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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

A ancestralidade: construção e aquisição de identidades africanas no Brasil realizadas apartir da cultura do Candomblé

 

Ancestry: Construction and Acquisition of African Identities in Brazil Based on Candomblé Culture

 

Ascendencia: construcción y adquisición de identidades africanas en Brasil a partir de la cultura Candomblé

 

 

Rodrigo Maciel Ramos

Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações na Universidade de Brasília (UnB). E-mail: magorodrigo2@gmail.com

 

 


RESUMO

Inspiramo-nos nas emergentes teorias decolonialistas que preconizam que as universidades, como instituições colonialistas situadas em países com herança colonialista, desrespeitam a pluralidade de sociedades híbridas e atuam no apagamento dos saberes das etnias indígenas e africana. Este estudo busca investigar se as teorias de identidades elaboradas em contextos ocidentais são suficientemente abrangentes para serem aplicadas em um terreiro de Candomblé. A partir da análise de relatos, por meio de uma pesquisa etnográfica com estudo de caso de dois adeptos do Candomblé, indicamos algumas inadequações das teorias de identidade para o estudo da construção identitária e subjetiva de adeptos da cultura do Candomblé que é realizada a partir de uma epistemologia afro-brasileira. Em maior ênfase, dedicamo-nos ao conceito autóctone de ancestralidade referido pelos adeptos como fator primordial para adesão ao Candomblé, do qual eles realizam a construção da identidade africana.

Palavras-chave: Candomblé. Psicologia Social. Identidade afro-brasileira. Subjetividade afro-brasileira.


ABSTRACT

We are inspired by the emerging decolonialist theories which advocate that universities as colonialist institutions located in countries with colonialist heritage, disrespect the plurality of hybrid societies and act to erase the knowledge of indigenous and African ethnic groups to conduct this study which investigates whether identity theories having been elaborated in Western contexts are sufficiently comprehensive to be applied in a terreiro of Candomblé. From the analysis of reports of Candomblé supporters contained in an ethnographic research, in particular the case study of two adherents, we indicate some inadequacies of identity theories for the study of the identity constitution of Candomblé culture supporters considering that this constitution is based on Afro-Brazilian epistemology. In greater emphasis we devote ourselves to the indigenous concept of ancestry referred to by adherents as the primary factor for adherence to Candomblé from which they build the African identity.

Keywords: Candomblé. Social Psychology. Subjectivity. Afro-Brazilian identity. Afro-Brazilian subjectivity.


RESUMEN

Nos inspiramos en las teorías descolonialistas emergentes que abogan por que las universidades como instituciones colonialistas ubicadas en países con herencia colonialista, falten al respeto a la pluralidad de sociedades híbridas y actúen borrando el conocimiento de las etnias indígenas y africanas para llevar a cabo este estudio que indaga si las teorías de las identidades generados en contextos occidentales son suficientemente completos para ser aplicados en un Candomblé terreiro. Con base en el análisis de los relatos de adeptos del Candomblé contenidos en una etnografía, en particular el estudio de caso de dos adeptos, indicamos insuficiencias de las teorías de la identidad para el estudio de la identidad y construcción subjetiva de adeptos de esa cultura. En mayor énfasis, nos dedicamos al concepto autóctono de ascendencia referido por los simpatizantes como factor primordial de adhesión al Candomblé a partir del cual llevan a cabo la construcción de la identidad africana.

Palabras clave: Candomblé. Psicología Social. Identidad afrobrasileña. Subjectividad afrobrasileña.


 

 

O processo colonizatório instaurado no Brasil deixou como herança marcas indeléveis em sua constituição cultural que geram influência na construção e aquisição das identidades e subjetividades observadas nesse território até os dias atuais. A partir da análise histórica do período colonial, é possível observar que o processo de constituição do Brasil, como nação, é decorrente do encontro e choque, muitas vezes violento, entre a etnia portuguesa e as subjugadas etnias africanas e indígenas.

Durante esse processo secular, foram instauradas diversas instituições colonialistas, a saber: Estado, Igreja e Universidades, as quais auxiliaram tanto no processo de conquista e retenção do território colonizado quanto no estabelecimento da hegemonia cultural europeia e ocidental, delegando às culturas africanas e indígenas o grau de folclore ou primitivismo, o que ocorreu com forte resistência das etnias subjugadas. Atualmente, essas etnias se definem genericamente como povos tradicionais e se caracterizam por lutarem contra o processo colonizatório, que ainda está em curso, e a tentativa de ocidentalização das subjetividades afro-brasileiras e indígenas.

Em estudo etnográfico em um terreiro de Candomblé, o psicólogo social Ramos (2015) encontrou relatos de adeptos que apontavam aquele local como um território africano no Brasil. Essa nação sem Estado, reminiscente da resistência de negros africanos e crioulos1 gerada durante o período escravagista, tem como característica a prevalência das culturas de matrizes africanas sobre a ocidental, possibilitando a reconstrução da identidade africana e aquisição da subjetividade afro-brasileira ao reviver o estilo de vida de seus ancestrais africanos de forma semelhante a como eles o vivenciaram antes do período diaspórico africano.

Atualmente, não é possível estimar quantos terreiros existem no Brasil. Isso se deve à falta de esforço das instituições estatais em recensear locais e pessoas que praticam as religiões de matrizes africanas e/ou indígenas, assim como a resistência dos próprios adeptos em identificar, por meio de censos, que sua opção religiosa é de matriz africana e/ou indígena, dado o forte preconceito e perseguição realizados por instituições colonialistas.

Contudo, os terreiros de Candomblé, Umbanda, Omolocô, Terecô, Jurema, entre outros, são conhecidos por toda a população brasileira e são procurados por significativa parcela da população que se interessa pelos conselhos proferidos pelos sacerdotes e sacerdotisas, que muitas vezes são incorporados por entidades espirituais ou fazem uso de jogos adivinhatórios (e.g., os búzios). Além disso, os terreiros são locais onde se busca alívio para demandas de saúde mental, auxílio para resolução de problemas cotidianos e para o atendimento a casos de saúde de pessoas já desenganadas pela Medicina Ocidental.

A pesquisa etnográfica foi realizada em um terreiro situado em uma cidade periférica a 60 km de Brasília. À época, havia um total de 100 praticantes nesse terreiro, com um número similar entre pessoas autodeclaradas como pretas e brancas. Ninguém declarou ascendência consanguínea a alguma etnia africana e, portanto, não era possível estabelecer uma linearidade genealógica a nenhuma etnia específica. A maior parte dos adeptos o fizeram em idade adulta, sendo que boa parte não tinha parentes próximos ligados ao Candomblé. No entanto, ao serem questionados sobre o motivo de adesão ao terreiro, os entrevistados responderam, unanimemente, que o motivo era "ter ancestralidade".

Em um terreiro de Candomblé e a partir de sua cosmogonia, a ancestralidade toma vários significados, podendo denotar, por exemplo, a presença de pessoas já desencarnadas naquele local que eram iniciadas no Candomblé e ainda fazem parte daquela comunidade como ancestrais, também podendo representar uma hierarquia dentro do terreiro, onde aqueles que foram iniciados há mais tempo tên ascendência sobre os noviços. Entretanto, na pergunta "motivo de adesão", o significado referido nas respostas foi de um sentimento de pertencimento à etnia Bantu, mesmo que não houvesse qualquer evidência de ligação consanguínea; de forma que a ancestralidade é um conceito autóctone, do qual são geradas produções subjetivas que legitimam os processos de construção identitária africana a partir da cultura do Candomblé.

Ao buscar interpretar a construção e aquisição dessas identidades a partir das teorias disponíveis pelo meio acadêmico, a adesão de pessoas ao Candomblé pelo conceito de ancestralidade abre uma questão que gera desconforto, uma vez que, de forma generalizada, as teorias de identidade são utilizadas para estudar processos subjetivos de identificação a movimentos sociais - em um mundo globalizado onde as identidades são cada vez mais fluidas, em que o passado somente serve como suporte configurativo do momento presente (Baumeister & Finkel, 2010; Taylor & Moghadan, 1994). Nos casos em que a teoria inclui a possibilidade de que o estilo de vida possa ter o passado diaspórico negro como bússola, presume-se a existência de uma ligação genealógica, consanguínea, entre o indivíduo e a etnia - como nas teorias que se debruçam sobre grupos que realizam a manutenção da cultura ancestral como forma de identificação étnica em uma pós-modernidade (Hall, 2013; Poutignat & Streiff-Fenart, 2011).

Portanto, pelo observado na pesquisa etnográfica de Ramos (2015), apesar de o Candomblé ser um movimento social, as teorias de identidades não compõem um arcabouço teórico suficientemente abrangente para explicar como ocorrem os processos de adesão do indivíduo a esses grupos. Creditamos essa questão ao fato de as teorias de identidade terem sido geradas inicialmente no cenário europeu e desenvolvidas posteriormente no cenário estadunidense,2 observando, assim, o sujeito ocidental inserido no contexto social ocidental e tomando suas decisões a partir da cosmogonia ocidental.

Logo, deve haver um contraste significativo entre os resultados de uma pesquisa realizada em um terreiro de Candomblé e essas teorias, uma vez que o universo cultural afro-brasileiro apresenta distinções extremas em relação ao universo cultural ocidental, no que se refere à noção de mundo e de ser humano. A interpretação de como se estruturam as construções e aquisições de identidades africanas em um terreiro de Candomblé deve seguir as características implicadas nas psicologias autóctones e basear-se em resultados obtidos nas pesquisas de campo correlatas.

Neste artigo, utilizaremos os dados coletados pela pesquisa de Ramos (2015) para realizar uma discussão que, correlacionando uma revisão bibliográfica sobre o período de formação da cultura do candomblé, pretende contribuir com a literatura disponível sobre o campo das teorias de identidades, apresentando uma forma de construção identitária que, sendo gerada a partir de sua própria epistemologia e do conceito de ancestralidade, é típica dos terreiros de Candomblé.

 

O processo de constituição do Candomblé

O terreiro de Candomblé pode ser entendido como um local em que foi criada uma tecnologia de subjetivação afrocentrada e de construção da identidade africana. Para isso, é preciso observar um enredo histórico de longa duração que apresenta o Candomblé como uma cultura afro-brasileira contracolonizatória gerada a partir das matrizes culturais africanas das etnias sequestradas e trazidas ao Brasil, na luta pela preservação de suas identidades étnicas e de seus saberes ancestrais.

De forma majoritária, praticam-se, atualmente no Brasil, três formas de Candomblé, conhecidas como nações de Candomblé, são elas: Angola, Ketu e Jeje.3 Essas nações fazem referência, respectivamente, aos saberes de três grandes troncos étnicos africanos, os povos Bantus, os Yorubás e os Gbés. Salienta-se, no entanto, que após todo o processo de destruição cultural ocasionado pela colonização, escravidão, tentativa de cristianização e ocidentalização dos povos africanos trazidos ao Brasil, essa aglutinação de centenas de povos africanos em apenas três grandes troncos étnicos representa apenas a reminiscência de seus saberes, que deveria ser muito mais ampla, sendo essa a forma encontrada por tais etnias para se adaptar ao contexto sócio-histórico-político da época e preservar as suas identidades étnicas e culturais em um ambiente onde havia forte hostilidade.

Assim, no Brasil, o Candomblé se constitui como um movimento social de contraponto à política colonialista de Portugal, que pressupunha que as etnias europeias eram mais evoluídas do que as etnias africanas e indígenas; já que eles haveriam herdado os altos valores morais da civilização grega e de sua Filosofia clássica, além de adotarem a religião cristã, considerada por eles como a única e verdadeira religião. Fatos que, segundo eles, justificavam o violento processo de apagamento étnico e epistêmico, o qual garantiria a submissão e escravização das massas de africanos transportados pelo Atlântico, a invasão territorial e o genocídio dos povos indígenas (Grosfoguel, 2016; Wallerstein, 2007).

Essa política colonialista se encaixava perfeitamente ao processo imperialista de expansão do capitalismo ocidental, o qual necessitava conquistar novos territórios e, por fim, explorar a mão de obra escravizada, nativa ou importada da África, para o trabalho em garimpos e plantações.

Renato da Silveira (2006) escreve que a política colonial portuguesa variava sazonalmente entre a tirania e a moderação. Quando a pressão exercida pela tirania dos escravistas sobre as pessoas escravizadas estava prestes a explodir em revoltas populares, havia uma tendência de as instituições portuguesas negociarem e abrandarem o tratamento oferecido aos escravizados. Assim, a partir do início do século XVIII, em um cenário em que a violência ao escravizado se tornava uma prática muito intensa e começam a surgir revoltas de negros escravizados, além de grandes quilombos que ameaçavam a segurança do branco escravocrata e do projeto colonialista, é que ocorre a intervenção da Igreja Católica.

A Igreja pedia aos escravocratas que, como bons cristãos, diminuíssem o uso da violência e afrouxassem um pouco as amarras da escravidão, de forma que seus escravizados participassem de irmandades cristãs, associadas a igrejas, que tinham como objetivo catequizar os africanos que aportavam, cada vez em maior número, na cidade de Salvador e amansar a rebeldia dos escravizados africanos e crioulos, ensinando-os que o "bom servo não se revolta contra seu amo", mesmo quando este é injusto.

É nesse contexto e a partir de uma maior liberdade de movimentação que surgiu a oportunidade para que negras e negros, africanos e crioulos, libertos e escravizados, se reunissem em assembleias, por meio das quais puderam formular uma tecnologia de subjetivação que permitisse reconstruir uma identidade africana e instaurar terreiros de Candomblé, territórios africanos, nações sem estado, em pleno território brasileiro, dominado pelos portugueses e seus descendentes.

Apesar de as primeiras casas de Candomblé terem surgido na Bahia no século XIX, entre as décadas de 1820 e 1880, a análise histórica demonstra que a atual cultura do Candomblé tem uma base mais distante (Silveira, 2006), descendendo da manutenção e da bricolagem dos saberes dos três grandes troncos étnicos africanos trazidos em diferentes ciclos para o Brasil, os já mencionados Bantus, Gbés e Yorubás.

Os povos Bantus, que ocupavam a África Central, na atual região de Congo, Angola e Moçambique, foram as primeiras etnias africanas trazidas em grandes quantidades para o Brasil no primeiro ciclo de tráfico atlântico de africanos escravizados. Eles começaram a chegar ao Brasil em meados do século XVI, sendo trazidos durante todo o período do tráfico atlântico de escravizados. Os Bantus compuseram a maioria de todos os africanos escravizados trazidos para o Brasil [75%] (Sleenes, 2018) e mantiveram suas identidades e práticas culturais a partir dos calundus, que são considerados protocandomblés.

Há relatos de diversos calundus praticados durante o período colonial e tal prática estava cristalizada na vida cotidiana da sociedade. Apesar de haver alguns grandes calunduzeiros que se tornaram famosos, como Domingos Umbata, Francisco Dembo, a angolana Branca e Luzia Pinto (Silveira, 2006), nos momentos em que a perseguição colonialista se acirrava, os calundus tendiam a desaparecer e ressurgir apenas quando a situação se amainasse.4

Os calundus eram procurados tanto por pessoas enfermas, buscando os saberes terapêuticos dos povos Bantus, como por descendentes de etnias bantas buscando se reconectarem às práticas de seus ancestrais e cultuar em nkisis, divindades características de cada região da África Central, de forma a fortalecerem suas identidades étnicas. Por terem sido os primeiros a chegar ao território brasileiro, esses povos efetuaram um intercâmbio com os povos indígenas, com os quais dividiram o infortúnio da escravização, sobre o poder curativo e religioso das plantas e minerais da região. Em Salvador, os Bantus reuniam-se na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo, que era ligada à Igreja Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do Carmo.

A partir do início do século XVIII, observa-se uma crescente chegada de povos da África Ocidental do grande tronco étnico dos Gbés (Párez, 2007; Silveira, 2006), provenientes do Império de Daomé e territórios adjacentes, compondo as regiões atualmente conhecidas como Benim, Togo e parte da Nigéria. Esses povos formaram o segundo ciclo de tráfico atlântico de africanos escravizados, que foi impulsionado pela guerra mantida entre o Império de Daomé e o vizinho Império de Yorubá. Naquele momento, os yorubanos venciam o confronto contra os daomeanos e os povos derrotados eram trocados com os portugueses por mercadorias, como armamento, fumo e cachaça, e assim sentenciados à escravidão no outro lado do Atlântico.

Os Gbés ficaram conhecidos como Jejes no Brasil, termo que em yorubá designa "inimigos", apelido dado pelas etnias e pessoas que já se encontravam no Brasil e que haviam sido enviadas pelo Império de Daomé, muitas vezes por se oporem à tirania daquele reino. Eles se uniram aos Bantus na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo e também formaram seus calundus, que se diferenciavam dos calundus Bantus por cultuarem até cinco voduns, formando pequenos panteões; enquanto os Bantus mantinham culto isolado de apenas um nkisi, o qual correspondia a determinada região e estava correlacionado a determinada etnia Bantu. Junto com os Gbés, vieram os cultos à Sakpathá, Nanã Buruku e a serpente Dan/Bessém, que no Brasil foram incorporados aos panteões dos Yorubás e dos Bantus.

Posteriormente, com a saturação de membros na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário das Portas do Carmo, os Gbés fundaram, em Salvador, a Irmandade do Bom Senhor Jesus dos Martírios, que era coligada à Igreja da Barroquinha. Essa irmandade viria a ser dominada pelos Yorubás e seria onde surgiria o primeiro terreiro de Candomblé da Bahia.

A partir das primeiras décadas do século XIX, o Império de Yorubá, com sede em Oyó, passou a enfrentar dissensões internas devido à islamização de parte de sua população, o que levou esse reino à guerra civil. Com o Império de Yorubá enfraquecido, em 1789, Daomé vira a guerra e começa a se impor militarmente, dando origem ao terceiro ciclo do tráfico atlântico de africanos escravizados.

Na cidade de Salvador, no Brasil, os Yorubás se reagruparam na Irmandade do Bom Senhor Jesus dos Martírios com os Gbés, mas, como passaram rapidamente a se tornar maioria na cidade de Salvador, assumiram a liderança dessa Irmandade. Com o passar tempo, e a partir das notícias recebidas pelos novos emigrados de que o Império de Yorubá se desfazia, um retorno à África se tornava inviável. Os acuados Yorubás de Oyó decidem, então, reconstruir seu Império em território brasileiro propondo uma nova repactuação com as etnias vassalas que compunham o Império de Yorubá, os Egbás, os Ijexás, os Ifan-Ifé, os Ketus e os Ijebus. Nesse novo pacto cai a supremacia dos Yorubás de Oyó e cada uma das etnias do Império insere sua divindade local em um panteão afro-brasileiro como forma de preservar as suas identidades étnicas, o que compõe uma cultura bricolada entre os saberes das etnias do tronco étnico Yorubá.

Com o pacto entre as diversas etnias, foram distribuídos cargos de liderança à semelhança do funcionamento do Império de Yorubá, compondo uma organização política-religiosa-social complexa. Também foi criado o panteão ampliado do Candomblé, no qual cada uma das divindades regionais ficava associada a um elemento da natureza e participa durante o culto na representação da criação do mundo baseada na cosmogonia africana.5 A constituição do primeiro terreiro de Candomblé da Bahia, o Candomblé da Barroquinha, é resultante dessa renegociação pactual que durou décadas e do intercâmbio com os conhecimentos dos outros troncos étnicos, os Bantus e os Gbés.

O Candomblé da Barroquinha estava instalado no centro da cidade de Salvador, a três quarteirões do palácio do governador, e representava a força política que os negros e as negras tinham naquele período, como 95% da população soteropolitana em 1850 (Verger, 1981). O terreiro permaneceu aberto até o ano de 1859, quando no governo de Francisco Gonçalves Martins, político abertamente racista, é realizada uma urbanização da região que destrói os vestígios de sua existência. Posteriormente, ele foi reaberto na região da antiga fazenda do Engenho Velho, com o nome de Casa Branca do Engenho Velho, e lá permanece até os dias atuais. Poucas décadas após a criação do Candomblé da Barroquinha, que era da nação Ketu, os Bantus abrem, em Salvador, o terreiro Tumbensi, representando a nação Angola, e os Gbés fundam, também em Salvador, o terreiro do Bogum e, em Cachoeira no Recôncavo Baiano, o Seja Hundé, ambos representando a nação Jeje.

Da história anteriormente retratada, destaca-se como em território brasileiro houve a união entre os três grandes troncos étnicos para se criar uma tecnologia de subjetivação, o Candomblé, que os permitisse preservar suas identidades étnicas e seus saberes, bem como reafricanizar as identidades e subjetividades daqueles que já estavam há muito tempo no Brasil e haviam perdido a conexão ancestral com a África. Os Bantus ensinaram os Gbés e os Yorubás sobre as plantas e minerais da terra, conhecimento que haviam aprendido com os indígenas. Os Gbés detinham o conhecimento de como se praticar cultos em panteão, bem como por terem sido perseguidos pelos reis tiranos de Daomé, que desejavam estatizar os cultos à Sakpathá, Nanã Buruku e Dan/Bessém, sabiam como escamotear essas práticas. E os Yorubás souberam se utilizar de estratégias políticas para criar um movimento social que fosse representativo da maior parte de etnias possível e, assim, impor maior resistência à colonização e tentativa de subjetivação ocidental de suas identidades.

Assim, a criação de um panteão com 16 orixás, recriado posteriormente pelos Gbés e Bantus a partir de suas próprias divindades e mitos, deve ser considerada uma estratégia, uma vez que, como mencionado, nos calundus Bantus havia somente um sacerdote ou sacerdotisa que detinha o conhecimento sobre o culto de um nkisi, podendo ser morto/a, preso/a ou exilado/a quando ganhava projeção; Levando o calundu a deixar de existir, bem como o conhecimento sobre como se realizar aquele culto. A criação desse panteão com 16 orixás permitiu a união do conhecimento de diversos sacerdotes e sacerdotisas étnicos regionais em uma só cosmogonia e a distribuição do conhecimento entre várias pessoas, tornando praticamente impossível a extinção dos saberes ancestrais africanos em território brasileiro.

Outra estratégia de resistência foi a criação de vários Candomblés nas proximidades da fazenda do Engenho Velho, hoje bairro do Engenho Velho, indo até a Quinta das Beatas/Baixa do Bonocô (Silveira, 2006) e formando um imenso quilombo urbano em uma região de mata que circundava a antiga cidade de Salvador. Por força do numero de pessoas praticantes do Candomblé que ali residiam, esses terreiros ficavam protegidos das ações policiais, que, à época, os depredavam, recolhiam e quebravam seus utensílios ritualísticos e prendiam os adeptos. Essas estratégias permitiram a continuidade do culto à ancestralidade dessas etnias até os dias atuais.

No entanto, em suas origens, as adesões ao Candomblé ocorriam, em sua maioria, pela via da descendência consanguínea, de africanos radicados no Brasil que desejavam manter uma conexão com suas culturas ancestrais, ou de brasileiros, crioulos, que desejavam aderir ao Candomblé e que muitas das vezes ainda se lembravam de quais regiões da África seus antepassados eram originários. Sendo que, na atualidade, tendo o tráfico de escravizados africanos se encerrado há mais de um século e meio e após a vinda de numerosos imigrantes europeus e asiáticos no início do século XX, o que deixou a população brasileira ainda mais miscigenada, as adesões ao Candomblé ocorrem por processo de adoção a um grande tronco étnico.

Pela seguinte forma, após o indivíduo decidir se unir a um grupo de Candomblé ele passa por uma iniciação, na qual permanece confinado durante um período de tempo, geralmente três semanas, em um quarto dentro do terreiro, o roncó. Nessas semanas ele irá passar por diversos rituais que trarão à tona sua nova identidade, sendo que após esse processo ele é reconhecido pelo seu grupo e pelos outros grupos de Candomblé como um africano renascido.

 

A construção da identidade africana no Candomblé

Conforme mencionado, no terreiro pesquisado, o principal motivo referido pelos sujeitos para adesão à cultura do Candomblé era "ter ancestralidade Bantu"; o que era representado pelo sentimento de pertencimento a uma etnia africana Bantu (nação Angola) e pelo desejo de conhecer e aproximar-se do estilo de vida desses ancestrais. Isso pode ser entendido como um processo de construção e aquisição gradual da identidade africana.

Outro aspecto essencial para a construção de nossa argumentação, e complementar ao indicado pelas teorias de identidades ocidentais, é que o processo de construção e aquisição da identidade africana realizada por meio da cultura do Candomblé ocorre não apenas do sentimento de pertencer a um grupo, mas também em uma tomada de decisão que reflete que, no momento presente, aquele grupo representa valores cognitivos e emocionais que a pessoa assume para si. Esse processo subjetivo é realizado também a partir da análise biográfica do indivíduo desde o momento presente em direção ao passado, como se a ancestralidade fosse algo que sempre estivesse próximo a eles, em estado latente, até o momento do seu reconhecimento. Assim, a adesão ao Candomblé e a afirmação da identidade africana é tornar-se aquilo que já se é. Um trajeto que, ao passar a frequentar um terreiro, começa a fazer associações com fatos de sua vida pregressa que lhe indicam que o encontro com o terreiro não foi um mero acaso em sua vida.

Segundo relatos encontrados, os adeptos do Candomblé indicaram que ter essa ancestralidade poderia representar: (i) uma curiosidade anterior sobre o assunto; (ii) um problema de saúde, como desmaios, solucionado após a iniciação no Candomblé; (iii) um apreço especial pelo som do atabaque e, apesar de a família ser católica praticante, ter encontrado a cura para um mal incurável em um terreiro de Umbanda, posteriormente sendo indicado pelas entidades da Umbanda que seu caminho de aprimoramento espiritual estaria no Candomblé; (iv) o interesse, durante o mestrado, em estudar história de Angola sem saber que existia um Candomblé de Angola, ao qual se identificou assim que o conheceu, tendo depois descoberto que, apesar de sua família ser atualmente protestante, seu avó era de religião de matriz africana; e (v) um pastor neopentecostal que tem um sonho disruptivo com uma entidade espiritual que o leva a largar a igreja e, anos depois, ao pisar em um terreiro, essa entidade reaparece e diz que é um preto velho e seu protetor espiritual; entre muitos outros relatos.

Esses relatos são tecidos de forma a dar o sentido subjetivo de que a aproximação com o universo do terreiro foi sucessivamente acontecendo em suas vidas, como peças de um quebra-cabeça que foram sendo reunidas. Tal aproximação levou-os a se reconectar com a linhagem étnica ancestral Bantu, que havia sido interrompida pelo processo colonizatório-civilizatório.

De forma a construir uma explicação racional para esse fenômeno, José Jorge de Carvalho (1994) menciona que a religião pode oferecer aos seus adeptos um modelo e uma linguagem a partir dos quais ressignificarão as suas experiências biográficas. Apesar de a cultura brasileira ter se constituído a partir da sobreposição hegemônica da cultura ocidental sobre as culturas africanas e indígenas, estas permaneceram como sistemas simbólicos disponíveis para toda a sociedade, podendo ser compreendidas como fractais que estão diluídos em um sistema cultural "maior" que poderia ser chamado de cultura brasileira.

Portanto, o que os adeptos entendem por "ter ancestralidade" se caracteriza como um processo de reconstrução de suas narrativas de trajetórias biográficas, que cresce e ganha volume à medida que ocorre um aprofundamento no universo cultural do Candomblé. Assim, usam suas experiências anteriores em conjunto com os fractais da cultura negra, diluídos na cultura brasileira, como insumos na reorganização de suas biografias e de forma a complementar a identidade africana que vem sendo construída e adquirida no momento presente e se tornando central em suas vidas.

Contudo, essa explicação racional, comumente, é insuficiente para explicar o motivo afetivo que os levaram a ter um profundo sentimento de pertencimento a uma etnia africana; levando também a um problema em nossa interpretação dos dados, já que os adeptos, ao lerem o artigo, não se reconheceriam nele, uma vez que o estudo teria falhado em representar suas realidades sociais, por tentar interpretar seus depoimentos a partir da epistemologia ocidental, de produção racional do conhecimento. A melhor forma de representar suas realidades sociais seria, então, a partir da epistemologia afro-brasileira utilizada no terreiro. Como forma de ilustrar nosso argumento, aprofundaremos no estudo de caso de dois adeptos: a trajetória de adesão ao Candomblé de Makota Ndulangê,6 mãe pequena do terreiro e auxiliar direta do sacerdote máximo da comunidade; e o pai de santo Táta Ngunz'tala e sua história.

 

A cosmogonia do Candomblé como matriz interpretativa dos relatos dos adeptos

Pela cosmogonia do Candomblé, antes de a pessoa nascer ela se encontra com uma divindade e traça o percurso, ou o odu, que irá realizar durante a sua existência terrena. No Candomblé é dito que tudo na vida da pessoa é caminho, odu. Caso durante sua trajetória ela intente a realização de um projeto, assume-se que este só será bem-sucedido se tiver odu para isso, caso contrário, ele pode tentar por toda sua existência que mesmo assim o destino almejado não se realizará.

Nos panteões dos Candomblés das nações Angola, Ketu e Jeje, existem 16 nkisis/orixás/voduns,7 sendo que cada um deles corresponde a um odu, ou caminho de vida. Cada um desses caminhos tem ainda uma variante resultante da associação de outros nkisis/orixás/voduns ou do mesmo caminho, sendo assim, são 256 odus conhecidos. A pessoa habilitada para realizar a leitura desses odus é o pai ou a mãe de santo, a partir da leitura do jogo de búzios.

Ainda, conforme o acordo firmado com a divindade antes do nascimento, as pessoas que serão iniciadas no Candomblé serão chamadas, em algum momento da existência, a cumprir o seu destino e reconectar-se a sua ancestralidade africana, já que esse é o seu odu. Como já mencionado, a iniciação no Candomblé é considerada um processo de renascimento da pessoa, a partir do qual ela passa a assumir a identidade africana e é reconhecida por outros membros do grupo e também de outros terreiros como alguém que se reconectou a sua ancestralidade africana. O odu de iniciação é confirmado pela leitura do jogo de búzios realizada pelo pai ou mãe de santo, que indica se a pessoa tem uma ancestralidade com as divindades e entidades ligadas ao Candomblé e pode, ou não, ser iniciado no culto, já que a iniciação no Candomblé, por ser um caminho, só pode ser realizada por aqueles que possuem esse odu.

A seguir, exporemos um dos casos em que, devido a um problema de saúde, a pessoa passa a apresentar desmaios corriqueiros e se vê impossibilitada de realizar ações cotidianas. Essa pessoa buscou assistência médica especializada, que não foi capaz de oferecer qualquer auxílio, mas por sorte encontrou um profissional sensível às questões culturais do território brasileiro.

Makota Ndulangê é o nome de iniciada de M.B., que se autodeclara como uma pessoa branca. Em seu depoimento, Ndulangê se lembra de que recebeu, aos 16 anos de idade, o "chamado" para cumprir o seu odu de reconexão à ancestralidade africana. No ano de 1975, M.B. era estudante secundarista e secretária, pertencente a uma família católica que até então não tinha conhecimento sobre o Candomblé; no entanto, foi em um terreiro que encontrou solução para sua aflição.

Eu passei mal, né, o que o povo fala bolando, eu bolei no meu serviço, atendendo um cliente no telefone e simplesmente caí para trás, e daí eu fui só passando mal, fui para casa, fui para o hospital, minha mãe me levou para um hospital psiquiátrico, me deixou lá, 24 horas em observação, e o médico falou: "leva ela, que o lugar dela não é aqui". (Ndulangê).

Então foi um médico que teve essa visão de que era um problema espiritual? (Entrevistador).

É, ele não falou diretamente com ela, mas ele disse: "leva sua filha, que o lugar dela não é aqui". E eu só passando mal, aí ela já não sabia o que fazer mais, me levou para igreja evangélica, me levou em vários médicos, aí ela conversou com a vizinha, que ela não sabia mais o que fazer, e a vizinha trabalhava na área de saúde também e era Makota de Dandalunda do Táta Kissimbe, e falou "olha, se você quiser eu levo no meu pai de santo", e aí levou e eu já fiquei. (Ndulangê).

O pai de santo Táta Kissimbe viu em sua queda de búzios que o problema de saúde de M.B. tinha, segundo aquela cultura, origens espirituais. Os seus desmaios correspondiam ao que o povo de terreiro conceitua como bolar no santo, situação em que o orixá/nkissi/vodum pessoal cobra da pessoa que ela cumpra o seu odu e realize o processo de iniciação, ou feitura da cabeça, como solução compulsória para o atendimento da demanda. Ndulangê conta ainda que sua mãe ficou no terreiro os três primeiros dias para saber se o local, um terreiro da nação Angola, e o pai de santo Táta Kissimbe eram de confiança. Após seu processo iniciático, pelos critérios da Medicina, ela estava curada; e pelos critérios da cosmogonia do Candomblé deixou de bolar no santo por ter atendido ao chamado de seu nkisi.

Segundo a literatura disponível sobre Candomblé (Augras, 1983; Gomberg, 2011; Rabelo, 2014), a maior parte das iniciações no Candomblé ocorrem por motivos de saúde, sendo descritos vários casos, como o de Makota Ndulangê, em que desmaios aconteciam em quaisquer lugares e impediam que ela desenvolvesse situações de seu cotidiano. No entanto, a pesquisa etnográfica de Ramos (2015) apontou somente o caso de Makota Ndulangê como convergente à literatura, naquele terreiro.

No terreiro em questão, conhecido como Tumba Nzo Jimona dia Nzambi e liderado por Táta Ngunz'tala, o bolar no santo é apontado como um sinal indicativo de que o nkissi está convocando a pessoa para uma iniciação eminente no Candomblé como forma de resgatar a conexão à ancestralidade afro-banta. No entanto, as bolonagens8 ocorrem durante os rituais de Candomblé, quando os atabaques estão sendo tocados na presença de pessoas já iniciadas que estão em transe, manifestando os nkisis que dançam pelo salão.

Uma análise um pouco mais aprofundada sobre o bolar no santo nos permite realizar uma distinção desse estado de consciência em relação ao que a Medicina Ocidental entende como sendo um desmaio. Os adeptos do terreiro declaram que durante a bolonagem não estão inconscientes, apesar de eles perderem o controle dos movimentos do corpo, sentindo o corpo tremer e mesmo tentando não conseguem ficar em pé. O fato de, ao buscar se levantar, não conseguirem ter domínio de seu corpo lhes gera aflição, por sentirem que não estão no controle de algo que é inerentemente seu e que esse corpo está submetido a uma força maior que lhes domina.

O caso de Táta Ngunz'tala, nome de iniciado de F.M., também autodeclarado como sendo branco, vai por uma outra ordem de eventos que o levaram a ser iniciado no Candomblé. F.M. foi criado no interior do estado do Maranhão, proveniente de uma família pobre que morava em casa de pau a pique, e relata que, desde a sua juventude, sentia ter uma vocação sacerdotal, sendo que sonhava em ingressar no seminário católico e tornar-se padre. Contudo, em sua juventude, aderiu à religião neopentecostal pela Assembleia de Deus e, quando estava próximo de terminar seu período de formação na faculdade teológica e tornar-se pastor, teve um sonho com uma entidade espiritual, um preto-velho, que posteriormente viria a se identificar como Benedito da Kalunga, seu guia espiritual.

Eu lembro, eu tava dormindo e eu acordo num semitranse sem saber se era eu, quem era eu, onde eu estava, como se minha consciência estivesse em outra dimensão, como se eu tivesse em outra realidade, que não era aquela casa onde eu estava [...] e foi uma sensação de ter vivido uma outra realidade ou sentido uma outra consciência na minha consciência, assim eu sentia o que outra consciência sentia, me inundou de outra realidade [...] porque o bloqueio teológico, eu fiquei foi confuso, o que era aquilo, que foi que aconteceu, não era a mesma sensação que eu tinha, por exemplo, das manifestações espirituais da igreja, não era a mesma sensação, era uma consciência, era um ser, e este tinha vivido na minha mente [...] a vibração era de amor, de compreensão, de dar acesso a outras realidades, e aí expandiu minha mente, e aí deu um choque, que os conceitos limitadores de Deus, de amor de salvação não encaixavam mais [...] eu vim saber depois que era Pai Benedito, mas aquela presença daquele momento que eu não conhecia, que eu não tinha como nominar, até porque, naquele momento, eu estava só, então fiquei atordoado, não sabia o que fazer, não tinha ninguém pra conversar, na igreja não podia, né? Porque senão eu tinha sido possuído por um demônio, não tinha acesso às pessoas de outras religiões, até porque eu não me permitia, e a partir desse momento eu comecei a entender que tinha outras verdades além dos conceitos rígidos, que havia outras possibilidades e a partir daí a gente se reconhece em todas as outras coisas e tem de ser amoroso, e Pai Benedito, ele, é um ser muito amoroso, quando ele está presente, quando ele se faz presente na minha mente, às vezes até sem incorporar, sem manifestar os trejeitos de incorporação, mas a presença dele na minha consciência reflete como uma presença muito amorosa. (Ngunz'tala).

Assim, na religião em que estava inserido, F.M. se viu impossibilitado de significar a experiência, que segundo aquele credo significaria estar possuído por um demônio. Mas a experiência lhe deixa marcas, ele rompe com a sua identidade religiosa cristã e parte em busca de outras formas de exercer a fé que pudesse dar sentido subjetivo à experiência vivenciada.

Cabe notar que, para muito brasileiros, as religiões de matrizes africanas são consideradas como algo exótico e muito distante de suas realidades; mesmo que, no Brasil, 54% da população seja afro-descendente, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Isso se deve ao disruptivo e secular colonialismo instaurado por Portugal que situou a cultura europeia como hegemônica, levando muitos brasileiros a se reconhecerem como mais próximos do universo cultural europeu do que do africano ou dos povos nativos deste território.

Com F.M. não foi diferente e, assim, ele buscou construir sua identidade a partir de parâmetros culturais de localidades muito distantes geograficamente, mas talvez mais próximas da mentalidade de uma população que não valoriza sua ancestralidade africana. De forma que, somente anos mais tarde, após ter peregrinado pelo Hinduísmo, Budismo e Kardecismo, ele aceita o convite para participar de um culto de Umbanda e lá reconhece a presença da entidade que apareceu em seu sonho.

E aí, quando eu chego na Umbanda, eu reconheço como se eu tivesse reencontrado, achado, uma coisa que eu já conhecia, já tinha aquilo, como se naquela vivência que eu tive tivesse ficado marcado algumas coisas, e aí eu comecei a reconhecer, não tinha muita coisa estranha, me era familiar, mesmo sem eu ter vivido dentro dessa realidade objetiva, aí quando eu comecei a desenvolver na Umbanda, que eu já vinha no desenvolvimento mediúnico no Kardecismo, aí quando começa a se manifestar e eu reconhecia essa presença, "já conheci não me é estranho", aí ele diz quem ele é, aí eu já reconhecia, então é isso que eu tinha vivido, foi essa presença que se manifestou e vai me acompanhando, e até hoje ele continua me acompanhando, me revelando outras possibilidades, outras dimensões espirituais, porque eles têm acesso a muitas realidades, né, e a mente da gente, limitada no corpo, nem sempre tem, e na Umbanda, a entidade que assume a sua responsabilidade de desenvolvimento pode ser qualquer uma, tem gente que tem um boiadeiro, tem gente que tem um caboclo, um exu, isso é o de menos, pode ser qualquer um, isso é o de menos, isso é para todas as linhas, mas vai ter sempre um responsável pelo desenvolvimento, no meu caso é Pai Benedito, até hoje ele continua, às vezes a presença dele me traz novidades, me traz orientações, me traz possibilidades, até hoje isso é constante, não vai acabar nunca. (Ngunz'tala).

Da Umbanda, local relatado por ele como sendo o reencontro com a sua ancestralidade, passa a frequentar também o Candomblé, no qual se inicia e adota o nome de Ngunz'tala, tornando-se anos depois um Táta ria Nkisi, ou sacerdote chefe do terreiro Tumba Nzo Jimona dia Nzambi.

A critério, a proximidade entre a Umbanda e o Candomblé se dá por duas vias. Alguns estudiosos declaram que a formação da Umbanda é de um período mais recente, início do século XX, quando a sociedade brasileira começava a se tornar mais urbana e coincide com a chegada em maior numero dos imigrantes europeus e asiáticos. Dessa forma, as bases da Umbanda seriam fundadas a partir dos princípios do Candomblé, do Kardecismo e da Pajelança, além de outras culturas de matrizes africanas ou indígenas, como o Omolocô e o Terecô (Lopes, 2011; Magnani, 1986; Silva, 2005).

Os relatos de trajetórias coletadas no terreiro Tumba Nzo Jimona dia Nzambi apresentam similaridades com as duas trajetórias citadas, de Makota Ndulangê e de Táta Ngunz'tala, pois são construídas de forma a identificar que a iniciação ao Candomblé deveria acontecer em algum momento de suas vidas, já que estava traçada em seus caminhos existenciais. Durante suas trajetórias ocorreram diversos encontros e situações que foram aproximando-os do universo cultural do Candomblé que passa cada vez mais a ter um papel central em suas vidas e, assim, um papel de organizador de suas subjetividades.

A adesão à cultura do Candomblé pode representar um incremento na saúde mental dos adeptos, que passam a se sentir mais empoderados no enfrentamento das adversidades, uma vez que, agora, relatam ter uma entidade e/ou divindade ancestral que os ajuda na superação de demandas cotidianas. Ainda relatam ter uma maior afeição por si mesmos e um maior orgulho de ser negro ou brasileiro pelo fato de conhecerem e serem mantenedores dos valores e dos saberes trazidos pelos ancestrais africanos. É dito também que, ao contrário, a não adesão à cultura do Candomblé, para aqueles que têm esse odu, pode resultar em problemas de saúde mental, como desmaios, depressão, ansiedade, uso de drogas, descontrole da sexualidade, entre outros. Fatos esses que dão um sentido de compulsoriedade à necessidade de aderir ao terreiro como forma de se adquirir o equilíbrio.

Ao observar os relatos elaborados pelos adeptos, algo que fica evidente é a afetividade contida neles, o que foge da possibilidade de uma explicação estritamente racional. Em sua totalidade, os adeptos declaram que ao se reconectar com suas ancestralidades o sentido subjetivo atribuído foi de sentir-se acoplado a algo que faltava em suas vidas, algo que sempre esteve próximo e que agora lhes traz uma sensação de equilíbrio e completude. O que nos indica que, com certeza, a ancestralidade é fator primordial para adesão ao terreiro de Candomblé e de construção e aquisição da identidade africana.

 

Considerações finais

De forma alguma pretendemos esgotar as possibilidades de análises sobre as formas de construção e aquisição da identidade africana, realizadas a partir da epistemologia do Candomblé neste artigo. Tampouco buscamos, com os argumentos apresentados, realizar o exercício do pesquisador que apresenta uma explicação final aos fenômenos observados. O que pretendemos neste estudo foi apresentar que no campo de pesquisa das Ciências Sociais em territórios onde o processo colonizatório não foi completamente estabelecido, como o Brasil, e onde remanescem povos tradicionais que oferecem resistência cultural ao modelo hegemônico ocidental, como o Candomblé, a ancestralidade é uma influencia à forma como os indivíduos realizam suas construções identitárias.

Desse modo, pretendemos expandir as possibilidades de interpretação dos dados de pesquisa, aproximando os resultados de pesquisa às realidades sociais declaradas pelos sujeitos participantes da pesquisa. Assim, esses sujeitos se tornam os produtores de conhecimento e coautores da pesquisa acadêmica, pois se considera que são eles, os adeptos, que melhor conhecem suas realidades sociais, suas culturas e podem legitimar a descrição dos processos subjetivos que os levaram a aderir aos terreiros de Candomblé e lá construir e adquirir a identidade africana.

Nomeio acadêmica a teoria da identidade que influenciou a forma como as Ciências Sociais desenvolveram suas teorias posteriores – para a Psicologia Social que atribuímos aqui o status de ciência social, a teoria da identidade é considerada como a mais importante e influente teoria para se explicar as relações intergrupais (Baumeister & Finkel, 2010). No entanto, o uso dessa abordagem teórica necessita de uma revisão epistemológica para apresentar-se como válida em contextos não ocidentais, de maneira que não diminua a relevância das expressões culturais locais, repetindo o histórico colonialismo, fonte do monologismo acadêmico ocidental, que infantiliza e despreza as variações culturais de populações não ocidentalizadas, considerando-as folclóricas, enquanto à produção acadêmica ocidental se dá o status de verdadeiro saber.

As explicações proferidas pelos adeptos sobre a origem epistemológica que os levaram a se integrar a um terreiro de Candomblé e lá construir e adquirir suas subjetividades e identidades africanas atribui um caráter compulsório às iniciações no Candomblé. Isto é um fator que lhes traz equilíbrio e completude em suas vidas e tem contido em si o sentido subjetivo extraído a partir dessa cosmogonia, de que a resistência ao processo de colonização e apagamento das identidades e subjetividades africanas no Brasil tem origem no mundo espiritual.

As explicações proferidas pelos adeptos sobre a origem epistemológica que os levaram a se integrar a um terreiro de Candomblé e lá construir e adquirir suas subjetividades e identidades africanas atribui um caráter compulsório às iniciações no Candomblé. Isto é um fator que lhes traz equilíbrio e completude em suas vidas e tem contido em si o sentido subjetivo extraído a partir dessa cosmogonia, de que a resistência ao processo de colonização e apagamento das identidades e subjetividades africanas no Brasil tem origem no mundo espiritual.

 

Referências

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Recebido em: 15/10/2020
Aprovado em: 17/5/2021

 

 

1 Crioulo era o termo utilizado para identificar o descendente de africano já nascido em terras brasileiras.
2 Historicamente, a Teoria da Identidade em Psicologia Social foi utilizada pela Psicologia Social Europeia como forma de se criar uma Psicologia Social que respeitasse as tradições intelectuais daquele continente, sendo que o foco de estudo se dá em como as forças sociais disputam espaço e poder na sociedade, e como elas exercem influência sobre o indivíduo. A Teoria das Identidades em Psicologia é usada, assim, como um contraponto à hegemônica Psicologia Social Estadounidense, que se caracteriza por ter um caráter pragmático, e mantém o foco em como o indivíduo se relaciona com a sociedade, a partir de seus processos cognitivos, afetivos e comportamentais. Posteriormente observam-se pesquisadores seguidores da Psicologia Social Estadounidense se utilizando também das Teorias de Identidades (Baumeister & Finkel, 2010; Taylor & Moghaddam, 1994).
3 Optamos por escrever termos originários das línguas africanas sem o uso do itálico por considerarmos que as culturas africanas e suas línguas formam a base cultural da nação brasileira, e não termos estrangeiros não contidos em nossa língua.
4 Ressalta-se que nem sempre a tirania e a moderação no poder significavam permissão ou proibição aos escravizados de exercerem suas práticas ancestrais de culto. A moderação podia se estender somente à forma como o estado negociava com a sociedade, sem, no entanto, permitir aos escravizados outra religião que não a cristã. Já o uso do poder poderia ser tirânico, mas com certa liberdade de cultos aos negros e negras por considerá-los inferiores e incapazes de entender a fé cristã.
5 Os rituais de Candomblé são realizados a partir de uma sequência. Primeiro, ocorre o xirê, quando se cultuam inicialmente as divindades mais próximas da vida humana e do estágio de desenvolvimento da humanidade, como Exu, o orixá da terra, considerado o mensageiro entre humanos e deuses; Ogum, o orixá que domina o uso do ferro utilizado tanto para a agricultura quanto para a terra; e os pastores e caçadores representados por Odé. Em seguida, são cultuados os elementos da natureza que permitiram o surgimento da vida humana e animal, como as vegetações (Ossaim), os rios (Oxum), o clima ameno (Oxumaré e Irokô) e os lagos, que são fonte de vida e de alimentos (Logunedé). Posteriormente, cultuam-se as divindades associadas ao período de formação do Planeta, como os movimentos sísmicos e vulcânicos (Omolu), raios (Xangô) e tempestades e ventos incontroláveis (Iansã). Finalizando com as divindades, elementos que trouxeram ou permitiram a vida na Terra, como Ibeji, que é cultuado como criança, considerada a força da vida. Além do culto aos elementos de onde a vida surgiu, como o oceano (Yemanjá), o mangue (Nanã) e o oxigênio, elemento essencial para a vida, representado por Oxalá, que é o último orixá a ser cultuado. As mesmas correlações podem ser atribuídas aos Candomblés Bantus e Gbés, mas com divindades próprias de suas cosmogonias.
6 Os termos Táta e Makota são denominações derivadas da língua quimbundo, falada no que hoje são os territórios de Angola e Congo, e significam, respectivamente, pai e mãe.
7 Dependendo da nação de Candomblé, as divindades cultuadas são chamadas de orixás pela nação Ketu, nkisis pela nação Angola e voduns pela nação Jeje.
8 Ato de bolar no santo.

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