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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei jul./set. 2021

 

Reflexões acerca da relação entre ensaio, verdade e produção de subjetividade a partir de uma perspectiva foucaultiana

 

Reflections on the Relationship between Essay, Truth and Subjectivity's Production from a Foucaultian Perspective

 

Reflexiones sobre la relación entre ensayo, verdad y producción de subjetividad desde una perspectiva foucaultiana

 

 

Daiana Paula Milani Baroni

Pós-doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorado Sanduíche em Antropologia pela Università degli Studi di Pisa (Itália). Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Saúde Pública pela UFSC. Graduada em Psicologia pela UFSJ. E-mail: daianapaulam@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo trata da relação entre "sujeito e verdade" no contexto de produção científica, no intuito de compartilhar com os demais pesquisadores das Ciências Humanas questionamentos e possíveis experimentações a partir da utilização do método ensaio. Visa, assim, problematizar a relação do sujeito com as verdades produzidas pelas disciplinas científicas condicionadas à programação metodológica no campo da Psicologia, apresentando o ensaio como outra possibilidade de posicionamento no decorrer da pesquisa. O objetivo seria interrogar a condição de privilégio dos saberes que nos atribuem identidades e nos fazem sujeitos e propor um desvio desses mecanismos formais por meio de uma escrita ensaística. Para tanto, autores como Foucault, Barthes, Larrosa e Morin nos lançarão pistas importantes a partir de seus trabalhos. Considera-se, por fim, o ensaio como proposta de estetização em um compromisso não com uma verdade única e universal, mas com os efeitos de subjetividade e o caráter de produção de verdades.

Palavras-chave: Ensaio. Produção de verdade. Processo de subjetividade. Foucault.


ABSTRACT

This article intends to reflect on the relationship between "subject and truth" in a context of scientific production, in order to share with other researchers questions and possible experiments from the use of the method essay. Thus, it aims to problematize the relationship between "subject and truth" produced by scientific disciplines conditioned to methodological programming in the field of Psychology, presenting the essay as another form of positioning during the research. The objective would be to question the privileged condition of the knowledge that assigns us identities and make us subjects and to propose a deviation from these formal mechanisms through essay writing. It is, therefore, a proposal of commitment not with the idea of a single and universal truth, but with its effects of subjectivity and its character of production. For such authors as Foucault, Barthes, Larrosa and Morin will give us important clues from their work.

Keywords: Essay. Truth production. Subjectivity process. Foucault.


RESUMEN

Este artículo busca reflexionar sobre la relación entre "sujeto y verdad" en un contexto de producción científica, con el fin de compartir con otros investigadores en temas de humanidades y posibles experimentos con el uso del método ensayo. Por lo tanto, pretende problematizar la relación del sujeto con "las verdades" producidas por disciplinas científicas condicionadas a la programación metodológica en el campo de la Psicología, presentando el ensayo como otra forma de posicionamiento durante la investigación. El objetivo sería cuestionar la condición privilegiada del conocimiento que nos asigna identidades y nos hace sujetos y proponer una desviación de estos mecanismos formales a través de la escritura. Es, por lo tanto, una propuesta de compromiso no con la verdad única y universal, sino con sus efectos de subjetividad y su carácter de producción. Para esto, autores como Foucault, Barthes, Larrosa y Morin, nos darán pistas importantes a partir de sus incursiones.

Palabras clave: Ensayo. Producción de verdad. Proceso de subjetividad. Foucault.


 

 

Introdução

Estamos preparados para novos caminhos metodológicos? É com essa indagação que pretendemos alcançar a problematização da relação do sujeito na contemporaneidade com "as verdades" produzidas metodologicamente pelas disciplinas científicas. Foucault convida a pensar as condições de possibilidade para a emergência histórica do sujeito moderno, assegurado em suas práticas pelas verdades científicas que lhe objetivam, atribuem-lhe identidades e lhe tornam sujeito. Falar em sujeito, a partir de uma perspectiva foucaultiana, implica situá-lo como forma de subjetividade moderna, apreendendo-o ao mesmo tempo como fonte de conhecimento e como objeto a ser conhecido. Conhecer essa experiência moderna de se guiar pelas verdades científicas liga-se, portanto, à própria experiência de ser sujeito como forma de subjetivação (Prado Filho, 1998). Mas como encaminhar-se em meio às histórias constitutivas de nossas verdades de maneira a estranhar as condições de privilégio dos saberes científicos? Tais reflexões se inserem nas discussões do campo das Ciências Humanas, mais precisamente, em um contexto de pesquisa em Psicologia, no qual temas como a produção de subjetividade e a relação com a(s) verdade(s) são pano de fundo para a discussão de tantos outros temas pertinentes à área.

Temos problematizado no contexto acadêmico os programas restritivos para o conhecimento, a reprodução de métodos científicos advindos de outros campos de saber como ainda produtores de discursos de verdade em Ciências Humanas? Temos questionado os alunos sobre a reprodução mecânica da lógica de associação causal e da simples relação temporal que não coincidem com a complexidade de determinadas pesquisas sociais e com as investigações em torno de questões de subjetividade? Estamos preparados para colocar em questão a vontade de verdade da episteme moderna que nos caracteriza e nos conduz a um estado de reconhecimento mais do que ao estranhamento? Estaríamos, enfim, prontos a nos aventurar na experiência do desconhecer, a incomodar a veracidade dos discursos, a rever a atualidade das práticas, a se posicionar a partir da não conformação de antemão a caminhos preestabelecidos? Tais encaminhamentos fariam parte de uma proposta de compromisso, não com a ideia de uma verdade unívoca e geral a ser descoberta e defendida incondicionalmente, silenciando com isso demais discursos, mas se comprometeria com os efeitos de verdade e com a possibilidade de ampliação e produção de novas versões condizentes com os sujeitos e contextos pesquisados. Implicaria, portanto, uma abertura ao se lançar rumo a se esteticizar no próprio caminho de pesquisa, nos encontros e confrontos com os textos, com as práticas e com os sujeitos. Nesse sentido, autores como Foucault, Barthes, Larrosa e Morin podem contribuir sobremaneira, lançando-nos pistas a partir de seus trabalhos sobre outras possibilidades de condução de pesquisa. Este texto parte de uma proposta dissertativa sobre a condução de pesquisas em Psicologia, no intuito de refletir sobre as implicações ao se assumir o ensaio como uma possível perspectiva.

Caminhar pelas verdades

O desejo de lançar-me neste tema, ensaio, partiu do desconforto no trabalho de construção de textos acadêmicos permeados pelas exigências de omissão do "eu", da censura à manifestação de existência de um escritor e de uma escrita autoral, como se com a retirada do eu, ou seja, da primeira pessoa do texto, a verdade pudesse falar livremente e em seu rigor, longe dos escorregões e mal-entendidos dos que tentam à sua maneira inscrever-se nela. "Inscrever-se na verdade" traz a falsa impressão de que uma grande verdade universal, emancipada do sujeito, abre espaço, acolhendo o pesquisador se ele bem se comportar. Menos perigoso, na altura em que se encontra a discussão sobre o sujeito e a verdade na atualidade, seria considerar a investida dupla contida nessa relação do sujeito com a verdade, analisando esse enlace tanto na perspectiva de uma verdade que se inscreve no sujeito a partir de um trabalho de reconhecimento em um saber quanto na perspectiva também de um trabalho ativo do sujeito em escrever o próprio discurso da verdade de forma a não apenas reproduzi-lo, ou emprestar seu corpo a ele, mas alongá-lo, estendê-lo, fixando-se para isso no método científico.

Essa proposta de problematizar a maneira de se comportar no caminho da pesquisa teve sua inspiração a partir da leitura de um artigo de Jorge Larrosa (2005) intitulado "La operación ensayo: sobre ensayar y el ensayarse en el pensamiento, en la escritura y en la vida", que se utilizando de uma passagem do livro História da sexualidade 2: o uso dos prazeres, de Michel Foucault (1984), aponta para as tantas possibilidades de se experimentar como sujeito ao longo e no contato com os textos, tendo para tanto a operação ensaio como proposta nesse descaminho. Descaminho esse que se revela como uma aposta em outra relação com a verdade, à qual nos voltaremos no decorrer deste texto.

Foucault em seus caminhos de aproximação com as verdades

Larrosa (2005) em seu texto nos apresenta Foucault como um ensaísta, uma vez que o autor toma em seus projetos uma tríplice atitude experimental, pondo como objeto de reflexão e trabalho a experiência com o pensamento, a experiência com a escrita e a experiência com a vida. Em História da sexualidade 2, Foucault (1984) se utiliza do termo ensaio para referir a sua condição naquele livro. Demarcando uma outra conotação ao termo, desprende-se das restrições que o define mais estritamente como gênero literário.

O "ensaio": que é necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exercício de si, no pensamento. (Foucault, 1984, p. 13).

Embora o autor tenha primeiro ensaiado seus caminhos para assim reconhecer-se em seus próprios métodos - arqueológico e genealógico, não se demorou em tematizar o assunto "ensaio", mas podemos desde seus primeiros livros observar uma atividade, uma atitude de experimentação, uma outra proposta de se relacionar com as verdades e com o tempo, recorrendo a diferentes posicionamentos que não as convencionais caminhadas lineares na história, o que caracteriza a percepção de ensaio que trazemos à discussão neste texto.

No livro, Foucault faz referência ao ensaio não como forma literária, mas como operação. O autor versa sobre a curiosidade que o guia em seus trabalhos e a distingue da curiosidade por simples aquisição do que convém conhecer, dando a ela o papel de possibilitar separar-se de si mesmo, provocando o descaminho daquele que conhece. Desse modo, pode-se entender uma proposta de caminhar na produção do saber tendo em vista mais a ruptura, o estranhamento, do que o reconhecimento no saber já produzido e formalizado. Nesse sentido, o autor escreve:

De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. (Foucault, 1984, p. 13).

Nessa mesma passagem inicial de História da sexualidade 2, Foucault (1984) nos fala sobre o exercício de estranhar a mesmice do olhar, diz assim da atividade filosófica como trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento, retirando dos bastidores o que ele chama de "esses jogos consigo mesmo", pondo à vista os processos do pensamento no decorrer do caminho, em vez de seu apagamento e priorização apenas da amostra dos seus efeitos.

Tal posicionamento conteria uma proposta contrária ao que a escrita programada espera do sujeito que conhece, uma vez que se esconde o caminho, os jogos de saber e de poder no embate com as práticas produtoras de verdades e se apresenta uma versão da verdade como revelação, em forma de leis, fugindo assim da compreensão do texto como produção histórica de um ser no tempo, no espaço e como prática de si.

Foucault (1984), ainda na parte introdutória do seu livro, apresenta que seus trabalhos se situam no campo da História, o que não faz dele um historiador, e que são eles "o protocolo de um exercício que foi longo, hesitante, e que frequentemente precisou se retomar e se corrigir (Foucault, 1984, p. 14)", pondo em evidência seu movimento de busca e de riscos em um exercício filosófico que procura pensar a própria história de modo a possibilitar do silêncio do pensamento a emergência de um pensar diferente.

Podemos perceber nesse exercício pensante e indagador que Foucault sustenta um convite a percorrer os caminhos de pesquisa rumo a não escamotear o que sustenta as passadas, denunciando assim os retornos e imprevistos, os jogos que ali perpassam, os regimes de verdade que os atravessam. Ele expõe assim as reflexões norteadoras da construção do que virá a seguir, ilustrando as motivações e a intencionalidade de quem escreve, demarcando de certa forma para que e para quem se escreve.

Em um outro texto, "Microfísica do Poder" (1990a), Foucault nos traz uma elaboração referente à genealogia como possibilidade norteadora nos processos de pesquisa. Nessa análise, Foucault apresenta uma forma de relação com a verdade que se configuraria como método, caminho pautado em indagações que abalam tanto a crença científica quanto a crença filosófica da origem da verdade (e da ideia de sua descoberta) a partir do método clássico:

A razão? Mas ela nasceu de uma maneira inteiramente "desrazoável" - do acaso. A dedicação à verdade e ao rigor dos métodos científicos? Da paixão dos cientistas, de seu ódio recíproco, de suas discussões fanáticas e sempre retomadas, da necessidade de suprimir a paixão - armas lentamente forjadas ao longo das lutas pessoais. E a liberdade, seria ela na raiz do homem o que o liga ao ser e à verdade? De fato, ela é apenas uma "invenção das classes dominantes". O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as coisas, é o disparate. (Foucault, 1990a, p. 18).

Ao descrever a genealogia de inspiração nietzschiana como perspectiva de olhar que se ocupa daquilo que seria desconsiderado como possuidor de história - os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos -, Foucault (1990a) se direciona para a história das rupturas e descontinuidades, e não para a suposta história de linearidade dos fatos partindo de uma remota origem. Desse modo, não privilegia o conhecimento científico, ocupando-se de demais saberes, e também não se restringe às fronteiras entre as disciplinas, discutindo justamente esse movimento de disciplinarização dos saberes. Para o autor, as verdades são historicamente construídas a partir de relações de poder, portanto, para se pensar o sujeito e a produção de conhecimento, é preciso ter em mente as condições de possibilidade para a emergência de um saber, que atrelado ao poder produz essa experiência subjetiva - o sujeito como efeito.

Foucault (1990b) em "Tecnologías del yo" assinala sua postura na contramão da acomodação nas verdades científicas, ao dizer que o ponto principal de seu trabalho não consiste em aceitar os saberes científicos como valores dados, mas em analisá-los como jogos de verdade específicos que homens utilizam para entender a si mesmos.

No decorrer de seus trabalhos, o autor reflete sobre a centralidade atribuída ao sujeito na modernidade. A ideia do humano como ser universal, transcendental, autônomo, racional faz convergir nesse modo de subjetividade moderna o sujeito, fonte de saber e objeto a ser conhecido. Prosseguir no método tradicional das ciências e na concepção de homem atrelada a essa forma de saber é reafirmar de certa maneira a supremacia do sujeito e dessa verdade correlata. Seriam necessárias outras formas de aproximação com a verdade, outros métodos em vias de se produzir outras formas de saber, outros estilos de pensamento e, com isso, outras formas de subjetividade para além dos enquadres habituais do "sujeito moderno".

Rajchman (1993), em "Eros e a verdade", define o estilo criado por Foucault como uma produção em momento de dificuldades, de crises, portanto de crítica. Primeiro a crise do homem como entidade fundante básica, rejeitando assim a face individualizante da autoria tradicional. Uma segunda crise enfrentada por Foucault seria a dos pressupostos políticos, que incorreria na descoberta do pensamento como uma forma de combate estratégico e um estilo de escrita como ato de resistência. Por fim, uma terceira crise, o que Rajchman caracteriza como dificuldade de Foucault consigo mesmo como historiador e militante anônimo, levantando assim a questão do que significa a atividade do pensamento crítico para os que se comprometem com ele. Nesse descaminho de crises em sua vida, em seu pensamento, em seu trabalho, Foucault pôde criar-se e criar uma nova maneira de pensar por meio de sua escrita ensaiante, na tentativa de fugir das experiências anteriores e efetuar um novo começo a cada livro.

Larrosa e o ensaio como experiência do presente em primeira pessoa

Larrosa (2005) tece algumas importantes considerações a respeito dessa mesma passagem de Foucault (1984) em História da Sexualidade 2 e a partir dela nos permite contemplar as particularidades do ensaio como operação da escrita. Ao partir de Montaigne e Foucault, Larrosa desenvolve todo o seu texto de forma a tratar o ensaio como experimentação de si, na tentativa de mostrar como o ensaio pode ser tomado como uma linguagem da experiência que modaliza de forma particular a relação entre experiência e pensamento, experiência e subjetividade, experiência e pluralidade. Assim, descreve o ensaio não apenas como gênero literário inaugurado por Montaigne, mas também como uma operação do sujeito moderno sobre si, como problematiza Foucault, em uma espécie de desvelamento dessa experiência subjetiva moderna possível de ser perseguida por intermédio da escrita.

Desse modo, o autor apresenta o ensaio como forma de se implicar naquilo que cremos ser a realidade, como forma não regulada da escritura1 e de pensamento, também a mais subjetiva, uma vez que expõe as variações históricas e contextuais do sujeito que se põe a escrever. Ele nos fala do ensaio como forma experimental do pensamento e da escritura de maneira a ser autorreflexiva, trazendo implicações como a problematização e reproblematização de si mesmo.

Podría decirse, quizá, que el ensayo es el modo experimental del pensamiento, el modo experimental de una escritura que aún pretende ser una escritura pensante, pensativa, que aún se produce como una escritura que da qué pensar, y el modo experimental, por último, de la vida, de una forma de vida que no renuncie a una constante reflexividad sobre sí misma, a una permanente metamorfosis (Larrosa, 2005, p. 132).

Para Larrosa, o surgimento do ensaio estaria relacionado à possibilidade de uma nova experiência do presente, e para isso faz-se necessário que o passado perca a autoridade e o futuro se apresente como incerto. O ensaio refletiria, portanto, a escritura do presente, relacionando-se à atualidade, à experiência, e não à realidade como percepção verdadeira, uma vez que o tempo é considerado arbitrário, contingente e provisório.

Sendo assim, a operação a que Larrosa põe-se a explorar se ocuparia, por conseguinte, de "quem somos nós agora", "do que se passa agora", "do que podemos pensar" nesse exato momento da história. O autor confere a Foucault essa tarefa de historiador do presente, mesmo que para isso ele recorra ao passado de nossas verdades e crie, assim, uma distância entre nós e nós mesmos, um espaço para a crítica. Sendo assim, o trabalho desse tipo de ensaio empreendido por Foucault se pautaria na proibição da racionalização retrospectiva e projetiva, na negação da história linear e do sujeito constante e fundador, dirigindo-se para a produção de fraturas no passado e desnaturalização do presente, tornando um problema a nossa familiaridade com o hoje. O autor credita ao ensaísta o talento de lançar um olhar ao que normalmente passaria despercebido, ampliando ao infinito o que se tratava de um mero detalhe. Nessa experiência do presente e para o presente, o trabalho seria o de "des-fundamentar" as certezas e as evidências, "des-realizando" o presente e, com isso, o passado.

Nessa perspectiva trazida por Larrosa, o ensaio participa de um dos princípios estruturantes do pensamento moderno e apresenta o sujeito moderno como lugar e fundamento da verdade, filiando-se, portanto, ao pensamento antropológico. Seria, então, uma operação em primeira pessoa:

El ensayo es una escritura y un pensamiento en primera persona, o, mejor, una escritura e un pensamiento que establece una cierta relación con la primera persona: que dice "yo" aunque no diga "yo", que dice "nosotros" aunque la forma que adopta ese "nosotros" sea uno de sus mayores problemas. Además, la primera persona no está necesariamente como "tema", sino como punto de vista, como mirada, como posición discursiva, como posición pensante. (Larrosa, 2005, p. 136).

O autor nos fala, assim, desse sujeito ensaísta que escreve a partir de sua perspectiva e que mesmo sem se anunciar em primeira pessoa no decorrer do texto se põe como objeto a trabalhar, e nesse exercício sobre si mesmo, de escrita, de pensamento e de ensaio, acaba por se modificar. A verdade que está em jogo nesse trabalho parte da experiência viva daquele que escreve, do sentido aberto e móvel do que acontece, e por isso a verdade de que escreve o ensaísta parte de si e para si, sem sustentar-se em nenhuma autoridade ou convenção. A responsabilidade do dito, de acordo com o autor, é sustentada pelo ensaísta, e é essa condição que o torna verdadeiro. O que nos leva a questionar sobre a real possibilidade de o ensaio poder ocupar um lugar em um contexto de pesquisa acadêmica com as demais metodologias, uma vez que não se direciona para uma verdade universal e impessoal.

Ao trazer tais indagações, o autor nos instiga a problematizar se o ensaio poderia realmente fazer cargo dessa experiência que reivindica uma posição não antropológica e não subjetiva do pensamento, da escritura e da vida. Aponta então para Foucault como operador de um exercício de emancipação do ensaio da figura do autor - o duplo literário do conceito filosófico de sujeito, situando o autor como efeito de linguagem, como ficção e transformando a relação entre sujeito e verdade. Com isso, converte em experiência de verdade aquilo que não deixa de destituir ao que fala, pensa, vive e questiona seu próprio discurso, pensamento, sua própria vida. E assim Larrosa observa que o ensaio não se trata, portanto, da expressão da experiência de um sujeito, e sim de um lugar onde a subjetividade se ensaia a si mesma, experimenta-se em relação à exterioridade, ao estranho; onde o que está em jogo é a experiência com sua própria contingência e de sua transformação a partir de uma forma ao mesmo tempo singular e coletiva de estar no mundo. Nessa perspectiva, a importância do ensaio estaria não na posição do sujeito ou na oposição ao sujeito, mas na exposição do sujeito e na constante possibilidade de problematizar nossa condição como sujeito em pleno experimentar.

A operação ensaio, desde seu surgimento com Montaigne como gênero da crise de uma certa maneira de pensar e de viver, até os dias atuais, atua conforme um movimento de renúncia à segurança das teorias e das práticas, sendo o ensaísta um crítico e autocrítico, em vez de um conhecedor. E é esse exercício tido por Larrosa, assim como por Foucault, como prática de liberdade que possibilita ao sujeito "[...] confiarse críticamente a la propia experiencia, no le queda sino experimentar, ver y hacer ver hasta donde es posible hablar y pensar de otro modo, hasta donde es posible vivir de otro modo" (Larrosa, 2005, p. 139).

Sendo assim, Larrosa nesse ensaio perpassado pelos caminhos foucaultianos nos convida por meio de seus jogos e lances de palavras a praticar a liberdade em nossos pensamentos e em nossa crítica; não uma liberdade essencial, substancial, originária a ser reencontrada, mas liberdades plurais de invenção, de remoção de valores, de desnaturalização, de exposição e de experimentação. Liberdades para outras verdades serem possíveis e, com isso, outras formas de viver.

Barthes e a possibilidade da escritura

Barthes (1997, p. 7), em seu texto Aula, discute o termo escritura e alega ter produzido até então "tão-somente ensaios, gênero incerto onde a escritura rivaliza com a análise". Nessa fala inaugural de suas aulas no Colégio de França em 1977, o autor descreve a sua relação com a escrita, com a linguagem e seus poderes, e apresenta o termo "escritura" como discurso no qual as palavras não se fazem apenas instrumentos, mas põem-se em evidência como significantes. A escritura seria apresentativa e não representativa, produtiva e não reprodutiva, e o seu sujeito seria flutuante e impessoal e não o sujeito pleno e pessoal. O poder da escritura estaria não no sujeito que escreve, mas no trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua, no giro dos saberes sem os fetichismos e as fixações das ciências, trabalhando nos interstícios destas. Mas será que estamos preparados para tomarmos como referência essa outra relação com o que é dito e nos desgarrarmos da ideia de sujeito neutro e universal, do sujeito apagado do discurso científico, ou seja, caminharmos para além dessa experiência que nos assujeita em um estilo de subjetivação moderna? Estaríamos prontos e receptivos a outras formas de nos inscrevermos e de escrevermos a história?

Barthes (1997, p. 13) nos traz também a reflexão: "o que faço não é mais do que a consequência e a consecução do que sou", o que nos sugere que a própria língua - em seu código alienante, que dá nome e que, portanto, nos classifica e apropria - nos obriga a enunciar o sujeito e sua ação como atributo. Vê-se então o autor às voltas com o mesmo problema colocado na presente discussão: a insuperável condição de nos pensarmos sempre atrelados à ideia de centralidade de um eu, um eu de onde emana ações e verdades, embora nossa posição em relação à linguagem seja a de assujeitamento. Sendo assim, a linguagem nos fala, diz de nós, obriga-nos a dizer, mas também nos acomoda no conforto de seus signos, nesse misto de servidão e mestria. Caberia a nós, nas pegadas de Barthes, trapacear na tentativa de ouvir a linguagem fora do poder e assim nos conduzir em uma revolução permanente da linguagem, denominada por ele como literatura.

Morin e o método como ensaio gerativo

Morin (2005), em "Educar na era planetária", lança críticas ao método científico como proposta programada, determinística e disciplinar de apreensão da verdade, apresentando o ensaio como outra possibilidade de se enveredar no caminho de aproximação e construção de verdades. O autor define tal posicionamento na escrita como possibilidade de um método como estratégia, como ensaio gerativo em uma atividade "para" e "do" pensamento. A ideia de homem que está por traz dessa procura reflete um sujeito de erros além de acertos, imerso em incertezas e em desordens e não dotado de certezas; o que se opõe à ideia embutida no pensamento científico de um sujeito universal, racional, "descobridor" da verdade.

Distante da ideia de regras certas e permanentes a serem seguidas para se "encontrar" uma verdade, Morin (2005, p. 18) defende que "o ensaio como expressão escrita da atividade pensante e da reflexão é a forma mais adequada para a forma moderna de se pensar". O exercício seria o de caminhar no espaço entre a fixação e fragmentação do pensamento científico e a totalização do sistema filosófico. Sendo assim, o ensaio se configuraria como um método aberto no qual a verdade fugaz de sua experiência pode ser captada. Nessa perspectiva, o método não precede a experiência, mas emerge durante a experiência, e por isso a ideia de um método como programa modelador dessa experiência acaba por desconsiderar o aspecto de construção de um caminho.

Para elucidar as circunstâncias, para compreender a complexidade humana e o devir do mundo requer-se um pensar que transcenda a ordem dos saberes constituídos e da trivialidade do discurso acadêmico. Uma escrita e um pensar que incorporem a errância e o risco da reflexão. É impossível hoje enquadrar a busca do conhecimento nos estereótipos dos discursos e dos gêneros literários herdados. (Morin, 2005, p. 23).

Tal passagem nos remete diretamente às preocupações foucaultianas que concernem à relação do sujeito com verdade apresentadas ao longo deste texto. Morin, assim como Larrosa e Foucault, convidam para práticas de liberdade ao pensamento, em um exercício de se emancipar da dinastia das disciplinas científicas que não permitem a ultrapassagem das fronteiras do método acadêmico. Morin sinaliza o risco decorrente disso, implicado nesse trabalho de pôr-se como experimento para si por meio da escrita menos regrada. Foucault (1994, p. 14) também se pergunta sobre o risco: "Teria eu razão em correr esses riscos?", a que ele responde não caber a ele dizê-lo. E acaba por concluir que tais deslocamentos realizados em seus temas e balizamentos cronológicos em seus estudos lhe trouxeram proveito teórico, precisando melhor seu método e objeto. Assim, em deslocamentos, balizamentos, contornos, retornos, saltos e tombos se desenha uma relação experimental com algo que podemos chamar em sua provisoriedade "verdade".

 

Considerações finais

Este texto, embora tenha versado sobre a possibilidade de uma escritura como uma operação ensaio, permaneceu sobre a égide da escrita acadêmica, ainda que trazendo em todo seu corpo um elogio ao desrespeito à hegemonia do método tradicional. A partir das problematizações trazidas por esses autores, buscou-se gerar reflexões acerca desses saberes/poderes que nos levam a conceber verdades como fundamentais e métodos como sentenças, na crença de se alcançar a iluminação de uma verdade fundamental.

Espera-se que por meio dessas reflexões tenha-se podido oferecer a pesquisadores que se questionam a respeito das diretrizes convencionais do saber um convite à crítica tanto das formas de pensamento que nos fazem o que somos quanto de si mesmo como sujeito que conhece e se reconhece nesse pensamento. Crítica, em sua proveniência em crisis, ou seja, crise, mutação, transformação, aspectos indispensáveis, como nos traz Larrosa, para a dissolução daquilo já sedimentado.

Nesse exercício de experimentação de si no decorrer do texto, de responsabilização pelo dito, de riscos entre os erros e acertos, pode-se, quem sabe, emergir uma outra relação com as verdades das quais nos apropriamos, dando a elas o valor de produção. A partir da emergência dessa modalidade de olhar outras formas de subjetividade, podem ser produzidas outras possibilidades para a história de nossas verdades poderem ser inventadas.

Mas estamos preparados para novos caminhos? O sujeito moderno, em sua vontade de poder e de verdade, ou mesmo, vontade de poder no saber e na verdade, ainda se fundamenta nesse arraigado modelo de subjetividade, assegurando-se, portanto, nos "programas" do saber disciplinados pelas ciências. Esses diálogos de nós mesmos como sujeitos de uma modernidade, de uma história que ainda nos liga à razão como moldura subjetiva, podem então nos conduzir à problematização do que somos na atualidade e do que nos faz conceber e sermos o que somos neste momento.

Dreyfus & Rabinow (1995) nos lembram que de acordo com Foucault não podemos recorrer somente às leis objetivas, nem à pura subjetividade, nem às totalizações da teoria, são as práticas culturais que nos fazem o que somos, e para conhecê-las precisamos nos confrontar com a história do presente. Dessa forma, o ensaio em seu movimento de problematização do presente nos abre caminhos para novas possibilidades com a verdade, tendo-a como produção e produtora de sujeitos, de uma cultura, inventando assim o que ainda não existe.

Eu nunca escrevi nada além de ficções, e tenho perfeita consciência disso. Apesar de tudo, eu não gostaria de dizer que estas ficções estão fora da verdade. Acredito que seja possível fazer funcionar a ficção no interior da verdade, introduzir efeitos de verdade num discurso de ficção e, assim, chegar a fazer produzir no discurso, a fazê-lo "fabricar", alguma coisa que ainda não existe, alguma coisa que se "ficcionalize". "Ficcionaliza-se" a história a partir de uma realidade política que a torna verdadeira, e "ficcionaliza-se" uma política que ainda não existe a partir de uma verdade histórica. (Dreyfus & Rabinow, 1995, p. 223).

O ensaio se apresenta, enfim, como possibilidade de se esteticizar, uma vez que o ensaísta nesse projeto faz algo de si mesmo, modifica-se escrevendo, pensando, ensaiando; assim como é capaz de modificar a cultura. Uma subjetividade se produz diferentemente nesse exercício, pois "no se trata de medir lo que hay, sino de medirse com lo que hay, de experimentar sus límites, de inventar sus possibilidades" (Larrosa, 2005, p. 137). E é nesse trabalho de pôr-se à prova ensaiando que novas possibilidades de vida se tornam possíveis.

Podemos assim dizer que Foucault ensaiou ao deslocar o saber histórico, ao levar sua escritura além das fronteiras das disciplinas, ao fazer sua admissão nas ciências por meio da inserção de seus textos de modo a inquietar o sujeito em seu lugar de quem fala, de quem produz saber. E isso implica uma forma de poder, uma outra maneira de apoderar-se de um saber, de fazer-se senhor em seu caminho.

Quando se esteticiza em uma outra experiência subjetiva com as verdades dos discursos é que surge a chance da trapaça na escrita, da libertação momentânea do poder dos textos que nos fazem o que somos. O ensaio pede, assim, uma reflexibilidade da vida sobre si mesma, uma disposição a pôr-se novamente na ordem do discurso, sob o risco de se submeter ao seu desejo de agarrar, resistindo de modo a rivalizar forças, pondo-nos em um lugar diferente a cada fala, criando outros sujeitos e verdades.

 

Referências

Barthes, R. (1997). Aula (L. Perrone-Moisés, Trad.). São Paulo: Editora Cultrix.         [ Links ]

Dreyfus H. L., & Rabinow, P. (1995). Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica (V. P. Carrero, Trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (1984). A história da sexualidade 2: o uso dos prazeres (12a ed., M. T. C. Albuquerque, Trad.). Rio de Janeiro: Edições Graal.         [ Links ]

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Recebido em: 7/5/2020
Aceito em: 10/8/2021

 

 

1 O termo escritura é utilizado por Barthes em 1977, ocasião em que descreve e diferencia escritura de escrita, uma vez que a escritura seria apresentativa e não representativa, produtiva e não reprodutiva, e o seu sujeito seria flutuante e impessoal, e não o sujeito pleno e pessoal. No tópico destinado a Barthes no decorrer deste artigo, essa discussão será melhor aprofundada.

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