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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei jul./set. 2021

 

Produção de saúde: potencializar a invenção de novos modos de vida comunitária

 

Health Production: Potentiating the Invention of New Ways of Community Life

 

Producción de salud: potenciar la invención de nuevas formas de vida comunitaria

 

 

Geiscislaine Laís MartinsI; Bruna Chaves LealII; Jeane Oliveira SantosIII; Guilherme Dias SantosIV; Tereza Cristina PeixotoV; Roberta Carvalho RomagnoliVI

IPsicóloga formada pelo Centro Universitário UNA. Pesquisadora da área social e das políticas públicas. E-mail: geiscis.lm@gmail.com
IIGraduada de Psicologia do Centro Universitário UNA. E-mail: brunnah.leal@hotmail.com
IIIPsicóloga. Pesquisadora em área social do Centro Universitário UNA. E-mail: jheane.olivie@hotmail.com
IVGraduado de Psicologia do Centro Universitário UNA. Pesquisador em iniciação científica e extensão. E-mail: guilhermediassantos@ymail.com
VDocente adjunta no Curso de Psicologia do Centro Universitário UNA. Apoiadora do HumanizaSUS. E-mail: terezacpc@hotmail.com
VIDoutora em Psicologia pela PUC-SP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas. Pesquisadora do CNPq. E-mail: robertaroma@uol.com.br

 

 


RESUMO

A presente pesquisa teve como objetivo estimular a criatividade de grupos e potencializar suas linhas de fuga em prol da ampliação de novos modos de vida e de singularização coletiva. A proposta teórico-metodológica fundamenta-se nos estudos do Institucionalismo, na vertente da Esquizoanálise. Trata-se de uma pesquisa-intervenção, com abordagem qualitativa, uma vez que analisa os aspectos dinâmicos, sociais e subjetivos, com o intuito de cartografar os modos de vida, os fluxos de forças, os discursos, os movimentos, as resistências e as linhas de fuga da comunidade pesquisada, com foco nos movimentos de afirmação da vida. Para tal, os pesquisadores vivenciaram o cotidiano do território de um município de Minas Gerais, onde acompanharam o movimento de um grupo de adolescentes criadores de espaços de lazer e arte para a comunidade.

Palavras-chave: Pesquisa-intervenção. Cartografia. Promoção da saúde.


ABSTRACT

This research aimed to simulate the creativity of groups and enhance their lines of flight towards the expansion of new ways of life and collective singularization. The theorical-methodological proposal is based on the studies of Institutionalism, in the schioanalysis aspect. It is an intervention research, with a qualitative approach, as it analyzes the dynamic, social and subjective aspects, in order to map the ways of life, the flows of forces, the discourses, the movements, the resistances and the lines of flight from the researched community, focusing on life-affirming movements. To this end, the researchers experienced the daily fife of the territory of a municipality in Minas Gerais, where they followed the movement of a group of teenagers who created leisure and art spaces for the community.

Keywords: Intervention research. Cartography. Health promotion.


RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo estimular la creatividad de los grupos y potenciar sus líneas de vuelo hacia la expansión de nuevas formas de vida y la singularización colectiva. La propuesta teórico-metodológica se fundamenta en los estudios del Institucionalismo, en la vertiente esquizoanalítica. Es una investigación, con enfoque cualitativo, ya que analiza los aspectos dinámicos, sociales y subjetivos, con el fin de mapear los modos de vida, los flujos de fuerzas, los discursos, los movimientos, las resistencias y las líneas de fuga desde la comunidad investigada, centrándose en movimientos de afirmación de la vida. Para ello, los investigadores experimentaron la vida cotidiana del territorio de un municipio de Minas Gerais, donde siguieron el movimiento de un grupo de adolescentes que crearon espacios de ocio y arte para la comunidad.

Palabras clave: Investigación-intervención. Cartografía. Promoción de la salud.


 

 

Introdução

A reforma sanitária proposta no Sistema Único de Saúde (SUS) prevê ações em saúde que contemplem a promoção, a prevenção, a cura e a reabilitação física dos sujeitos. Essas ações devem ser organizadas em rede, abarcando a articulação com diversas organizações sociais, privadas e comunitárias. Tal abrangência de ações se justifica pelo conceito ampliado de saúde adotado no SUS, que compreende a saúde de uma população como o resultado das condições de moradia, trabalho, saneamento básico, de acesso aos serviços de saúde, à educação, ao lazer, integrando subjetividade e participação ativa dos sujeitos na vida (Constituição Federal, 1988). A Constituição de 1988 assegura que o Estado deve garantir, por meio da seguridade social, proteção social e saúde à população, que passa a ter direitos universais, sem distinção de classe social ou de qualquer outra natureza. Os determinantes sociais da saúde apontam para a produção do adoecimento em função das condições de vida e da desigualdade social. Para enfrentá-los, são necessárias ações em prol do desenvolvimento local e do fortalecimento comunitário, por meio de políticas de inclusão e proteção da população (Silva & Batista, 2015).

A saúde de uma população é o resultado das condições de moradia, habitação, posse de terra, condições de trabalho, saneamento básico, acesso aos serviços de saúde, à educação e ao lazer, considerando a subjetividade e a participação ativa dos sujeitos na vida social, dignidade de vida. Nesse contexto, o território, entendido não somente como a região na qual se instalam os seus equipamentos, mas também como as conexões estabelecidas entre os espaços relacionais, de vida, de trocas, de sustentação e ruptura de vínculos cotidianos, que constroem sentidos para os que lá vivem e circulam, é a base de organização de ações e serviços (Constituição Federal, 1988).

Neste artigo, nossa escolha pelo tema produção de saúde se alinha à proposta da Política Nacional de Promoção de Saúde, instituída pela Portaria n. 687/2006, na qual o conceito de promoção de saúde é complexo e está atrelado à produção de saúde. Isso porque a promoção de saúde compreende também o "esforço para o enfrentamento dos desafios de produção da saúde", que, por sua vez, está associada à "[...] produção de subjetividades mais ativas, críticas, envolvidas e solidárias" (Portaria n. 687, p. 10). Essa correlação entre promoção e produção de saúde rompe com o conceito de saúde do modelo biomédico, que a concebe como ausência de doença, ao mesmo tempo em que se alinha ao conceito ampliado de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS).

Compreender saúde em sua complexidade diverge do discurso científico biomédico e afirma a vida como potência de permanente inventividade de modos de existência, e a doença não é vista como impeditivo, uma vez que há formas de vida que resistem à doença (Costa & Bernardes, 2012).

Nessa direção, conhecer os modos de vida de um território, como espaço de promoção ou não de saúde e de subjetividades, é acompanhar forças e movimentos, rastrear processos e deslocamentos. Destarte, essa pesquisa-intervenção pode ser compreendida como um dispositivo operador de mudanças para novos modos de sentir-pensar e existir dos pesquisadores e, principalmente, da comunidade participante.

Na conjuntura sociopolítica atual, a existência de endurecimentos e estratificações se opera no tecido social contrárias às conquistas sociais do SUS, implicando na articulação de encontros com os coletivos para fortalecimento de ações promotoras de movimentos que sustente, de fato, sua proposta na micropolítica do cotidiano. Ademais, reconhecemos a importância e a necessidade de fortalecer e difundir ações coletivas que inventem novas formas de habitar nossos territórios.

A partir do exposto, torna-se objetivo desta pesquisa-intervenção a estimulação da criatividade de grupos e a potencialização de suas linhas de fuga em prol da ampliação de novos modos de vida e de singularização coletiva. Para tal, buscou-se conhecer o território escolhido, suas organizações, equipamentos, agentes, fluxos de vida e perfis dos moradores, para compreender os modos de vida, a dinâmica dos relacionamentos, interesses, resistências e identificar as principais dificuldades e enfrentamentos da comunidade. O foco foi os movimentos de afirmação da vida existentes na comunidade.

 

Metodologia

A proposta teórico-metodológica fundamenta-se na vertente institucionalista, movimento plural formado por diversos saberes, práticas e correntes. Nesta pesquisa, fundamentamo-nos na Esquizoanálise, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que visa à liberação do processo produtivo-desejante-revolucionário em suas atuações e intervenções (Baremblit, 2002). A Esquizoanálise busca a invenção de metodologias, técnicas, táticas e estratégias singulares para cada caso e situação, a fim de ampliar formas de viver, continuamente inventivas empreendidas pelos sujeitos (Baremblit, 2002). De acordo com Romagnoli (2014), as ideias de Deleuze e Guattari são conhecidas também como Filosofia da Diferença e Paradigma Ético-Estético, além da intitulação Esquizoanálise.

Trata-se de uma pesquisa-intervenção, modalidade de pesquisa que surgiu a partir da superação das pretensões de neutralidade e objetividade, oriundos da perspectiva da ciência positivista, valorizando a participação ativa dos sujeitos envolvidos na pesquisa e desfazendo as dicotomias teoria-prática, pesquisador e campo de pesquisa. Nesse modo de conhecer/intervir, entende-se que é inviável que o pesquisador se mantenha fora do ou neutro ao campo (Paulon, 2005).

Insistindo na complexidade e nos processos a serem acompanhados na conexão com o que se pretende conhecer, realizamos uma cartografia, que na perspectiva esquizoanalítica refere-se a todos os movimentos provocados pelos fluxos de força e encontros no campo. Nesse contexto, persegue a dessubjetivação do pesquisador, pois este deve se disponibilizar a experimentar os encontros e os afetos que circulam nas relações. O cartógrafo deve despertar, segundo Rolnik (2006), o seu olho vibrátil a fim de identificar as intensidades dos fluxos de força do campo de estudo, registrando em seu diário de bordo suas afetações, implicações e expressões. A cartografia é uma forma de pesquisa-intervenção, uma vez que cria desestabilizações no campo de pesquisa e nos pesquisadores, ao acompanhar os processos, trabalhando o que emerge nessa relação (Amador, Lazzaroto, & Santos, 2015).

Essa proposta metodológica se alinha com o paradigma ético-estético-político defendido por Guattari (1993), que corresponde a uma forma de pensar, viver e experimentar a produção de conhecimento que busca a invenção. Nesse sentido, ético se refere ao exercício do pensamento que rastreia conjunturas potencializadoras da vida; estético, à apreensão da subjetividade em sua faceta de criação, e não em modelos reducionistas, estanques e políticos, pela imanência de planos de forças distintos presentes nas situações. Esse paradigma enfatiza as relações e seus efeitos, os sentidos que ganham forma nos agenciamentos, nas conexões que se fazem. Desse modo, a "intervenção se junta à pesquisa, não para substituir a ação, mas para produzir outra relação entre teoria e prática, assim como entre sujeito e objeto" (Barros, 2009, p. 230).

Apostando nesse modo de acompanhamento para a produção de conhecimento, foi escolhido como território um município de Minas Gerais caracterizado pela vulnerabilidade social e pela escassa infraestrutura sociopolítica e econômica. Evidencia-se que espaços com tais carências favorecem a produção de estigmas e representações negativas sobre a cidade e sua população, mascarando as potencialidades da comunidade (Castro & Abramovay, 2002).

Nessa mesma região, foi realizado, por uma parte do grupo de pesquisadores, um estudo anterior (referente a uma disciplina do 7° período de Psicologia da instituição à qual os discentes pertencem). O estudo investigou a atuação dos psicólogos na atenção primária desse território e seus achados apontaram para a necessidade de fortalecimento da comunidade local para o enfrentamento das adversidades vivenciadas no cotidiano, porquanto se identificou que as instituições de saúde atuavam em uma perspectiva assistencial, com número de profissionais reduzidos em relação à demanda populacional, um distanciamento entre profissionais da saúde e a comunidade, além de dificuldades administrativas que implicavam na dificuldade do fazer profissional.

Os encontros com o campo, que possibilitaram a produção dos dados desta pesquisa, ocorreram em diversos horários e dias da semana, momentos em que os pesquisadores vivenciaram o cotidiano dos moradores e outros sujeitos inseridos no território, como profissionais e funcionários de organizações. A partir desses encontros, que ocorreram no período de 12 meses, de março de 2017 a fevereiro de 2018, os pesquisadores experimentaram o território e suas condições, bem como os movimentos ali produzidos.

Durante e após seis encontros, com a participação de cinco pesquisadores, foram utilizados diários de bordo para registro de notas de observações e das afetações experimentadas pelos pesquisadores. Também foram realizadas análises de implicações, que mostram a relação dos pesquisadores com a instituição e os atravessamentos no qual estiveram "imersos" no decorrer da pesquisa. A análise de implicação foi realizada pelo grupo de pesquisadores, durante reuniões semanais, com o objetivo de promover a reflexão crítica dos afetos despertados, bem como efetuar análises das desestabilizações vivenciadas.

O nome do território apresentado neste artigo é fictício, a fim de preservar o anonimato do local. A presente pesquisa foi realizada depois da aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética da instituição de ensino superior à qual os pesquisadores estão vinculados, o Centro Universitário UNA, por meio do CAAE:81323417.4.0000.5098 e do Parecer de Aprovação n. 2.517.392, sendo seguidas as recomendações da Resolução n. 510/2016.

 

Resultados

São Gerardo: território do município de Minas Gerais

O território escolhido para a realização da pesquisa-intervenção foi São Gerardo: um território pertencente a um município do estado de Minas Gerais, cujas ruas nos surgiram marcadas por silêncios, local em que nossos olhares se tornaram curiosos. Esse território foi escolhido por um desejo comum do grupo de pesquisadores em trabalhar como agentes potencializadores de novas formas de vida em comunidades vulneráveis e pouco exploradas em seus recursos de produção de saúde. Uma região aparentemente pouco explorada e com notáveis potências. Inicialmente, registramos as ruas, becos e casas em fotografias e, peregrinando por São Gerardo, conhecemos moradores que relataram como era viver ali.

Inicialmente, estamos tomados por um desejo de descoberta, de criação. Nossos olhares estavam atentos a todos os estranhamentos e movimentos. O grupo de pesquisadores estava alegre e muito entrosado.

Os ônibus que ligam Belo Horizonte a São Gerardo são a possibilidade mais utilizada pelos moradores da região para terem acesso ao trabalho, às escolas e ao lazer, de modo a ampliar formas de vida e oportunidades. Ficamos perplexos com o fato, de o meio de transporte que opera a ligação entre dois mundos tão distantes, como a capital movimentada e esse município, ser tão precário, escasso e à margem da cidade. Acompanhando a enorme fila de pessoas que esperavam o ônibus, uma longa espera, sensibilizamo-nos com semblantes exaustos, alguns rostos mais envelhecidos. Algumas pessoas estavam assentadas no meio-fio ou encostadas nos muros. O ônibus que estavam esperando, na maioria das vezes, estava com bancos e janelas empoeirados, assentos degradados e, não raramente, estragava no caminho.

Em um desses dias, o ônibus foi parado por fiscais. Um dos passageiros demonstrou irritação e disse aos gritos: "Bando de merda! Continua motô! Não tem nada aqui seus merdas"! Esse acontecimento nos provocou indignação, pois em meio a uma série de omissão por parte do Estado aos direitos humanos fundamentais dessa população, ainda testemunhávamos violência, truculência por parte dos fiscais.

Anterior à escolha do território, transitamos por outras regiões desse município. Salienta-se que essa cidade é estigmatizada como "perigosa", pois tem uma grande penitenciária na região. No entanto, surpreendemo-nos com o fato de que se trata de uma cidade com extrema carência. Composta por ruas estreitas, de terra, casebres, moradias sem reboco, esgotos a céu aberto, lixos espalhados por todos os cantos. Um cenário "(sur)real", impressionante.

As primeiras visitas ao território nos provocaram desestabilizações e, ao mesmo tempo, intensificou nosso desejo de descobrir as potências inventadas pela comunidade.

Surpreendentemente, nessa cidade, há uma pequena região com casas de luxo, muitos carros de modelos novos, centro de saúde bem equipados, escolas e muito policiamento local. Os moradores nos disseram: "aqui moram pessoas famosas"! Mas, afinal, que pessoas eram essas? Por que tamanha desigualdade social?

O município tem poucas praças e um parque com quadra de terra para futebol. Segundo os moradores, o município é conhecido como "cidade dormitório", pelo fato de os habitantes "saírem cedo" para o trabalho na capital e "voltarem tarde da noite" para dormir. A cidade permanece com pouca movimentação durante a semana.

Identificamos formas criativas que a população encontrou para sobreviver ao desemprego e à escassez do comércio, que é o fato de as lojas não se restringirem a vender um único produto, mas diversas e diferentes mercadorias, para atender à demanda local e ao próprio sustento, por exemplo, uma lan house que vendia roupas.

São Gerardo tem pouca circulação de pessoas e um clima "pacato" paira no ar. As ruas com curvas de mistério, silêncio e muita pobreza. Ruas de terra, algumas com buracos preenchidos com restos de troncos de bananeiras, muitos cachorros e fraldas usadas descartadas no chão junto ao lixo. No decorrer do percurso, avistávamos muros escritos com frases de músicas de rap e outros "manifestos", como a frase "Chegou o Natal e fim do ano, e nem todo mundo tem dinheiro, pra comprar uns panos. Em vários lugares a festa rola, e por aqui muita mãe chora", escrita em um muro. Essa frase é parte de uma música chamada "Pra Puta de Elite", do rapper Ndee Naldinho.

As casas são simples. Pelas calçadas, avistam-se algumas placas discretas de comércios, como bares, padarias, supermercados e igrejas. As pessoas tinham olhares apáticos, algumas nos expressaram não ter esperança de uma vida melhor, mas os sons vindos de algumas casas, com músicas dos gêneros funk, rap, forró e sertanejo, alegravam o silêncio, assim como os bares, que frequentemente estavam com pessoas bebendo e conversando.

Durante nosso trajeto pelas ruas do município, conversamos com muitos moradores. Um deles foi M., uma menina de 12 anos que "trabalhava" na "Mãe e Filha", uma lan house de sua família. Era um estabelecimento pequeno, com computadores e também com algumas roupas para vender. M. era de poucas palavras, mas nos disse que naquela região todos a conheciam e que não sentia medo de ficar ali sozinha, em um sábado como aquele. A menina tinha um semblante sério e fraterno e nos ressoou certa conformidade com a vida, mesmo sendo tão jovem.

Outro morador, K., era um rapaz jovem muito atento que estava parado na rua durante um longo tempo. Ele nos contou que estava desempregado há muito tempo e que a falta de oportunidades de emprego naquela região dificultava a vida, pois obrigava a maioria dos moradores a irem para a capital. Queixou-se também da falta de investimento por parte da prefeitura. O rapaz foi receptivo e pareceu entusiasmado com nosso desejo de "pesquisar" e potencializar as invenções da região e nos orientou a visitar outros locais para conhecer o território.

Conhecemos também uma senhora, dona de uma papelaria, localizada na garagem de sua casa. No início da conversa, parecia desconfiada do nosso interesse, mas depois ficou muito interessada com a proposta. Em poucos minutos, descreveu as problemáticas da região, as dificuldades por que a família e ela passavam pelo fato de viverem ali. Abordou as dificuldades dos moradores com o deslocamento para o trabalho e o arrependimento de ter se mudado para aquele bairro; porém, empolgou-se quando relatou o companheirismo dos vizinhos, que muitas vezes "passam o olho" nas crianças uns dos outros, que brincam livremente nas calçadas e nas ruas durante todas as tardes. Essa foi outra potência que mapeamos, a solidariedade dos vizinhos, como se fossem todos uma grande família.

Uma cor que expressa a forma como vimos o território São Gerardo é o cinza, os únicos locais "coloridos" eram as igrejas e os bares, que se destacavam por intensas movimentações dos moradores. Na cartografia, a precarização da vida encontrava-se moldada por linhas duras, que tendiam a reproduzir a marca da exclusão social, da inferioridade e pobreza da região. Sensação de menos: menos valia, menos possibilidades, menos consumo. "Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais com memórias organizadas" (Deleuze & Guattari, 1995, p. 26). Que formas são essas que se reproduzem e separam os habitantes de sua potência? Por isso buscávamos as cores e as alegrias, afinal, "Árvores podem corresponder ao rizoma, ou inversamente, germinar em rizoma" (Deleuze & Guattari, 1995, p. 28), denotando a complexidade de uma coexistência nos territórios de reproduções, mas também de invenções.

Procurávamos os "lugares coloridos" da região, lugares também com possibilidades para realização de nossos encontros grupais com os moradores. Visitamos diversos locais: uma casa grande com muros cheios de desenhos - que estava destinada a eventos pagos - e o Centro de Referência em Assistência Social (Cras). Conversamos com a psicóloga responsável, que se prontificou a nos ceder o espaço, mas havia algo estranho naquele local: algo "obscuro: uma árvore seca no espaço externo, poucos móveis, era um local vazio. Pensamos que não permitiria um acolhimento aos moradores de modo alegre e com "luz", como gostaríamos.

Em outro momento, uma igreja católica nos despertou atenção. Parecia se destacar e então resolvemos visitá-la. Uma senhora, que parecia curiosa e disponível, logo se apresentou como responsável pela organização dos eventos e oficinas da paróquia. Ela nos explicou, em uma longa tarde de sol, que as oficinas e reuniões aconteciam para a comunidade no espaço da igreja. Logo, percebemos que a igreja era um espaço potente para encontros e invenções. Aquela senhora era uma agenciadora de projetos para a comunidade, nossos interesses se coadunavam e acordamos que poderíamos contribuir com as ações comunitárias de alguma forma. As diversas demandas eram evidentes, como a de trabalhar com grupos de mulheres e jovens.

Em nossas supervisões, nesse momento, estávamos muito animados e ao mesmo tempo com receio de sermos invasivos, afinal nosso compromisso era potencializar o que ampliava movimentos na região, o que nos exigia respeito e atenção em nossos encontros com os moradores. Essa senhora nos apresentou a um grupo de jovens que estava interessado em contribuir com nossa pesquisa.

O grupo de jovens: a potência adormecida

Em nosso encontro com o grupo, fomos surpreendidos pelo perfil dos jovens que estavam nos esperando. Eles eram líderes de grupos de adolescentes em outras igrejas da região, com papel importante em suas paróquias, eram agenciadores há muito tempo. A formação desse grupo se deu mediante divulgação da própria igreja (dos primeiros membros que estavam no espaço paroquial da igreja do território e que nos receberam no primeiro contato. A participação desses jovens ocorreu de forma voluntária, ao se interessarem pela proposta do projeto, que foi conversada nesse primeiro encontro). Durante toda a conversa, percebemos que havia desejo de realizar algo pela comunidade e eles apresentaram excelentes ideias que já tentaram executar, porém não conseguiram.

Esse encontro nos contagiou, ficamos animados com os próximos que ficaram agendados, mas outros movimentos contrários ocorreram, pois, apesar de toda a produtividade das discussões nos dois encontros seguintes, percebemos certa inércia naqueles jovens, as ideias não saíam dos planos iniciais, eles não tomavam atitude. Foi quando percebemos que os jovens não só dependiam da aprovação do padre, mas apresentavam uma extrema deferência com relação a ele e, ao mesmo tempo, disputavam entre si o reconhecimento do padre. Essa inércia nos provocou questionamentos e inseguranças: como iríamos "trabalhar" com o grupo de jovens na igreja?

Nesse momento, sentíamo-nos desanimados, uma vez que em nossa análise de implicação identificamos nossa expectativa de realizar algo em um tempo que correspondia mais para as exigências da faculdade do que daqueles jovens. Nosso grupo começou a ter alguns desentendimentos. Percebemos que esses encontros não estavam potentes e causavam ressonância em nosso grupo. A partir dessas análises, decidimos mudar a direção de nossos encontros, compreendemos que o grupo autogestivo que estavámos estimulando deveria ser um dispositivo de ações no bairro, convocando as forças, diluindo as linhas duras para outras conexões, uma nova aposta em ações coletivas. Contudo, havia ainda uma resistência quanto à utilização do espaço da igreja, pelo receio de que a associação da proposta de arte, cultura e lazer para os jovens com a religião afastaria as pessoas de outras religiões. Foi nesse momento que decidimos buscar novas alternativas de locais para o encontro do grupo.

O terceiro encontro com o grupo foi em um evento intitulado "Pit Stop Jovem", que já haviam organizado. O sol estava radiante e o dia muito quente, andamos meia hora até o local onde iria ocorrer a confraternização. Apesar de a caminhada ter sido cansativa, o local era aconchegante. Era uma igreja histórica do município, em uma região tranquila, com muitas árvores, que nos transmitia uma sensação de paz, por também ser um lugar "afastado de tudo".

Os jovens foram, novamente, receptivos. O encontro foi pensado, segundo eles, como um momento de reflexão, um momento para interromper a incessante rotina. Estavam lá pessoas com idades variadas, aparentemente de uns 14 anos até uns 53. Durante o encontro, nenhuma pessoa ficou "conectada" à internet e a utilização de celulares se deu apenas para fotos dos momentos do grupo.

O tema do encontro era "Pit Stop": para que os jovens pudessem refletir sobre a vida, através de uma pausa na "correria do cotidiano". A coordenadora do evento levou a letra da música "Trem Bala" e solicitou a todos que escolhessem uma estrofe que representasse "o que é ser jovem". De modo geral, foi dito que é um estado de espírito, a forma como a pessoa se considera, mas, principalmente, o sentimento de ainda ter possibilidade de mudar, de se refazer, recomeçar, independentemente da idade.

Na semana subsequente ao "Pit Stop", marcamos outra reunião com os jovens. Esse encontro teve poucos participantes, mas foi bem produtivo, eles disseram que gostariam de realizar um festival para tratar de assuntos como depressão, suicídio e diversidade cultural. Planejaram dividir os jovens do grupo e cada um realizar uma apresentação teatral sobre um tema. Os jovens pareciam pulsar com tantas ideias, expressavam vontade de transformar o local onde moravam, mas ainda nos afetava a falta de ação e de planejamento concreto do grupo, eram os planos para o futuro. Na semana seguinte, comunicaram-nos que não haviam conseguido planejar o festival devido a empecilhos pessoais dos integrantes. Propusemos um novo encontro para apoiá-los nessa construção, porém durante duas semanas não conseguimos nos encontrar, uma vez que os encontros eram desmarcados pelos jovens. Os integrantes do grupo autogestivo não podiam comparecer devido às responsabilidades assumidas na igreja. Todos os esforços do mês estavam direcionados para festejar o padroeiro da paróquia. De novo percebemos as linhas duras das obrigações na igreja mais valorizadas que as redes. Ademais, o grupo de jovens não conseguia instituir uma coordenação, pois disputavam entre si. O território estratificado em burocracias da igreja, exigências da religião, do padre, predominavam. Sentimos que vidas estavam represadas em hierarquias e fortes relações de poder.

Houve outro encontro com alguns integrantes líderes de adolescentes. Conversamos sobre possibilidades, como aulas de música, capoeira e teatro, mas eles levantaram também os impedimentos burocráticos da igreja. Nesse encontro, identificamos certa competição entre esses jovens, que lideravam igrejas das regiões no entorno. Percebemos que cada um desejava que as ações que pretendiam fossem realizadas na igreja à qual pertenciam. Eles eram um grupo de líderes, porém não conseguiam entrar em acordo. Esse clima dificultava que suas ideias de se concretizassem, pois, como nos lembram Deleuze e Guattari (1995, p. 18), "Os grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização".

Devido às linhas duras que emergiram no grupo, buscamos expandir nosso campo de trabalho para visitar as escolas da região, ainda em busca das cores e da potência que coexistem com essas capturas de forma imanente (Romagnoli, 2014). Visitamos duas escolas: a primeira era em um local mais distante, uma escola muito agitada e barulhenta. Apresentamos à vice-diretora nosso desejo de realizar um levantamento inicial com os alunos, uma enquete, para conhecer o que mais gostavam de fazer, o que lhes interessavam, para discutirmos ações de seus interesses, mas não obtivemos aprovação pelo fato de a escola estar em ritmo de fim de semestre, no momento de aplicação de provas.

Na segunda escola, localizada em um local movimentado, com alunos mais velhos, também fomos bem recebidos. A pedagoga ficou empolgada, disse que estava precisando de "psicólogos na escola", que achava interessante a proposta do projeto e que a escola estaria aberta para nos receber. No entanto, a vice-diretora interrompeu nossa conversa dizendo que seria necessária a aprovação do diretor.

Depois do aval do diretor, a pedagoga nos relatou as demandas da escola e enfatizou o grande número de suicídios entre os alunos. Relatou que no mês de setembro havia realizado uma campanha sobre suicídio e circulou uma lista de alunos interessados em palestras sobre prevenção do suicídio com mais de 100 assinaturas. Esse trabalho, contudo, também não foi organizado em função de estarem no fim do semestre letivo. De novo as linhas duras atravessando as conexões coletivas.

Apesar de tantos atravessamentos, que também nos frustraram, sentimo-nos afetados com o fluxo de forças dos encontros. Ao mesmo tempo em que relações de poder, disputas, inseguranças, atravessaram nossas intervenções, agenciamentos, desejos, invenções, diversidade, compunham encontros alegres que também ocorreram. Foi uma experiência que nos enriqueceu muito, ampliou nosso poder de afetarmos e de sermos afetados.

 

Discussão

A marginalização no território São Gerardo estampava ruas, muros e rostos. A exclusão social surgia em cenas a que fomos submetidos todo o tempo, dando-nos uma sensação de abandono. Para Hunter (2000, pp. 2-3), a "Exclusão social pode ser definida como múltiplas privações resultantes da falta de oportunidades pessoais, sociais, políticas ou financeiras. A noção de exclusão social visa à participação social inadequada e à falta de integração social".

Esse é um processo que empurra os sujeitos para a margem da sociedade; no caso desse território, há uma barreira física ao acesso, destacada pela dificuldade de acesso ao centro urbano. O transporte precário, longas jornadas, ônibus em péssimas condições e passagens caras, dificultam para os moradores acesso ao trabalho, ao lazer e à educação, visto que a maioria da população do município necessita se deslocar para a capital.

Esse fato justifica a definição para o município como "cidade dormitório". O ônibus, além de um veículo, é uma ferramenta determinante na possibilidade de ocupação e consolidação de novos espaços, novas realidades, entretanto, o transporte público tem servido a interesses econômicos privados, em detrimento do interesse público coletivo (Ministério das Cidades, 2004). Segundo Vasconcelos (2001), um transporte regulado pelos interesses privados acarreta um trânsito deficitário e limitante para as camadas menos favorecidas da população que realmente necessita do transporte coletivo no cotidiano.

O estigma de município com muita violência o marginaliza ainda mais, todavia, ao aprofundarmos na dinâmica ali vivida, nos questionamos se realmente a violência que é visível é a mesma descrita nas páginas dos jornais. Perguntamo-nos se aquelas ruas vazias eram mesmo o palco de tanta criminalidade ou se elas apenas eram o reflexo da violência sofrida pelo abandono do poder público, pela exclusão social de uma grande parcela pobre da população. Uma violência que é produzida pelas relações de poder entre as classes sociais. Segundo Silva (2005), podemos chamar de violência estrutural aquela que é responsável pelas condições de produção e reprodução da vida social, fenômeno que envolve aspectos econômicos, políticos e ideológicos, que se relaciona com a falta de acesso aos direitos sociais, bem como com a comercialização das relações humanas.

Faz-se necessário refletir que os sujeitos que vivem em uma comunidade, compartilhando espaços semelhantes, tendem a uma reprodução social do modo de vida, que inclui os padrões de trabalho e consumo, as atividades práticas da vida cotidiana, as formas organizativas ou de participação social, a política e a cultura (Barata, 2009).

O território da comunidade não é apenas geográfico, ele se faz real pelas relações nele existentes, é um espaço no qual a vida transcorre. E é nessa complexidade do espaço vivido, que são produzidas as condições objetivas e subjetivas de vida. As ruas, igrejas, comércios, casas, entre outros locais, só são reconhecidos como tal pelos movimentos que os produzem e dão vida (Santos, 1999). Baseado nas ideias de Deleuze e Guattari (1997), Haesbaert (2006) afirma que o conceito de território, para os autores, traz a ideia de movimento, pois o território emerge como um eterno fazer-se e desfazer-se, compondo um rizoma, uma rede de relações, que se autoproduz por agenciamentos com os mais variados elementos da realidade, aos quais se conecta e reconecta a todo instante. Rizoma composto por modelos já cristalizados no território, mas também por fluxos potentes que podem trazer outras dimensões.

No território, a presença marcante de bares e igrejas nos levam a compreender que tanto o uso de álcool quanto a religiosidade, mesmo que distintos, se configuram como modos de enfrentamento da realidade vivida, alternativas para expressão ou refúgio da voz que não havia encontrado espaço na sociedade. Segundo Villamarim (2009, p. 30), "não há como ignorar que, historicamente no Brasil, as populações mais excluídas dos processos de decisão e da organização social conseguiram se organizar e manifestar suas demandas através de entidades não governamentais".

A exclusão social se consolida como um conjunto de carências que, unidas pela precariedade dos aparatos e equipamentos públicos municipais, produzem dificuldades para lidar com as demandas do cotidiano, com os impedimentos sociais, econômicos, ambientais, de saúde, psicológicos e afetivos, para que essas pessoas possam construir condições dignas de vida (França, 2016).

Em São Gerardo, sentimos muito o impacto das condições precárias de vida dos moradores e nos comovemos com o esgotamento, a indignação e o cansaço na fala deles; mas, movia-nos também uma possibilidade de mudança sutil que se apresentava em cada conversa e que, discretamente, ocorria dentro dos muros da igreja. Inquietavam-nos não as condições de vida caóticas, mas os modos de resistência em prol da ampliação das formas de viver, as inventividades dos grupos, os movimentos apresentados pela comunidade em sua micropolítica nos enfrentamentos das situações de opressão e sofrimentos.

Nessa perspectiva, buscamos potencializar a formação de um grupo que pudesse favorecer os processos de singularizarão. De acordo com Romagnoli (2014), em situações de desterritorializações ou por meio de fluxos de forças que impulsionam para mudanças, ou fugas de situações instituídas objetivantes, dão-se os agenciamentos que provocam mudanças nas formas instituídas. A formação do grupo configurava-se em um dispositivo de expressão da subjetividade, pois, de acordo com Barros (2009, p. 325):

O grupo pode acionar confrontos entre expressões do modo-indivíduo vigente. Ao remeter aos enunciados, não a sujeitos individuais, mas a coletivos, ao percorrer caminhos maquínicos do desejo que não se esgotam em vivências individualizadas, o grupo dispara desconstruções de territórios "enclausurantes" da subjetividade.

Os jovens, no decorrer dos encontros, expressavam ideias sobre ações que gostariam de efetivar na comunidade, no entanto, apesar do objetivo comum em contribuir para a saúde mental da comunidade, principalmente dos adolescentes, o grupo era antiprodutivo, em função das disputas de interesses. Eles buscavam privilégio e reconhecimento pessoal como líderes de regiões distintas, vinculados a outras igrejas. Essas disputas criaram barreiras que dificultaram a emergência de uma coordenação, ainda que transitória, e a consolidação do grupo.

Assim, em consonância com Barros (2009, p. 325), entendemos que é preciso "entrar em contato com as multiplicidades que flutuam, não almejando equilíbrios, mas a invenção de bifurcações de um tempo que é maquínico - tempo de intensidades -, eis a via política de nosso paradigma".

No grupo, percebia-se um paradoxo, ao mesmo tempo em que havia uma resistência à mudança, expressavam desejo de inovar seus trabalhos e funcionamento. Para Vasconcelos, Grillo e Soares (2009), ao formular seus objetivos, o grupo se propõe a uma mudança, ou realização, mas adjacente à mudança apresenta-se também um grau de resistência perante esse desejo de mudar, com dificuldade psíquica e afetiva à aprendizagem e à comunicação no grupo, o que caminha para uma situação que paralisa o grupo ou até mesmo faz com que ele se fragmente.

Entretanto, compreendemos também que essa resistência à mudança em situações de vulnerabilidade não está ligada à falta de desejo e nem mesmo ao conformismo, e sim à ausência de possibilidades de novas experiências para o coletivo ou de frustrações contínuas vivenciadas pelos sujeitos. Considerando a exclusão social que a comunidade vivia, analisamos, a partir de Martín-Baró (1998), que uma comunidade não consegue modificar sua realidade exclusivamente mediante esforços individuais, sendo importante a mediação de descoberta de possibilidades de ações coletivas por especialistas. Nesse contexto, de acordo com Guattari e Rolnik (2005), os profissionais comprometidos com a transformação da realidade social devem trabalhar na produção de experiências concretas, uma vez que por meio delas novas possibilidades de existência surgem e possibilitam novos modos de subjetivação.

Além disso, o grupo, para além da busca de objetivos comuns, deve também atuar como um dispositivo para acionar processos de subjetivação. Para tal, o grupo se torna processo, liga-se ao plano do intensivo do que é vital e existe antes do indivíduo. Antes, vem multiplicidade, vem provisoriedade. Nesse sentido, o grupo deixa de ser o modo como os indivíduos se organizam, socializam-se, para ser um coletivo com capacidade para transformar, para deixar irromper devires. O próprio grupo é, assim, uma subjetividade-multiplicidade imersa em um emaranhado de relações diferenciais e de singularidades pré-individuais (Barros, 2009).

A subjetividade pode ser entendida como uma superfície que apresenta dobras produzidas por esses movimentos inovadores. A dobra seria o movimento operado pelo que está fora do instituído, do normalizado e codificado socialmente. A dobra é a resistência, um confronto na procura de uma fenda para novas possibilidades, para a emergência do novo que está fora do instituído. Para Guattari (1992), a criação de si mesmo é um exercício ético-estético, como vimos anteriormente, é uma arte que tem na vivência do caos, do desconhecido, a possibilidade da construção de algo novo, de uma nova identidade, com ampliação das formas de se reconhecer, de se relacionar com os outros e consigo e de existir. No trabalho desenvolvido no território de São Gerardo, não foi possível promover uma mudança concreta, visível, que esperávamos com a constituição do grupo, mas apostamos nos movimentos que ocorreram e podem ter ocorrido a partir de nossos encontros. Ademais, foi uma rica experiência de pesquisa-intervenção que proporcionou mudanças em nosso modo de sentir, experienciar e viver a realidade e nossos encontros.

Ao longo dos dias, a cada conversa e afeto sentido, uma lente foi construída diante de nossos olhos. Ao fim da pesquisa, não estávamos apenas diante de um lugar estereotipado pela criminalidade, violência e abandono. Não estávamos também apenas naquele lugar de ruas vazias e sem cores. Saltava-nos aos olhos a multiplicidade de movimentos em prol da sobrevivência, da resistência diária a todas as adversidades enfrentadas, os arranjos e rearranjos para lidar com a dificuldade de acesso, a má qualidade do transporte, o desemprego e as demais mazelas vividas pela comunidade. O que experienciamos foi o movimento de afirmação do viver por meio de suas experiências concretas de vida.

 

Considerações finais

Articular práticas profissionais como o grupo, realizadas no espaço da comunidade, nos aproxima do encontro com as diferenças que permeiam o cotidiano comunitário, porém tais práticas devem se desvencilhar do "objeto de caridade" e devem ser sustentadas no movimento de potencialização da vida.

O trabalho coletivo requer o acolhimento de novas formas, para tal, é necessário se afastar de tudo que é fixo, tanto dos saberes, dos poderes, quanto dos discursos cristalizados. É preciso realmente desmedir, pois, como afirma Negri (2003, p. 104), "Neste caminhar, quanto mais o comum se constrói, mais o mundo se desmede".

Na busca da afirmação da vida, a realidade do desejo caminha em direção oposta ao capitalismo que sufoca os fluxos do desejo (Deleuze & Guattari, 2010, pp. 498-499). Dessa forma, nas práticas comunitárias, devemos considerar o afeto e o desejo como elementos potentes para estimular deslocamentos nos modos de pensar e de sentir; é preciso ferramentas que despertem novas experiências. Acreditamos que a metodologia da cartografia e o dispositivo do grupo podem fomentar outras maneiras de ser, não só para os sujeitos das comunidades, como também para os pesquisadores.

A cartografia como metodologia nos permitiu um mergulho na realidade de São Gerardo, vivenciando o movimento de resistência diário e de inventividade em que pudemos presenciar novas formas de existência.

No contexto atual, segundo relatos de moradores, o território enfrenta uma época de reconstrução comunitária depois dos impactos da pandemia, que agravaram os índices de desemprego e a situação de vulnerabilidade socioeconômica das famílias. No entanto, permanecem no território agenciadores e líderes comunitários com a missão de ser essa frente comunitária em torno de novos acontecimentos.

 

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Recebido em: 20/6/2018
Aceito em em: 25/8/2021

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