos, além de possibilitar que os indivíduos expressem suas singularidades (Nasciutti, 2007).

Ao inserir-se nas instituições que integram a comunidade, o psicólogo precisa evitar o mergulho na vida comunitária sem reflexão crítica e, em contrapartida, deve ultrapassar barreiras superficiais para executar um trabalho profundo. Não é possível, no entanto, assumir como premissa metodológica a neutralidade, uma vez que está politicamente implicado com as demandas populares e eticamente comprometido com a transformação social, assumindo uma visão de mundo e uma forma de compreensão da realidade (Nasciutti, 2007). Ao ingressar nas instituições, torna-se participante ativo da dinâmica institucional, realizando ações, exercendo papéis e interferindo nas interações locais. Conforme se verifica na proposta do trabalho aqui descrito, é necessário ressaltar que o psicólogo é um facilitador, não o detentor do monopólio do saber (Araújo, 1999). Para compreender a trama dos afetos sociais e dos processos psicológicos de determinadas geografias, é imprescindível que participe do cotidiano institucional e comunitário, inserindo-se em todos os espaços possíveis, e não apenas nos espaços grupais. Circular pelas ruas, frequentar reuniões, comparecer a um evento da comunidade, conversar informalmente, enfim, viver o dia a dia e conviver com os outros permitirão ao psicólogo comunitário compreender as experiências cotidianas dos sujeitos sociais sob a perspectiva de quem as vive (Martín-Baró, 1998).

 

Método

De acordo com Ansara e Dantas (2010), o paradigma da construção e transformação crítica, produzido no campo da Psicologia Comunitária, tem orientado os trabalhos nas comunidades periféricas da América Latina a partir das cinco dimensões que o constituem: ontológica, epistemológica, metodológica, ética e política (Montero, 2004). A dimensão ontológica, segundo esse paradigma, indica que o conhecimento é produzido coletivamente na trama das relações cotidianas. Os membros da comunidade, em constante interação, constroem saberes sobre o mundo concreto, assumindo uma postura ativa perante os problemas ordinários da vida. Desse modo, os saberes populares devem ser reconhecidos em seu valor e relevância, sendo tão legítimos quanto os conhecimentos do psicólogo que atuará na comunidade (Montero, 2004).

A dimensão epistemológica refere-se ao caráter monista da relação entre os sujeitos envolvidos na intervenção-investigação e a realidade investigada. Nessa perspectiva, não há separação nem independência entre sujeito e objeto; ambos se constituem reciprocamente de forma dialética e dinâmica. A relação epistemológica se caracteriza pela presença de um duplo sujeito cognoscente - sujeito-pesquisador e sujeito-comunidade que construirão juntos, a partir de uma ação integrada, o conhecimento a respeito de determinado objeto. A dimensão ética coloca os interesses comunitários acima dos interesses pessoais, ressalta a primazia da alteridade, proporciona a inclusão das diferenças e promove a igualdade de direitos, impactando, desse modo, todas as outras dimensões (Montero, 2004).

A dimensão política engloba as implicações sociais do conhecimento e a circulação da palavra no espaço público como forma de exercer a cidadania. Pretende-se criar condições para que aqueles de quem as vozes tenham sido suprimidas alcancem por meio do diálogo um espaço de manifestação da palavra, que propicie a realização da práxis e a formação da crítica (Montero, 2004). Conforme Montero (2006), a participação comunitária amplia o poder de ação e decisão da comunidade, desenvolve as potencialidades de seus membros, gera uma sensação de pertencimento e possibilita a construção de uma identidade coletiva. No que tange à dimensão metodológica, os meios utilizados para a produção do conhecimento em Psicologia Comunitária tendem a ser predominantemente participativos, dialógicos, dinâmicos e plásticos. O método é flexível e se modifica de acordo com os movimentos da realidade (Montero, 2004).

Para a realização dos trabalhos comunitários, Montero (2004) propõe como metodologia a investigação-ação-participativa (IAP), que prevê a construção de práticas coletivas, reflexivas, críticas, multi e interdisciplinares (Freitas, 2015). Utilizou-se a IAP como metodologia para dar início ao trabalho de observação ativa e inserção participante. As estagiárias não se colocaram como especialistas nem assumiram uma postura de autoridade, mas - conscientes do seu desconhecimento em relação às particularidades do equipamento - buscaram compreender a dinâmica institucional e ao mesmo tempo contribuir com as propostas educativas do CCA.

Montero (2006b) discrimina as seguintes fases da investigação-ação comunitária: reflexão preparatória, planejamento da investigação-intervenção, trabalho com a comunidade e socialização do conhecimento adquirido. Como salienta Colmenares (2012), a IAP pressupõe diálogo com os atores sociais envolvidos e constante reflexão crítica por parte do pesquisador, que pode resultar na reorientação da proposta, na reformulação das estratégias planejadas previamente e na criação de novas práticas.

No caso específico do estágio abordado nesse manuscrito, é importante reiterar que foram tomados os devidos cuidados éticos no registro dos dados e na análise da experiência de estágio. A atuação das estagiárias contou com o respaldo institucional, sem sofrer qualquer oposição. Todas as decisões metodológicas foram amplamente discutidas e encaminhadas coletivamente. Os responsáveis pelas crianças que participaram da intervenção avalizaram a proposta e consentiram com a participação, pois se tratava de uma atividade que integrou o planejamento pedagógico do CCA. Os nomes das crianças foram substituídos por pseudônimos e todas as informações pessoais foram subtraídas a fim de preservar as identidades e evitar qualquer forma de identificação.

Com base na fundamentação teórica que embasa o presente trabalho, as atividades desenvolvidas com as crianças almejaram problematizar verdades, desideologizar discursos, desnaturalizar pensamentos e conscientizar mentes. Por meio do resgate da memória histórica e do diálogo problematizador (Montero, 2006b), paulatinamente foram sendo questionados os pré-conceitos a respeito do negro, reproduzidos por crianças de 5 a 7 anos (em média, um total de 30), com o propósito de desconstruir ideias petrificadas e hábitos consolidados que contribuem para perpetuar e naturalizar a opressão. As intervenções ocorreram em duas etapas: a contação de histórias, com a utilização de objetos, vídeos, músicas e instrumentos, seguida de atividades gráficas nas quais eram feitas problematizações. Na segunda etapa da proposta interventiva, foram utilizados materiais diversos, estruturados e não estruturados, como massa de modelar, isopor, tinta, lápis de cor e produtos reciclados.

A escolha da contação de histórias decorreu de sua adequação ao método da investigação-ação-participativa (IAP) e ao público infantil. As histórias foram preparadas antes de cada encontro - selecionou-se uma série de textos infantis adaptando-os aos objetivos de cada atividade ou escreveu-se uma estória relativamente ficcional baseada na vida de pessoas reais, destacando-se os aspectos positivos das atitudes das personagens, conquistas, realizações e enfrentamentos. As estagiárias se apropriaram da técnica e construíram progressivamente uma performance lúdica e dramática, inserindo em cada narração recursos artísticos (músicas e instrumentos musicais), objetos cênicos (pedaços de tecidos coloridos, caixa de papelão, fitas e palitos de madeira) e acessórios (enfeites para cabelos, laços e flores artificiais). A contação, apresentada como performance artística, procurou afetar as crianças com a atmosfera de cada narrativa, introduzi-las em cada contexto e transferi-las por meio da imaginação à realidade de cada personagem.

A oralidade é uma das primeiras formas de comunicação entre os seres humanos, utilizada na transmissão de saberes, experiências, histórias, costumes e demais elementos culturais. Por intermédio do registro oral, a memória de um povo é mantida viva e sua identidade preservada. Os griots, contadores de história da África Ocidental, atuam como memorialistas, disseminando os conhecimentos, mitos e canções de seus povos, por meio de histórias contadas, em cada lugar em que se fazem presentes (Gomes, 2015).

Com o objetivo de apresentar elementos culturais afro-brasileiros, estabeleceu-se durante a contação de história uma comunicação horizontal com o público infantil. Foram apresentados elementos cênicos e artísticos, que pudessem contribuir para o exercício da imaginação, a participação, a manifestação da criatividade e a atribuição de sentido. A proposta permitiu que o ouvinte estivesse ativo e construísse o seu próprio entendimento sobre o conteúdo compartilhado, apropriando-se dele e atribuindo-lhe sentidos subjetivos, retirados das suas vivências pessoais. A história não foi contada de forma pronta, acabada, caricata e previsível, com todos os elementos expostos e explicados. As lacunas foram mantidas para que o espaço de livre expressão das crianças se ampliasse e fosse preenchido por elas mesmas a partir das intervenções, perguntas, demonstrações de afeto, interações e colocações das estagiárias. Opôs-se, portanto, ao didatismo e ao realismo que, certamente, inibiriam o potencial criativo, lúdico e reflexivo das crianças. As histórias contadas não distorceram o enredo da vida real das personagens; porém, acrescentaram elementos fantásticos às narrativas, atraindo os ouvintes mirins, possibilitando a percepção positiva da negritude e favorecendo a formação da consciência racial (Mittmann, 2010).

A partir do constante diálogo, foi possível identificar manifestações do racismo que submetem crianças de 5 a 7 anos a profundo sofrimento psíquico. Logo que ingressaram na instituição, as estagiárias ouviram atônitas o relato da educadora acerca de uma das consequências do racismo: crianças negras negam a identidade racial, aderindo inadvertidamente ao mecanismo de branqueamento (Fanon, 2008). Ela lhes contou o caso de uma criança negra que dizia que nascera branca, mas, por ter tomado muito sol, tornara-se negra. O que a educadora narrou ficou explícito nas brincadeiras e nos diálogos entre as crianças. Certa vez uma criança elogiou uma boneca loira de olhos azuis, fazendo referência à sua beleza, reproduzindo, assim, o padrão estético hegemônico. A estagiária lhe perguntou a razão de considerá-la "linda"; em resposta, a menina apontou para os olhos, os cabelos e a cor da pele da boneca. Sabe-se que o racismo não é um fenômeno pontual, isolado e circunstancial, mas um acontecimento permanente que se propaga por todas as esferas da vida do sujeito, caracterizando-se como uma violência simbólica, invisível, sutil e dissimulada, que afeta os negros e, embora sentida, é muitas vezes silenciosa (Silva & Dias, 2013). Esse projeto de intervenção teve como principal objetivo romper com o silêncio que oculta o racismo, a fim de combatê-lo por meio da reconstrução da história a partir da perspectiva dos negros, do conhecimento da cultura negra e da potencialização de seus valores, garantindo, assim, o reconhecimento de suas virtudes e a afirmação da identidade racial.

 

Discussão

Ocorreram 12 encontros, registrados sistematicamente em diários de campo, que foram analisados com base nos aportes teóricos da Psicologia Social Comunitária. Na maioria dos encontros, trabalhou-se com a narração de histórias que abordavam a ousadia e a coragem de personagens negros (reais ou fictícios), heróis e heroínas, líderes e visionários, os quais viveram em condição de opressão, mas lutaram e resistiram firmemente, como Zacimba Gaba, Dandara, Besouro de Mangangá e outros grandes nomes da resistência negra no Brasil e na África. Também foram utilizados cordéis e livros de histórias que promovem a representatividade negra. Os nomes das crianças não serão expostos em razão da ética do sigilo, por mais que as reconheçamos como coautoras da intervenção e proprietárias do conhecimento produzido, segundo os pressupostos metodológicos da Psicologia Comunitária (Montero, 2004). Os nomes reais serão substituídos por nomes fictícios em yorubá2 (um dos mais de 250 dialetos da África Ocidental), retirados do dicionário Yorubá - Português (Napoleão, 2010), com a finalidade de homenagear a ancestralidade africana das crianças e do Brasil de modo geral.

A partir dos encontros com as crianças, percebeu-se que o resgate da memória histórica, por meio da contação de histórias, permite o processo de conscientização acerca da identidade negra. Se nos encontros iniciais havia uma negação da negritude, ao longo das intervenções a identidade racial foi sendo afirmada em virtude da valorização do patrimônio cultural africano e do sentimento de orgulho por ser negro. Ao exibir o vídeo sobre o livro Que cor é a minha cor?, de Martha Rodrigues, Àràká, de 7 anos, começou a dizer que todos que estavam na mesa eram brancos e só Ire era preta. Essa menina, de 6 anos, começou a chorar e foi necessário que a educadora a retirasse da sala para que pudesse ser devidamente acolhida. Lopes (1987) argumenta que, na sociedade brasileira estruturada pelo racismo, desde a infância o negro é levado a acreditar que para existir tem de ser branco, negando-se permanentemente, mas como não é possível deixar de ser quem é, entra em contradição.

Ángélì, de 7 anos, perguntou se podia chamar uma das estagiárias, negra, de sacizinho. Ao ser indagado por que pretendia chamá-la dessa maneira, ele disse: "é porque o saci é pretinho". A estagiária respondeu que se fosse uma forma respeitosa de tratamento ele poderia chamá-la assim. A resposta da estagiária pode ser considerada problematizadora, pois, além de apresentar um caráter de respeito mútuo por meio da escuta e do diálogo (Montero, 2006b), devolve à criança sua pergunta para que ela reflita. O menino ficou em silêncio. Cabe pontuar que, após esse episódio, Ángélì nunca mais chamou a estagiária de sacizinho. Para Montero (2006b), as problematizações não são respostas prontas a fim de desqualificar ou aprovar determinada opinião ou argumentação, mas uma indagação, uma provocação, um porquê, que não se conforma com respostas usuais.

A escolha da contação de história como metodologia decorreu da constatação de que o racismo é um assunto sério, que deve ser abordado, mas é imprescindível estabelecer com as crianças uma forma de comunicação criativa, espontânea, lúdica e divertida. A história da Abayomi3 buscou resgatar a memória da diáspora africana, desconhecida das crianças. Martín-Baró (2006) propõe a reconstrução da memória histórica como estratégia para desconstruir ideologias, o que proporciona o encontro com as raízes da identidade coletiva e racial. Enquanto a história sobre a vida de Ayò - uma personagem negra - estava sendo narrada, Ará apontou para uma das estagiárias e fez a seguinte constatação: "era preta como ela". Ángélì perguntou à estagiária se ela era Ayò. Nessas situações específicas, observa-se que as crianças estão pensando a respeito da ancestralidade africana, fazendo associações e comparações a partir do aspecto mais visível da questão racial. A história narrada retratou o trágico episódio da vida de uma menina negra que, com sua família, foi trazida à força da África para o Brasil em um navio negreiro para ser escravizada em nosso país; destacou-se esse acontecimento funesto a fim de que se iniciasse uma percepção crítica da história. Era uma criança livre que foi submetida a um processo de escravização. Logo, começa a se desconstruir a condição natural da escravidão. Esse resgate crítico do passado, segundo Martín-Baró (2006), acaba contribuindo para que uma identidade coletiva se constitua.

As crianças dialogaram com e durante toda a história, interferindo na narrativa, expressando afetos e acrescentando à trama novos desdobramentos. Não havia silêncio na sala; o barulho indicava a participação democrática e horizontalizada que, segundo Montero (2004), gera transformações psicossociais, visto que o sujeito reconhece a importância do seu lugar na realidade e a importância do lugar do outro. Nos primeiros encontros, o intenso barulho das crianças incomodava as estagiárias, fazendo-lhes compreendê-lo como a manifestação do caos e um obstáculo ao desenvolvimento das atividades, o que as instigava a tentar contê-lo. Com o passar do tempo, foi possível perceber o barulho como a expressão de vozes plurais que, nos encontros, tinham espaço para a livre comunicação e o diálogo espontâneo.

Durante a confecção da Abayomi, Ángélì começou a cantar músicas de capoeira e a dançar com a boneca que ele havia confeccionado. Percebendo seu envolvimento com a atividade, a estagiária perguntou ao garoto se ele sabia que a capoeira tinha origem negra e africana, como a Abayomi. O menino pareceu surpreso com o que acabara de ouvir e lhe disse que fazia capoeira na escola e gostava muito dos movimentos e das músicas, mas demonstrou que desconhecia sua ancestralidade africana. Foi o diálogo com essa criança que alterou o planejamento dos encontros, de sorte que se acrescentasse a capoeira como estratégia metodológica a fim de contextualizá-la historicamente. Do relato de Ángélì, é possível depreender que a escola esvaziou a dimensão histórica e cultural da capoeira, negando aos negros o valor de suas produções simbólicas. Para Martín-Baró (2006), virtudes populares como a capoeira devem ser valorizadas, pois representam um símbolo da história, da cultura e da resistência negras, permitindo a continuidade histórica de um povo.

Durante uma das atividades, dois meninos que começaram a discutir em um pequeno grupo ficaram em evidência: eram Àràká e Abé, ambos com 7 anos. Quando questionados sobre o motivo da discussão, Abé disse que o outro ofendera sua mãe, chamando-a de negra. Uma das estagiárias lhes perguntaram se ser negra era uma ofensa; os dois meninos permaneceram em silêncio. Montero (2006) argumenta que, por vezes, o silêncio é a resposta que a pergunta problematizadora produz, pois ela questiona os discursos ideológicos que, vazios, ficam sem resposta, fazendo com que o sujeito mobilize sua consciência. Em um dos encontros em que se narrou a história de Tayó,4 uma menina negra que enfeita e valoriza seus cabelos crespos, Ángélì dirigiu-se à estagiária para lhe dizer: "não acho cabelo crespo melhor que cabelo liso". Perguntou-se ao menino se a história contada naquele dia defendia essa ideia; ele logo respondeu negativamente e acrescentou: "sabe, professora, nunca falaram que meu cabelo era ruim na escola". Uma nova pergunta problematizadora foi dirigida ao menino, que tem cabelos lisos: "por qual motivo ofenderam o cabelo de Tayó?". Ele disse que não sabia, mas "se fosse com ele dava logo um chute". Aqui, a criança percebe que quem tem cabelos crespos é hostilizado na escola, ao passo que quem tem cabelos lisos é poupado de xingamentos e violências simbólicas. Não saber exatamente o motivo da diferenciação provoca na criança reflexão sobre o assunto. Eis o processo de conscientização emergindo: o garoto questiona as concepções a respeito dos tipos de cabelo e já começa a se inserir criticamente na realidade.

Nos encontros, além do resgate da memória histórica da resistência negra, explorou-se o patrimônio cultural afro-brasileiro: a capoeira, o samba, o rap, o funk e o candomblé, o que Martín-Baró (2006) denomina de virtudes populares, isto é, a produção dos negros que marcou a cultura brasileira e resistiu à opressão. Esses elementos foram apresentados às crianças no decorrer da narração das histórias, às quais foram incorporados instrumentos musicais para fomentar a ludicidade, favorecer a participação e estimular a interação.

Na contação da história de Dandara, uma negra livre e lutadora, Ayé, branca, disse em voz alta: "Dandara era negra como ela e ela", apontando para duas crianças negras, que continuavam escutando a história com atenção, ou seja, a palavra negra, que inicialmente era considerada uma ofensa, já começa a aparecer como identidade. Àlá, de 7 anos, identificou-se com Dandara e disse que era negra como a guerreira do quilombo dos Palmares. Essa menina, segundo a educadora, antes da intervenção dizia para os amigos da sala que nascera branca, mas que tomara muito sol quando fora à praia com a mãe, ficando com a pele escura. Certamente, as histórias que Àlá ouviu lhe possibilitaram assumir a ancestralidade africana expressa na cor de sua pele.

Diante da proposta de construção grupal de quilombos em maquetes, Èbun, de 5 anos, disse à estagiária que pretendia fazer separados "o castelo dos brancos e o castelo dos negros" para evitar que brigassem. Como a produção do quilombo era um trabalho grupal, a questão foi encaminhada às demais crianças para fomentar o debate, favorecer o diálogo e instigar a reflexão. Surgiram inúmeras respostas: "Meu pai é negro e minha mãe é branca, e até que eles vivem bem" (Béèni, 7 anos); "professora, eu sou negra, minha mãe é negra, meu pai é negro" (Ebí, 5 anos); "eu sou negra, minha mãe é negra, e minha avó também, mas meu irmão é branco" (Álá, 7 anos). Houve várias expressões de afirmação da identidade negra coletiva em decorrência das narrativas e memórias históricas; agora negro é identidade.

Em uma das mesas, Alawó Dúdú, criança negra de 6 anos, discutia com Rò, menina branca da mesma idade, que havia decidido criar uma princesa branca. Indignada, a garota virou para a estagiária e a questionou: "tia, ela quer fazer a princesa branca, mas Zacimba Gaba era negra", referindo-se à personagem da história compartilhada, uma guerreira negra que lutou pelo fim da escravidão. A estagiária perguntou a Rò o que achava do questionamento e ela respondeu: "é outra princesa". Porém, enquanto se explicava, a menina cobria o corpo da princesa com massinha marrom. Alawó Dúdú, por sua vez, recuou: "mas podem ter princesas diferentes, nós somos diferentes, nossos rostos não são iguais". Além do reconhecimento e da valorização da identidade negra, aqui se observa o respeito às diferenças que, segundo Freire (2001), emerge de uma educação libertadora.

Quando a estagiária perguntou se os negros eram livres, Alamoju, de seis anos, disse: "tia, os negros não são livres". Ao ser indagada sobre a razão daquela resposta, a menina não hesitou: "Eles trabalham, trabalham muito, só nos finais de semana eles ficam livres". A estagiária seguiu problematizando; perguntou-lhe qual era o trabalho dos negros. A garota prosseguiu: "moça que limpa, que cuida de criança, que corta a carne". A estagiária continuou indagando: "como é a luta dos negros nos dias de hoje?". A resposta logo foi formulada: "Lutando para ter as coisas". Essa declaração integra o passado de escravidão e o presente de escassez e exploração, possibilitando a compreensão da segregação racial a partir da escravização histórica dos negros. A narração da história sob a óptica dos negros, cujas vozes são permanentemente silenciadas, garantiu a negação da história oficial pela revelação das memórias subterrâneas. Embora sufocadas pelas ideologias dominantes, as memórias subtraídas dos negros não foram lançadas no esquecimento ou na inexistência (Pollak, 1992). A experiência de estágio permitiu às crianças estabelecer uma associação crítica entre os acontecimentos históricos, identificando as conexões entre o passado e o presente. Para Martín-Baró (1998), um trabalho conscientizador promove a confrontação com a realidade concreta, o presente imediato, o cotidiano regular, o senso comum e os preconceitos. De acordo com Freire (1970), é por meio das problematizações que se desafia o sujeito, na ação dialógica, a encontrar respostas provisórias para problemas complexos, desenvolvendo, assim, um pensamento reflexivo e alcançando uma compreensão do mundo crescentemente crítica.

Em um dos encontros, enquanto as estagiárias problematizavam nas mesas,5 Èbun, 5 anos, pediu o pandeiro para cantar um samba de autoria própria. O menino cantou de forma improvisada a seguinte letra por ele criada: "É dia de viver, quando a pretinha e o pretinho quer cantar. A vida salva, a vida salva. O samba eles quer, a vida eles quer pra rua. Quando eles dá uma pausa, eles quer comer ou eles quer beber água ou suco. É dia de viver, é dia de viver" [sic]. Por meio do samba de autoria própria, a criança explicita a consciência das raízes negras da musicalidade brasileira, valorizando o samba e tratando-o como uma possibilidade de "salvar a vida".

Na contação de história sobre a vida de Nelson Mandela, quando se apresentou a política de segregação do Apartheid, as crianças de modo geral ficaram indignadas e o barulho que já era perceptível na contação só aumentou. Elas não conseguiam conceber a separação entre negros e brancos, que favorecia os brancos, concedendo-lhes melhores condições de vida. Alawó Dúdú interrompeu: "prof., mas por que eles ficavam separados se você é negra e ela é branca e vocês são amigas?" [sic], referindo-se às estagiárias. Neste momento da intervenção, após semanas de práticas psicossociais, as crianças já expressam o respeito e a vontade de viver com o diferente. Manifestam-se quando não concordam com determinada situação, revoltam-se diante de realidades injustas; eis as crianças atuando como sujeitos ativos politicamente (Montero, 2004).

Nos últimos encontros, quando lhes foi perguntado se negros e brancos tinham que viver separados na cidade de São Paulo, RúJáde, de 5 anos, abraçou a estagiária negra e disse: "Nunca". Aqui, faltando um encontro para o fim das intervenções, é possível afirmar que o projeto alcançou o objetivo de propiciar a desconstrução de ideologias racistas por meio de problematizações, facilitando o processo de conscientização em crianças de 5 a 7 anos. A proposta não tinha a pretensão de concluir suas atividades com a formação da consciência crítica acerca do racismo, visto que compreende que a conscientização é um processo contínuo, dialético, inconcluso, incompleto e mutável, mas almejava assegurar a valorização da cultura negra e o respeito à diversidade.

Desafios são enfrentados e problematizações são formuladas; porém, cabe aos sujeitos responder se a proposta faz sentido ou não à medida que são desafiados (Freire, 1970). Alamoju disse que no CCA "tem uma amizade arco-íris", pois suas amigas são coloridas. A menina demonstra ter se apropriado do sentido da proposta, a qual não lhe foi entregue pronta, mas foi construída com ela. Ire também mencionou a diversidade das personagens das histórias narradas durante as práticas de contação, dizendo que havia pessoas de todas as cores.

A Psicologia Social Latino-Americana trata da realidade das camadas populares, que vivenciam diariamente formas sistemáticas de violência, humilhação, violação de direitos e negação das identidades dos povos originários, colocados em situação de escravidão e submetidos a desigualdades sociais gritantes. Historicamente, suas ações horizontais, democráticas e dialógicas têm favorecido a conscientização dos indivíduos subjugados e a libertação da condição de opressão (Martín-Baró, 1998). Para avançar em seu projeto ético e político, é essencial que construa suas próprias referências e examine com crítica a Psicologia dominante que serve aos interesses burgueses, desconsiderando os determinantes históricos e sociais da realidade.

O trabalho aqui apresentado buscou revelar os condicionantes históricos da vida social, trazendo à consciência dos sujeitos a história que não é contada nos lugares do suposto saber, apesar de constituir as raízes da cultura brasileira. Ao tratar da temática do racismo, devem-se assegurar o resgate da identidade da negritude, a afirmação de sua origem e o desvelamento de sua manifestação contemporânea, que busca ocultar a persistência histórica das estruturas e ideologias racistas. Os sujeitos passam a olhar para si e para a história do grupo do qual fazem parte, atribuindo novos sentidos que os potencializam para a ação transformadora de sua própria realidade.

 

Considerações finais

Heliópolis é uma comunidade cuja história é um enredo de lutas, resistências e conquistas, que defende a educação como prática permanente de todos para todos, capaz de fortalecer o projeto democrático e assegurar a cidadania ativa. É pelo incentivo à educação que a comunidade de Heliópolis tem sido considerada um bairro educador (Soares, 2010). A intervenção buscou contribuir com essa proposta de educação engajada, eticamente responsável e politicamente comprometida.

A partir da experiência de investigação-ação-participativa, desenvolvida no campo da Psicologia Comunitária, percebeu-se que o resgate da memória histórica promoveu a conscientização de crianças de 5 a 7 anos. Se a princípio a negação da identidade negra era uma ação naturalizada reforçada pelo racismo, com as intervenções várias crianças passaram a assumir essa identidade coletiva, agora embasada historicamente.

A pesquisa-ação, por meio do diálogo horizontal e da participação contínua das crianças, favoreceu a partir da linguagem lúdica o conhecimento da história da escravidão e da resistência negra no Brasil, possibilitando às crianças aproximar-se de um passado distante, praticamente inexistente, e estabelecer conexões temporais que desconstruam os estereótipos de inferioridade racial. As crianças são sujeitos de direitos, capazes de participar, entender e refletir sobre determinados temas. Como se verifica na intervenção realizada, as crianças se mostraram ativas e participativas, desenvolvendo gradativamente uma percepção desestigmatizante do cotidiano. A proposta interventiva não tem a intenção de ser um guia para novas ações e investigações no campo da Psicologia Comunitária, mas pretende apresentar uma possibilidade original de atuação com crianças em uma área que, no Brasil, tradicionalmente não desenvolve trabalho com esse público.

Cabe ressaltar que a ação em uma instituição específica teve reverberações em toda a comunidade, produzindo impactos além do espaço do CCA. O sentido de comunidade que caracteriza Heliópolis se faz notar na integração dos equipamentos institucionais e na construção de espaços coletivos para a troca de experiências. As estagiárias foram convidadas a participar de eventos e a compartilhar em outras instituições o trabalho desenvolvido, difundindo novas práticas, inspirando novas propostas e estimulando a construção de novas atuações adequadas a outros espaços. Portanto, a intervenção realizada teve um alcance na comunidade, gerando reflexão sobre a temática explorada no projeto, pertinente à realidade dos moradores do bairro e dos usuários dos serviços públicos administrados em parceria com a Unas.

 

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Recebido em: 8/9/2020
Aprovado em: 17/5/2021

 

 

1 Unas. Breve histórico de Heliópolis. Recuperado em 10 julho, 2020, de http://www.unas.org.br/breve histórico/.
2 Significados dos nomes utilizados para homenagear as crianças: Abé (baixo); Àlá (sonho); Alamoju (sabedoria); Alawó Dúdú (pessoas de origem africana); Ará (presente); Ángélì (anjo); Àràká (aquele que expande); Ayé (vida); Ayò (alegria); Béèni (sim); Ebí (família); Èbun (talento); Ire (sorte, coisas boas); (acalmar, pacificar); Rorí (refletir, pensar); RúJáde (florir); Tóbi (grande).
3 O nome Abayomi significa, em yorubá, encontro precioso e se refere a bonecas confeccionadas com retalhos de pano pelas mães africanas para seus filhos, no período da escravidão. Tornou-se um símbolo da resistência e da diáspora negra.
4 Oliveira, K. (2017). O mundo no blackpower de Tayó. Rio de Janeiro: Editora Peirópolis.
5 Depois da contação de história, as crianças se organizavam em grupos de até seis integrantes e sentavam-se em mesas redondas para fazer atividades, como a construção de quilombos, a confecção de turbantes e a produção de instrumentos musicais com objetos recicláveis. As estagiárias circulavam pelos grupos para acompanhar a realização das atividades e formular perguntas problematizadoras.

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