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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei June 2021

 

Exclusão sociodigital e desproteção de crianças, adolescentes e famílias em tempos de crise

 

Sociodigital Exclusion and Deprotection of Children, Adolescents and Families in Times of Crisis

 

Exclusión sociodigital y desprotección de niños, adolescentes y familias en tiempos de crisis

 

 

Acileide Cristiane Fernandes CoelhoI; Maria Inês Gandolfo ConceiçãoII

IPsicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC/IP/UnB). Especialista em Assistência Social. Servidora da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedes/GDF). E-mail: leidecris@gmail.com
IIPós-doutora pela Universidade Federal Fluminense (2010/2011) e pela University of Toronto - CAMH/CICAD (2014-2015). Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (2000). Professora titular do Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (DPCL/PPGPsiCC/IP/UnB). Diretora do Instituto de Psicologia (2020-2023, IP/UnB). E-mail: inesgandolfo@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo realizar uma análise psicossociológica das atuações da rede de proteção a crianças, adolescentes e suas famílias em contexto de desproteção social, vulnerabilidade relacional e exclusão sociodigital em tempos de covid-19. Para tanto, realizou-se uma revisão de literatura buscando verificar aspectos de desproteção e estratégias de atuação da rede neste momento de crise. Apresentamos, ainda, um relato de experiência de encontros on-line de redes sociais do Distrito Federal para discutir sobre atendimento e oferta de serviço nos territórios. Assim, diante dos processos excludentes, ampliados pela crise sanitária, social, política e econômica, com vistas a atuações protetivas e de garantia de direitos, a inclusão sociodigital deve ser pauta incluída nas discussões sobre proteção social, em que se devem intensificar ações de resistência e de construções colaborativas entre atores da rede intersetorial e comunitária.

Palavras chaves: Rede de proteção. Criança e adolescente. Exclusão sociodigital. Vulnerabilidade relacional. Covid-19.


ABSTRACT

This article aims to perform a psychosociological analysis of the performance of the protection network for children, adolescents and their families in the context of social deprotection, relational vulnerability and sociodigital exclusion in Covid-19 times. To this end, a literature review was carried out seeking to verify aspects of the network's unprotection and performance strategies in this moment of crisis. We also present an account of the experience of online social networking meetings in the Distrito Federal to discuss care and service provision in the territories. Thus, given the exclusionary processes, amplified by the sanitary, social, political and economic crisis, with a view to protective actions and the guarantee of rights, socio-digital inclusion should be included in the discussions on social protection, in which resistance actions should be intensified and collaborative constructions between actors in the intersectoral and community network.

Keywords: Network of protection. Child and adolescent. Sociodigital exclusion. Relational vulnerability. COVID-19.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo realizar un análisis psicosociológico de las acciones de la red de protección de los niños, adolescentes y sus familias en el contexto de la desprotección social, la vulnerabilidad relacional y la exclusión sociodigital en tiempos de Covid-19. Para ello, se realizó una revisión de la literatura que buscaba verificar los aspectos no protegidos y las estrategias de actuación de la red en este momento de crisis. También presentamos un informe sobre la experiencia de las reuniones online de las redes sociales del Distrito Federal para discutir la asistencia y la oferta de servicios en los territorios. Así, ante los procesos de exclusión, amplificados por la crisis sanitaria, social, política y económica, con miras a las acciones de protección y garantía de derechos, se debe incluir la inclusión sociodigital en los debates sobre la protección social, en los que se deben intensificar las acciones de resistencia y las construcciones colaborativas entre los actores de las redes intersectoriales y comunitarias.

Palabras clave: Red de protección. Niño y adolescente. Exclusión sociodigital. Vulnerabilidad relacional. Covid-19.


 

 

Introdução

As reflexões deste artigo são resultado dos desafios enfrentados neste momento de crise pela primeira autora, que atua no Sistema Único de Assistência Social (Suas), e na experiência de encontros de forma remota com a rede de proteção a crianças, adolescentes e suas famílias para a discussão sobre dificuldades e estratégias de atendimento diante da ampliação da desproteção social. Para essa reflexão, as autoras encontram na Psicossociologia e na Psicologia Social Crítica um aporte para a leitura das diversas facetas da exclusão social, que, como aponta Sawaia (1999), é um processo complexo que traz dimensões objetivas da desigualdade social, dimensões éticas das injustiças, e subjetivas do sofrimento.

As categorias exploradas neste artigo referem-se à proteção de crianças, adolescentes e suas famílias, à exclusão social e digital, bem como às estratégias de atuação da rede de forma colaborativa diante da crise ocasionada pela pandemia da covid-19,o que intensifica a crise social, econômica e política brasileira. Essa perspectiva está alinhada ao que Boaventura de Sousa Santos (2002, p. 232) chama de "Tradução", isto é, "procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis", no sentido de buscar caminhos para a comunicação e atendimento das famílias e comunidades mais vulneráveis. Esta discussão tem como ponto de partida a literatura científica produzida neste momento de crise, a qual versa sobre a ampliação de contextos de desproteção, em especial, de crianças e adolescentes, e se desenvolve com uma leitura crítica baseada no paradigma da complexidade (Morin, 2000), pensando na construção do conhecimento com vistas nos diversos sistemas e nas incertezas atuais. Ressalta-se que a literatura internacional corrobora a literatura nacional quanto ao aumento da desproteção relacional e socioeconômica dessas populações vulnerabilizadas. Todavia, no Brasil, tal quadro se agrava em razão de posturas políticas neoliberais negacionistas, as quais, além de pôr em risco a saúde da coletividade, ampliam ainda mais os contextos de vulnerabilidade e contribuem para retrocessos no campo dos direitos humanos e das políticas sociais.

O distanciamento social causado pela pandemia da covid-19 tornou visível diversos desafios mundiais que foram agravados pela ampliação da desproteção social no âmbito da segurança de autonomia e renda, de acolhida e acesso a serviços e de convivência familiar e comunitária. Nesse sentido, a proteção social não se resume apenas ao atendimento de necessidades individuais e superação de fragilidades, mas ao acesso a bens coletivos, ao convívio social e à preservação da dignidade humana (Torres, 2016). Tal quadro apresenta a necessidade de um olhar pluriepistêmico diante das contradições e complexidades do conceito de exclusão, considerando aspectos objetivos, com ações pragmáticas, e subjetivos, com os impactos da dimensão relacional que é perpassada pelo distanciamento social. Além disso, devem ser levadas em conta as repercussões da exclusão digital, que tem operado como fator de desproteção social, dificultando o acesso de famílias e indivíduos à rede de serviços e à convivência, reduzindo o sentido de cidadania e o reconhecimento social.

No campo da convivência familiar e comunitária, verifica-se uma ampliação de desproteções, com aumento de situações de violência doméstica nas diversas classes sociais no período de crise sanitária (Campbell, 2020; Vieira, Garcia, & Maciel, 2020). Quando se trata da rede de proteção de crianças e adolescentes, embora se tenha conhecimento pela mídia e pela própria rede da ampliação de contextos de violência, alguns estudos apontaram para uma redução de denúncias de violência contra a criança, em contraste com as denúncias de violência doméstica, já sinalizando que a redução do acesso à rede de proteção gera maior dificuldade de detecção de situações de desproteção (Campbell, 2020). Além dessas situações, devem ser ressaltadas as assimetrias produzidas socialmente pela pandemia, considerando os marcadores de raça, gênero e/ou classe social, com quadros de risco de mortes em maior número na população negra, cujos dados são subnotificados no Brasil, bem como a ampliação das questões de violência e desproteção, mostrando que o impacto da pandemia atinge mais os grupos sociais historicamente negligenciados (Santos et al., 2020).

Diante disso, a oferta de serviço mediante o atendimento remoto se mostrou ser um grande desafio para a rede de serviços, sendo um deles a falta de acesso das famílias às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Ressalta-se, ainda, que muitas famílias não ficaram isoladas em suas casas por diversos fatores, destacando-se, em especial, a necessidade de se conseguir renda, de se manter em trabalhos precários e informais, de baixo salário, dada a insuficiência dos benefícios emergenciais pagos pelo Estado brasileiro. Para além da impossibilidade de obedecer ao resguardo por questões econômicas, a recomendação sanitária do isolamento social perde totalmente o sentido nesses contextos de extrema pobreza, nos quais as residências são divididas por vários habitantes, não possuem água limpa e encanada, nem sistema de esgoto. Todavia, mesmo nesse contexto, muitas vezes, as famílias permanecem distanciadas dos serviços dos quais necessitam. Outro desafio já é indicado para o momento pós-pandemia ou em um retorno para a oferta mais ampla de serviços presenciais. Como aponta Campbell (2020), o aumento das demandas de atendimento às vítimas de violência, como abuso infantil e outras situações de violência intrafamiliar, exigirá, mais do que nunca, parcerias da rede intersetorial e social. Nessa perspectiva, trazemos um relato de experiência da atuação de algumas redes sociais do Distrito Federal, o qual aponta dificuldades e possibilidades de atuação para a proteção de crianças, jovens e suas famílias, com foco na atuação diante da exclusão social e da ampliação de demandas neste momento de crise sanitária e pós-pandemia.

Para discussão final, apontamos o desafio da comunicação e do atendimento, tanto remoto quanto presencial, com a garantia de distanciamento, a qual inclua não apenas ações pontuais e pragmáticas, mas que garanta uma escuta genuína e toque na dimensão do sofrimento ético-político (Sawaia, 1999), que é refletido por diversos aspectos socioeconômicos e, sobretudo, nas relações comunitárias e familiares. Nesse sentido, a autora propõe o sofrimento ético-político para análise dos contextos de exclusão, destacando não só a preocupação com a sobrevivência, mas também a relação do sujeito com a ausência de direitos sociais, o sentimento e a emoção gerada pela exclusão e pela não garantia de direitos, causando sofrimento como "dor medida pelas injustiças sociais" (Sawaia, 1999, p.104). A autora aponta que, ao escutar esse sofrimento, incluindo as emoções do sujeito como questão ético-política, incluímos o olhar desse sujeito em análises econômicas e políticas. Assim, metodologias com leituras psicossociológicas que proporcionem vínculos e escuta de narrativas relevantes para o sujeito são bastante importantes para a ampliação da proteção social, da segurança de convívio discutida neste artigo e da prevenção de situações de vulnerabilidade e risco.1

 

Rede de proteção e vulnerabilidades relacionais: um retrato da literatura no momento de crise

Devido à situação de crise pandêmica, a dinâmica familiar pode ter sido afetada tanto por fragilização e rupturas de vínculos familiares quanto pela ampliação da convivência (Marques, Moraes, Hasselmann, Deslandes, & Reichenheim, 2020; Omer & Fleury, 2020). Tal situação pode intensificar vínculos ou desproteções relacionais, gerando sobrecarga emocional e/ou física com diversos reflexos, em especial, nas mulheres, considerando a necessidade de que um membro da família passe a cuidar mais dos outros, além de ocasionar o acirramento de conflitos e, de forma mais grave, ampliar situações de violência intrafamiliar.

No campo das desproteções relativas à segurança de convívio, entendemos por desproteção/vulnerabilidades relacionais as situações de conflitos, abandono, isolamento, apartação, preconceito e diversas formas de violência (Torres & Ferreira, 2019) em âmbito familiar, comunitário, institucional. Considerando essas situações, como aponta a literatura, a pandemia trouxe tanto situações de discriminação, em razão das desigualdades sociais, quanto situações de isolamento de idosos, que se afastam ainda mais de suas redes de apoio, conflitos e violência intrafamiliar, violência contra a mulher e seus filhos, e violência contra criança e adolescente. Nesse sentido, faz-se necessário repensar as atuações em rede e criar possibilidades de comunicações com foco na proteção relacional, considerando que as principais redes de proteção, como creches e escolas, deixaram de funcionar ou passaram a funcionar de forma remota e o apoio às crianças, adolescentes e suas famílias ficou diminuído. Além disso, vários órgãos, como unidades da Política de Assistência Social, passaram a funcionar com a maioria dos serviços de forma remota, e mesmo aqueles com atendimento presencial passaram a ter restrições, voltando-se para situações mais emergenciais e objetivas, sofrendo dificuldade de acessar as vulnerabilidades ligadas à insegurança de convívio, salvo quando os serviços de proteção são procurados pela própria vítima, no caso de violência, cuja possibilidade fica ainda mais distante no caso de crianças e adolescentes.

Ademais, quando se trata de famílias vulnerabilizadas pela pobreza, cuja situação socioeconômica se agrava ainda mais e o acesso a serviços se restringe, a desproteção social se amplia, o estresse no cuidado aumenta e a garantia de proteções básicas e de convivência se torna ainda mais complexa, acirrando as desigualdades. Desde que a pandemia se instalou no mundo e no Brasil, diversos estudos vêm sendo feitos e, em relação à questão da segurança de convívio, começaram a se voltar para temas ligados ao impacto do distanciamento social na convivência familiar e comunitária.

Diante disso, buscamos de forma não sistemática publicações de artigos em algumas das bases de dados, como SciELO, Lilacs, Web of Science, entre janeiro e agosto de 2020, verificando estratégias para a atuação da rede de proteção diante da temática referente à pandemia causada pela covid-19 e a convivência intrafamiliar, inseguranças de convívio e situações de violência, em especial as que atingem crianças, adolescentes e suas famílias.

A pandemia causada pela covid-19 mudou a rotina e a atuação da rede de apoio a crianças e adolescentes, acarretando novas formas de cuidado às crianças em razão do fechamento das escolas e uma ampliação do estresse parental, destacando-se dificuldades ampliadas para crianças e suas famílias em maior vulnerabilidade, em razão de insegurança alimentar, já que as crianças se alimentavam na escola em algum período, e contextos de risco já vivenciados que se ampliaram (Christoffel, Gomes, Souza, & Ciuffo, 2020; Fry-Bowers, 2020). Assim, a rede precisa se atentar para essas inseguranças sociais e vulnerabilidades relacionais quanto à discriminação, violência e sofrimento psicológico agravados pela exclusão.

No que tange ao estresse parental, o esgotamento de pais/cuidadores pode ampliar contextos de violência. O burnout parental2 nesse período pode ocasionar situações de abuso e negligência às crianças (Griffith, 2020). Por isso, a rede de proteção deve avaliar tal situação como efeito das diversas tensões causadas em momentos de crise e catástrofe, oferecendo apoio aos cuidadores. Esse estresse pode, ainda, ser agravado pela pressão familiar diante da perda de emprego, desencadeando crise financeira e redução de apoio, o que pode causar o aumento do risco para situação de violência física e psicológica (Bryce, 2020; Dubey et al., 2020). Outro ponto complexo, conforme destaca Fry-Bowers (2020), refere-se à passagem da aprendizagem educacional para os meios virtuais, ampliando as desigualdades, em especial para crianças negras e em vulnerabilidade socioeconômicas, as quais não têm acesso a computadores e/ou internet. Nesse quadro, o autor aponta a situação ainda mais complexa para crianças com deficiência e para famílias migrantes.

Socías, Brage e Nevot-Caldentey (2020) levantaram estratégias da rede de proteção aplicadas na Espanha, identificando as ações internacionais para ampliação de conhecimentos e lista de serviços de apoio familiar. Segundo os autores, a atuação mais forte vem se centrando na prevenção terciária, mediante atendimentos psicológicos por telefone. O estudo avalia a necessidade de medidas de prevenção primária com foco em aprimorar competências familiares como fator de proteção para os riscos advindos do distanciamento social.

Quanto à saúde do adolescente, Wanderlei et al. (2020), em uma revisão por escopo, enfatizam que, dentre as diversas situações causadas pela pandemia, há o favorecimento do contexto de violência e comportamentos agressivos no âmbito doméstico. Indicam-se, para tanto, práticas de cuidado e atendimento no modelo virtual, sendo constatada a rápida transição da rede de atendimento.

Considerando os diversos impactos sociais e comunitários (desproteções, parcos recursos e desigualdades de gênero), relacionais (estresse parental, conflitos e violências intrafamiliares) e individuais (doenças mentais), além de risco de perdas/separação dos provedores em decorrência da doença, Marques et al. (2020) apontam que a rede deve: ampliar campanhas publicitárias de alerta sobre os diferentes tipos de maus-tratos contra crianças e adolescentes para atingir a comunidade; ampliar serviços de atendimento e acolhimento socioassistencial, jurídico e de saúde às mulheres, crianças e adolescentes em situação de violência; estimular as famílias a manterem contato com redes significativas, em especial, para que haja apoio em situação de violência, garantindo manutenção de números telefônicos para casos de emergência. Nesse sentido, Bryce (2020) aponta para ações emergenciais e estratégias em longo prazo com a colaboração de uma rede de múltiplos serviços para a ampliação de trabalhos comunitários, destituindo-se formas opressivas de atuação e buscando um empoderamento das famílias, com atuação que considere os sofrimentos subjacentes às situações de violência.

Ainda sobre estratégias para atuação preventiva ou em quadros de desproteção, Roca, Melgar, Gairal-Casadó e Pulido-Rodrígues (2020) apontam a relevância de se manter uma comunicação ativa entre escola e alunos, apresentando o exemplo de nove escolas na Espanha (educação infantil, ensino fundamental, médio e educação especial), as quais estão participando de ações com o objetivo de "abrir portas" para promover relações de apoio e ambiente seguro para prevenir a violência infantil durante o confinamento. O artigo aponta seis estratégias que vêm sendo utilizadas de forma on-line com a comunidade escolar: (i) espaços de trabalho dialógicos (com professores, voluntários, estudantes); (ii) encontros dialógicos (com estudantes); (iii) assembleias de turmas; (iv) encontros pedagógicos dialógicos com professores; (v) comitês mistos; e (vi) dinamização de redes sociais com mensagens preventivas e a criação de um sentido de comunidade.

Nesse contexto, Sacco et al. (2020) também apontam alguns aspectos relevantes para a atuação: manutenção do contato on-line entre educadores e jovens; maior frequência de contato com vítimas que relatam episódios de violência anterior com assistência social on-line obrigatória a fim de verificar a segurança do ambiente familiar.

Trazemos, assim, no Quadro 1, conforme descrito na literatura, aspectos de desproteção e algumas das estratégias mais citadas para a atuação da rede neste momento de crise pandêmica.

Após levantar as principais estratégias apresentadas nesses artigos no contexto nacional e internacional, percebe-se que a tentativa de manutenção da comunicação, do convívio e da relação entre serviço-família-comunidade se torna imprescindível para a proteção de crianças e adolescentes. Isso deve ser pautado, sobretudo, em relações comunitárias, como aponta Guareschi (2000), quando há a possibilidade de igualdade de direitos e deveres. Nesse sentido, deve-se buscar estabelecer acesso a direitos e também de escuta e acolhida, embora tenhamos visto que, em países como o Brasil, até então foram tomadas ações muito aquém das necessárias, perpetuando as desproteções estruturais e históricas que acometem diversas famílias e que precedem o contexto de crise sanitária, com dificuldades significativas no acesso a serviços.

Assim, são relevantes estratégias que proporcionem espaços dialógicos de escuta pensando no sujeito em uma perspectiva sistêmica e coletiva, o qual está inserido em um contexto socioeconômico e político que estrutura diversas situações vividas de vulnerabilidade e risco, as quais são constituintes das subjetividades, dos sofrimentos e dos conflitos (Honneth, 2003). Essa base que estrutura contextos de desproteção pode nos ajudar, ainda, a compreender limites e contradições da família que desprotege e pensar em ações diante disso. Assim, refletindo sobre o que Santos (2002, 2020) nos traz com a Sociologia das ausências e a possibilidade de transformar aquilo que não existe ou está ausente em presença, ponderando para além do que foi escrito como possível, a atuação das redes poderá ser mais efetiva em ambientes de trocas, pensando questões locais, socioeconômicas e afetivas, de construção conjunta de saberes com os diversos atores envolvidos e com as famílias na relação de respeito e proteção, em que ações de vínculos e cuidado com o outro poderão reverberar nas relações intrafamiliares e comunitárias. Em tempo, tais espaços poderão tornar factível pensar em um "futuro de possibilidade plurais e concretas" (Santos, 2002, p. 12) em uma lógica de cuidado, como traz a Sociologia da emergência (Santos, 2002), para a atuação dos diversos profissionais e das famílias em momento pós-crise.

Outro aspecto relevante que será tratado a seguir e que tem sido pauta principal da experiência de articulação das redes para pensar na proteção neste momento de distanciamento social refere-se à exclusão digital. Esse nos parece um ponto crucial que perpassa as principais estratégias levantadas no Quadro 1, o qual coloca as famílias que não têm acesso a TCIs em um abismo de desproteção. Como traz Carreteiro (2020), a partir do conceito de Castel (1995), "indivíduos por falta", desprovidos de suportes objetivos/suportes sociais positivos e de chances de desenvolvimento de estratégias individuais de autonomia, têm mais possibilidades de experimentar o sofrimento social, que, por sua vez, instala-se na vulnerabilidade social, nas zonas de perdas de direitos, vínculos e integração sociais. Esse sofrimento social, conforme aponta Castel (1995), refere-se ao processo da dialética de inclusão/exclusão social, também enfatizado na lógica do sofrimento ético-político, abordado neste artigo por tratar da necessidade de apropriação de bens materiais e simbólicos para que o sujeito se sinta parte do todo (Bertini, 2014). Nesse contexto, como Carreteiro (2020) levanta, o olhar da rede voltada para essa falta e esse pertencimento negativo pode ser capital para o alcance de direitos, se construído na lógica da igualdade e não de assimetria social.

 

Exclusão sociodigital: contradições e faces da desproteção social

A exclusão digital sempre esteve presente no Brasil, mas pouco se falava dela sob a forma de melhoria de condições sociais ou de acesso a direitos. A pandemia causada pela covid-19 colocou a exclusão digital em um patamar de desproteção social, além de as destituírem de outros direitos. Considerando que muitos serviços, para serem acessados, tinham como exigência prévia agendamentos e acompanhamentos de forma on-line ou via telefone, o distanciamento social fez com que esse formato de atendimento fosse ampliado, o que dificultou o acesso a direitos. Essa exclusão atingiu sobremaneira crianças e adolescentes devido à adoção do ensino remoto, o qual vai muito além da aprendizagem, pois é sentido como meio de proteção e cidadania. Conforme dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic-BR, 2019), quanto ao acesso à internet e às tecnologias por crianças e adolescentes na faixa etária entre 9e 17 anos, no Brasil, 17% dessa população vive em domicílios sem acesso à internet. O percentual é maior nas regiões Norte e Nordeste do país, com 21% nas cidades e 32% na zona rural.

Nesse contexto, quando se fala de inclusão, não se trata apenas de dar acesso às Tecnologias de Comunicação e Informação (TCIs), mas em pensar, sobretudo, na condição de manusear essas tecnologias: o que Neves (2017) chama de letramento digital, que seria uma etapa importante para além do acesso a equipamento, e conectividade. Todavia, como falar sobre inclusão digital em um país onde se enfrenta a desigualdade social e a insegurança alimentar e de renda se acentuou ainda mais?

Assim, há aspectos contraditórios, como a própria noção de exclusão e inclusão social. Quando se trata de inclusão digital, consoante apontam Neves, Freire e Suaiden (2018), é importante considerar a discussão sob o ponto de vista da integração social, considerando que essa noção não pode ser vinculada apenas à informatização da sociedade e desatrelada da dimensão relacional do mundo digital. Outro ponto crucial refere-se à inclusão com uma ideia de justiça social, desconsiderando os contextos de desigualdade e lógica capitalista, como aponta Sawaia (1999). Segundo a autora, esse é o caráter ilusório de inclusão e diz sobre o descompromisso político do sofrimento do sujeito, o que nos faz pensar em uma análise psicológica cuja compreensão maior das desigualdades coletivas inclui esferas ligadas à intersubjetividade e afetividade, contrapondo-se à culpabilização do sujeito.

Há uma contradição própria também no que tange à ideia de inclusão digital, pois, ao mesmo tempo em que a universalização do acesso às TCIs pode diminuir desigualdades, o não acesso como direito de todos aumenta ainda mais a exclusão, considerando que o acesso passa a ser indicativo de ascensão social, impactando de forma negativa na distribuição de riqueza e oportunidades, havendo uma heterogeneidade no acesso (Sorj & Guedes, 2005). Ainda, de acordo com estudo realizado por esses autores, em comunidade vulnerabilizada pela pobreza, em se tratando de marcadores de classe, gênero e raça, mulheres apresentam nível de exclusão digital mais elevado, em razão dos postos de trabalho que ocupam (serviços gerais, de limpeza); a população negra também tem média de posse de computadores por domicílio bastante inferior à da população branca.

É preciso ter em vista essas contradições e a questão de que a inclusão precisa abarcar um caminho para a emancipação digital do sujeito, direcionada à liberdade de comunicação e informação, como apontam Neves, Freire e Suaden (2018), pois, conforme Guareschi (2018), o ambiente virtual acaba construindo subjetividades e naturalizando realidades para o alcance dos objetivos centrais e permanentes de um novo capitalismo, o qual ele denomina tecnocapitalismo ou tecnoliberalismo. O que se quer chamar atenção aqui é que a defesa do acesso às TCIs como direito universal deve estar atrelada a uma leitura crítica, sem perder de vista o reconhecimento tanto de fatores de proteção, no sentido de acesso a bens e serviços, como também, em uma esfera relacional, pensando na dimensão simbólica do sofrimento (Sawaia 1999; Tavares, 2014), resultante não apenas da dificuldade material, mas do sentimento de exclusão e de não pertencimento social.

Em tempo, é preciso compreender que combater a exclusão digital engloba combater a exclusão escolar e a falta de acesso à saúde, à renda, ao saneamento e à moradia digna, tanto de crianças e adolescentes quanto de seus pais/cuidadores, o que envolve diversas esferas ligadas às políticas sociais, pois "não haverá universalização de acesso às novas tecnologias da informação e da comunicação sem a universalização de outros bens sociais" (Sorj & Guedes, 2005, p. 116). Nesse sentido, o termo sociodigital inclui essa perspectiva mais complexa, com uma visão mais crítica envolvendo a análise de vários sistemas. Todavia, conforme apontam os próprios autores, não se deve esperar para incluir na agenda política de forma urgente a questão da universalização da inclusão digital, nem perder de vista toda a discussão aqui posta sobre a inclusão de diversos setores sociais nesse debate.

Essa discussão é necessária para se compreender a proteção da criança, do adolescente e das famílias neste momento de crise, pois conforme levantado pela literatura, muitas das estratégias envolvem atendimentos por meio de TCIs. A pandemia fez todos falarem em um novo formato de funcionamento da sociedade: reuniões remotas, terapias on-line, oficinas, cursos, aulas, lives sobre diversos temas. Mas, considerando a problemática aqui apresentada, esse "novo normal" não chegou para todos, e como a rede de proteção de crianças e adolescentes vêm se articulando e trabalhando sobre isso são desafios constantes, que veremos a seguir.

 

Um breve relato de experiência sobre a rede de proteção e atuações possíveis no momento de crise

Diante do que a literatura aponta em termos de desproteção de crianças, adolescentes e suas famílias, neste momento de crise sanitária que tem aumentado ainda mais as desigualdades sociais, econômicas e digitais, faz-se importante pensar em estratégias que ampliem acesso à rede de proteção, à oferta de serviços, à garantia de direitos e à inclusão digital. Nesse contexto, a articulação de redes de serviços e comunitárias torna-se um processo fundamental para alcançar famílias e territórios em situação de vulnerabilidade social, bem como para o suporte e proteção social diante da exclusão sociodigital. De acordo com Sanicola (2008), as redes sociais organizadas que têm como objetivo o bem-estar comunitário podem ampliar o acesso às políticas sociais se pensarem no enfrentamento dos problemas coletivos, compartilhando estratégias para ação, em um sistema de trocas e integração de recursos e metodologias de intervenção. Segundo a autora, tais redes locais tornam-se fortalecidas quando conseguem unir redes de serviços e operadores sociais do território e no momento em que essas mesmas redes locais se voltam às necessidades reais com foco na orientação para um bem comum.

Ainda nessa perspectiva de articulação, quando temos a participação da comunidade na discussão dos problemas coletivos e das potencialidades do território, é possível ampliar o sentimento de pertença entre os atores que vivem e atuam na comunidade. Conforme Montero (2007), seria a existência de um sentido de comunidade, construído nas relações cotidianas e no sentido de estar juntos buscando estratégias diante das divergências, convergências e conflitos.

A literatura apresentada neste artigo apontou como estratégias de proteção o trabalho colaborativo entre a rede de garantia de direitos e proteção e a aproximação dessa rede, por meio TCIs, com crianças, adolescentes e suas famílias quando houver restrição da oferta de alguns serviços de forma presencial. Assim, essa rede de proteção precisa buscar estratégias para alcançar famílias em situação de exclusão sociodigital e unir esforços para o trabalho colaborativo para enfrentar as desproteções sociais. Ademais, além de ações pragmáticas, é preciso haver mobilizações das redes, fomentando uma agenda política que abarque a situação de famílias e comunidades mais vulneráveis sem acesso à internet e/ou equipamentos ligados a TCIs. Compreendemos, neste artigo, que a inclusão sociodigital deve ser pauta de discussões sobre proteção social.

Para pensar nos temas abordados até aqui, na lógica de redes sociais organizadas, conforme Sanicola (2008), relataremos uma breve experiência referente aos encontros on-line de uma das redes sociais locais do Distrito Federal (DF), os quais vêm acontecendo neste momento de pandemia, tendo como objetivo principal a garantia de direitos e acesso aos serviços por famílias em situação de vulnerabilidade e risco. Esses encontros locais já ocorriam de forma presencial, sendo realizados por cerca de 20 redes de Regiões Administrativas (RAs) do DF, algumas com mais de 10 anos de existência. Para pensar em estratégias de atendimento e oferta de serviços, pelo menos 10 dessas redes vêm se reunindo, desde maio de 2020, de forma on-line com diversos atores ligados a serviços de proteção e à comunidade. Outra estratégia que se intensificou, utilizada por essas redes antes da pandemia, refere-se ao uso do aplicativo WhatsApp para a articulação de serviços e informações. Além desses encontros mensais, foram realizados dois encontros gerais de integração dessas redes para discutir temáticas referentes a desafios que se agravaram, tais como: atuação para enfrentamento da pandemia causada pela covid-19; ampliação do quadro geral de desproteção social, insegurança alimentar e de renda; desafios da educação remota; ampliação da violência contra a mulher, crianças e adolescentes; dificuldade na oferta de serviço e exclusão digital.

Essas redes são denominadas redes sociais locais e, conforme Novais et al. (2017) descrevem o funcionamento dessas redes no DF, acontece em formato colaborativo, sendo espaços nos quais são debatidos desafios do cotidiano das comunidades e estratégias para melhoria e efetivação de políticas sociais. Participam dessas redes profissionais de serviços ligados à Assistência Social, Saúde, Segurança Pública, Educação, Conselho Tutelar, Justiça, Ministério Público, Sociedade Civil (associações, grupos comunitários), entre outros atores. Como a autora descreve, as Redes Sociais locais no DF se configuram como

ambientes colaborativos, de interação, de mediação comunitária, suprapartidários, aberto a participação de todos, horizontais, independentes, autônomos, construtores de vínculos, afetos e solidariedade na busca da efetivação de políticas públicas integradas e garantia de direitos e cidadania, portanto são espaços de transformação social e de natureza emancipatória. (Novais et al., 2017, p. 190).

Como breve exemplo desses encontros, trazemos a experiência de uma das primeiras redes que iniciaram esses encontros on-line em uma Região do DF, a qual, apesar de permanecer se comunicando mediante grupo do WhatsApp, avaliou a necessidade dos encontros on-line a partir de uma campanha virtual colaborativa em alusão ao dia 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A rede passou a se encontrar uma vez por mês, por cerca de 2h30, para discutir temas mais amplos e depois ampliou para um segundo encontro mensal para estudos de algumas situações entre os serviços.

O encontro inicial foi marcado pela acolhida do grupo, pela troca de informações e experiências, adaptações dos serviços diante das situações de distanciamento social e um diagnóstico das situações mais complexas de atuação, as quais foram apresentadas pela comunidade. Um grande desafio se evidenciou logo no início com a constatação do aumento de situações de violência contra as mulheres e o aumento da demanda de alguns serviços, como de segurança, que permaneceram funcionando normalmente, e os serviços de saúde, com diversas preocupações em relação aos cuidados dos próprios profissionais e continuidade de atendimento dos usuários. Outros serviços, porém, passaram a funcionar de forma remota, como foi o caso de unidades da assistência social, em especial, por meio de atendimento telefônico às famílias, o que impôs desafios quanto ao acesso a serviços e benefícios. No caso da educação, as aulas, que inicialmente foram suspensas, passaram a funcionar de forma remota, momento em que já vínhamos discutindo questões de exclusão digital como ampliação de desproteções sociais, e as discussões se intensificaram em razão do acesso às aulas pelos estudantes em situação de maior vulnerabilidade. Sobre as principais dificuldades levantadas, corroborando o que a literatura aponta, verificou-se principalmente a dificuldade na manutenção do contato com algumas famílias pela ampliação de demandas; dificuldade de acesso por meio das TCIs; dificuldade de identificação de situações de desproteções relacionais; ampliação de insegurança alimentar/renda das famílias.

Quanto às estratégias utilizadas, verificou-se um esforço de manutenção de contato dos orientadores educacionais com alunos e famílias; troca de informações entre atores da rede sobre dados atualizados para localização de famílias; troca de informações sobre oferta de atendimentos psicológicos on-line; atendimento on-line de assistência social. Considerando a exclusão digital como um dos temas amplamente debatidos, a rede buscou estratégias para minimizar situações, tais como o uso de carro de som para comunicar aos alunos que residem em locais mais vulneráveis sobre os canais e formas de acesso às aulas; contato dos orientadores com famílias mais vulneráveis; campanhas para a doação de equipamentos (PCs, tablets, celulares/smartfones), entrega de materiais em meio físico no âmbito escolar e por serviços de convivência; mensagens por meio de rádios comunitárias. Compreendemos que o acesso à internet ainda é um desafio, mas isso vem sendo debatido por essas redes e levado a espaços públicos para gerar mobilização em agendas políticas. Há a tentativa de um movimento de tradução (Santos 2002), no sentido de pensar nas experiências de mundo possíveis, o conhecimento local e aquele que vai sendo coconstruído.

As reflexões trazidas sobre as exclusões que se ampliam nos colocaram em um lugar do não saber e, por isso, começamos a pensar em novas formas, na necessidade de elaborar perguntas geradoras para acessar questões de desproteção social, no sofrimento desses sujeitos e na noção de dignidade diante do não acesso a serviços. Experiências compartilhadas reverberaram, em certos momentos, uma angústia sobre questões das quais não tínhamos respostas, tais como: o relato de educadores sobre uma mãe que não foi buscar a atividade de seu filho na escola por não ser alfabetizada e não conseguir ajudar o filho no processo de aprendizagem; a situação de um jovem que não tem as ferramentas necessárias para se sentir pertencente, neste momento, ao grupo de pares e a cultura disponível; ou quando os créditos possíveis colocados nos celulares pelas famílias só dão para ligar para serviços da assistência de forma rápida ou assistir a um vídeo recomendado nas aulas remotas. Assim, ficamos sensibilizados para preocupações que parecem simples, como retornar uma ligação de uma família que ligou para solicitar um benefício, e complexas, como lutar pela inclusão sociodigital. Tais inquietações individuais e coletivas, ao revelar nossas vulnerabilidades, aproximam-nos de uma ligação com o outro e pode nos distanciar de um conformismo e individualismo, como aponta Enriquez (1994).

Essa experiência tende a se estender no tempo devido ao vínculo que o grupo já tem. O que fica forte é a construção de espaços horizontais em que cada participante se coloca disponível e presente para acolher as dificuldades de atuação dos outros, de pensar junto sobre as nossas vulnerabilidades e da comunidade, pensar nas atuações possíveis, nas ausências e emergências, com respostas que a princípio ainda não temos, mas tentamos pensar em alternativas mediante informações e troca de experiências. Essa relação de mútua cooperação e apoio pode ser vista como uma ecologia de saberes (Santos, 2002), a qual se revela nos contextos e práticas sociais.

 

Considerações finais

Neste momento, não dispomos de todas as respostas para o desafio da desproteção num mundo pandêmico digitalmente excludente. A literatura nacional e internacional aponta estratégias para a proteção de crianças, adolescentes e de suas famílias diante de experiências anteriores e do vivido de forma ágil, as quais devem ser somadas às experiências locais e traduzidas para as lógicas de sentido dentro da comunidade e dos serviços de proteção. Nesse contexto, o desafio maior é pensar na crise (sanitária) dentro da crise permanente (social, econômica, política) como aponta Santos (2020).

Assim, questões relevantes, como as estratégias de atuação pela rede, diante dos quadros de desproteção e a questão da inclusão sociodigital, não podem ser esquecidas no mundo pós-pandemia. Além disso, é preciso ressaltar a importância das políticas públicas para o enfrentamento dessa crise sanitária e das crises permanentes citadas neste artigo. Diante desses desafios, os espaços de colaboração, de escuta e de possibilidades são caminhos que dizem de um cuidado e da presença da rede voltada para temas tão sensíveis como este aqui discutido: a proteção de crianças, adolescentes e suas próprias redes.

 

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Recebido em: 11/9/2020
Aceito em: 4/6/2021

 

 

1 Adotamos, neste artigo, como definição de risco aquilo que provoca padecimentos, perdas, como privações e danos, ofensas à integridade e à dignidade da pessoa humana, englobando, ainda, danos que surgem das relações, levando a situações de isolamento, abandono, exclusão e contextos de violência (Sposati, 2009). Conforme a autora, "as manifestações dos riscos vão ocorrer no cotidiano das pessoas, nos territórios onde vivem e podem sujeitá-las a maior, ou menor, exposição ao risco social" (p. 30). O conceito de vulnerabilidade social, por sua vez, está atrelado à ocorrência de um risco social, referindo-se à "densidade e à intensidade de condições que portam pessoas e famílias para reagir e enfrentar um risco, ou, mesmo, de sofrer menos danos em face de um risco" (Sposati, 2009, p. 35). Dessa forma, "atuar com vulnerabilidades significa reduzir fragilidades e capacitar as potencialidades" (Sposati, p. 35).
2 Mikolajczak, Gross e Roskam (2019, p. 1319) definem o burnout parental como uma "resposta prolongada ao estresse parental crônico e avassalador". Essa ocorrência está relacionada a uma série de fatores que levam a um esgotamento dos pais/cuidadores, como a busca pela manutenção das tarefas domésticas, as incertezas financeiras, as demandas da parentalidade e os cuidados com a saúde. De acordo com Mikolajczak e Roskam (2018), quando há um desequilíbrio crônico entre demandas e recursos no exercício do papel parental, havendo maior exposição às demandas em relação ao acesso aos recursos, o burnout pode ocorrer.

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